Acredito ser oportuno postar, em meio a esta série de críticas ao Argumento Cosmológico Kalam, uma tradução, feita já há algum tempo, dos comentários de Dan Dennett ao término de uma palestra proferida por William Lane Craig num evento sobre o tema “O Futuro do Ateísmo”, ocorrido em 2007. Li em algum lugar que ao longo de sua brilhante trajetória acadêmica e profissional (Dennett é extremamente influente no campo da filosofia da mente), o filósofo e cientista cognitivo jamais tomou conhecimento da existência do Kalam, decerto porque estava demasiado ocupado desenvolvendo e respaldando cientificamente respostas às questões sobre a natureza da mente e do pensamento que atormentam o ser humano desde os primórdios da filosofia.
Na última parte desta série, que examina o argumento em defesa da pessoalidade da Causa Primeira, veremos que nem sequer é necessário uma interpretação naturalista da causação pessoal humana para enfraquecer a posição de Craig. A análise que supostamente chegaria a uma conclusão favorável ao teísmo ortodoxo é arruinada pelos próprios princípios de que lança mão para tentar se sustentar. E então será demonstrado quem é o verdadeiro charlatão.
O que o professor Craig faz, brilhantemente e com um entusiasmo magnífico, é pegar nossas intuições ordinárias, de uso cotidiano _ nossos sentimentos viscerais sobre o que é plausível, o que é contraintuitivo, o que possivelmente poderia não ser verdade _ e as usa como suporte num território onde nunca foram testadas: na cosmologia, onde a verdade, seja ela o que for, é vertiginosa e alucinante; é uma verdade implausível, contraintuitiva, de cair o queixo, de uma forma ou de outra.
O falecido Philip Morrison foi quem salientou isso de maneira mais honesta espontânea: “Talvez estejamos sozinhos no Universo, talvez não exista vida inteligente em nenhum outro planeta do universo inteiro, ou talvez isto não seja verdade. Ambas as alternativas são estarrecedoras; a hipótese de que sejamos únicos é desconcertante, a possibilidade de que não sejamos também é. Então você não pode usar a vertiginosidade da resposta como seu teste decisivo. A verdade será surpreendente. E algumas de nossas verdades caseiras deverão ser descartadas. É o que já sabemos pela física quântica, é o que já sabemos por Einstein. Que alavanca epistêmica usaremos para desalojar algo que parece tão estrondosamente óbvio que somos quase automaticamente programados para usa-lo como premissa? Isso exige uma estrutura científica colossal, com argumentos matemáticos complexos a e um tipo delicioso de “conspiração” de evidências confirmatórias e finalmente as pessoas abanam a cabeça e dizem, ‘ok, por mais contraintuitivo que isto seja, teremos que aceita-lo.'”
Tal é a situação na mecânica quântica, como Richard Feynman, o último grande físico disse, e ele, mesmo sendo tão arrogante quanto um cientista jamais foi, admitiu: “Eu não entendo a mecânica quântica, ninguém entende a mecânica quântica, talvez ninguém seja capaz entender. Em tais circunstâncias, você simplesmente confia na teoria matemática que ainda não pode interpretar. Batalhas ferozes sobre como interpretar a mecânica quântica _ sem resultado definido. Mas, como Feynman salienta, a estrutura matemática _ que é, em certo sentido, uma ciaxa preta cujo interior desconhecemos _ ela produz resultados com uma precisão de tirar o fôlego. Sua comparação, que não sou capaz de citar com exatidão, diz algo como ser capaz de medir a distância entre São Francisco e Miami com uma margem de erro da magnitude da largura de um fio de cabelo. São previsões extraordinariamente precisas.
