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por Quentin Smith

O que é metafisicamente santo é supremo na classe dos existentes; é o existente que possui o modo de existência mais elevado possível. Um modo de existência é a existência de alguma alguma coisa qua possuindo certas propriedades. O modo de existência constitutivo da santidade metafísica é a existência de alguma coisa qua possuindo as propriedades da permanência, independência, necessidade lógica, indispensabilidade e reflexividade. O existente cuja existência possui estas cinco propriedades é o existente metafisicamente santo. Todos os outros existentes – isto é, existentes cuja existência não possui todas estas propriedades – não são metafisicamente santos. Isto demanda alguma explanação e substanciação.

A primeira propriedade da existência do que possui santidade metafísica é a permanência, que podemos entender como onitemporalidade (existir em cada presente temporal) ou eternidade (existir no presente externo, o agora em vigor). O que quer que exista impermanentemente, em alguns momentos e não em outros, é por esse fato metafisicamente não-santo ou profano.

A segunda propriedade da existência do que possui santidade metafísica é a independência; tal existente não depende de nenhum existente considerado isoladamente ou de todos os existentes logicamente contingentes tomados em conjunto – o existente supremo é capaz de existir mesmo se nenhum existente logicamente contingente existe. Na terminologia dos mundos possíveis, existe pelo menos um mundo possível em que o existente supremo existe mas no qual nenhum ítem logicamente contingente existe. Qualquer existente que seja dependente é metafisicamente profano; tal existente é dependente no sentido de que não pode existir a menos que pelo menos um outro ítem logicamente contingente exista.

A terceira propriedade da existência do metafisicamente santo é a necessidade lógica, expressão pela qual tenho em mente a impossibilidade lógica de não existir. O existente supremo existe em todos os mundos logicamente possíveis. Qualquer existente que seja logicamente contingente é, em virtude de sua contingência lógica, metafisicamente inferior ao existente supremo; ele existe em alguns mas não em todos os mundos logicamente possíveis.

Quarto, a existência do existente supremo é indispensável para a existência de tudo o mais. É uma condição logicamente necessária da existência de todos os outros existentes no sentido de que nenhum outro existente existe a menos que o existente supremo exista. Se a existência de algum ítem é dispensável ou supérflua, então tal ítem é metafisicamente profano. Algo que existe superfluamente é algo que falha em existir em alguns mundos possíveis nos quais outros existentes existem, e cuja existência, portanto, não é uma condição necessária da existência de todas as demais coisas.

A quinta propriedade da existência de seja lá o que for que possua o mais elevado modo de existência é a reflexividade. O que é capturado por esta noção é que a existência do existente supremo não é outra coisa que não a existência da própria existência. O existente supremo é (identicamente) a própria existência. Esta afirmação controversa exige alguma elucidação e defesa. Eu tratarei (de maneira breve, dado o escopo deste artigo) duas questões: (i) faz sentido dizer que o existente supremo, que qua membro da classe dos existentes é um existente entre existentes, é a própria existência? (ii) Por que o supremo na classe dos existentes deve ser a própria existência?

(i) Diferentes pontos de vista foram mantidos acerca da existência, que é tanto uma propriedade de primeira ordem como uma propriedade de segunda ordem (Nakhnikian e Salmon, Kaplan, Plantinga e outros)[8], que não é uma propriedade de primeira ordem mas uma propriedade de segunda ordem (Frege, Russell e outros),[9] e que não é nenhuma propriedade mas alguma outra coisa (uma substância, um processo, um evento, uma coisa em si, etc.). É impossível formular uma teoria da santidade metafísica que seja consistente com todas estas explicações da existência, de modo que escolherei a explicação que acredito ser correta e em defesa da qual argumentei em outra ocasião,[10] qual seja, a de que a existência é tanto uma propriedade de primeira ordem como uma propriedade de segunda ordem. Nesta concepção da existência,  a asserção de que a própria existência é um existente permite quantificar uma certa propriedade: existe algum F tal que F é a propriedade da existência. Dizer que a propriedade da existência existe é dizer que esta propriedade é auto-exemplificante; a propriedade da existência possui existência. Como uma propriedade auto-exemplificante, a existência é análoga a propriedades como ser uma propriedade (ser uma propriedade é um si uma propriedade), auto-identidade (a propriedade da auto-identidade é idêntica a si própria) e ser não-extenso (a propriedade de ser não-extenso é em si não-extensa).

