Autor: Brian Vroman
Fonte: http://www.infidels.org/kiosk/article856.html
________________________________________________________________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________________________________________________________________
A maioria dos teístas tradicionais afirma que Deus possui certos atributos. Geralmente, Ele é dito onisciente, onibenevolente e onipotente. É com o último atributo listado que nos ocuparemos aqui. Devemos começar definindo nossos termos: o que o termo “onipotente” significa? A maioria dos teólogos utiliza o termo para dizer que Deus é capaz de fazer qualquer coisa que não seja logicamente impossível. Portanto, Deus não pode tornar falsa uma proposição necessariamente verdadeira; ele não é capaz de traçar a quadratura do círculo; ele não pode fazer com que 2+5=17. Os teólogos adotam esta definição da onipotência para evitar a espécie de paradoxos exemplificada em questões como: Deus pode criar um objeto tão pesado que não seja capaz de ergue-lo? Tanto uma resposta positiva quanto uma negativa para esta questão implicam uma limitação ao poder de Deus. Ao excluir de consideração tais proposições dizendo que Deus não pode fazer coisas logicamente impossíveis, e acrescentando que esta limitação específica não implica um limite verdadeiro à onipotência divina, os teólogos esperam se esquivar de um problema constrangedor e intratável.
Mas e quanto à afirmação, mais uma vez sustentada por muitos, se não pela maioria, dos teólogos cristãos, de que Deus criou o mundo ou o universo ex nihilo – a partir do nada?
Do modo como é enunciada, esta afirmação apresenta uma dificuldade considerável para os teólogos, embora até onde sei este problema não tenha sido tratado adequadamente.
Para compreender o problema, recorreremos ao grande David Hume. Hume argumentou esplendidamente que qualquer proposição que não seja nem analítica nem sintética (embora Hume não tenha utilizado estes termos) não passa de nonsense. Uma proposição analítica é aquela verdadeira por definição. Dizer, por exemplo, que todos os genitores masculinos são pais é uma mera verdade linguística. “Genitor masculino” e “pai” significam a mesma coisa (alguns sugerem que tal não é o caso com “papai”, que possui conotações afetivas adicionais). Uma verdade matemática, como 2+1=3, é outro exemplo de enunciado analítico: 2+1 é só outra maneira de dizer 3. Hume ressaltou que enunciados analíticos, os quais ele chamou de “associações de idéias”, são meras tautologias, e portanto não oferecem nenhum conhecimento novo sobre a realidade.
Por outro lado, enunciados sintéticos não são necessariamente verdadeiros – eles não são verdadeiros por definição. Um exemplo seria “o gato está no mato”. A fim de saber se isto é verdade, precisamos conferir para ver se o gato realmente está no mato. Podemos descobrir que o gato definitivamente não está realmente no mato, podendo em vez disso estar, digamos, fazendo suas necessidades em sua caixinha de areia. Podemos também descobrir que, conferindo mais de perto, o que a primeira vista pensamos ser um gato na verdade é um cãozinho felpudo. Em outras palavras, proposições sintéticas são conhecidas através da percepção sensorial e, como nossos sentidos nos enganam, sua veracidade jamais pode ser estabelecida completa e definitivamente. Em relação a alguns enunciados sintéticos, também patinhamos na debilidade intrínseca – se a certeza for nosso padrão – do raciocínio indutivo (isto é, obviamente, diferente do famoso Problema da Indução de Hume, que lida com a causação, um conceito que Hume afirmou não ser nem analítico nem sintético). Por exemplo, podemos ver cem mil cisnes brancos, e portanto concluir que todos os cisnes são brancos. Todavia, existe a possibilidade de que o próximo cisne que avistarmos seja na verdade preto. No debate sobre a questão da existência de Deus, William Lane Craig é o melhor representante do lado teísta. Ele adora dizer: “do nada, nada vem”. Ele usa esta afirmação como um argumento implicando que deve ter existido um criador-agente, ou seja, Deus. Mas que espécie de proposição é o enunciado “do nada, nada vem”?
Talvez seja um enunciado sintético. Se assim for, o que Craig está realmente dizendo é que ele jamais viu alguma coisa surgir do nada, e isso é tudo o que ele pode dizer. É como o caso dos cisnes brancos. Até o presente momento, ele nunca viu alguma coisa surgir do nada. Mas, assim como o observador de cisnes pode plausivelmente cruzar com um cisne negro em algum momento futuro ( a menos que ele possua alguma razão independente para acreditar que não existem cisnes negros), se a afirmação de Craig for sintética, ele não pode excluir a possibilidade de algum dia assistir algo surgindo do nada.
Se, por outro lado, Craig estiver tratando a afirmação “do nada, nada vem” como um enunciado analítico – se ele sustenta que ela é verdadeira por definição – ele está então fazendo a afirmação muito mais forte de que é uma impossibilidade lógica algo surgir do nada. Mas se isto for o caso, então como fica a definição de onipotência? Craig teria então que afirmar que Deus pode fazer até mesmo o que é logicamente impossível. Mas isto nos traz de volta ao tipo de enigmas que os teólogos estão acostumados a evitar. Velhas questões como se Deus pode fazer um objeto tão pesado que não é capaz de ergue-lo deveriam ser recolocadas em pauta, porque foi dito que Deus é capaz de fazer o que é logicamente impossível. E, deve-se sugerir, se isto é o caso, as regras da lógica caem fora quando se trata de Deus, e pode-se indagar que relação as regras da lógica mantém com a Divindade. No mínimo, isto parece colocar um problema para Craig, que pretende usar argumentos lógicos para provar que Deus existe.
