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por Hector Avalos

Os estudos bíblicos como os conhecemos deveriam terminar. Os profissionais deste campo são unânimes em afirmar que a Bíblia é o produto de outra época e outra cultura cujas normas, práticas e concepções do mundo eram radicalmente diferentes das nossas. E no entanto, estes mesmos especialistas paradoxalmente mantém o público leigo sob a ilusão de que a Bíblia importa ou deveria importar. Argumentamos que, seja esta sua intenção ou não, sua validação da Bíblia como um texto para o mundo contemporâneo serve sobretudo para justificar seus próprios empregos e a relevância de sua profissão no mundo atual.

Vimos como as traduções ocultam em vez de patentearem os conceitos mais degradantes e alienígenas dos autores bíblicos. Vimos como os críticos textuais, mesmo sabendo que o texto original é provavelmente irrecuperável, não anunciam para a maioria das comunidades cristãs que suas Bíblias são na melhor das hipóteses construtos que não podem ser remontados  além do segundo século da Era Comum para o Novo Testamento e do terceiro século AEC para a Bíblia Hebraica. Em nosso olhar sobre a história e a arqueologia bíblica, aprendemos que a “história bíblica” foi não tanto apagada como na verdade exposta como, antes de qualquer coisa, ausente. O alegado mérito artístico superior da Bíblia também foi desmascarado pelo que é – outro dispositivo apologético bibliolátrico.

Por que precisamos que um livro antigo que endossa tudo, do genocídio à escravidão, seja a autoridade suprema sobre nossa moralidade pública ou privada? Por que precisamos de qualquer texto antigo, afinal, independente de qual moralidade ele esposa? “A Bíblia” é sobretudo um construto dos últimos dois mil anos da história da humanidade. Seres humanos modernos existiram por dezenas de milhares de anos sem a Bíblia, e não parece que estavam em pior situação por isso. Existem sociedades secularizadas contemporâneas na Europa que parecem se dar muito bem sem a Bíblia.

De meu ponto de vista, existem apenas três alternativas genuínas para o que atualmente conhecemos como estudos bíblicos:

  1. Eliminar os estudos bíblicos completamente do mundo atual.
  2. Manter os estudos bíblicos como são, mas admitir que são um empreendimento religionista.
  3. Manter os estudos bíblicos, mas redefinir seu propósito de modo que sejam encarregados de eliminar completamente a influência da Bíblia no mundo atual.

Eu não defendo a primeira opção, pelo menos não por ora, porque acredito que a Bíblia deveria ser estudada, no mínimo como uma lição sobre por que os seres humanos não deveriam privilegiar tais livros novamente. Minha objeção é contra o propósito religionista e bibliólatra pelo qual é estudada. A segunda opção é na verdade o que é encontrado na maioria dos seminários, mas devemos dar ampla publicidade ao fato de que estudiosos em todo o mundo acadêmico estão fazendo a mesma coisa, embora não estejam sendo muito francos e honestos sobre isso.

Eu prefiro a terceira opção. O único objetivo dos estudos bíblicos, sob esta opção, seria ajudar as pessoas a se moverem rumo a uma sociedade pós-escritural. Pode soar paternalístico “ajudar as pessoas”, mas não mais do que quando os tradutores escondem a verdade ou quando os acadêmicos não divulgam agressivamente a verdade por medo de transtornar os fiéis. Tudo na educação é em alguma medida paternalista, já que uma elite docente está lá para fornecer informações que o público leigo não possui. A terceira opção também é a mais lógica, considerando-se a descoberta do caráter alienígena da Bíblia.

A minha opção também é a menos autointeressada porque não teria meu próprio emprego como objetivo último, e permitiria a milhares de outros textos aos quais ainda não foi concedido voz falarem também sobre a sabedoria possível, a beleza e as lições que eles possam conter. Com efeito, milhares de textos mesopotâmicos jazem intraduzidos. De modo que mesmo aqueles que acreditam na importância da literatura deveriam advogar para que mais luz seja jogada sobre os textos antigos ainda não lidos.

O que eu busco é a liberação da própria ideia de que qualquer texto sagrado deva ser uma autoridade para a existência humana atual. A abolição da dependência humana de textos sagrados é imperativa quando esses textos sagrados colocam em risco a existência da civilização humana em sua configuração atual. Portanto, a abolição total da autoridade bíblica torna-se uma obrigação moral e uma chave para a sobrevivência deste mundo. A letra pode matar. Esta é a razão pela qual a única missão dos estudos bíblicos deveria ser encerrar os estudos bíblicos como os conhecemos.

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por Hector Avalos

Crítica Literária

Em sua relação com os estudos bíblicos, a crítica literária é a disciplina dedicada a elucidar as realizações literárias dos autores bíblicos. Para nossos propósitos, usamos a crítica literária para descrever um conjunto de abordagens unificado pela ideia de que os textos bíblicos são construídos artisticamente e possuem méritos artísticos. Como David J. A. Clines e J. Cheryl Exum, dois de seus mais influentes profissionais em atuação, observam em seu próprio levantamento da crítica literária, “sua ocupação principal é o texto como um objeto, um produto, não como uma janela para a realidade histórica.”[61] Tal descrição reflete o que é chamado “Nova Crítica” nos estudos literários seculares mais abrangentes. A Nova Crítica debruça-se sobre uma obra de arte como um objeto autônomo cuja beleza não depende de seu contexto histórico. Uma pintura de Rembrandt conserva sua beleza não importa quais forças históricas a tenham acarretado.[62]

Não é necessário escavar muito fundo para descobrir os motivos para a análise literária da Bíblia entre virtuoses como Robert Alter, Meir Sternberg e Frank Kermode.[63] Na verdade, o objetivo apologético algumas vezes é nítido, como no caso do comentário de Robert alter sobre a abordagem da Bíblia pelos leitores antigos e modernos:

A tradição religiosa subsequente tem acima de qualquer coisa nos encorajado a considerar a Bíblia seriamente em vez de aprecia-la, mas a verdade paradoxal sobre o assunto pode muito bem ser que ao aprender a apreciar as narrativas bíblicas mais apropriadamente como ficção, também venhamos a divisar com mais clareza o que elas tencionam nos dizer sobre Deus, o homem e o domínio perigosamente significativo da história.[64]

A crítica literária da Bíblia atravessa uma crise que aflige cronicamente toda a literatura. Por um lado, as antigas justificações para estudar literatura não mais parecem auto-evidentes. Por exemplo, não é claro que a literatura incremente a “disciplina mental”, uma justificativa usada no célebre Yale Report, que buscava desesperadamente justificar a exigência do estudo dos clássicos numa universidade contemporânea.[65]

A questão do cânone tornou-se muito mais polarizada, com outras vozes clamando por serem incluídas no cânone.[66] De qualquer maneira, justificar os estudos literários da Bíblia levanta uma série especial de problemas. Primeiro, os especialistas bíblicos fracassaram em apresentar uma justificativa coerente para considerar a literatura bíblica superior à de várias outras culturas. Quando lhes perguntam o que distingue a Bíblia de Shakespeare, Phyllis Trible, uma apologista feminista da Bíblia e presidente da Sociedade de Literatura Bíblica em 1994, poderia responder apenas que “Eu me pergunto a mesma coisa, e se eu tivesse uma resposta clara eu te diria.[67]

Segundo, a Bíblia tem sido estudada há muito mais tempo do que qualquer outro texto. Então por que investir qualquer minuto a mais neste texto quando ainda há vários outros por serem estudados? Se a Bíblia é privilegiada devido a suas pretensas lições morais, então por que não permitir que os vários textos antigos ainda desconhecidos pelo mundo contemporâneo também possam conter lições valiosas? Do mesmo modo, o mérito estético pode ser encontrado em vários textos antigos, e portanto a Bíblia também não pode ser privilegiada por esta razão.

Terceiro, a questão da relevância é particularmente delicada no que tange a textos antigos como a Bíblia. De que modo saber qualquer coisa sobre personagens bíblicos ou estruturas poéticas bíblicas nos ajuda a nos tornarmos pessoas melhores ou a resolver quaisquer problemas práticos no mundo atual? Esta é a razão pela qual a noção de que a Bíblia deve ser estudada por seu “valor intrínseco” também fracassa como outra característica indefinível e desprovida de sentido cujo única finalidade é manter o privilégio desse texto.[68]

Mas digamos que a literatura seja um componente vantajoso de nossa experiência humana, que deveria ser celebrado junto com as humanidades.[69] O problema é que tal justificativa negligencia como a Bíblia também tem sido deletéria para os seres humanos. Para cada página de Hamlet que podemos apreciar inocentemente há uma passagem da Bíblia que prontifica alguém a matar outro ser humano. Não se pode dizer isso de Hamlet. A diferença no efeito deletério também é um argumento importante para por um fim ao status privilegiado desfrutado pela Bíblia em qualquer cânone moderno.