(ii) Dado que um caso pode ser construído ao longo das linhas acima para a tese de que a existência é em si algo que existe, a próxima tarefa é explicar por que ser idêntico à existência é uma propriedade do metafisicamente santo, nomeadamente, a supremacia na classe dos existentes. Como a supremacia significa ser o mais elevado que seja logicamente possível numa classe, ela implica a perfeição nesta classe. Isto é evidente, já que se for logicamente possível para qualquer coisa ser o membro superior ou o mais excelente nessa classe, então o ítem supremo é o membro perfeito (ou um membro perfeito) dessa classe. Agora, a perfeição implica pureza, estar livre de mistura com quaisquer elementos estranhos, inferiores ou contaminantes. Se alguma coisa puramente é P, ela é P totalmente, e não é ‘contaminada’ por um elemento estranho por ser parcialmente não-P. Um membro puro de uma classe é puro em relação à propriedade definidora da classe, e é verdadeiro em relação a cada membro impuro da classe que ele ‘é parcialmente P’. A sentença ‘Cada membro puro é totalmente P e cada membro impuro é parcialmente P’ admite uma interpretação dupla, dependendo do sentido que é dado a ‘é P’. Na primeira interpretação, o ‘é‘ em ‘é P‘ é o ‘é‘ da predicação e o ‘P’ é um adjetivo (por exemplo, ‘bom’). Nesta interpretação, a sentença afirma que cada membro completamente puro possui a propriedade P e que cada membro impuro possui parcialmente esta propriedade. Na segunda interpretação, o ‘é‘ é o ‘é‘ da identidade e o ‘P’ é um substantivo abstrato (por exemplo, ‘bondade’). Dada esta interpretação, a sentença acima afirma que cada membro completamente puro é idêntico à propriedade P e que cada membro impuro é parcialmente idêntico à propriedade P. Ambas as interpretações da sentença são relevantes para definir a pureza ou impureza dos membros de uma classe no sentido de que a sentença deve ser verdadeira acerca dos membros da classe em pelo menos uma de suas interpretações. Se não fosse, seria falso que o membro perfeito é puro e os membros imperfeitos impuros – o que contradiz as noções de perfeição e imperfeição. Tome como exemplo a classe dos fenômenos morais, cuja propriedade definidora é a bondade. (Observe que esta classe inclui somente fenômenos perfeita ou imperfeitamente bons, e não inclui fenômenos neutros ou inteiramente maus. Os neutros são incluídos na classe dos fenômenos imorais ou amorais.) É falso acerca de cada ação puramente boa (para usar um exemplo) que ‘a ação inteira é a bondade’ e acerca de cada ação impuramente boa que ‘a ação é parcialmente a bondade’, uma vez que estas ações não são inteira ou parcialmente idênticas à propriedade da bondade (considerada intensionalmente). A interpretação identificadora de ‘é inteira ou parcialmente P’ não é a relevante para estas ações. Isto exige a interpretação predicativa para ser verdadeira acerca delas. Descobrimos que este de fato é o caso, pois ações possuem, em vez de serem idênticas a, a propriedade da bondade. É verdade acerca de cada ação puramente boa que ‘a ação é inteiramente boa’ e de cada ação impuramente boa que ‘a ação é parcialmente boa’.

Quando tratamos da classe dos existentes, descobrimos que a interpretação identificadora de ‘Cada membro puro é inteiramente P e cada membro impuro é parcialmente P’ é a interpretação aplicável. A interpretação predicativa não se aplica, pois com esta interpretação a sentença acerca de cada membro impuro da classe dos existentes é falsa. É verdade acerca do existente puro que ele possui completamente a existência, mas é falso acerca de cada existente impuro que ele possui parcialmente existência. Com efeito, é um contrassenso dizer acerca de algo que tal coisa existe parcialmente, pois isso implica que tal coisa possui algumas partes que existem e outras partes que não existem! Dizer que alguma coisa possui partes inexistentes (se é que isso faz algum sentido) é apenas dizer que tal coisa não possui estas partes. Se a interpretação predicativa da sentença é falsa, a interpretação identificadora deve ser verdadeira. O existente puro é totalmente idênticoo à existência, e cada árvore, pessoa, número, etc. que existe é parcialmente idêntico à existência. Mas esta afirmação é ambígua e dois sentidos de ‘M (completa ou parcialmente) é idêntico a P’ devem ser distinguidos. Em um sentido, esta expressão significa ‘o concreto M é idêntico a P’, onde ‘o concreto M’ refere-se apenas a M, considerado separadamente das propriedades que possui. É o sentido abstrato de ‘M’ que é relevante para a asserção de que o existente puro é inteiramente idêntico à existência, pois o que possui as propriedades de existir permanentemente, independentemente, reflexivamente, etc. não é inteiramente idêntico à propriedade da existência. Por outro lado, é ‘M’ no sentido concreto que é relevante para a asserção de que cada existente impuro é parcialmente idêntico à existência. Certamente é incoerente dizer que o abstrato John, que possui todas as propriedades de John, é parcialmente idêntico à propriedade da existência. É antes o caso de que John-enquanto-exemplifica-todas-as-suas-propriedades é parcialmente idêntico à existência. A existência é uma propriedade de John e portanto é uma parte do estado de coisas, John-enquanto-exemplificando-a-existência-e-a-humanidade-e-a-brancura-etc. ‘John é parcialmente a existência’ significa que uma das partes deste estado de coisas é a propriedade da existência.

As reflexões acima fornecem uma maneira de substanciar e articular a intuição metafísica de que o existente puro é a própria existência, e portanto que uma das propriedades da existência do supremo existente é a reflexividade. Estas reflexões, assim como nossas explicações da permanência, independência, necessidade lógica e indispensabilidade da existência do existente supremo, podem ser aprofundadas se compararmos nossa concepção do existente supremo com as explicações históricas do ‘existente supremo’. Esta comparação é importante, uma vez que historicamente o existente supremo foi frequentemente confundido com a pessoa suprema e as categorias da santidade metafísica e religiosa confundidas entre si. Esta confusão deve-se sobretudo à predominância de religiões monoteístas – principalmente as religiões judaica, cristã, islâmica e hindu – e sua influência sobre o pensamento filosófico e sobre as atitudes e experiências espirituais. Na cultura ocidental, a influência cristã foi decisiva; sua confusão das duas categorias cristalizou-se na ‘teologia do ser perfeito’ inspirada por Santo Anselmo, que define Deus como o ser perfeito. Uma expressão recente e lúcida desta tradição teológica pode ser encontrada no ensaio de Thomas Morris ‘Teologia do Ser Perfeito[11], em que a magnitude metafísica é identificada com a magnitude religiosa. Morris enumera (em ordem crescente de magnitude) as seguintes ‘propriedades enaltecedoras’: (a) consciência, (b) agência consciente, (c) agência consciente benevolente, (d) agência consciente benevolente com conhecimento significativo, (e) agência consciente benevolente com conhecimento significativo e poder… e assim por diante até chegarmos às propriedades pessoais perfeitas, onisciência, onipotência, onibenevolência, etc. Isto nos municia, Morris assere, com o conceito de ‘um ser da maior magnitude possível ou maximamente perfeito’.[12] Mas eu sugiro que a expressão ‘ser maximamente perfeito’ é ambígua entre seus sentidos existencial e quiditativo e que estes dois sentidos não foram claramente distinguidos ou de nenhuma maneira distinguidos por Morris e outros na tradição da ‘teologia do ser perfeito’. ‘Ser’ no sentido existencial reporta-se à existência de algo, ao fato de que incontestavelmente é, em vez de não ser. ‘Ser’ no sentido quiditativo reporta-se à natureza de algo, a o que tal coisa é (por exemplo, às propriedades qualitativas necessárias e acidentais de alguma coisa). O ser maximamente perfeito no sentido existencial é o existente perfeito, mas o ser maximamente existente no sentido quiditativo é o item cuja natureza é perfeita, dotada das melhores propriedades possíveis. A perfeição existencial é a propriedade da existência de algo, ao passo que a perfeição quiditativa é uma propriedade da própria coisa e constitui a natureza da coisa. Manifestamente, as principais propriedades ‘enaltecedoras’ listadas por Morris e outros na tradição anselmiana não são propriedades da existência de alguma coisa, mas constituem a natureza de alguma coisa. É simplesmente um contrassenso afirmar de algo que a existência deste algo é consciente, que a existência deste algo possui agência consciente, que a existência deste algo é benevolente e que sua existência possui conhecimento significativo. A existência de algo não é o ‘tipo de coisa’ que pode ser benevolente e onisciente; em vez disso, o próprio Deus é benevolente e onisciente.[13]