Mas há um outro problema bem mais significativo para Craig e outros apologistas. O mais poderoso argumento contra a existência de uma divindade nos moldes teístas é o universalmente conhecido Problema do Mal. Craig tenta contornar este problema invocando uma versão da Defesa do Livre-Arbítrio. Resumindo, ele e outros similarmente persuasivos querem argumentar que é logicamente impossível para Deus criar um mundo em que nenhum mal ou sofrimento exista devido ao fato de que as criaturas livres optarão algumas vezes pelo mal. Mas se é realmente o caso que Deus pode violar as regras da lógica ao criar algo literalmente a partir do nada, então a defesa do livre-arbítrio também desmorona. Muitos, eu incluso, argumentariam que não é logicamente inconcebível para Deus criar um mundo em que suas criaturas são agentes morais livres e mesmo assim escolhem o bem todas as vezes (não é assim que se imagina que o Paraíso seja?), mas mesmo se concedermos que é uma impossibilidade lógica, Craig ainda está encurralado. Suas opções são as seguintes:
1. dizer que Deus pode fazer o que é logicamente impossível, e portanto não está cerceado pelos limites da lógica, sendo-lhe possível criar criaturas livres que optam pelo bem em todas as situações;
2. dizer que Deus não é capaz de fazer o que é logicamente impossível, mas neste caso, é logicamente impossível para Deus criar o universo ex nihilo.
Uma outra alternativa possível para Craig é tratar o enunciado “do nada, nada vem” como um enunciado sintético. Mas neste caso ela definitivamente não pode ser apresentada como uma prova de que algo não pode surgir do nada; antes, ela não passa de uma confissão de que o próprio Craig nunca testemuhou nenhum evento deste tipo em suas experiências prévias. Mas é difícil imaginar que isto seja tudo o que Craig ambiciona. Existe mais uma possibilidade. Lembrem-se, Hume identificou uma última categoria para aquelas proposições que não são nem analíticas nem sintéticas, e a esta categoria ele chamou nonsense. É tentador concluir, ao vê-lo repetindo como uma mantra “do nada, nada vem”, que a afirmação de Craig pertence à esta última categoria. Entretanto, é mais provável que ele entenda a afirmação em seu sentido analítico, mas ao faze-lo ele termina por enfraquecer sua própria posição.
________________________________________________________________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Do mesmo autor: William Lane Craig E O Sofrimento Humano
Leia também: Criação Ex-Nihilo – Sem Deus
Como levar a sério alguém que digita tão errado?
Se Deus for a própria realidade, como citado no cristianismo: nele nos movemos, somos e existimos, não seria uma criação do nada. A própria existência de Deus daria existência a realidade. Você deve saber que o universo não pode ter um início, se tiver, as leis físicas conhecidas até momento não sustentam esta hipótese.
A proposta do big bang diz que antes do mesmo existiam flutuações quânticas, em outras palavras, elementos que constituem tudo o que existe, como o átomo (mésons, quarks, barions), no fundo são todos quarks . Se existe algo, existe espaço e consequentemente tempo, logo universo/existência. Não se pode provar que algo pode vir do nada, pois já existe algo. Se dissermos que todas forças do universo se anulam, diríamos que no início a soma de todas as forças seria 0 e, portanto, poderia surgir algo do nada. O problema é que não se separa essas cargas por si só, sem algo que cause isso. Precisaria de outros agentes, e note que isso seria algo e não nada. Para que o Big Bang ocorra, algumas leis físicas precisam não existir ou serem quebradas, porém as evidências levam a um início em um tempo finito, aí está o ponto da questão. Cargas não se separam sozinhas, uma vez que ela é a origem de tudo, só existiam elas. Mas se você admitir que havia algo mais para separá-las, então o “nada” não existia.
Portanto, sempre existiu algo. Algo implica existência, existência implica universo, universo implicaria necessariamente em Deus, se Ele for Tudo… Isso pra não começar a falar de existência de realidade metafísica, não se pode provar, nem desaprovar… Logo Deus, sendo eterno na concepção cristã, seria existência de realidade é Portanto algo eterno. Então poderíamos dizer que não existe algo sem Deus, pois são intrinsecamente ligados. Mas dizer que existiu Deus porém sem algo, entraríamos na concepção do que é algo, logo realidade metafísica novamente. Portanto isso refuta seu argumento de onipotência limitada a coisas logicamente possíveis relacionada a criação ex nihilo.
*2+5=17? Segundo a palavra Jesus multiplicou cinco pães e dois peixinhos para muitos, logo alguém onipotente pode fazer.
*Deus pode criar um objeto tão pesado que não seja capaz de ergue-lo?
Pode como onipotente, e depois seria muito fácil como onipresente se manifestar na sua própria frente possuindo o atributo necessário para erguer o objeto sem deixar de ser a mesma pessoa.
Se eu que sou leigo consigo pensar em uma resposta quanto mais alguém que seja onisciente não o faria??
Olá Gilmar, como vai? Achei muito interessante esse seu texto, realmente significativo. Agora, gostaria de perguntar sobre um argumento oferecido pelo filósofo Mário Ferreira dos Santos sobre a questão do nada absoluto e possibilidade do ser. Segundo ele, o nada absoluto não poderia existir, visto que se existisse, então descartaria a possibilidade do ser. Mas se o ser é possível, logo não haveria o nada absoluto em qualquer momento.
Me parece bem coerente e uma razão epistemológica razoável para desconsiderar a possibilidade de algo vir do nada. Vou lhe passar a explicação em vídeo que ficará mais coerente, é o próprio autor do argumento que fala no caso.
O começo da fala fica em 01:00:17.
Desde já grato, até a próxima!
Eu compreendo que esta postagem é antiga, mas tenho que dizer que o argumento aqui exposto é falacioso. Isto talvez se deva à maneira simplista com que o próprio Craig aborda certos conceitos filosóficos, de modo que se torna fácil um desentendimento sobre o que estes conceitos significam, ou talvez a uma falta de atenção por parte dos ateus.
Em um primeiro lugar, tenho que dizer que o autor erra em utilizar o vocabulário analítico/sintético para se referir aos conceitos de necessário/possível. Hume não utilizou este vocabulário, quem primeiro o introduziu foi Kant, e de uma maneira muito diferente do que foi apresentado. Kant faz uma distinção entre juízos a priori e a posteriori, os primeiros sendo necessários e independentes da experiência, enquanto os segundos sendo dependentes da experiência, e meramente possíveis, isto é, incapazes de fornecer uma certeza. Em seguida ele faz uma distinção diferente entre juízos analíticos e sintéticos, e afirma que todos os juízos matemáticos são sintéticos, o que evidentemente vai de encontro ao uso do autor.