Por fim, basta dizer que a beleza literária é subjetiva; pode-se defender que vários textos bíblicos são realmente feios; a Bíblia fracassa em satisfazer os padrões estéticos estabelecidos pelos próprios acadêmicos; outros textos também poderiam igualar ou exceder a Bíblia quando o mesmo critério de beleza é aplicado; a ética pode ser invocada para julgar alguns textos bíblicos como esteticamente defeituosos. Resumindo, a ênfase corrente sobre a estética e a análise literária torna-se simplesmente outro dispositivo apologético para manter o valor da Bíblia na sociedade contemporânea.[70]

Teologia Bíblica

Como outras disciplinas dentro dos estudos bíblicos, a teologia bíblica possui uma história complexa e controvertida.[71] Krister Stendahl, o ex-reitor da Harvard Divinity School, num artigo bastante citado do The Interpreter’s Dictionary of the Bible, afirma que os estudiosos deveriam distinguir entre “o que significou e o que significa”.[72] O pano de fundo de tal afirmação foi a conclusão de Stendahl de que a Bíblia é tão estranha à nossa cultura que somente a reinterpretação poderia mante-la viva. Jon Levenson também defende a legitimidade da “recontextualização” e da “reapropriação”, que afirma que um texto pode e deveria significar seja lá o que for que uma comunidade religiosa precise que ele signifique para se manter viva. Para Levenson, a recontextualização é legítima mesmo quando contradiz o que um autor pretendeu dizer a princípio. E tanto Levenson como Stendahl defendem que como as comunidades religiosas aplicam outros sentidos à Bíblia, é-lhes legítimo adotar este procedimento. Esta justificação pode ser expressa mais esquemeticamente como “As pessoas fazem X = As pessoas devem ser autorizadas a fazer X”.

Mas sob uma inspeção mais rigorosa, o próprio programa de reapropriação de Levenson traz consigo as sementes da destruição dos estudos bíblicos. Quando consideramos o sentido de um texto bíblico para as comunidades religiosas, duas posturas podem ser identificadas entre aqueles que acreditam que existe tal coisa como a intenção autoral:

A: A intenção autoral é a única coisa que importa

B: A intenção autoral não é a única coisa que importa

Se alguém escolhe A, então os estudos bíblicos são um fracasso monumental. Muitas vezes não dispomos de informações suficientes para determinar o que um autor quis dizer, mesmo se acreditamos que a intenção autoral importa e deveria ser o principal objetivo da interpretação. Se alguém escolhe B, então o único resultado é o caos e o relativismo que torna os estudos bíblicos acadêmicos irrelevantes e supérfluos. As comunidades religiosas não precisam de especialistas acadêmicos para esclarecê-los sobre qualquer contexto original a fim de manter a Bíblia viva para eles próprios. Assim sendo, qual é a finalidade dos estudos bíblicos acadêmicos neste caso? A resposta é que não há nenhuma finalidade, exceto talvez conservar os empregos e o status dos especialistas bíblicos.

De qualquer maneira, geralmente não é o caso que uma comunidade religiosa contemporânea reconheça que o Texto A possui um sentido original B, mas que o sentido B será desconsiderado ou contradito de modo que o Texto A possa assumir o sentido contemporâneo C, mas não porque é recontextualizado. Para eles, B = C. Os especialistas podem chamar esse procedimento de “recontextualização” porque concluíram em bases empírico-racionalistas que o sentido atribuído ao texto pelas comunidades religiosas atuais não corresponde ao original, mesmo quando as comunidades religiosas podem estar afirmando não uma reinterpretação, mas em vez disso uma continuidade na interpretação.

Mas tão logo o sentido contemporâneo é igualado ao original, não se trata de especialistas permitindo “outro sentido” mas antes um caso em que o racionalismo empírico entra em cena. Como tal, um especialista bíblico secular está perfeitamente correto ao concluir que uma comunidade atual está afirmando falsamente que “sentido contemporâneo = sentido original pretendido pelo autor”. Os seguidores do método histórico-crítico não seriam  mais monopolistas ou fundamentalistas neste caso do que se estivessem corrigindo alguém que afirmasse que 1=3.

Mesmo sob a hipótese de que a intenção autoral é irrelevante ou indeterminada, a posição de Levenson também conduziria ao argumento de que os estudos bíblicos deveriam terminar.[73] As consequências da posição de Levenson não diferem em nada de expulsar completamente esse texto antigo da vida contemporânea. Se o Texto A pode significar tanto B como não-B, então como não-B seria diferente de considerar o sentido B irrelevante para a vida contemporânea? Ainda mais importante, por que estamos despendendo quaisquer energias na determinação da história ou do sentido original?

John J. Collins, o presidente da Sociedade de Literatura Bíblica em 2002, certa vez observou: “A Bíblia foi escrita há muito tempo atrás e em outra cultura, vastamente diferente de nossa própria cultura.[74] No fim, os apelos de Levenson pela legitimidade da recontextualização apenas expõem o fato de que a Bíblia é tão estranha à vida contemporânea que só pode sobreviver se as pessoas fingirem que ela é algo diferente do que realmente é. O fato de que as pessoas se reapropriam das escrituras não é um argumento para que lhes seja permitido dar continuidade a este procedimento. Levenson nunca responde por que, afinal, deveríamos nos preocupar em nos reapropriar de tais textos considerando-se que existem inúmeros outros textos cujas vozes permanecem silenciosas e silenciadas pelos acadêmicos que poderiam muito bem ressuscita-los.

Apesar das alegações de rigor acadêmico e autocrítica crescente, todas as teologias bíblicas possuem uma coisa em comum: a bibliolatria. Elas podem não concordar sobre qual é o conceito central da Bíblia ou quantos conceitos há, mas todos concordam que a Bíblia é suficientemente valiosa para que seus conceitos sejam exaustivamente analisados com o objetivo de auxiliar os leitores. Nunca vemos uma teologia bíblica ou veterotestamentária dedicada a desprivilegiar o texto bíblico e em ajudar os seres humanos a superar suas seções antiquadas e degradantes.  Em vez disso, os teólogos bíblicos não poupam esforços para resgatar a Bíblia dela própria, enquanto alimentam a ilusão de que a teologia bíblica teria qualquer importância. Se isto é o melhor que a teologia bíblica tem a oferecer, então ela merece chegar ao mais ignominioso fim.[75]

Notas.

61. J. Cheryl Exum e David J. A. Clines, eds., The New Literary Criticism and the Hebrew Bible (Valley Forge, PA: Trinity Press International, 1993), 11.

62. Veja Edgar V. McKnight e Elizabeth Struthers Malbon, eds., The New Literary Criticism and the New Testament (Valley Forge, PA: Trinity Press International, 1994). Veja também Frank Lentricchia, After the New Criticism (Chicago: University of Chicago Press, 1981).

63. Robert Alter e Frank Kermode, eds., The Literary Guide to the Bible (Cambridge: Harvard University Press, 1987); Robert Alter, The Art of Biblical Narrative (New York: Basic, 1981) e The Art of Biblical Poetry (New York: Basic, 1985); Meir Sternberg, The Poetics of Biblical Narrative: Ideological Literature and the Drama of Reading (Bloomington: Indiana University Press, 1987).

64. Alter, The Art of Biblical Narrative, 189.

65. Para o Yale Report, veja Richard Hofstadter e Wilson Smith, American Higher Education: A Documentary History, 2 vols. (Chicago: University of Chicago Press, 1961), 1:289.

66. Para uma defesa de nosso “canône ocidental”, veja Harold Bloom, The Western Canon: The Books and Schoolfor the Ages (New York: Harcourt Brace, 1994); e Christian Kopff, The Devil Knows Latin: Why America Needs the Classical Tradition (Wilmington, DE: ISI Books, 1999).

67. Vejam a entrevista de Hershel Shanks com Phyllis Trible, “Wrestling with Scripture,” Biblical Archaeology Review 32, no. 2 (March/April 2006): 49.