Estes são exemplos de evidências avassaladoras que podem solapar intuições cotidianas que a maioria pensa que “não poderiam possivelmente ser falsas.” Ahhhhh, mas acabam por ser falsas! E o que o professor Craig tem nos mostrado é como os argumentos se desenvolvem e como, se você começa com um punhado de premissas bastante plausíveis a princípio _ e em cada caso ele diz ‘Veja, esta é uma premissa bastante plausível, não vejo como isto pode ser falso…’ ‘Cara, isto é uma consequência das premissas…’ e ele prossegue e prossegue e por fim conclui _ até onde pude ver, não tenho o que objetar ao desenvolvimento implacável do raciocínio sobre as premissas mas ao fim obtemos conclusões notavelmente implausíveis. Agora, oficialmente, é claro que se você termina com uma conclusão contraditória ou autocontraditória, você tem um argumento do tipo reductio ad absurdum e algo tem que ser feito. Eu não posso assinalar uma reductio formal em qualquer coisa _ ao menos, não de improviso, e havia muita coisa acontecendo naquela conversa.
Mas posso assinalar algumas regiões suspeitas. Em primeiro lugar, quero abordar um dos temas que apareceram por último. Talvez eu trabalhe apenas este ponto e creio que será o suficiente. Suponhamos, a título de argumentação, que o argumento cosmológico (um dos argumentos cosmológicos que ele apresenta) seja favorável à conclusão de que a causa do universo seja um “seja lá o que for” atemporal, imutável, abstrato, imaterial. Neste ponto, não temos idéia do que possa ser. Mas o que quer que seja, é a causa do universo. Talvez seja a idéia de uma maçã. Talvez seja a raiz quadrada de 7. Mas não, Craig diz que não pode ser nada do tipo porque coisas abstratas não podem ser causa de nada.
Quem disse? Quem disse que coisas abstratas não podem ser causa de outras coisas? Meu exemplo favorito de uma coisa abstrata causando outras coisas é o princípio de triangulação que, quando você deseja evitar que algo assim ocorra com sua casa (imagino que aqui Dennett tenha exibido alguma imagem ou gesticulado), você coloca sobre ela uma peça triangular e a fixa e graças à rigidez dos triângulos você cria uma estrutura sólida. Isto parece causal. É maravilhoso o efeito do acréscimo da peça extra formando um triângulo e agora temos uma figura estável. Temos aqui a geometria euclidiana, um princípio abstrato, sendo invocado de uma maneira causal.
Mas vocês podem objetar: “Bem, não é realmente causalidade.” Ok, é algo como causalidade. E é claro, também já ouvimos o professor Craig dizendo que o nexo entre o Deus e a criação do universo não é realmente causal, porque não se trata de de causalidade material. Mas o que sabemos sobre causalidade imaterial? Nada. Absolutamente nada. Então estamos aqui apenas dando palpites e tentando adivinhar o que a causalidade imaterial pode ser. Nossas intuições não nos levam até esse domínio.
Agora, cosmologia contemporânea é um campo fascinante que, devo confessar, revolve completamente minha cabeça e eu não apostaria minhas fichas em nada nessa área. Fico feliz que o professor Craig tenha mencionado meu colega Alex Vilenkin, um cara inteligente, e eu gostaria de ser capaz de me aprofundar em todos estes temas com os quais ele lida. Gostaria que Alex estivesse aqui para dar seu parecer. Porque sei que Alex e Alan Guth e algumas destas outras pessoas tem um bocado a dizer e, lamentavelmente, seria altamente técnico e não acredito que eu ou vocês seríamos capazes de compreendê-los. Mas antes de mais nada, eles não estariam de acordo. Cosmologia contemporânea é um emaranhado maravilhoso. E aqueles de nós que não são físicos ou matemáticos terão que espiar por entre as frinchas em busca de lampejos e migalhas de compreensão.
A intrepidez com a qual o professor Craig se joga e escolhe de qual lado ficar é algo admirável. Eu não tenho sua coragem neste assunto. Mas voltemos à questão sobre esta divindade imutável. O problema com uma divindade imutável é que ela é imutável, está fora do tempo, não se incomode em orar para ela ou não espere no tempo que ele ouça suas orações e as atenda. Uma divindade imutável é uma divindade deísta, na melhor das hipóteses. E esta é a razão pela qual eu não penso que a maioria das pessoas no mundo que acredita em Deus precisa de qualquer coisa além de curiosidade passageira, ou um breve interesse, na batalha da cosmologia porque, ao final, isto não reflete uma resposta para sua curiosidade.