Em seguida se afirma: ” No debate sobre a questão da existência de Deus, William Lane Craig é o melhor representante do lado teísta.” Nem em sonho Craig é o melhor representante do lado teísta. Ele é simplesmente o mais famoso atualmente, e mesmo assim deve muito a outros apologetas anglófonos, como Platinga ou Swinburne, cujos trabalhos são tão bons, ou até melhores, que os do Craig, e eu acredito que ele próprio reconheça isso. Ademais, a apologética moderna não chega perto do nível da discussão medieval; muito uso do probabilismo e de teorias científicas atuais, argumentos que faltam profundidade e atenção aos detalhes, e ademais um número pequeno de argumentos. Até certo ponto é necessário que seja assim, uma vez que o que ele faz é um trabalho de popularização da apologética entre pessoas leigas em filosofia. Mas se quiser discutir com gente grande, discuta com tomistas.
Agora quanto ao ponto fundamental do artigo, o que deve ser entendido é que quando se diz que “do nada, nada vem” pode-se querer dizer duas coisas: em relação ao movimento, que nada devém sem um suposto(uma matéria pré-existente), uma causa eficiente, ou ainda, colocando a questão de sobre o ponto de vista de Leibnitz, uma razão suficiente de por que devém. E em relação a criação, que como explica Santo Tomás na Suma contra Gentios não é um movimento, diz que nenhum contingente pode ter ser sem uma causa eficiente primeira, ou ainda segundo Leibnitz, sem uma razão suficiente.
Não há nada de absurdo nisto, quando se diz que Deus cria algo de nada, não se quer com isto dizer que ele pega uma porção de nada e transforma em alguma coisa, ou que faz alguma coisa sem ser causa eficiente da geração desta coisa, ou que execute tal ação dentro de um fluxo de tempo; a criação, como explica Santo Tomás, é uma relação de dependencia da criatura com o Criador. O que Craig na verdade quer dizer é que é sempre necessário, em toda geração de alguma substancia seja temporal ou não, pressupor uma causa eficiente, ou seja uma causa que atualiza o ente gerado, mas não uma causa material, ou seja um suposto.
A confusão se encontra neste múltiplo sentido da expressão. Quando se diz que Deus tira algo de nada, se quer com isto meramente dizer que faz alguma coisa sem utilizar uma matéria pré-existente, e não que a faz sem uma causa eficiente ou agente(que é Ele mesmo). Já quando Craig diz que nada vem do nada, quer com isto apenas dizer que nada se pode fazer sem uma causa eficiente, e dizer isto não é mais do que afirmar, contra Hume, a “analiticidade” do princípio de causalidade, coisa que praticamente todos os filósofos anteriores estão de acordo.
Em seguida o autor fala sobre o problema do mal. Bem, não acho que o propósito deste artigo seja tratar especificamente deste problema, então não faz sentido gastar muito tempo falando dele. No entanto, deve se dizer que uma vez que Craig nunca afirmou que Deus tem a possibilidade de criar um absurdo lógico, como se mostrou, não segue que a sua defesa contra o problema do mal seja falha. Ademais, tem-se que se salientar que Craig nunca tentou realmente provar a existencia de Deus, o que aliás é uma crítica contundente que alguns tomistas fazem a este tipo moderno de apologética, pois foca em argumentos probabilísticos para a existencia de Deus, em detrimento das verdadeiras provas. Ora, daí já se ve que não é pouco razoável uma interpretação “sintética” do princípio de causalidade, e nem por isto, ao menos pelos padrões probabilísticos deste tipo de apologética, o argumento se torna fraco.
Tem-se que considerar também que nenhum filósofo sério hoje em dia dá atenção ao problema lógico do mal depois da humilhação sofrida por J. L. Mackie(veja http://www.iep.utm.edu/evil-log/#H2). Assim, só se poderia propor hoje em dia com seriedade o problema probabilístico do mal, que não passa de uma afirmação “sintética”, e que tem também seus problemas associados, especialmente se considera-se que é logicamente impossível que Deus pudesse criar um mundo sem nenhum mal, o que é a opinião de diversos teólogos. Quanto ao paraíso o que se deve considerar é que a vontade humana não pode ser confirmada no bem por natureza, pois é criatura falível, mas só pela graça, como afirma Santo Tomás na questão 24 do De Veritate. Ora, a graça só leva ao paraíso mediante a sua aceitação livre pelo recipiente humano; por onde não é inteiramente dependente da vontade de Deus que haja um mundo sem males, mas passa pela livre vontade da criatura.
Desculpe pela falta de alguns acentos, o teclado não está funcionando direito.
Olá, caríssimos, fiz uma refutação do problema apontado: http://rafaelsandoval.blogspot.com.br/2012/09/resposta-umproblema-para-os-apologistas.html
Att
Rafael, gostei muito de seu texto, escrito com clareza, objetividade e domínio do assunto. Ainda preciso pesquisar mais a fundo acerca de sua resposta; a princípio, porém, gostaria de assinalar apenas que se o princípio “do nada, nada vem” for, como você afirma, uma mera reformulação da primeira premissa do kalam, ele não faz absolutamente nada para elevar seu status epistêmico, sendo esta a intenção de quem o invoca. Sem mais no momento,
Gilmar
Em tempo, a criação ex nihilo apenas se contrapõe a criação ex materia, da corrente filosófica que falei acima. O nada tomado na concepção católica é o nada material – não o metafísico. Salvo engano, há comentários sobre isso na obra de Santo Agostinho ou de Santo Tomas.