68. Para um exemplo impressivo, veja Avalos, “Yahweh Is a Moral Monster,” in The Christian Delusion, 209–36.

69. Veja Peter Lamarque e Stein Haugom Olsen, Truth, Fiction, and Literature: A Philosophical Perspective (Oxford: Clarendon, 2002).

70. Para discussões e demonstrações adicionais deste ponto, veja Avalos, End of Biblical Studies, 219–48 (e veja 289–342 para uma demonstração da inércia institucional e dos sórdidos interesses comerciais que também sustentam os estudos bíblicos).

71. Para levantamentos históricos básicos, veja John H. Hayes e Frederick C. Prussner, Old Testament Theology: Its History and Development (Atlanta: John Knox, 1985). Igualmente útil é Robert B. Laurin, ed., Contemporary Old Testament Theologians (Valley Forge, PA: Judson, 1970).

72. Krister Stendahl, “Biblical Theology, Contemporary,” in The Interpreter’s Dictionary of the Bible, ed. George A. Buttrick, et al. (Nashville: Abingdon, 1962), 1:420. Compare o ponto de vista de Stendahl com o de E. D. Hirsch, Validity in Interpretation (New Haven, CT: Yale University Press, 1967), 8: “Significado é o que é representado por um texto; é o que o autor pretendeu dizer ao utilizar uma sequência particular de signos. Significância, por outro lado, designa uma relação entre o significado e uma pessoa….”

73. Para as questões históricas e filosóficas envolvendo o coneito de “autoria” e intencionalidade autoral, veja Jed Wyrick, The Ascension of Authorship: Attribution and Canon Formation in Jewish, Hellenistic, and Christian Traditions (Cambridge, MA: Harvard University Department of Comparative Literature, 2004); Jeff Mitscherling, Tanya DiTommaso, and Aref Nayed, The Author’s Intention (Lanham, MD: Lexington, 2004).

74. John J. Collins, Encounters with Biblical Theology (Minneapolis: Fortress, 2005), 7.

75. Para demonstrações e discussões adicionais deste ponto, veja Avalos, End of Biblical Studies, 249–88.

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por Hector Avalos

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A honestidade intelectual deveria compelir pelo menos os intelectuais liberais a anunciar em alto e bom som para a cristandade inteira que Jesus não pode ser encontrado, e que qualquer ideia de seguir os verdadeiros ditos e feitos de Jesus não passa de tolice.

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Ao passo que a procura por Abraão, Jacó e Moisés encontra-se atualmente encerrada na Academia, a busca pelo Jesus “histórico” parece vicejar ainda mais do que nos dias de Hermann Samuel Reimarus (1694-1768), considerado o pioneiro nas pesquisas acadêmicas modernas sobre o Jesus histórico.  De acordo com Tom Wright, em meados do século XX nos encontrávamos na assim chamada Terceira Busca pelo Jesus histórico.[39] Embora tenhamos acumulado um enorme volume de informações sobre a Palestina do primeiro século, há um limite para a quantidade de conhecimentos sobre Jesus que pode ser extraído desta massa de dados.

No caso do Jesus liberal, nos concentraremos no projeto conhecido como Jesus Seminar e seus membros a fim de mostrar que embora o sobrenatural tenha sido eliminado da reconstrução do Jesus histórico, as representações que resultaram deste trabalho são tão inconclusivas que ainda não podemos dizer com nenhuma segurança o que Jesus disse ou fez.[40]

Até mesmo John Dominic Crossan, um dos mais destacados membros do Jesus Seminar, reconhece o estado caótico em que se encontra atualmente a produção acadêmica sobre o Jesus histórico. Observem seus comentários, que também servem como um resumo da pesquisa sobre o Jesus histórico nas últimas quatro décadas:

Há um Jesus retratado como revolucionário político por S. G. F. Brandon (1967), como ilusionista por Morton Smith (1978), como um galileu carismático por Geza Vernes (1981, 1984), como um rabino galileu por Bruce Chilton (1984), como um hilelita ou proto-fariseu por Harvey Falk (1985), como um essênio por Harvey Falk (1985), e como um profeta escatológico por E. P. Sanders (1985)… Mas essa variedade atordoante é um constrangimento acadêmico. É impossível evitar a suspeita de que a pesquisa pelo Jesus histórico é um local bastante seguro a partir do qual fazer teologia e chama-la de história, para fazer uma autobiografia e chama-la de biografia.[41]

O Jesus Seminar exibe todas as características típicas da terceira busca, e assim é razoável averiguar o quão bem sucedidos foram seus critérios e resultados. Resumindo, o Jesus Seminar começou em 1985 sob os auspícios do Westar Institute, fundado por Robert Funk, que exerceu a presidência da Society of Biblical Literature  em 1975. Trinta acadêmicos se reuniram no primeiro ano, mas no fim cerca de duzentos membros, chamados de “associados”, passaram a integrar o seminário. A epistemologia segue a tradição positivista, a julgar por esta declaração:

Os Membros do Seminário são acadêmicos críticos. Ser um acadêmico crítico significa tornar as evidências empíricas, factuais – evidências abertas à confirmação por observadores neutros independentes – o fator determinante no julgamento histórico. [42]

Para informações mais específicas sobre os critérios de historicidade utilizados pelo Jesus Seminar, consultamos uma de suas mais importantes publicações, o Five Gospels. Vejam esta declaração:

Ao triar os ditos e parábolas atribuídos a Jesus, os estudiosos dos Evangelhos são guiados por este axioma fundamental: apenas os ditos e parábolas que podem ser remontados ao período oral, entre 30 e 50 EC, podem possivelmente ter se originado com Jesus. Palavras cuja primeira formulação seja demonstravelmente atribuível aos autores dos Evangelhos são eliminadas. Os estudiosos procuram por dois tipos diferentes de provas. Eles procuram por evidências de que formulações específicas sejam características de evangelistas individuais ou possam ser entendidas somente no contexto social do movimento cristão emergente. Ou eles procuram por evidências de que os ditos e parábolas são anteriores aos Evangelhos escritos.[43]

Entretanto, vemos rapidamente que os critérios usados pelo Jesus Seminar são fundamentalmente falhos.[44] Eles apenas trocaram um tipo de dogmatismo por outro. Observem, por exemplo, que os critérios gerais acima são baseados em três “regras de atestação”, a primeira das quais é “ditos e parábolas que são atestados em duas ou mais fontes independentes são mais antigas que as fontes das quais fazem parte.[45] A falsa pressuposição aqui é análoga à da busca por um “texto original” no sentido de assumir que ao reconstruir alguma fonte mais antiga por trás das mais recentes, chega-se mais perto do Jesus “original”. Na verdade, em tal caso descobre-se uma tradição mais antiga sobre Jesus, mas essa tradição mais antiga não é necessariamente “menos inventada” (ou “mais autêntica”) do que a de qualquer fonte mais recente.

Segundo, mesmo a atestação por duas fontes “independentes” não prova realmente nada além da existência de uma “tradição”, em vez da existência dos verdadeiros ditos e feitos de Jesus. Ou seja, se a Fonte X e a Fonte Y concordam que Jesus disse Z, então tudo o que foi provado é que duas fontes independentes concordam que houve uma tradição segundo a qual “Jesus disse Z”. Isto não significa que Jesus realmente disse Z.

Tudo isto depende, por sua vez, da premissa do seminário de que houve um “período oral” que durou de 30 a 50 EC, supostamente antes que os primeiros textos sobre Jesus fossem escritos. Obviamente, isto significaria que qualquer tradição escrita reconstruída ainda sofre de uma lacuna de no mínimo 20 anos a ser completada com fontes cuja veracidade não podemos comprovar, e provavelmente não por qualquer pessoa registrando eventos os quais não presenciou.