Onisciência, onipotência, onibenevolência, perfeita felicidade, etc. são propriedades quiditativas perfeitas e constituem a natureza do ‘ser perfeito’ no sentido quiditativo de ‘ser’. Por outro lado, a permanência, a independência, a necessidade lógica, a indispensabilidade e a reflexividade são as propriedades existenciais perfeitas e constituem o modo de existência do ‘ser perfeito’ no sentido existêncial de ‘ser’. Apenas as propriedades existenciais são propriedades da existência de alguma coisa. Conquanto seja sem sentido dizer que a existência de alguma coisa é onisciente, faz sentido dizer que a existência é permanente, necessária, independente, indispensável e reflexiva.

Tão logo esta distinção seja esclarecida, torna-se aparente que o existente perfeito não é o mesmo item que a pessoa suprema, o ítem com uma natureza perfeita. Isto é evidente no mínimo devido ao fato de que o existente puro deve ser a própria existência e a existência em si não é o ‘tipo de coisa’ que pode ser benevolente, sábia ou feliz. A existência em si transcende estas categorias e seus contrários (crueldade, ignorância, infelicidade). Ademais, o supremo existente não pode ser a pessoa suprema porque apenas o primeiro existe por necessidade lógica. A existência existe em todos os mundos logicamente possíveis, mas Deus não, como discuti em outro lugar.[14] Terceiro, a existência em si, mas não Deus, possui uma existência indispensável, uma que é uma condição logicamente necessária para a existência de tudo o mais. Se Deus não existe em todos os mundos logicamente possíveis em que outros ítens existem, então sua existência não é logicamente necessária para a existência de qualquer outro ítem além dele próprio.

Conquanto a distinção entre a supremacia pessoal e a existencial tenha sido obscurecida pelos cristãos e por outras tradições monoteístas, ela não passou completamente despercebida. O conceito de santidade metafísica ou sua diferença do conceito de santidade religiosa não foram completa, precisa ou acuradamente articulados, mas este conceito ou diferença foi parcial e poeticamente vislumbrado. A distinção no taoísmo entre Deus e o Tao é, plausivelmente, uma tentativa poética (parcialmente adequada) de distinguir o supremo na classe das pessoas do ítem metafisicamente supremo. (O Caminho ou Tao não é Deus mas ‘é como um prefácio a Deus’, como é dito no Poema 4 do Tao Te Ching.) O conceito de nirvana ou vazio (sunyata) e sua distinção do Brahma em algumas vertentes do pensamento budista expressam uma sugestão parcial desta diferença. Mesmo na tradição cristã, há um reconhecimento ocasional de alguma espécie de distinção; do que dá testemunho a distinção que Mestre Eckhart faz entre a pessoa de Deus e a metafisicamente superior Divindade, que não possui a propriedade da personalidade. A Divindade ou ‘ser incondicionado está acima de Deus e de todas as distinções’.[15]

Contudo, é no pensamento não-religioso que encontramos a percepção intuitiva da santidade metafísica expressa em contornos mais nítidos. Uma sugestão poética do metafisicamente santo (como algo distinto do religiosamente santo) está por trás da noção parmenídica de Ser, da distinção de Plotino entre o Um e Deus (Noûs), da Substância de Spinoza, do nôumeno de Schopenhauer (conforme revelado no êxtase místico), e no Ser dos seres de Heidegger. Mas a pessoa que mais se aproximou da compreensão da santidade metafísica e de sua diferença da santidade religiosa é o filósofo analítico contemporâneo Milton Munitz. É verdadeiro para Munitz mas para nenhum dos pensadores mencionados acima que o fenômeno intuitivamente percebido como metafisicamente santo é capturado pelo conceito da existência das coisas, que Munitz designa ‘Existência’, em vez de Um, Substância ou ‘Ser’ em algum sentido não-especificado ou não-existencial. Além dissio, Munitz manifesta mais claramente do que outros um reconhecimento da santidade da Existência. ‘A Existência, como um mysterium tremendum et fascinans, precisa ser reconhecida como o principal alvo da experiência religiosa’.[16] Munitz está aqui utilizando ‘experiência religiosa’ num sentido amplo para se referir ao tipo de experiência da qual a experiência teísta de Deus é apenas um subtipo. Em minha terminologia, é uma experiência do santo que é metafísica em vez de religiosa em sua natureza. Munitz por um triz não captura esta diferença na seguinte passagem:

Uma consciência intensificada da Existência não guarda a menor semelhança com a fé em Deus e em sua bondade… a Existência não é uma Mente, uma Pessoa ou um Poder Criativos. Ela não possui vontade ou propósito de qualquer espécie. Ela não possui qualquer tipo ou grau de bondade, amor, misericórdia ou justiça… a Existência não é nem Deus (no sentido tradicional) nem o Universo… É possível tornar-se consciente da Existência realizando o ato mental de ‘colocar o Universo entre parênteses’ . Colocar o Universo entre parênteses a fim de se tornar consciente da Existência requer concentrar-se exclusivamente no fato puro e simples de que o Universo existe e não no que o Universo é.[17]

Mas a profundidade genuína da teoria da Existência de Munitz não deve nos cegar para as diferenças importantes entre sua teoria e a concepção da santidade metafísica sendo apresentada neste artigo. Uma delas é que não há na teoria de Munitz nada análogo à nossa distinção entre os modos evocativo e preciso de se referir ao metafisicamente santo. Para nós, a expressão evocativa ‘santidade metafísica’ denota a mesma propriedade complexa que é denotada mais precisamente por ‘permanência, independência, necessidade lógica, indispensabilidade e reflexividade’, e deste modo a objetividade e a independência da mente do metafisicamente santo são asseguradas. Mas para Munitz, ‘o mysterium tremendum et fascinans‘ expressa ou se refere a uma relação psicológica entre a Existência e as pessoas que a apreciam.[18] A Existência em si é um fato bruto neutro. Ela não é intrinsecamente santa. Ademais, Munitz não concebe a Existência como o existente supremo, como algo existencialmente superior a tudo o mais que existe. ‘A Existência não possui nenhum grau superior de realidade quando comparada ao Universo ou a qualquer coisa contidade no Universo‘.[19] A Existência não é mais real do que aqueles itens e é dependente de sua realidade.

Outra diferença é que a Existência de Munitz não é o que denotamos por ‘existência’, nomeadamente, uma propriedade de primeira e de segunda ordem. Para Munitz, a Existência não é nem uma propriedade, nem uma substância nem um evento. Em vez disso, ela é a totalidade de todas as partes do Universo espaçotemporal, onde estas partes são entendidas meramente como partes do Universo e suas naturezas particulares são prescindíveis. Esta totalidade Munitz designa ‘o Mundo’. ‘O Mundo (como um “Indivíduo” absolutamente único) é (idêntico à) Existência.’[20] Da perspectiva de minha explicação da existência, a Existência de Munitz não é a existência em si mas a totalidade indeterminadamente concebida do que possui existência. Especificamente, é o todo indeterminadamente concebido dos itens espaçotemporais que possuem existência.*

Uma diferença adicional é que a Existência de Munitz não possui as propriedades de existir necessaria e indispensavelmente. Com efeito, ela não possui absolutamente qualquer propriedade.[21] Mas mesmo se ignorarmos esta alegação, que não é facilmente compreensível, está claro que a Existência não possui as propriedades da necessidade lógica e da indispensabilidade. A Existência, para Munitz, relaciona-se exclusivamente ao universo espaçotemporal; ela não é a existência de itens incorpóreos como Deus, números e universais. Como há algum mundo em que nenhum universo extenso existe mas somente Deus, números e universais, ou somente números e universais, segue-se que a Existência nem existe em todos os mundos logicamente possíveis nem é indispensável. Na verdade, ela não pode, estritamente falando, ser a própria existência se ela é diferente da existência de Deus, dos números e dos universais.

Apesar destas diferenças entre a teoria de Munitz e a nossa, é evidente que Munitz está em sintonia espiritual com o metafisicamente santo e tem uma visão deste tipo de santidade mais clara que a de outros pensadores. Munitz também reconhece vagamente a possibilidade de viver uma vida que tenha um significado último e objetivo que não se baseia em Deus ou em valores morais absolutos. Esta possibilidade é real, uma vez que mesmo se não existir nenhum Deus nem nenhum sistema absoluto de valores morais, ainda é possível estimar supremamente o metafisicamente santo. Estimar supremamente a existência em si dota a vida de uma pessoa com um significado que é tanto objetivo como fundamental nos sentidos demarcados na seção 4. Esta estima suprema da existência cristalizar-se-á em momentos de veneração solene ou êxtase intenso e permeará o resto da vida desta pessoa com um sentido mais ou menos constante de aceitação e paz interior. A estima envolve uma consciência, percebida em si mesma ou acompanhando outras experiências, de que a vida e tudo o mais são abrangidos e tornados possíveis pela presença santa da existência em si, como peixes e corais são envolvidos e sustentados pelo mar. Esta consciência permite uma espécie de vida supremamente significativa desconhecida por qualquer religião ou moralidade.[23]

Notas .

8. George Nakhnikian and Wesley Salmon, ”Exists’ as a Predicate’, The Philosophical Review LXVI (1957) 535-42; David Kaplan, ‘Bob and Carol and Ted and Alice’, in J. Hintikka et al. eds. Approaches to Natural Language (Boston, 1973); Alvin Plantinga, The Nature of Necessity (Oxford, 1974), cap. VII .

9. G. Frege, The Foundations of Arithmetic (Oxford, 1950), trans. J. Austin, pp. 64-5; B. Russell, Logic and Knowledge (New York, 1956), ed. R. Marsh, pp. 228-41 .

10. The Felt Meaning of the World, op. cit. cap. IV .

11. Thomas Morris, ‘Perfect Being Theology’, Nous XXI (1987), 19-30 .

12. Ibid. p. 26 .

13. Sabemos, é claro, que alguns teólogos medievais, como Tomás de Aquino, afirmaram que Deus é idêntico à sua onisciência e que sua onisciência é idêntica à sua onipotência e que sua onipotência e sua onisciência são ambas idênticas à sua existência. Mas esta doutrina é francamente autocontraditória, e o fato de ainda ser sustentada por algumas pessoas testifica a predominância da fé sobre a coerência intelectual em alguns círculos cristãos .