Prezado Gilmar,
Bem, desconheço todos os textos disponibilizados por seu excelente blog, portanto não posso dizer se realmente conseguistes refutar ou objetar os pensamentos da filosofia teista (futuramente, tomarei contato com outros textos de seu site, inclusive, os que me indicastes). Entretanto, a julgar pelo presente texto, que diz trazer uma problemática para apologética, creio que não. Dessa forma, limito-me apenas comentar o presente, sem adentrar em outras questões trazidas por outros textos deste blog, até por que o faço por mero hobbie, e sem qualquer pretensão de disputa acadêmica. Se quiseres acrescentar alguma informação constante em outro texto pode fazer, mas não irei nesse momento entrar em contato direto com todos os textos aqui postados. Como diz o adágio popular: um problema por vez.
Então, a pergunta é esse texto traz realmente uma difucldade para apologética? A resposta é não, pois não passa de um mero jogo de palavras que parte de uma petição de princípio.
Primeiramente, é importante relembras as duas perspetivas da criação e as implicação que escolha por uma delas traz aos atributos de Deus. A linha gnóstica, defendida por algumas escolas gregas, aponta que Deus criara o universo a partir de uma matéria eterna pré-existente, sendo os gnósticos – segundo sua própria teoria – negava a qualidade de onipotência a Deus. Por sua vez, a Santa Igreja, notadamente a escolástica, sempre defendeu que Deus criou universo sozinho, sem necessidade de qualquer outra coisa externa a ele, por isso disse ser ele onipotente. Essa noção será importante para o que vem a seguir:
Com isso, podemos dizer que o texto não traz nenhuma dificuldade para idéia gnóstica da criação. Deus criara o universo a partir da matéria, não possuindo ele a característica da onipotência. Agora, será que o texto traz uma problemática para a concepção católica?
Inicialmente, é de se dizer que o texto indica que Deus teria que criar o universo com o nada (para evitar confusão do a partir). Mas se o nada não é nada como Deus criou algo com isso? Bem, a primeira questão que aponto é que a premissa de que “Deus criou o universo com o nada” é auto-contraditória, pois se há Deus não há o nada. O nada não pode coexistir logicamente com Deus. Então, a premissa já por si só já é falha. Irei melhorá-la, a fim de acabar com a nuvem de fumaça trazida pelo texto: Deus criou o universo sozinho, sem nada externo a ele mesmo. Dai por que é descabido dizer que a criação do universo por Deus, sem qualquer coisa externa a ele mesmo, viola o princípio metafísico de que “do nada, nada vem”, pois se há Deus não há o nada real, não podendo ambos coexistirem logicamente.
Agora, a questão do milhão é a seguinte: É logicamente impossível que Deus tenha criado o universo sozinho? Se é explique o porquê? Mas sejas direto e franco. Gilmar, não entendi direito sua explicação do porquê Deus não pode causar sozinho o universo. Não sei pareceu que você estava enxertanto uma citação de um de seus textos, mas para mim ficou meio sem sentido. Confio na sua habilidade de síntese e clareza na próxima vez. Lembre-se que sou um mero leitor do seu blog, um leigo no assunto.
Entretanto, arrisco-me a lhe entender. Ao que parece você quis dizer que Deus precisaria de uma condição para fazer atuar sua vontade (causa eficiente do universo). Ora, se Deus precisa de algo para fazer alguma coisa possível (criar universo) ele não é mais onipotente, portanto, seu texto já está negando uma qualidade da ideia de que visa refutar. Eis a petição de princípio existente: um Deus onipotente precisa de algo para criar o universo. Isso é auto-contraditório, caro Gilmar. Ser onipotente é justamente fazer tudo aquilo que é possível de modo incondicionado. A onipotência é condição geral atribuida a Deus para fazer tudo aquilo que é logicamente possível. Se ele precisasse de algo seria o Deus da gnose.
Agora, irei enfrentar os paradoxos da onipotência, refutando o mais conhecido que é o da pedra. Deus criou o universo incondicionalmente, por meio de sua vontade, diante da sua condição de ser onipotente. Poderia um ser onipotente então criar uma pedra que não possa mais levantar? Gilmar, esses paradoxos nem combinam com o alto nível intelectual do seu blog, pois não passam de meros cacoetes mentais. Mas a pergunta certa seria: pode existir logicamente um pedra que um ser onipotente não possa levantar? Colocando na frase: Existe uma pedra que um ser onipotente não pode levantar. Essa frase é auto-contraditória, pois se há uma pedra que um ser onipotente não pode levantar é por que não existe onipotência. Ambos não podem coexistirem no mesmo universo. Logo se elenca premissas contraditórias, deve-se também aceitar conclusões contraditórias. Assim, é formular desses paradoxos: colocam premissas contraditórias, mas exigem conclusões lógicas.
Att.
Flávio, tentarei ser sucinto ao máximo nesta resposta, restringindo-me a princípio ao conteúdo do post em discussão. Ao final, tentarei explicar o que eu quis dizer quando escrevi que a proposição “A vontade de um ser pessoal onipotente é a causa da existência de x” contém uma contradição implícita.
Mais uma vez, ao acusar o argumento de incorrer em petição de princípio, você parece não ter compreendido o modo como ele é construído. Não se está aqui a negar a onipotência conforme definida pelas correntes teológicas dominantes no corpo das doutrinas católicas, mas desafiando-as com armas encontradas em seu próprio arsenal, por assim dizer. Não se está aqui interpretando a proposição “Deus criou o universo a partir de nada” como se ela devesse significar que o nada seja algum tipo de substância que serviu de matéria-prima para a confecção do universo; isso de fato seria puro nonsense. Na verdade ela é interpretada exatamente da maneira como você a compreende, e é exatamente esta interpretação que coloca seus adeptos em apuros. Veja bem, reescrevendo a proposição “Deus criou o universo a partir de nada” com os esclarecimentos que você acrescentou em seu último comentário, ela ficaria assim: “Deus criou o universo a partir de nada material”. Interpretada coerentemente, ela significaria “Deus não criou o universo a partir de nenhuma substância material”. Se também faz parte do credo católico que antes de o universo existir, nada de material existia, a proposição “do nada, nada vem” só pode significar “se nada de material existe, nada de material pode vir a existir”. Concorda?