Se olharmos para textos específicos, começamos a ver a subjetividade de julgamentos específicos. Considere a tradução do Jesus Seminar para Mateus 5:38-41:

38. Como vocês sabem, uma vez nos foi dito, “olho por olho, e dente por dente”. 39. Mas eu lhes digo: não reajam violentamente contra aquele que é mau: quando alguém bater em sua face direita, ofereça-lhe também a outra. 40. Quando alguém te levar a juízo por uma camisa, deixe que a pessoa obtenha também seu casaco. 41. Além disso, quando alguém obriga-lo a andar por uma milha, vá uma milha além. 42. Dê a quem te implora; e não evite quem te pede emprestado.[46]

Segundo os editores, Jesus não disse o que está no versículo 38. Entretanto, ele disse tudo (exceto o “mas eu lhes digo”) nos versículos 39 a 41. No versículo 42, apenas a primeira sentença é genuína de acordo com o Jesus Seminar, e a segunda (“e não…”) é menos certa. E como estes graus de certeza são decididos? Os editores nos dizem que

os aforismos em 5:38-41 são casos de paródia com um campo de aplicação bastante estreito. Em contraste, os aforismos em 5:42 são injunções universais: dê a todos os que pedirem e empreste a quem pedir emprestado – em todos os locais e épocas. Estes ditos são sucintos e imperiosos, contrariam o senso comum e dão livre curso ao humor e ao paradoxo. A pessoa que os seguisse literalmente iria rapidamente à falência. É inconcebível que a comunidade cristã primitiva os tenha inventado, e tais máximas não parecem ter feito parte da sabedoria popular daquela época.[47]

Tudo isto é bastante confuso. As instruções em 5:38-41 são descritas como tendo um “campo de aplicação bastante estreito” em comparação com as instruções em 5:42, que são injunções universais. Mas o que “estreiteza” e “universalidade” tem a ver com qualquer decisão parece irrelevante porque não é claro que as injunções em 5:38-41 não são universais. Por que a injunção sobre dar a outra face no versículo 39 não é aplicável “em todos os locais e épocas” da mesma maneira que aquela sobre dar a quem pede no versículo 42? E por que é atribuído um grau menor de autenticidade à segunda sentença do versículo 42 apesar dela parecer tão universal quanto a primeira sentença no mesmo versículo? Além disso, todo o exercício é baseado na posse de um perfil psicológico e pessoal bastante claro de Jesus. Mas como sabemos o que Jesus pode ter pensado exceto através dos textos que o Jesus Seminar tenha predeterminado que derivam diretamente de Jesus? Afinal, uma das razões oferecidas é que é “inconcebível” que a igreja primitiva tenha inventado estes ditos. Mas não temos nenhuma informação sobre o que os membros da igreja primitiva, que podem ter escrito estas palavras, poderiam ou não ter concebido. Portanto, que dados estão sendo usados para julgar a “concebibilidade” de qualquer ideia para estes membros da igreja?

Considere também Marcos 2:1-12, que relata o famoso caso do paralítico que precisou ser baixado através do telhado da casa em que Jesus se encontrava porque a multidão fora da casa era muito grande. De acordo com a tradução do Jesus Seminar, as primeiras palavras de Jesus para o paralítico foram (versículo 5) “Filho, seus pecados estão perdoados”.[48] O texto diz que os sábios judeus presentes ficaram chocados com tal pronunciamento, já que eles acreditavam que somente Deus tinha o poder de perdoar os pecados. Mas Jesus respondeu no versículo 10 que ele dissera isto “de modo que vocês possam concluir que o Filho de Adão tem a autoridade para perdoar pecados [na Terra]”. [49]

O Jesus Seminar julga que Jesus não usou uma expressão como “Filho de Adão” ou disse qualquer coisa sobre perdoar pecados. Na verdade, eles chegaram a uma conclusão contraditória. Por um lado, as afirmações de Jesus parecem ousadas o bastante para que “seja possível que Marcos 2:10 preserve alguma tradição primitiva”.[50] Por outro lado, os editores por fim decidiram que

a igreja primitiva estava em processo de reivindicar para si própria o direito de perdoar pecados e portanto estaria propensa a afirmar que sua autorização vinha diretamente de Jesus como figura messiânica, ‘o Filho de Adão’. Nesse caso, o versículo 10 seria produto do narrador cristão, que está interpretando as convicções da comunidade cristã posterior tendo como pano de fundo um incidente da vida de Jesus.[51]

Há alguns problemas com o raciocínio levando a ambas as conclusões. Primeiro, a ideia de um curandeiro perdoando pecados não é tão ousada como o seminário sugere. Na verdade, no DSS encontramos um texto chamado “A Oração de Nabonido”, assim chamado em referência a um rei babilônico do sexto século AEC. Nesse texto, um exorcista cura Nabonido, e as palavras deste último podem ser interpretadas como “um exorcista perdoou meus pecados. Ele era um judeu…[52]

Segundo, o raciocínio usado para rejeitar a autenticidade do enunciado também é baseado em suposições numerosas e circulares. Por exemplo, quais fontes são usadas para avaliar o que a igreja estava “em processo de reivindicar” entre 30 e 50 EC? Mais importante, por que não podemos usar este mesmo raciocínio para extirpar dos Evangelhos quase todas as palavras de Jesus? Ou seja, qualquer coisa que Jesus disse poderia ser o produto de um cronista cristão ansioso por respaldar escrituralmente credos específicos que sua própria comunidade religiosa estava “em processo de reivindicar”.

Seria fútil multiplicar exemplos porque todos baseiam-se em princípios similares. O Jesus Seminar predeterminou o que Jesus ou a igreja primitiva pensaram, e então simplesmente selecionou os versículos que concordam com o que o Jesus Seminar pensa que Jesus pensou.[53] Portanto, apesar da mais completa ausência de sobrenaturalismo em seus pressupostos, os membros do Jesus Seminar não são diferentes dos fundamentalistas que garimpam e escolhem textos como provas que respaldam sua própria visão de Jesus. Tudo o que eles fazem é criar um Jesus à sua própria imagem, como Robert Price, e Albert Schweitzer antes dele, magnificamente demonstraram.[54]

Mas há mais a ser considerado, porque a existência de outros Evangelhos muda tudo. Charles W. Hedrick, que descobriu um “Evangelho perdido”, em 2002 calculou em 34 o total de Evangelhos.[55] De acordo com ele, temos quatro Evangelhos canônicos, quatro Evangelhos não-canônicos completos, sete Evangelhos fragmentários, quatro Evangelhos conhecidos apenas a partir de citações antigas, dois evangelhos hipotéticos (Q e o Evangelho dos Sinais), e treze conhecidos apenas por alguma menção em alguma fonte antiga.

Em todo caso, e sem mencionar o teor e os debates relativos a cada um dos Evangelhos não-canônicos listados por Hedrick, podemos fazer os seguintes comentários breves sobre suas implicações para o fim dos estudos bíblicos. Primeiro, estes Evangelhos “perdidos” confirmam que o Cristianismo primitivo era tão caótico e diversificado que não podemos mais falar de “Cristianismo” devendo antes falar de “Cristianismos”, uma ideia defendida, entre outros, por Bart Ehrman em seu livro Os Evangelhos Perdidos.[56] O que estes “Cristianismos” tem em comum é sua alegada conexão com um “Cristo”, que é representado de formas surpreendentemente matizadas.

Segundo, não é mais possível privilegiar apenas os Evangelhos canônicos como as mais antigas ou melhores fontes para descrever o Cristianismo primitivo. Este, naturalmente, é um princípio fundamental do Jesus Seminar, mas o estudo de John Dominic Crossan sobre o Jesus histórico já coloca os Evangelhos de Tomás e de Egerton no estrato mais antigo de suas fontes (ao lado da Primeira Epístola aos Tessalonicenses, Gálatas, 1 Coríntios e Romanos).[57]

Permanece o fato de que o manuscrito datado mais antigo de qualquer Evangelho é um minúsculo fragmento conhecido como P52, que contém apenas alguns versículos de João 18. Esse fragmento não pode nos dizer se a parte não preservada do manuscrito continha um Evangelho de João muito próximo do que dispomos atualmente. Os outros três Evangelhos não possuem manuscritos datados de antes do terceiro século, e os exemplares completos vem do quarto século. Entretanto, tais datas para os materiais canônicos coincidem com as datas de pelo menos alguns dos Evangelhos não-canônicos. Tanto os fragmentos gregos do Evangelho de Tomás como o Evangelho Egerton datam do segundo século, e os manuscritos gregos do Evangelho de Maria datam do terceiro século (assim como um manuscrito do Evangelho de Judas, ao qual também se atribui uma data mais antiga, o segundo século – como ocorre com vários Evangelhos não-canônicos).[58]

Portanto, não podemos dizer que estes Evangelhos possuem um material menos “autêntico” ou “histórico” do que o dos Evangelhos canônicos – se é que eles realmente possuem algum material autêntico ou histórico. E se descartarmos os Evangelhos não-canônicos como fraudes porque eles provavelmente não foram escritos pelos alegados autores, então o mesmo deve ser dito de vários livros integrados ao cânone, abrangendo desde os “livros” de Moisés até 2 Pedro .[59] Não há como se livrar do fato de que não somos capazes de comprovar ou falsear várias alegações nestes Evangelhos não-canônicos mais do que o somos nos canônicos.