14. The Felt Meaning of the World, op. cit pp. 181-4 e n. 77, pp. 344-5 .

15. Meister Eckhart, trad. R. Blakney (New York, 1941), p. 231 .

16. Milton Munitz, Existence and Logic (New York, 174), p. 197 .

17. Ibid. p. 203 .

18. Munitz, The Ways of Philosophy (New York, 1979), pp. 347 and 344 .

19. Isto me foi explicado por Munitz numa carta de 30 de novembro de 1981 .

20. The Ways of Philosophy, op. cit. p. 348 .

21. Existence and Logic, op. cit. p. 200 .

*[Nota acrescentada no prelo: numa conversa em setembro de 1988, Munitz reconheceu que a existência pode ser concebida como uma propriedade de um tipo especial, que constitui ou indica o estatuto ontológico de alguma coisa .]

22. Munitz, Cosmic Understanding (Princeton, 1986), p. 234 .

 23. Sou grato a Susan Ament e William Vallicella por comentários úteis sobre um rascunho anterior.

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por Quentin Smith

A classe dos fenômenos estimados por uma pessoa é uma classe de fenômenos cujos membros possuem a propriedade relacional de ser estimado por uma pessoa. É possível que entre estes fenômenos estejam alguns que pertencem à ordem mais elevada possível dos estimáveis, o que é sagrado para a pessoa. Estes fenômenos podem ser pessoas e nossos relacionamentos com elas; experiências, posses, memórias, e que tais. A atribuição de santidade ou sacralidade individualmente relativa a tais fenômenos é feita em frases como as seguintes: “Minhas memórias de meu marido, que morreu há anos, são sagradas para mim”; “Esta terra (dito enquanto aponta para uma fazenda) é sagrada para mim; minha família fez dela seu lar por gerações e eu a legarei a meu filho”; “Meus filhos são sagrados para mim – Eu morreria por eles se necessário”. O que está sendo expressado aqui é que as pessoas, memórias, experiências, etc., não são meramente estimadas pelo sujeito da atribuição, mas supremamente estimadas. Não é possível que qualquer coisa possa ser mais estimada pela pessoa; o fenômeno é estimado incondicionalmente no sentido de que a pessoa não o esqueceria ou lhe seria indiferente sob quaisquer circunstâncias e não o sacrificaria por qualquer outra coisa que ele ou ela estime. O fenômeno paira acima dos outros fenômenos que a pessoa estima como o núcleo supremo do sentido de sua vida; o que é sagrado para a pessoa constitui o sentido último da vida pessoa ou é uma experiência, símbolo ou manifestação deste sentido último. Se o que é sagrado para a pessoa é o sentido último de sua vida, então tal fenômeno possui uma sacralidade individualmente relativa original ou primária. Se o sagrado é uma experiência, símbolo ou manifestação do sentido último de sua vida, então tal fenômeno porta uma sacralidade individualmente relativa derivativa. Por exemplo, a sacralidade para a viúva de suas lembranças de seu marido é derivada da sacralidade para ela do próprio marido. Mas nem toda pessoa experiencia alguma coisa como sagrada para si; para alguns, “nada é sagrado” e todos os fenômenos estão situados num plano mais ou menos uniforme do ordinário.

É manifesto que “sacralidade” no sentido individualmente relativo expressa uma propriedade completamente diferente da santidade do que o expressa a “sacralidade” no sentido religioso ou moral. Se afirmo que algo é moralmente santo ou religiosamente santo (no sentido original ou derivativo) estou atribuindo uma propriedade não-individualmente relativa a tal fenômeno, uma que a ele pertence não-dependentemente de sua relação para comigo. Um templo é santo em virtude de sua relação com Deus, não em virtude de sua relação comigo, e a sacralidade do dever de buscar a arte é dependente da sacralidade da arte e não do fato de minha existência. Mas se eu considero sagradas certas memórias, posses, experiências, etc., é claro para mim que elas são sagradas relativamente a mim e em virtude de sua relação para comigo, tal que a cessação de minha existência implicaria a perda de sua sacralidade (assumindo que não seja o caso de elas também serem sagradas relativamente a algum outro indivíduo; por exemplo, a fazenda pode também ser sagrada para outros membros da família). Obviamente, o filho de alguém pode ter sacralidade moral como ser humano, a qual não é individualmente relativa, mas isso é uma coisa diferente da sacralidade da criança para seus pais, que é algo que criança possui somente em virtude de ser supremamente estimada por seus pais. Sua sacralidade moral, em comparação, é algo que ela possui independentemente de seus pais a estimarem supremamente ou não.

Implícito nestas últimas observações está o fato de que uma pessoa pode estimar supremamente algo que seja religiosamente, moralmente ou metafisicamente santo, tal que o que tem santidade individualmente relativa para ela é a pessoa, existente ou fenômeno moral supremos. A estima suprema pode ou não ser baseada na santidade religiosa, moral ou metafísica do item. No caso do pai estimando supremamente seu filho, não é baseada em nenhuma das santidades anteriores; o pai não estima supremamente seu filho porque ele é um ser humano moralmente sagrado, mas porque ele é seu filho. Se a estima fosse baseada na sacralidade moral da criança, o pai então estimaria supremamente todos os humanos igualmente – o que ele manifestamente não faz.

É apenas em raras situações que uma pessoa estima supremamente alguma coisa porque tal coisa é santa religiosamente, moralmente ou metafisicamente. Esta espécie de estima é a precondição para qualquer um viver uma vida santa, cujas instâncias paradigmáticas são as vidas dos místicos religiosos, dos idealistas éticos e dos sábios metafísicos, onde estas expressões são entendidas num sentido apropriado. Todo místico religioso estima supremamente a pessoa suprema porque tal pessoa é a pessoa suprema, todo idealista ético considera fenômenos moralmente santos sagrados para ela própria porque eles são moralmente santos, e todo sábio metafísico estima supremamente o que é supremo na classe dos existentes em virtude de sua supremacia.