E é a partir deste ponto que o argumento apresentado neste post começa a operar. A proposição “do nada, nada vem”, que, reescrita conforme a compreensão católica apresentada por você, ficaria “do nada material, nada material pode vir a existir”, ou, para ficar mais claro e não dar margem para interpretações nonsense, “se nada de material existe, nada de material pode vir a existir”; esta proposição é um enunciado analítico ou sintético? Se for um enunciado analítico, é uma verdade lógica, uma tautologia, e, portanto, nem mesmo a onipotência divina, que é limitada pelas leis da lógica, pode viola-la. Mas a doutrina da criação ex-nihilo implica em sua violação. Mas se os teístas derem este passo, isso coloca em cena mais uma vez paradoxos como o da pedra, e também implode a defesa do livre-arbítrio, que afirma que é logicamente impossível que Deus crie seres dotados de uma vontade livre que sempre realizam ações moralmente corretas.
Por outro lado, se a proposição “do nada, nada vem” (interpretada coerentemente conforme a concepção católica apontada por você, ou seja, significando “se nada material existe, nada material pode vir a existir” for uma mera proposição sintética (ou seja, uma que depende de verificação empírica), ela pode ser refutada a qualquer momento (lembre-se da analogia com os cisnes brancos e o cisne negro), e então Deus cai fora do quadro como responsável pela origem do universo. Afinal, se coisas materiais podem surgir a partir de substâncias imateriais, por que exatamente a mediação de Deus seria necessária?
Termino aqui meus esclarecimentos específicos ao conteúdo deste post. Agora, esclarecerei a “questão do milhão”. Quando escrevi que a proposição “A vontade de um ser pessoal onipotente é a causa da existência de x” implica uma contradição para qualquer x, eu tinha em mente o seguinte. Considere um cubo de gelo derretendo sobre uma mesa. Pode-se dizer que o calor recebido pelo cubo de gelo do ambiente é a causa de seu derretimento. Há dois eventos ocorrendo, a absorção de calor externo pelo gelo e sua mudança de estado físico. Diz-se que o primeiro evento é a causa do segundo. Contudo, seria possível inferir o segundo evento a partir do primeiro a priori? Ou seja, seria possível deduzir logicamente, sem nenhuma verificação empírica, que a partir de uma determinada temperatura um cubo de gelo derrete? É possível deduzir da proposição “um cubo de gelo absorve calor do ambiente externo” a proposição “o cubo de gelo derrete”? A resposta é um sonoro e categórico NÃO. A proposição “A absorção do calor externo pelo cubo de gelo é a causa de seu derretimento” é uma proposição sintética, cujo conhecimento depende da experiência, da interação com o mundo exterior. Ou seja, causas não são condições logicamente suficientes de seus efeitos. Talvez sejam condições materialmente suficientes, mas não logicamente.
Considere agora a proposição “A vontade de um ser pessoal onipotente é a causa do princípio da existência do universo”. Esta proposição, ou alguma equivalente, é a conclusão de muitas versões e variantes do argumento cosmológico. Ela diz que o evento “um ser pessoal onipotente deseja que o universo começa a existir” é a razão para a ocorrência do evento “o universo começa a existir”. Contudo, segue logicamente da própria definição de onipotência que o que quer um ser onipotente deseje necessariamente seja instanciado. Esta é uma verdade lógica, uma tautologia, um enunciado analítico que independe de qualquer comprovação empírica. Ou seja, a ocorrência do que um ser onipotente deseja é uma implicação lógica da vontade de tal ser. Logo, esta vontade do ser onipotente não pode ser uma CAUSA do que foi desejado, já que causas não são condições logicamente suficientes de seus efeitos. Caso esta explicação não lhe satisfaça, o que acredito que será o caso, sugiro mais uma vez, antes de levantar suas objeções, a leitura do artigo “Causação e a Impossibilidade Lógica de Uma Causa Divina“. O artigo contém discussões e refutações de diversas objeções levantadas contra ele, a meu ver bem sucedidas.
Sem mais no momento,
Gilmar
Essas ideias de criação e origens, não são mitos? Penso que falar sobre criação ou origem de tudo é falar em coisas desprovidas de sentido.
O que acham?
Carlos, tenho a impressão de que, ao sugerir que os argumentos do Craig não passam de nonsense, o Brian Vroman estava mais sendo retórico do que aplicando o critério humeano. Afinal, que escândalo seria (na verdade, é) o fato de não sermos capazes de dar respostas definitivas a questões que somos incapazes de deixar de levantar e em relação às quais somos incapazes de ficar indiferentes! Mitos não são construções desprovidas de sentido, muito pelo contrário; o nonsense aflora justamente quando se toma seu significado pelo seu valor de verdade.
Prezado Gilmar,
Seu site é dos poucos sites ateus que realmente oferecem uma tentativa de refutação a filosofia teista. Assim, inicialmente, quero-lhe dar os parabéns. De outro lado, acredito que esse texto de certa forma não passa de um mero “jogo de palavras”. A sua proposição seria mais ou menos o seguinte:
1. Deus não pode fazer coisas intrinsecamente ilógicas;
2. É ilógico afirmar que se pode fazer algo a partir do nada;
3. Logo, Deus não pôde criar a partir do nada.
Onde está o erro disso? Simples, dizer que Deus criou o universo do nada. Ora, no momento da criação, não havia “o nada”, um não-ser completo ou ausência de qualquer propriedade, pois já existe o próprio Deus, sendo ele suficiente por si só para causar universo independente de qualquer outra causação concorrente. Assim, pode-se dizer que Deus criou o universo a partir de sua vontade, na esteira de Genesis, e não haveria qualquer contradição nisso. Não há ilogicidade na afirmação de que um ser onipotente causou o universo por pura vontade, bem como a vontade de Deus não é o nada. No fundo, a questão trazida pelo texto é que é contraditória, pois indica que Deus precisaria de causa material para causar a própria matéria, o que é ilógico pois não poderia haver matéria antes da criação da própria matéria. Ou seja, o texto parte de uma petição de princípio: de que Deus precisa de causa externa a ele mesmo para criar o universo. Entretanto, Deus é em si a causa eficiente e voluntária do Universo, sem necessidade de qualquer outra coisa.