Se identificarmos os estudos bíblicos apenas com o estudo dos materiais canônicos, então fica claro que os “estudos bíblicos” na verdade terminaram há décadas. Afinal, temos estudando diversas obras não-canônicas nos Manuscritos do Mar Morto por décadas. Mas na medida em que a transição para os Evangelhos não-canônicos se acelera, o mesmo ocorre com a morte derradeira dos estudos bíblicos.

A busca pelo Jesus histórico é um fiasco constrangedor. Progressos adicionais são fúteis porque simplesmente não dispomos de nenhum registro preservado contemporâneo a Jesus ou de qualquer testemunha ocular genuína. E mesmo se descobríssemos montanhas de materiais inéditos mencionando Jesus no período em que alegadamente viveu, tal material não nos tornaria mais seguros de nada. Afinal, possuímos uma cornucópia de materiais contemporâneos sobre Maria em Medjugorje, mas a maioria dos apologistas protestantes os descarta com facilidade. Em última análise, contemporaneidade não quer dizer muita coisa se não podemos verificar a informação em quaisquer (outros) relatos contemporâneos.

Podemos rejeitar os estudiosos conservadores na medida em que são motivados por agendas religiosas, mas o que impele os estudiosos acadêmicos mais liberais a investir tanto em buscas fúteis pelo Jesus histórico? A resposta é que ambos os grupos, os estudiosos conservadores e os liberais, compartilham laços e compromissos religionistas e bibliólatras. Eles acreditam que as palavras de Jesus fazem ou pelo menos deveriam fazer diferença. Mas quem é o público dos estudos sobre o Jesus histórico? O público consiste sobretudo de crentes que pensam que os ditos e feitos de Jesus encontram-se preservados na Bíblia, ou que pelo menos alguns deles são recuperáveis. A honestidade intelectual deveria compelir pelo menos os estudiosos liberais a anunciar em alto e bom som para o mundo inteiro que Jesus não pode ser encontrado, e que qualquer ideia de seguir os verdadeiros ditos e feitos de Jesus não passa de tolice.[60]

Notas.

39. Stephen Neill e Tom Wright, The Interpretation of the New Testament 1861–1986 (Oxford: Oxford University Press, 1988), 379. A expressão “Terceira Busca” foi criticada efetivamente por Stanley Porter em The Criteria for Authenticity in Historical-Jesus Research: Previous Discussions and New Proposals (Sheffield, England: Sheffield Academic Press, 2000), 28–59, mas sobretudo 51–59.

40. Para discussões e demonstrações adicionais deste ponto, veja Avalos, End of Biblical Studies, 185–218.

41. John Dominic Crossan, The Historical Jesus: The Life of a Mediterranean Jewish Peasant (New York: HarperSanFrancisco, 1992), xxviii; S. G. F. Brandon, Jesus and the Zealots: A Study of the Political Factor in Primitive Christianity (New York: Scribner’s, 1967); Morton Smith, Jesus the Magician (New York: Harper&Row, 1978); Geza Vermes, Jesus the Jew (Philadelphia: Fortress, 1981) e Jesus and the World of Judaism (Philadelphia: Fortress, 1984); Bruce D. Chilton, A Galilean Rabbi and His Bible: Jesus’ Use of the Interpreted Scripture in His Time (Washington, DC: Glazier, 1984); Harvey Falk, Jesus the Pharisee: A New Look at the Jewishness of Jesus (New York: Paulist, 1985); E. P. Sanders, Jesus and Judaism (Philadelphia: Fortress, 1985).

42. Robert W. Funk, Roy W. Hoover, and the Jesus Seminar, The Five Gospels: The Search for the Authentic Words of Jesus (New York: HarperCollins, 1997), 34.

43. Ibid., 25–26.

44. Para uma defesa geral do Jesus Seminar, veja Robert J. Miller, The Jesus Seminar and Its Critics (Santa Rosa, CA: Polebridge, 1999). [Nota do Editor: Para uma refutação sólida de seus métodos, veja Porter, The Criteria for Authenticity; Gerd Theissen e Dagmar Winter, The Questfor the Plausible Jesus: The Question of Criteria (John Knox Press, 2002); e Dale Allison, “The Historians’ Jesus and the Church,” in Seeking the Identity of Jesus: A Pilgrimage, ed. Beverly Roberts Gaventa e Richard B. Hays (William B. Eerdmans, 2008), pp. 79–95.

45. Funk, Five Gospels, 26.

46. Ibid., 143.

47. Ibid., 145.

48. Ibid., 43.

49. Ibid., 44.

50. Ibid.

51. Ibid.

52. Seguimos a tradução da Oração de Nabonido presente em Florentino Garcia Martinez, The Dead Sea Scrolls Translated: The Qumran Texts in English, trad. Wilfred G. E. Watson (Leiden: Brill, 1994), 289. O trecho do texto aramaico citado, seguindo F. M. Cross (“Fragments of a Prayer of Nabonidus” IEJ 34 [1984]: 260–64) diz: “o meu pecado, ele o perdoou (ou: meu pecado ele perdoou). Um adivinho que era judeu…” Nesta tradução quem concede o perdão é Deus, mas o problema é que não há certeza sobre as palavras que antecedem o trecho citado. Portanto, a tradução alternativa também é plausível. Observem que a tradução de Garcia Martinez coloca entre colchetes as quatro últimas letras de ‘judeu’, o que signfica que ele considera que estas letras não constam no manuscrito, mas o facsimile e a transliteração de Cross mostram que todas as letras da palavra são visíveis (“Fragments of a Prayer of Nabonidus,” 261, 263).

53. Para uma crítica acadêmica mais conservadora da pesquisa contemporânea pelo Jesus histórico e do Jesus Seminar, veja Philip Jenkins, Hidden Gospels: How the Search for Jesus Lost Its Way (New York: Oxford, 2001). Jenkins (p. 157) observa que dos 76 estudiosos listados como membros ativos do seminário em 1993, cerca de um terço possuía vínculos com a Harvard Divinity School e a Claremont Graduate Schoo.

54. Albert Schweitzer, The Quest of the Historical Jesus: A Critical Study of Its Progressfrom Reimarus to Wrede (Macmillan, 1910). Para a análise de Robert Price’ do quaão maiores do que os do Jesus Seminar são os erros dos estudiosos conservadores, veja Robert M. Price, “Jesus: Myth and Method,” in The Christian Delusion, ed. John Loftus (Amherst, NY: Prometheus Books, 2010), 273–90; Jesus Is Dead (Cranford, NJ: American Atheist, 2007); e Inerrant the Wind: The Evangelical Crisis of Biblical Authority (Amherst, NY: Prometheus Books, 2009).

55. Charles W. Hedrick, “The 34 Gospels: Diversity and Division among the Earliest Christians,” Bible Review 18, no. 3 (June 2002): 20–31,46–47.

56. Bart Ehrman, Evangelhos Perdidos – As Batalhas pela Escritura e os Cristianismos que não chegamos a conhecer (Rio de Janeiro: Record, 2008).

57. Crossan, The Historical Jesus, 427–29.

58. Para as datas, veja a lista em Hedrick, “The 34 Gospels,” 27–28. [Nota do Editor: Para o Evangelho de Judas: Rodolphe Kasser et al., The Gospel of Judas: From Codex Tchacos (Washington, DC: National Geographic, 2006)].

59. Veja Ehrman, Evangelhos Perdidos, 9–11, e Forged: Writing in the Name of God-Why the Bible’s Authors Are Not Who We Think They Are (New York: HarperOne, 2011).

60. Sobre a disposição decrescente dos intelectuais liberais em expressar suas opiniões, veja Eric Lott, The Disappearing Liberal Intellectual (New York: Basic, 2007).