Como mencionado antes, o que possui santidade individualmente relativa original constitui o significado último da vida de uma pessoa. Mas uma distinção dupla precisa ser feita aqui, entre um significado último meramente subjetivo e um significado último objetivo. Um significado último meramente subjetivo é algo que é sagrado para a pessoa mas que ou não é sagrado em si ou não é supremamente estimado porque é sagrado em si. Um significado último objetivo é algo sagrado para a pessoa e tanto sagrado em si mesmo como estimado supremamente porque é sagrado em si mesmo. Apenas no último caso a experiência de viver uma vida significativa em última instância de fato corresponde a uma significância última que pertence à própria realidade, não-relativamente e não-dependentemente da experiência que a pessoa tem dela.

Em minha explicação das e na referência subsequente às categorias da santidade moral e religiosa, eu utilizei uma linguagem que sugere que existem fenômenos moralmente e religiosamente santos. Mas isto é uma mera façon de parler. De fato, é possível que não exista nenhum Deus e nenhum valor moral absoluto e objetivo. Se este é o caso, então não é possível viver uma vida moral ou religiosa objetivamente significativa, e nestas áreas o niilismo é a atitude apropriada. Mas ainda será possível viver uma vida metafísica objetivamente significativa, pois o existente supremo não pode deixar de existir, como demonstrarei na próxima seção.

Antes de terminar esta seção, apenas uma observação linguística. No inglês coloquial (como também no português), a palavra “sagrado”, em vez da palavra “santo”, é o termo geralmente utilizado para expressar a propriedade de ser supremamente estimado. Isto reflete uma diferença nas regras ordinárias de uso para “sagrado” e “santo”, onde estes termos são usados sem qualificações adicionais. A palavra “santo” geralmente é usada para expressar a propriedade de ser a pessoa suprema ou a propriedade de ser o existente supremo, ao passo que “sagrado” tem um uso mais amplo e é normalmente usada não somente para expressar as duas propriedades mencionadas acima mas também as duas propriedades de ser moralmente supremo e ser supremamente estimado. Portanto, se eu fosse seguir as sutilezas do inglês ordinário seria mais adequado chamar as quatro propriedades de “tipos de sacralidade” em vez de “tipos de santidade”, mas nenhum mal é feito se eu uso estes termos intercambiavelmente para os propósitos deste artigo.

Concluo minhas observações nesta seção com algumas palavras sobre a análise decomposicional da “sacralidade individualmente relativa”. Esta análise visa determinar que espécies de itens podem ser supremamente estimados por um indivíduo, e abrange tanto os significados últimos objetivo e meramente subjetivos como as experiências, símbolos e manifestações destes significados. As categorias do significado último e de suas experiências, símbolos e manifestações não são arbitrárias, pois a realidade objetiva e a natureza humana impõem limites ao que pode ser supremamente estimado de maneira original ou derivativa. Presumivelmente, ninguém pode estimar supremamente alguma porção arbitrária de poeira que não possui nenhuma significância além dela mesma. O estudo destas categorias é empreendido na disciplina ou área da filosofia que pode ser chamada “a teoria do significado da vida humana”.

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por Quentin Smith

A classe dos fenômenos morais inclui os deveres, as leis, os atos, os objetos e as naturezas morais. Um dever moralmente santo ou sagrado é um dever da mais elevada espécie possível; é um dever incondicional, um dever em favor do qual tudo deveria ser sacrificado se necessário. O termo “santo” ou “sagrado” é usado para expressar esta propriedade em afirmações morais como “Proteger os direitos naturais de todos os humanos é nossa obrigação suprema; é nosso dever sagrado”; “A busca da arte é minha vocação e dever sagrados”; “Soldados, é nosso dever sagrado defender a Pátria”. Uma lei moralmente santa é uma que é incondicionalmente imperativa; ela não pode, sob quaisquer circunstâncias, ser violada. Alguém expressa esta propriedade das leis quando fala da “santidade da lei”. Um ato moralmente santo é um ato do mais nobre tipo possível; um exemplo pode ser o sacrifício supremo, sacrificar a própria vida, por algo genuinamente digno desse sacrifício. Sacrificar a própria vida por uma causa moralmente sagrada não é meramente “bom” ou “virtuoso” no sentido ordinário mas pertence a uma ordem de excelência moral diferente e superior. É um ato moralmente impressionante e comove profundamente os que dele tomam conhecimento, tornando a mera “aprovação moral” inadequada. Fica-se sem palavras diante de um ato ético supremo. Um objeto de conduta ética moralmente santo é um objeto da mais elevada espécie possível, algo que deveria ser preservado ou aperfeiçoado em detrimento de outros possíveis bens morais. Atribuições de santidade a objetos de nossa conduta são expressas em expressões como “a santidade da vida humana” e “a sacralidade de nossas instituições nacionais”. Uma pessoa que tem ou desenvolve uma natureza ou caráter moralmente santos é uma pessoa perfeitamente boa; tal pessoa é conduzida exclusivamente por princípios morais e realiza a melhor ação moralmente relevante em cada situação em que se encontra. Tal pureza moral é mais um ideal do que um fato concreto no que se refere a pessoas humanas e tem em Deus sua instanciação perfeita.[7]