Assim, a refutação segue facil:
1. Deus não criou o universo a partir do nada; mas a partir de si, de sua própria vontade;
2. A vontade de Deus não é o nada, logo ela pode ser causa eficiente do universo;
3. Não há incoerência lógica em dizer que a vontade de um ser onipotente pode causar o universo;
4. Assim, a criação continua lógica com as premissas de que: a) do nada nada vem; b) onipotência é a capacidade fazer tudo aquilo que é possível.
Prezado Flávio, no Rebeldia Metafísica disponibilizo não meras tentativas, mas na verdade refutações efetivas aos mais populares argumentos da filosofia da religião teísta contemporânea. Naturalmente, o mérito cabe exclusivamente aos autores dos artigos que traduzo, trabalho este do qual me beneficio da mesma forma que os leitores que não tem acesso ao original, ou seja, sobretudo conhecendo e familiarizando-me com seus conteúdos.
Quanto ao alegado erro que você pretende ter identificado no artigo, a afirmação de que Deus criou o mundo (ou o universo) ex nihilo, do nada, ele é um dogma de praticamente todas as correntes cristãs historicamente significativas; encontra-se formalmente cristalizado no corpo de doutrinas da ICAR desde o Quarto Concílio Laterano, ocorrido em 1215, tendo sido reafirmado pela Concílio Vaticano de 1912. Fonte: Encyclopedia Catholica. Além disso, William Lane Craig, considerado por muitos o maior apologista contemporâneo, também é ferrenho defensor desta doutrina, como pode ser visto aqui: Philosophical and Scientifical Pointers To Creatio Ex Nihilo. Ou seja, não somos nós, céticos, agnósticos e ateus, que lhes imputamos a vocês teístas cristãos esta posição, mas vocês próprios que a adotam como a menos problemática dentre todas as alternativas possíveis para conciliar a existência de um universo contingente e material com a noção de um Deus necessário e transcendente.
Isto posto, você parece não ter percebido que o texto confronta os adeptos do princípio “do nada, nada vem” com um dilema, conforme o status epistêmico que lhe atribuam. Se o respaldam a partir de sua experiência prévia, ele fica aberto à futura refutação; se o consideram um enunciado analítico, ou seja, uma verdade lógica, segue-se que mesmo em sua onipotência Deus ainda precisaria de uma subsância sobre o qual sua vontade poderia atuar para fazer surgir o presente universo. Dizer que Deus criou o universo a partir de sua vontade sim é um jogo de palavras; é considerar a vontade de Deus uma espécie de substância atuando sobre si mesma e conferindo-lhe as determinações do universo. Isso implicaria uma paródia da tese schopenhauriana, “em sua natureza íntima, o mundo é a vontade de Deus”.
Além destes problemas que o princípio ex nihilo nihil fit coloca para os argumentos cosmológicos, na medida em que é uma tese de suporte imprescindível às premissas daqueles argumentos, há outros problemas que você parece ignorar por completo. Ao fim do texto sugeri a leitura de uma das seções do artigo “Um Exame Crítico do Argumento Cosmológico Kalam”, se ainda não a leu faça-o agora: Criação A Partir Do Nada?
Por fim, ao contrário do que você afirmou em 3. , a proposição “A vontade de um ser pessoal onipotente é a causa de X” implica sim uma contradição: causas não são condições logicamente suficientes de seus efeitos, mas a vontade de um ser onipotente é uma condição logicamente suficiente do que quer que ele deseje. Logo, aquela proposição poderia ser reescrita como “Uma condição logicamente suficiente de x (a vontade de Deus) é uma condição logicamente insuficiente (uma causa) de x”, o que é uma contradição. Este é a tese defendida no artigo “Causação e a Impossibilidade Lógica de Uma Causa Divina“, o artigo que considero o mais valioso do acervo deste blog, uma obra-prima da filosofia naturalista contemporânea. Boa leitura!
O nada é real?
Todo o resto – e incluem-se aqui estas besteiras metafísicas – depende desta resposta. Caso positivo, faça-se a demonstração. Caso contrário…Esqueça-se o argumento.
Quem se habilita?
Gilmar, eu estava aqui pensando… suponha que o universo tenha realmente tido um começo e que “antes desse começo” não existia nada físico. Ou seja, havia o nada, como os teólogos alegam.
O que impediria que o nada se tornasse algo?
Se você pensou: “Do nada, nada vem”, então eu te pergunto: o que é isso? Uma lei de como a natureza funciona, certo? Com certeza isso é “algo”. Mas ora, como pode existir “algo” que evite o surgimento a partir do nada se não existia nada.
Quando só havia o nada, então não havia nada que impedisse que nada se tornasse algo. Pois qualquer coisa que impedisse isso seria “algo”, e se houvesse algo então não haveria o nada.
Baseado no que você costuma ver por aí, acha que esse argumento tem futuro? (Se for bom, não vai me roubar ele, heim?)
Até agora não consegui descobrir se você está falando sério ou só brincando com as palavras. Mas deixa eu brincar também. Se o que havia era nada, por um lado é verdade que não havia nada que impedisse que o universo brotasse a partir do nada. Por outro lado, também não havia nada que arrancasse o universo de sua inexistência. Acho que pelo princípio de inércia ele continuaria sua fruição indiferente da perfeição do nada. Como você responde?
Era uma brincadeira que eu tinha (ainda tenho, po!) de sair alguma coisa dai. Mas olha, se no nada não há nada que impeça que algo surja do nada e nem há nada que faça algo surgir, então é absurdo pensar que nada já tenha existido. Então sempre existiu algo. 🙂
Ok, não está muito longe de muito travalíngua que já vi por aí, mas pelo menos já deu uma melhorada!