Agora, o professor Craig alega possuir alguns argumentos que apontam para um Deus pessoal. E uma das premissas diz que existem dois tipos de causalidade, a científica (física, materialista) e a pessoal. E eu afirmo que isto é uma absoluta falsidade. Dediquei boa parte de minha vida profissional a mostrar como a causalidade pessoal pode ser reduzida à causalidade física. E nesta questão eu seria capaz de fazer uma investida devastadora e virar o jogo contra ele, mas é uma longa história. Muitíssimo obrigado!”
[…] pessoal da rebeldia metafísica capturou o discurso do cientista filósofo, e disponibilizou para seus leitores. Li, gostei, e […]
Dennet é realmente um dos autores mais importantes em Filosofia da Mente, mas acho que ele escorrega bastante em Filosofia da Religião. Um Deus imutável não tem a ver, necessariamente, com um deus deísta, pois o sentido de imutabilidade não está ligado a “posições espaciais” ou coisas parecidas, mas sim a natureza divina intrínseca que permanece inalterável.
E concordo com ele. Seja lá qual for a grande resposta (que nunca saberemos de fato), ela será “estarrecedoras”. E é justamente por isso que o “Salto Qualitativo” em direção a Deus pode ser tão intenso. =)
Abraços.
Isaque, o Dennett é praticamente leigo em Filosofia da Religião, o que, por incrível que pareça, não impede que ele faça contribuições substantivas a domínios da filosofia com enormes implicações para a Filosofia da religião. Não estou dizendo que vc o acusou disso; na verdade, o que parece é que os filósofos da religião teístas, estes sim, ignoram completamente o que se passa fora de sua área de atuação, como é o caso do Craig e sua distinção entre causação mecânica e causação pessoal. Tudo bem que dois erros não fazem um acerto, mas a deficiência tem consequencias muito mais graves para o lado teísta que para o naturalista.
Você estuda psicologia, não estuda? Que é que vcs veem sobre filosofia da mente? Já tentei ler uns livros do Dennett mas, além do Quebrando o Encanto e de alguns capítulos do A Perigosa Idéia de Darwin; mas, a seco, sem me situar no debate entre as diversas correntes dentro da filosofia da mente, não consegui ir muito longe.
Bem, a psicologia atual tem um paradigma definido, de cunho experimental e pragmático: por isso ela não tá muito interessada nas questões da filosofia da mente; isso fica mais pros filósofos e cientistas cognitivos que se preocupam com isso, como o Dan Dennet.
E sobre ele, a maioria das coisas que conheço é através do João Fernantes Teixeira (que foi aluno dele) e de citações de outros autores. Um dos livros dele (do Teixeira) publicados no Brasil é o Mente, Cérebro e Cognição: acho que tem o pdf. na net.
Sobre a causação mecânica.
Considere um mundo possível W que (i) exista deste a eternidade, (ii) seja composto apenas por árvores e em que (iii) vente dia e noite.
Como tudo o que há neste mundo existe desde a eternidade, o vento também sopra desde a eternidade e, consequentemente, as árvores também balançam por este mesmo tempo.
O balançar das árvores é o efeito; o soprar do vento é a causa: o efeito não se separa da causa, pois a causa é mecânica – como a causa existe desde a eternidade, o efeito também (inclusive é isso que ele usa para argumentar a causa primeira tem um caráter pessoal/intencional).
É isso que Craig quer dizer por causação mecânica. Ele não está fazendo nenhuma distinção entre causação mental e cerebral (que é o que Dennet parece ter entendido). Ambas são irrelevantes para todo seu escopo argumentativo; prova disso é que em um de seus debates – não me lembro se foi com o Dacey ou com o Harris -, ele diz que a concepção materialista da mente não é incompatível com a fé cristã: para tanto cita um filósofo materialista e cristão.
[]~
Só para confirmar o Isaque: foi no debate com o Dacey, no qual ele usou o argumento ‘mind-brain connection’,e o Craig ao final falou ‘de todo modo, não tem porque este materialismo afetar o cristianismo – Peter van Inwagen é um filósofo monista e cristão’.