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por Hector Avalos

Crítica Textual

A Crítica Textual é a disciplina acadêmica que busca reconstruir com a máxima verossimilhança possível a versão original de qualquer obra escrita específica.[28] Tal disciplina, portanto, não se restringe à Bíblia. A maioria das obras famosas da Antiguidade não foi preservada intacta. Ao contrário da maioria das obras da Antiguidade, contudo, a crítica textual da Bíblia acarreta consequências teológicas e morais cruciais para os que acreditam que devem possuir um registro acurado da palavra de Deus para guiar e conduzir suas vidas.[29]

No entanto, nas décadas recentes houve alguns destacados críticos textuais preocupados com a sobrevivência deste campo. Em 1977, Eldon J. Epp, um eminente crítico textual do Novo Testamento e o ocupante do cargo de presidente da Society of Biblical Literature em 2003, escreveu:

As razões para esta recente e acelerada erosão do campo da crítica textual [do Novo Testamento] são obscuras. O fenômeno tornou-se nítido em pouco mais de uma década. Se o desaparecimento de oportunidades para estudos universitários na área são uma causa ou um sintoma de tal erosão não é algo claro, embora não haja dúvidas de que sem estas oportunidades o futuro desta discplina nos EUA não pareça brilhante e haja pouca esperança de sobrevivência.[30]

Os resultados do trabalho dos críticos textuais destroem qualquer alegação de que a Bíblia tenha sido transmitida fielmente a partir de qualquer texto original.[31] Computadores poderosos tem facilitado muito a tarefa de organizar as variações, embora ainda existam grandes problemas com a determinação até mesmo de quantas leituras variantes existem. No entanto, são justamente estes progressos e as novas descobertas que tornam o objetivo geral da crítica textual – se por isto entendemos encontrar o texto original ou fornecer aos fiéis  algum registro intacto da palavra de Deus – completamente obsoleto. A crítica textual, na verdade, ajudou a destruir qualquer noção de que alguma vez existiu uma entidade estável chamada “a Bíblia”.

O fato mais importante a se considerar na tentativa de reconstruir um “original” é que não possuímos o autógrafo de qualquer um dos livros que compõem a Bíblia [isto é, o primeiro manuscrito saído das mãos do próprio autor(a)], e este fato decisivo é reconhecido mesmo pelos mais intransigentes apologistas religiosos. Isto significa que tudo o que temos são cópias dos originais, de modo que geralmente não podemos reconstruir um autógrafo antigo que não mais está disponível – tampouco reconheceríamos o autógrafo mesmo se o encontrássemos. O “texto original” não passa de uma miragem a menos que tenhamos acesso ao processo de transmissão completo, desde a primeira edição até a versão corrente. Tal acesso é algo que não temos, e provavelmente jamais teremos no caso da Bíblia.

Podemos ilustrar o problema de forma bem simples. Imagine que dispomos de seis manuscritos sobreviventes chamados de A, B, C, D, E e F, os quais são relacionados a um original hipotético X. X poderia ser o autógrafo, o texto original saído das mãos do próprio autor, e do qual todas as cópias subsequentes derivam. Talvez possamos concluir plausivelmente que A, B e C derivam da mesma fonte porque seu vocabulário é bastante similar. Por exemplo, apenas esses três compartilham a mesma expressão hipotética (“selo de Deus”), ao contrário de D, E e F, nos quais a expressão “cordeiro de Deus” ocorre nos trechos correspondentes do texto. Assim, podemos concluir razoavelmente que, A, B e C devem ter um antígrafo (isto é, a fonte escrita presumida por trás de qualquer cópia) com as palavras “selo de Deus”. Igualmente, podemos plausivelmente concluir que as cópias D, E e F devem remeter a um antígrafo diferente que possui a expressão “cordeiro de Deus”.

Entretanto, como ambos os antígrafos diferem em pelo menos uma leitura (“cordeiro de Deus” versus “selo de Deus”), seria difícil decidir qual deles seria “o original”. Na verdade, suas variantes nos dizem que eles devem ter sido copiados de um antígrafo ainda mais antigo a partir do qual as cópias subsequentes divergiram. Mesmo se alguém reconstruísse X como a fonte por trás de ambos os presumidos antígrafos, isso não mostra que o manuscrito X é o autógrafo. Por quê? Porque o próprio X poderia ser uma cópia de outro antígrafo que não deriva diretamente do “original”. Como poderíamos saber?

A crítica textual fez contribuições importantes para nossa compreensão da Bíblia. Entretanto, essas contribuições proclamaram o fim da crítica textual. Historicamente, o objetivo principal da crítica textual da Bíblia era reconstruir o texto original. A crítica textual mostrou que isto é impossível. Portanto, neste sentido, a crítica textual chegou ao fim. A crítica textual da Bíblia tornou-se mais do que nunca um passatempo elitista cujos praticantes terão dificuldades em convencer os contribuintes e os dizimistas a continuarem custeando um empreendimento cujos resultados trazem tanta satisfação quanto a resolução de sudokus, mas que em contrapartida beneficiam muito pouco qualquer outra pessoa (além do próprio crítico textual).

Arqueologia Bíblica

A arqueologia bíblica jaz em ruínas, seja literalmente, socialmente ou metaforicamente[32]. A arqueologia bíblica já foi uma área capital e até mesmo glamorosa dentro dos Estudos Bíblicos; no entanto, atualmente até mesmo alguns de seus mais destacados expoentes estão proclamando sua morte. Em 1995, William G. Dever, um decano da arqueologia do antigo Israel, declarou que “a arqueologia bíblica e a sírio-palestina são disciplinas moribundas; e arqueólogos como eu que dedicaram toda uma carreira a esta profissão sentem-se como os últimos exemplares de uma espécie em extinção.[33] Em 2006, Ronald Hendel, um professor de Bíblia Hebraica da University of California em Berkeley, observou que “a Arqueologia Bíblica não mais existe atualmente com o mesmo vigor outrora ostentado.[34]

Para ser justo, Dever e Hendel estão falando da arqueologia “bíblica” no sentido de uma arqueologia orientada para a corroboração da historicidade da Bíblia. O próprio Dever já defendeu a expressão mais abrangente “arqueologia sírio-palestina”, embora atualmente sua terminologia seja mais diversificada. De qualquer maneira, parte do problema reside no fato de que o próprio estudo da história bíblica, que tem estado estreitamente vinculado à arqueologia bíblica, tem estado cada vez mais sob fogo cerrado. Nas palavras de Dever, “se a história real do mundo bíblico deixa de ter importância, então sua arqueologia é claramente irrelevante.[35]

Provavelmente existiu uma entidade chamada “Israel” pelos egípcios na época de Merneptah (cerca de 1210 AEC), mas não é claro se já nesta época “Israel” era uma autodesignação. Localizar geograficamente este grupo ou território nas estepes da Transjordânia é tão plausível quanto situa-lo nas montanhas a oeste do rio Jordão. Se “Israel” via-se como parte de Canaã ou como parte de algum grupo canaanita mais amplo não está claro a essa altura. “Israelita” é uma designação tão apropriada para o povo que habitou o país montanhoso durante a assim chamada Idade do Ferro I quanto “cananita” ou a designação de qualquer outro povo que segundo os textos bíblicos viveu naquelas terras altas.

Também não há provas independentes da existência de reino governado por Salomão, de modo que é assim que temos que deixar essa alegação – inconclusiva. Os portões em Gezer, Hazor e Megido não mencionam nenhum Salomão. Em termos da luz jogada sobre a religião dos “israelitas”, Dever expressou-se corretamente quando escreveu em 1983 que a “a contribuição da arqueologia tanto de apelo ‘bíblico’ como ‘secular’ foi, sob qualquer aspecto básico, escassa e precária para nossa compreensão do verdadeiro culto do antigo Israel.[36]

Dentro da História Deuteronômica, é razoável, baseando-se na corroboração independente fornecida por documentos assírios e babilônicos, acreditar na existência dos seguintes reis:[37]

Reino do Norte (Israel)                                               Reino do Sul (Judá)

Omri (ca. 885–874 BCE)                                                 Hezekiah (725–696 BCE)

Ahab (ca. 874–853 BCE)                                                Manasseh (696–642 BCE)

Jehu (ca. 841–790 BCE)                                                 Jehoiachin (605–562 BCE)

Joash (ca. 805–790 BCE)

Menahem (ca. 740 BCE)

Pekah (ca. 735 BCE)

Hoshea (ca. 730–722 BCE)

Em geral, esta é um resultado pífio para qualquer espécie de “história bíblica” quando comparada à de vários de seus vizinhos no Oriente Próximo.