A santidade moral, a propriedade de ser um fenômeno moral do tipo mais elevado possível, é uma propriedade distintiva da santidade no sentido de que é tanto uma propriedade completa da santidade e um componente de outra propriedade completa da santidade, qual seja, a santidade religiosa. A fim de ser religiosamente santo, é necessário ser moralmente santo (especificamente, ter um caráter perfeitamente bom), mas não é necessário ser religiosamente santo ou mesmo religiosamente santo por derivação para ser moralmente santo. É importante estabelecer este último ponto, uma vez que alguns podem confundir santidade religiosa derivativa com santidade moral. Certos deveres, atos, etc., relativos aos humanos são santos em virtude de sua relação com Deus e outros são santos num sentido diferente em virtude de sua qualidade moral. Uma peregrinação à Meca ou uma oração são “atos santos” ou “deveres sagrados” num sentido religioso derivativo mas não num sentido moral, ao passo que “defender os direitos naturais dos humanos” ou “preservar o conhecimento para as futuras gerações” é consistentemente considerado um dever sagrado num sentido moral e não-religioso. A ideia de que a santidade moral não é religiosamente derivativa pode enfrentar resistência da parte de alguns, mas há várias instâncias de atribuição de santidade moral que são consistentes com uma visão de mundo ateísta. A crença na “santidade da vida humana” é consistente com a crença em que os humanos não são feitos à imagem de Deus e em que não existe nenhum Deus; esta crença pode ser baseada exclusivamente numa convicção do valor inexcedível da pessoa humana e da posse natural pelos humanos de direitos invioláveis. Diversos poetas e escritores ateus e do século XIX e do começo do século XX acreditaram ser sua devoção à arte uma vocação e um dever sagrados, e acreditaram nisto baseados em sua convicção do valor supremo da arte. Durante o regime nazista, vários alemães fervorosamente patrióticos ser “a Pátria” uma nação secular portadora de uma santidade moral, e acreditaram piamente ser seu “dever sagrado” defender a Pátria contra as forças moralmente inferiores do mundo exterior. Isto não quer dizer que estas crenças morais são necessariamente corretas (pode-se perfeitamente questionar a sacralidade moral da Pátria), mas que elas são consistentes – a propriedade da sacralidade moral é atribuída sem contradição a fenômenos que não são conectados a Deus. O valor moral supremo não é logicamente dependente da existência de uma pessoa suprema.

A decisão sobre quais fenômenos morais são moralmente santos pertence à análise decomposicional da santidade moral. Ser supremo na classe dos fenômenos morais é analisável na supremacia na classe das obrigações ou leis ou ações ou objetos ou naturezas morais, e esta propriedade disjuntiva é por sua vez analisável em tipos específicos de deveres, leis, etc., que são moralmente supremos. A discplina filosófica à qual esta análise da santidade moral pertence é a ética.

Notas.

7. Kant reconheceu um tipo de santidade moral na medida em que definiu um vontade santa como uma vontade em perfeita concordância com a lei moral. Não obstante, ele não reconheceu ou não reconheceu claramente a independência lógica da santidade moral da santidade religiosa, pois sua concepção de uma vontade santa foi desenvolvida dentro do esquema conceitual do teísmo. Veja sua Crítica da Razão Prática.

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por Quentin Smith

O ser religiosamente santo possui as mais excelentes propriedades pessoais. Pessoas têm propriedades excelentes tais como a consciência, a agência e a capacidade para a felicidade, o amor e a bondade moral; o mais elevado tipo de pessoa tem essas propriedades pessoais em seu modo perfeito: onisciência, onipotência, onibenevolência, perfeita felicidade, perfeita liberdade e perfeito amor. O portador destas propriedades é Deus, a pessoa divina. “Deus é (religiosamente) santo” expressa uma proposição logicamente equivalente àquela expressa por “Deus é a pessoa suprema”, e isto por sua vez expressa a proposição logicamente equivalente àquela expressa por “Deus é onisciente, onipotente, onibenevolente, perfeitamente feliz, livre e amoroso”. A análise adicional de cada uma destas propriedades divinas (onisciência, etc.) pertence à análise decomposicional completa da santidade religiosa.

Há uma diferença entre religiosamente santo e o que se acredita ser religiosamente santo por algumas culturas e pessoas. Os babilônios acreditaram que Anu e Enlil eram religiosamente santos, os egípcios acreditaram o mesmo em relação a Re e Shu, e os gregos acreditaram em algo parecido em relação à Cronos e Zeus (N.T.: E, por que não, os antigos hebreus e a maioria dos judeus e cristãos ao longo da história acreditaram o mesmo em relação a YHWH). Mas estas pessoas não são do tipo mais elevado possível; elas sofrem de alguns ou de todos os seguintes defeitos: conhecimento limitado, poder limitado, felicidade imperfeita, bondade imperfeita e amor imperfeito. Estas pessoas eram não obstante consideradas pessoas do tipo supremo; os babilônios, etc., não eram capazes de conceber um tipo mais elevado de pessoa dotado de onisciência, perfeita bondade, etc.; isto simplesmente era algo além de sua compreensão. Eles equivocadamente atribuíram a propriedade de ser o tipo supremo de pessoas a estas pessoas e consequentemente sua adoração religiosa foi mal direcionada.

A afirmação de que Anu, Zeus e os demais não são realmente religiosamente santos é controversa, e para torna-la mais palatável eu pedirei que o leitor considere o seguinte cenário. Imagine que descobrimos alguma pessoa que vive acima da Terra e que tem alguns poderes excepcionais, tais como ser a força por trás das tempestades, raios e formação de nuvens. Esta pessoa sabe mais do que nós e nos excede em várias outras de suas propriedades pessoais. Mas esta pessoa, como nós, às vezes fica deprimida, frustrada e tomada por desejos incontroláveis e ocasionalmente comete atos imorais. Não acharíamos tal pessoa digna de adoração religiosa, e poderíamos dizer de qualquer um que adorasse religiosamente esta pessoa que o adorador tem uma concepção errônea da santidade religiosa. Além disso, esperaríamos que este adorador não possuísse o conceito do que é na verdade o tipo supremo de pessoa (uma pessoa onipotente, onisciente, etc.) e esperaríamos que este adorador cessasse de adorar o causador-de-tempestades tão logo compreendesse correta e cabalmente o conceito do tipo supremo de pessoa.