Justamente Cláudio. O interessante é pensar na refutação da refutação (?).
Olá! Os teístas podem falar que o universo veio de deus. Mas de onde veio deus? Eles dizem que deus é eterno. Porém o conceito de eternidade passada é totalmente imaginário, além de não ser falseável. Matematicamente isso é possível, mas há números matemáticos que não correspondem a nada da realidade e são claramente imaginários. O infinito é infalseável pois nunca saberíamos se realmente uma coisa dita infinita é assim ou é apenas muito grande. O próprio teólogo Tomas de Aquino admite que deve haver uma causa inicial que não foi causada para evitar esse retrocesso infinito.
Michel Onfray considera que não há filosofia sem psicanálise ou sociologia, ou ciência. “Um filósofo pensa em termos de conhecimentos como ferramentas à sua disposição, caso contrário, ele pensa fora da realidade”.
Olá! Quando tentarmos criticar uma argumentação teísta devemos pensar que desculpas eles poderão inventar para não admitirem que deus é pura imaginação. Craig poderia falar que o universo não veio do nada e sim de deus. É claro que ele não teria nenhuma evidência para isso.
Obrigado RM por nos dar acesso a esse tipo de material.
Uma crítica ao artigo:
Discordo que haja apenas três tipos de proposições:
1) Proposições sintéticas;
2) Proposições analíticas;
3) Proposições nonsense.
Por exemplo, tal proclamação (de que há apenas tais tipos) faria parte de qual tipo? O texto define proposição analítica como “aquela verdadeira por definição” e proposição sintética como “não são necessariamente verdadeiros – eles não são verdadeiros por definição”. Daí a confusão: existe uma dicotomia, ou algo é verdadeiro por definição ou não é, concordo. Só não concordo que “verdadeiro por definição” e “necessariamente verdadeiro” são sinônimos.
Se fosse assim, esse artigo refutaria qualquer teoria, qualquer fato que se diga como certo. E seria um tiro no pé…
Na verdade o “verificacionismo semântico” de Hume sustenta que há apenas DOIS tipos de proposições, analíticas e sintéticas (ou associações de idéias e raciocínios experimentais, que são as expressões que o próprio Hume usa). Se algum conceito ou noção falha em ser ou uma tautologia ou empiricamente verificável, sua falsidade ou veracidade não pode ser determinada e, portanto, ela não tem sentido. Eu acho, tentando raciocinar pelos termos do próprio Hume, que esta proposição sobre quantos tipos de proposições existem seria uma proposição sintética. Logo no começo de sua “Investigação sobre o entendimento humano” Hume diz que há apenas dois tipos de conteúdos mentais, pensamentos (ou idéias) e impressões, sendo que os primeiros resultam das operações do entendimento sobre os últimos. Já as impressões seriam os conteúdos vívidos, advindos dos sentidos (um cheiro, um gosto ou uma imagem), “imediatos” no sentido de não haverem sofrido qualquer alteração racional (não terem sofrido nenhuma abstração, ampliação, decomposição ou combinação com outras impressões ou idéias). Hume argumenta por sua tese solicitando a quem dela discorde que apresente um único exemplo que a refute, ou seja, um único conteúdo mental que não seja nem uma impressão nem uma idéia (na verdade o próprio Hume propõe um experimento mental que resulta num contraexemplo, o do gradiente de cores, mas o considera demasiado insignificante para comprometer sua tese).
Pois bem, na medida em que há apenas dois tipos de conteúdos mentais, impressões ou idéias; na medida em que proposições referem-se a uma impressão ou idéia; na medida em que só há dois tipos de proposições, e como esta proposição de que só há dois tipos de proposições, de acordo com a exposição do próprio Hume, parece resultar de um exame “empírico” (coloco entre aspas porque a rigor um exame dos conteúdos da própria mente não é feito com os cinco sentidos, mas dos conteúdos mentais dos outros sim; se alguém possuísse alguma proposição significativa que não fosse nem analítica nem sintética, ela precisaria ser comunicada, oralmente ou por escrito, ou talvez até por código morse sobre a pele de alguém), esta proposição acerca dos tipos de proposições, sendo empiricamente refutável, parece ser sintética.
Não me parece que, neste contexto, a equivalência entre “verdade por definição” e “necessariamente verdadeiro” suscite confusão. Ao dizer que proposições analíticas são verdadeiras por definição, ele quer dizer a veracidade faz parte da definição de proposição analítica. Mas “verdade por definição” também pode significar que “é verdade que tal descrição define tal objeto”, mas não me parece que o texto não dê margem para tal interpretação.
Quanto à sua última frase, realmente não compreendi. Você quis dizer que, porque todas as teorias de algum modo dependem de definições, e definições são “necessariamente verdadeiras”, e como “verdades por definição” são vazias, então conclusões dependentes de teorias baseadas em definições seriam vazias?
Esse “verificacionismo semântico” parece ser correto, mas existem algumas possíveis objeções. Vou assumir que tautologias são aquelas sentenças que são sempre verdadeiras e que isso é garantido devido a forma em que a sentença feita. Geralmente são compostas, como “ou A é B ou A não é B” e não nos fornecem nenhuma informação sobre a realidade.
Definições também não nos fornecem nenhuma informação sobre a realidade, são mais atalhos linguísticos do que conhecimentos.
Mas agora, irei tentar expor algumas proposições que não parecem se enquadrar nem no grupo das analíticas, nem no grupo das “sensoriais”:
1) Último teorema de Fermat: não é uma tautologia, muito menos algo que se pode sentir ou experimentar. Mesmo assim, seu raciocínio demonstra fatalmente que por mais que tentemos achar contra-exemplos, das infinitas possibilidade, jamais poderemos encontrar.