A arqueologia bíblica ajudou a enterrar a Bíblia, e os arqueólogos sabem disso. Ronald Hendel estava perfeitamente correto quando disse que “a pesquisa arqueológica – contrariando as intenções de muitos de seus profissionais – assegurou a não-historicidade de muito da Bíblia anterior à Era dos Reis.[38] Podemos agora expandir a observação de Hendel e afirmar que não também há muita história para ser encontrada na Era dos Reis.

Assim, a arqueologia bíblica ainda tem alguma importância? Como a arqueologia fracassou em revelar a relevância histórica da Bíblia, a arqueologia bíblica não somente deixou de ser relevante, como na verdade deixou de existir como a conhecíamos. Em vez de revelar a história bíblica, a arqueologia forneceu um argumento fundamental para ir além da própria Bíblia. Se a arqueologia bíblica tem que subordinar-se à teologia para voltar a ser relevante (Nota do Tradutor: como propõe Alvin Plantinga), seus dias como uma área acadêmica secular estão contados. De qualquer maneira, a arqueologia bíblica terminou em ruínas – literalmente, socialmente e metaforicamente.

Notas.

28. Também há outras definições. Emanuel Tov (em Textual Criticism of the Hebrew Bible, 2nd ed. [Minneapolis: Fortress; Assen: Royal Van Gorcum, 2001], 1) diz: “A crítica textual lida com a origem e a natureza de todas as formas de um texto, em nosso caso o texto bíblico.

29. Para os objetivos e agendas da crítica textual de obras da Antiguidade não-bíblicas, veja James E. G. Zetzel, Latin Textual Criticism in Antiquity (New York: Arno Press, 1981); Rudolf Pfeiffer, History of Classical Scholarship from the Beginnings to the End of the Hellenistic Age (1968), e L. D. Reynolds e N. G. Wilson, Scribes&Scholars: A Guide to the Transmission of Greek&Latin Literature, 3ª ed. (1991). Sobre os objetivos e métodos da crítica textual contemporânea: Paul Maas, Textual Criticism (Oxford: Clarendon, 1958).

30. Eldon J. Epp, “New Testament Textual Criticism in America: Requiem for a Discipline,” Journal of Biblical Literature 98 (1979): 97. Este ensaio é uma versão impressa da uma palestra proferida em 1977 no Encontro Anual da Society of Biblical Literature.

31. Para discussões e demonstrações adicionais deste ponto, veja Avalos, End of Biblical Studies, 65–108.

32. Para discussões e demonstrações adicionais deste ponto, veja Avalos, End of Biblical Studies, 109–84.

33. William G. Dever, “Death of a Discipline,” Biblical Archaeology Review 21, no. 5 (September/October 1995): 50–55, 70; a citação encontra-se na pág. 51. Para um tratamento mais abrangente do término da arqueologia bíblica, veja Thomas W. Davis, Shifting Sands: The Rise and Fall of Biblical Archaeology (New York: Oxford University Press, 2004).

34. Ronald S. Hendel, “Is There a Biblical Archaeology?” Biblical Archaeology Review 32, no. 4 (July/August 2006): 20.

35. Dever, “Death of a Discipline,” 53. Os itálicos são de Dever. Para uma visão mais otimista da arqueologia em áreas não vinculadas à Bíblia ou ao Antigo Israel, veja Brian Fagan, “The Next Fifty Years: Will It Be the Golden Age of Archaeology?” Archaeology 59, no. 5 (Setembro/Outubro 2006): 18–23. Tenha ou não agido intencionalmente, Fagan alude apenas marginalmente à territórios remotamente relacionados à Bíblia (por exemplo, Egito e Mesopotâmia), e não diz nenhuma palavra especificamente sobre a arqueologia bíblica.

36. William G. Dever, “Material Remains and the Cult in Ancient Israel: An Essay in Archaeological Systematics,” in The Word of the Lord Shall Go Forth: Essays in Honor of David Noel Freedman in Celebration of His Sixtieth Birthday, ed. Carol L. Meyers and M. O. Connor (Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1983), 571.

37. A lista e as datas aproximadas foram adaptada a partir de Halpern, “Erasing History,” Bible Review 11, no. 6 (1995): 30.

38. Hendel, “Is There a Biblical Archaeology?” 20.

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por Hector Avalos

No que diz respeito ao público em geral, nada sustenta mais a relevância da Bíblia do que as traduções. De acordo com uma estimativa, por volta do ano 2000 a Bíblia havia sido traduzida para mais de dois mil idiomas.[12] Se não fosse pelas traduções que tornaram a Bíblia acessível a milhões de pessoas ao longo dos séculos, ela provavelmente já teria sido esquecida.

Efetivamente, a Bíblia é um texto a tal ponto bárbaro que os tradutores e especialistas tornam-se assistentes do leitor. O prefácio da New Century Bible diz: “Os costumes antigos são muitas vezes estranhos para os leitores atuais… de modo que esclarecimentos são apresentados no texto ou em notas de rodapé.[13] Mas ainda mais surpreendente é o reconhecimento de que a relevância da Bíblia é melhor mantida usando a tradução para ocultar e distorcer o sentido original do texto a fim de proporcionar a ilusão de que a informação e os valores comunicados pelos autores bíblicos são compatíveis com os do mundo contemporâneo.[14]

Há casos nítidos em que os tradutores deveriam saber que a tradução não corresponde ao que realmente se encontra nos textos bíblicos sendo traduzidos. Isto também pode significar que palavras significativas são omitidas ou acrescentadas, não apenas traduzidas erroneamente. Resumindo, as traduções da Bíblia “mentem” para manter a Bíblia viva.

De acordo com a eticista Sissela Bok, uma mentira é “uma mensagem intencionalmente deceptiva na forma de um enunciado.[15]Podemos dizer que as traduções da Bíblia mentem quando distorcem o que efetivamente consta num texto fundamental. Comentando sobre estudantes que perguntam por que eles são muitas vezes privados de todas as passagens violentas e objetáveis da Bíblia, Michael Coogan responde, “Em parte, a resposta é que não seria seguro para eles [os estudantes] lerem a Bíblia. Trata-se de uma coleção de livros perigosa, até mesmo subversiva.[16] Embora as traduções da Bíblia não mintam em cada versículo, os tradutores distorcem passagens das escrituras que eles julgam carregar sentidos que podem ser considerados censuráveis. De um modo geral, os tradutores sabem que a Bíblia é o produto de culturas cujos modos de vida e pensamento eram muito diferentes do nosso. Em alguns casos, a filosofia da Bíblia é tão bárbara e violenta que desafia as explicações de por que qualquer um a consideraria sagrada.[17] Deixem-me oferecer apenas três exemplos.

Exemplo 1: Politeísmo Politicamente Correto

Nosso primeiro exemplo lida com o politeísmo, que a maioria dos leitores cristãos desprezaria como idolatria. A maior parte dos leitores atuais provavelmente espera que a Bíblia não sancione o politeísmo. Considere a seguinte tradução de Deuteronômio 32:8-9 na New American Bible (NAB), uma tradução católica:

Quando o Altíssimo dividia os povos e dispersava os filhos dos homens, fixou limites aos povos, segundo o número dos filhos de Deus. Entretanto, a parte do Senhor era o seu povo, Jacó, a porção de sua herança.

Passará despercebido à maioria dos leitores o fato de que aqui “o Altíssimo” e “Senhor” são dois deuses diferentes, em meio a vários outros deuses. O termo traduzido como “o Altíssimo” é provavelmente o nome de um deus, pronunciado como Elyon, e o termo traduzido como “Senhor” corresponde ao nome hebraico que pronunciamos como Javé, o deus principal do antigo Israel. Há evidências de que eles eram reconhecidos como dois deuses diferentes nas culturas adjacentes, de modo que alguns especialistas defendem que nesta passagem “o Altíssimo” provavelmente se refere ao deus “Elyon”, que é representado aqui como superior a e distinto de Javé. Javé parece ser o filho de Elyon. Elyon dividiu a Terra, e o filho de Elyon, Javé (Senhor), recebeu a porção da Terra que veio a ser conhecida como Israel.[18]

O caso mais óbvio de politeísmo é a referência ao que a NAB traduz como “os filhos de Deus”. Na maioria dos panteões do Oriente Próximo antigo, acreditava-se que os deuses possuíam pais e mães divinos. Os Manuscritos do Mar Morto, que são os mais antigos manuscritos da Bíblia Hebraica, ainda preservam a (provavelmente mais antiga) leitura de “filhos de El” ou “filhos de Elohim”. Os “filhos de El” seriam os deuses gerados pelo deus chamado El. O fato de que os editores antigos reconheceram a natureza politeísta desta expressão (“filhos de El”) provavelmente levou os editores do texto padrão (chamado de texto massorético) da Bíblia hebraica a mudar “deuses” por “filhos de Israel”. Algumas traduções gregas tem “anjos de Deus” em vez de “filhos de El” ou “deuses”.[19]

A New Revised Standard Version (NRSV), uma tradução norte-americana multidenominacional, realmente adota a expressão politeísta mais original, “segundo o número de deuses”, refletida nos Manuscritos do Mar Morto. Entretanto, outras traduções modernas ainda não refletem plenamente o politeísmo da passagem. Observem os seguintes exemplos retirados da Revised English Bible (REB), uma versão ecumênica britânica, e a New Jerusalem Bible (NJB), uma tradução católica britânica:

REB: “segundo o número dos filhos (sons) de Deus”

NJB: “segundo o número dos filh@s (children) de Deus”

Observem que a NJB exibe uma tradução neutra em relação ao gênero (children) em vez de “sons”, mais apropriado do ponto de vista cultural, que eram os principais herdeiros da terra nas culturas bíblicas. A correção política na NJB, por conseguinte, também obscurece a natureza patriarcal da transmissão de patrimônio na Bíblia.

Tais distorções não se restringem ao Antigo testamento. O Cristianismo muitas vezes se autopromove como mais inclusivo e compassivo do que a religião do Antigo Testamento e o Judaísmo. Entretanto, isto demanda a utilização de traduções errôneas para ocultar ou suprimir algumas das mais irreconciliáveis descontinuidades entre o que Jesus ensinou e o que as versões correntes do Cristianismo desejam que seu público pense que Jesus ensinou.

Exemplo 2: Aprovação da Mutilação Genital

A Contemporary English Version (CEV) torna mais palatável a aparente aprovação de Jesus à mutilação genital com esta tradução de Mateus 19:12:

Algumas pessoas são incapazes de contrair matrimônio devido a defeitos de nascença ou em virtude do que alguém fez a seus corpos. Outros permanecem solteiros por amor ao reino dos céus. Quem puder aceitar este ensinamento deveria faze-lo.

Compare esta tradução com a da mais antiga Revised Standard Version:

Alguns são eunucos porque nasceram assim; outros foram feitos assim pelos homens; outros ainda se fizeram eunucos por causa do Reino dos céus. Quem puder aceitar isso, aceite.

Em outras palavras, a RSV transmite com muito mais precisão a ideia de que as pessoas podem tornar-se a si próprias eunucos, o que pode envolver literalmente a castração, por amor ao Reino dos Céus. Jesus não aparenta levantar nenhuma objeção e, de fato, suas palavras podem ser interpretadas como uma aprovação à ideia de automutilação. Que esta passagem possa ser compreendida assim é demonstrado pelo relato de que Orígenes, o célebre Pai da Igreja, castrou-se à luz deste versículo.[20]

A tradução “permanecer solteiro” parece mais problemática à luz de como a CEV é descrita por seus proponentes: “A CEV não é uma paráfrase. É uma tradução precisa e fidedigna dos manuscritos originais[21] E no entanto, comentando sobre a expressão “permanecer solteiro” da CEV, Stanley Porter, o estudioso do Novo Testamento, observou: “Seria possível, à luz do caráter escancaradamente evangelístico da CEV, que algumas passagens do Novo Testamento tenham sido atenuadas de modo a não escandalizar aqueles atraídos para o Cristianismo?”[22]

Exemplo 3: Antissemitismo

O Holocausto gerou, muito apropriadamente, uma avalanche de análises autocríticas da parte de vários cristãos. Alguns acadêmicos cristãos reconheceram o antijudaísmo em sua história, enquanto outros afirmaram que qualquer antijudaísmo resulta da compreensão equivocada de passagens cruciais.[23] Mas um dos métodos utilizados para reparar a longa história do antijudaísmo cristão concentra-se em ocultar as passagens antijudaicas do Novo Testamento.[24] Segundo o que propõe Irvin J. Borowsky em Removing the Anti-Judaism from the New Testament:

Para remover esta hostilidade, a solução adotada pelas sociedades bíblicas e editoras religiosas foi produzir duas edições, uma para o grande público, semelhante à Contemporary English Version, que reduz significativamente este potencial antijudaico, e a outra edição para os acadêmicos, fiel ao texto grego.[25]

O duplipensamento orwelliano não poderia ser celebrado com mais fervor. A proposta é paternalista porque assume que os leitores precisam ser protegidos de sua própria Bíblia. Borowsky acrescenta, “As apostas são altas. Pessoas morreram e ainda morrem por causa destas palavras.[26] Tentativas similares e não menos satisfatórias de abordar o antijudaísmo também foram esboçadas por Norman A. Beck, um teólogo bíblico luterano.[27] Tais esforços somente expoem o fato de que os próprios acadêmicos sabem que “a Bíblia” é um documento violento que deve ser sanitizado para se manter vivo.

Notas.

12. Philip C. Stine, Let the Words Be Written: The Lasting Influence of Eugene Nida (Atlanta: Society of Biblical Literature, 2004), 182.

13. Citado em Leland Ryken, The Word of God in English: Criteria for Excellence in Bible Translation (Wheaton, IL: Crossway, 2002), 73.

14. Para demonstrações e discussões adicionais sobre este ponto, veja Hector Avalos, End of Biblical Studies, 37–64.

15. Sissela Bok, Lying: Moral Choice in Public and Private Life (New York: Vintage Books, 1999), 15.

16. Coogan, “The Great Gulf between Scholars and the Pew,” 8.

17. Para o aspecto violento da Bíblia, veja, Hector Avalos, Fighting Words: The Origins of Religious Violence (Amherst, NY: Prometheus Books, 2005).

18. Para uma discussão completa das evidências e do corpo de conhecimentos sobre este ponto, veja Avalos, End of Biblical Studies, 43–44.

19. Para as técnicas gerais utilizadas pelas antigas versões gregas, veja John A. Beck, Translators as Storytellers: A Study in Septuagint Translation Technique (New York: Peter Lang, 2000).

20. A história encontra-se em Eusebius, Ecclesiastical History, trad. J. E. L. Oulton (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1980), 6.8.1–3. Eusebius atribui os atos de Orígenes à sua juventude e imaturidade, mas ele também  diz que outro cristão chamado Demetrius aprovou o ato sincero de Orígenes. Sobre a castração no Cristianismo primitivo, veja Mathew Kuefler, The Manly Eunuch: Masculinity, Gender Ambiguity, and Christian Ideology in Late Antiquity (Chicago: University of Chicago Press, 2001).

21. Veja Bible Gateway, “Contemporary English Version,” http://www.bibkgateway.com/versions/?action=getVersionInfo&vid=46.

22. Stanley Porter, “The Contemporary English Version,” em Translating the Bible: Problems and Prospects, ed. Stanley Porter and Richard Hess (London: T&T Clark, 1999), 39.

23. Algumas das obras clássicas sobre esta questão incluem Charlotte Klein, Anti-Judaism in Christian Theology, trad. Edward Quinn (Philadelphia: Fortress, 1978); John G. Gager, The Origins of Anti-Semitism: Attitudes towardJudaism in Paganism and Christian Antiquity (New York: Oxford, 1983); Rosemary R. Ruether, Faith and Fratricide: The Theological Roots of Anti-Semitism (New York: Seabury, 1979).

24. Howard Clark Kee e Irvin J. Borowsky, Removing the Anti-Judaism from the New Testament (Philadelphia: American Interfaith Institute/World Alliance, 2000); Norman A. Beck, Mature Christianity in the 21st Century: The Recognition and Repudiation of the Anti-Jewish Polemic in the New Testament (New York: Crossroad, 1994); Tikva Frymer-Kensky et al., Christianity in Jewish Terms (Boulder, CO: West-view, 2000).

25. Kee e Borowsky, Removing the Anti-Judaism, 18.

26. Ibid., 20.

27. Beck, Mature Christianity in the 21st Century, 323, concede que “a polêmica difamatória anti-judaica do Novo Testamento deve ser repudiada” mas as sugestões de Beck assemelham-se mais a manter as partes não-objetáveis do Mein Kampf.

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