2) Moralidade/ética: as proposições desse naipe não são analíticas e nem sintéticas. Nesse ponto, eu as considero nonsense mesmo, pura enganação humana que serve para ajudar no controle da animalidade do ser humano. Mas como tem gente que atribui alguma ontologia objetiva aos valores e obrigações, estou citando aqui…
3) Regras de jogos: convenções humanas, que uma vez adotadas, geram proposições verdadeiras que não são nem analíticas e nem sintéticas. “É incorreto mover o rei em direção a uma casa ameaçada pelo inimigo” é uma regra do Xadrez (como 2) e “um bispo que começa numa casa branca não pode chegar numa casa negra jamais” é uma regra derivável (como 1).
Por fim, algumas questões experimentais parecem não ter a ver com conteúdos recebidos. A certeza de que eu existo deriva do fato de que eu sinto que existo e isso já é suficiente. Contudo, minha existência não é necessária, nem convencionada, nem definida como tal, mas sim algo que se pode verificar ou não. A minha certeza de que eu estou “tendo impressões” é outro fato semelhante.
Na verdade dois dos exemplos que você deu caem sim dentro dos dois grupos possíveis a que proposições podem pertencer. Teoremas matemáticos são tautologias sim, eles expressam apenas relações formais, sem se referirem a nenhuma realidade concreta. Na verdade, “tautologia” e “teorema” referem-se ao mesmo tipo de proposições, mas quando você diz tautologia você olha de um ponto de vista semântico (no caso, você olha a tabela de verdade da proposição); quando fiz teorema, você olha de um ponto de vista sintático (ou seja, você olha se ela pode ser deduzida a partir das regras de inferência). Vou ver se encontro uma referência bibliográfica sobre isso aqui; ouvi isso na aula de Lógica II hoje de manhã, mas era uma aula introdutória, de revisão , então foi dito bem informalmente.
Quanto às proposições éticas ou morais, bom, de um ponto de vista deontológico, elas são imperativos hipotéticos (se você fizer x, você obterá y). É claro que, pelo verificacionismo semântico, as moralidades religiosas de fato são nonsense, já que não como comprovar que “Se você amar a Deus sobre todas as coisas, você irá para o Paraíso” é verdadeira. Mas moralidades seculares podem sim ser ao menos em parte empiricamente verificáveis. Mais sobre isso em breve.
Agora com as regras de jogos você me apertou. À primeira vista, elas parecem parentes distantes dos imperativos hipotéticos. Ou talvez sejam descrições de criações humanas; você estipula um conjunto de regras para uma determinada atividade, nomeia este conjunto acoplado a seu substrato material e pronto, elas viram uma espécie de “verdade por definição”. Mas não estou muito seguro quanto a isso, se eu descobrir algo mais eu volto a postar aqui.
P.S.: No sexto parágrafo deste post, o jogo de xadrez é mencionado como um “objeto platônico”. Se o mesmo valer para todas as situações regidas por regras até certo ponto arbitrárias, eu acho que regras se tornariam sintéticas. Podem ser algo que você abstrai de um exemplo concreto (o algoritmo evolutivo, por exemplo, que foi descoberto pbservando-se os seres vivos, mas que é neutro em substrato). Por outro lado, algoritmos são “verdades por definição” (se você tiver replicação, variabilidade e competição, você terá evolução). Mas a gente estava falando das regras individualmente certo? Acho que elas são sintéticas mesmo, você as descobre após examinar (mesmo que teoreticamente, com seu “olhar mental”) seu objeto.
otimo artigo
Muito bem dito por Vroman. Nunca tinha parado para pensar que essa afirmação ou é tautológica (o que coloca o conceito de onipotência em xeque e causa uma puta dor de cabeça) ou é empírica. Neste último caso, Craig fica aberto a tantos questionamentos oriundos da epistemologia (como o problema do corvo/cisne) que seria melhor ele reformular tudo.
Ultimamente tenho visto argumentos aqui que colocam o Craig em situações que não consigo imaginar uma maneira que ele poderia usar para sair delas. Porque ninguém fez um apanhado de sites como o Debunking e o Infidels e foi debater com ele até agora? Penso que ele ficaria até branco se fosse pego de surpresa com um argumento como esse aqui.
Dependendo da platéia, argumentos deste tipo não são lá muito persuasivos; são excessivamente técnicos. Em debates escritos, imagino que ele diria que o “ex nihilo nihil fit” é um “princípio metafísico”, assim como o princípio de causalidade; o na verdade só quer dizer que é um pressuposto epistemológico, algo que devemos conceder de antemão se esperamos explicar genuinamente qualquer evento.
P.S.: Não havia nem erro de digitação nem de ortografia no primeiro caso.
P.S.2: Se incomoda se eu também começar a deixar comentários apontando os erros de digitação e/ou ortografia em seus posts (acredite-me, não são poucos!)?
Não existe nada tão técnico que não possa ser dito de maneira simples e retórica. Não existe objeção que uma vez conhecida, não possa ser antecipada e refutada ou pelo menos enfraquecida. Mandar a conversa pro lado da metafísica é algo que dá pra lidar perfeitamente, muita coisa que você mesmo colocou aqui tornariam essa saída inviável.
Você sabe que sou enjoado (haaa!) mas um enjoado bom. Alguém tem que por essas coisas no teste de fogo, oras. O trabalho exposto aqui é magnífico, mas acho que a cereja do bolo seria ver alguém como o Craig gaguejando e perdendo um debate. Ou, na pior das hipóteses, seria uma oportunidade de reparar certas arestas.
Mas não estou reclamando de nada não. Eu só achei curioso hoje cedo o fato de tanta gente ter argumentos ótimos contra o Craig e mesmo assim ninguém jamais ter conseguido arranhar sua imagem de bom debatedor.
PS 1. Sério?!?!
PS 2. Ok, se você conseguir… eu te corrijo pq vc erra pouco, mas se vc tentar me corrigir corre o risco de ficar que nem uma velhinha brincando de siga o mestre com um praticante de parcour! E outra, se vc errasse que nem eu, eu já teria desistido há muito tempo e mandado umdicionários Houaiss novinho e autografado pra sua casa!
PS 3: Caso se refira aos erros do Fomon, boa parte deles são propositais hahaha