Nos parágrafos acima eu descrevi a propriedade da santidade religiosa primária ou original. Esta propriedade deve ser distinguida da santidade religiosa derivativa, que tem formas como ser um símbolo da pessoa suprema e ser um emissário da pessoa suprema. Propriedades de santidade religiosa derivativa são expressas em locuções como “sagrada escritura”, “água benta”, “templo sagrado” e “homem santo”.

A disciplina filosófica em que o estudo completo da santidade religiosa é conduzido é a filosofia da religião.

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Autor: Quentin Smith

Tradução: Gilmar Pereira dos Santos

[Publicado originalmente em Religious Studies, Vol. 24, Dezembro de 1988, págs. 511-528]

Resumo: Esta investigação é motivada pela questão: se o ateísmo é verdadeiro, seria não obstante o caso que a santidade ou sacralidade seja exemplificada? Acredito que a resposta a esta questão seja afirmativa, e que o caminho para sua afirmação passa pela rejeição da hipótese tradicional segundo a qual a santidade é uma propriedade simples e exclusiva de uma divindade que elude qualquer tentativa de análise. A visão oposta, segundo a qual existem diversas propriedades complexas constituindo a santidade, torna manifesto que existem seres sagrados, até mesmo um “ser supremo” sagrado, mesmo se não existir nenhum Deus ou deuses.

Sumário:

I. A Analisabilidade da Santidade

II. Santidade Religiosa

III. Santidade Moral

IV. Santidade Individualmente Relativa

V. Santidade Metafísica

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A ideia de que a santidade é uma propriedade simples e exclusiva exemplificada unicamente pela divindade (e derivativamente por seus emissários ou símbolos mundanos, como “ícones sagrados” ou um “homem santo”) é pressuposta pela maioria das filosofias da religião contemporâneas. Os filósofos na tradição analítica muitas vezes devotam um espaço considerável à análise das propriedades divinas da onisciência, da onipotência, etc., mas sentem que nada pode ser dito sobre a santidade, limitando-se meramente a listá-la entre as propriedades de Deus.[1] Max Scheler, um representante da tradição continental na filosofia da religião, é mais explícito acerca da não-analisabilidade da santidade e escreve que a modalidade do sagrado e do profano “forma uma unidade de qualidades-valores não sujeitos à definições adicionais”[2]. Em sua obra clássica sobre o sagrado, Rudolph Otto escreve que a santidade religiosa ou o numinoso “elude completamente a apreensão em termos conceituais”[3] e pode ser estudada apenas indiretamente através da descrição das emoções que evoca. A ideia subjacente a estes diversos pontos de vista é habilmente sumarizada num artigo recente de Charles Kielkopf:

Atualmente é bastante comum que cientistas sociais, estudantes da religião e até mesmo autores de livros didáticos utilizem “santo” ou “sagrado” como um termo básico ou primitivo para definir ou discutir a natureza da religião.[4] … Precisamos utilizar algum termo indefinido como “sagrado”, “santo” ou “numinoso” para caracterizar as crenças e práticas religiosas.[5]

Contrariando esta visão tradicional, acredito que a “santidade” seja analisável em dois aspectos. Em primeiro lugar, acredito que o termo “santidade” não expresse uma propriedade única, mas várias propriedades diferentes e análogas; cada uma destas propriedades análogas é expressa ou pelo menos expressável pelo termo “santidade” em diferentes ocasiões de seu uso. Chamarei este aspecto em que a “santidade” é analisável sua analogicidade; a análise analógica da “santidade” visa segregar as diferentes propriedades que ela expressa e especificar em que aspecto elas são análogas.

O segundo aspecto em que a “santidade” é analisável diz respeito à complexidade do que ela expressa em cada ocasião em que é usada. Em oposição à visão de que a “santidade” expressa uma propriedade simples, eu sustento que cada uma das propriedades análogas por ela expressadas é composta de outras propriedades. Cada uma das propriedades análogas que constituem a totalidade do que o termo “santidade” pode expressar em alguma ocasião de uso é uma propriedade completa da santidade; de qualquer item que exemplifique uma destas propriedades completas é correto dizer que “é sagrado”. As partes destas propriedades são propriedades incompletas da santidade; de um item que exemplifica alguma mas não todas as propriedades incompletas que compõem uma das propriedades completas, é incorreto dizer que “é santo”. A tarefa de analisar cada uma destas propriedades completas da santidade em seus constituintes eu chamarei de análise decomposicional da “santidade”.

O principal objetivo deste artigo é mostrar que existem quatro propriedades completas distintas, mas parcialmente análogas, da santidade; nomeadamente, santidade religiosa, santidade moral, santidade individualmente relativa e santidade metafísica. O aspecto em que elas são análogas é duplo. Antes de tudo, o portador de cada uma destas propriedades, em virtude de portar a propriedade, é supremo em sua classe. O que é religiosamente santo é supremo na classe das pessoas; o moralmente santo é supremo na classe dos fenômenos morais; o que é santo relativo a alguma pessoa individual é supremo na classe dos fenômenos valorizados por essa pessoa; o que é metafisicamente santo é supremo na classe dos existentes. “Supremacia” deve ser entendido aqui num sentido especial. O fenômeno supremo não é meramente de fato o mais elevado em sua classe, mas é também o mais possivelmente elevado em sua classe. Não poderia haver nada mais excelente nessa classe do que o fenômeno santo. É o membro perfeito ou um dos membros perfeitos da classe.

Mas a supremacia em sua classe não pode ser o único aspecto em que as quatro propriedades completas são análogas, pois vários outros itens também possuem esta propriedade, mas não são santos. Manifestamente, o item supremo na classe das velocidades, a velocidade infinita, não é santo. O segundo aspecto em que as quatro propriedades completas da santidade são análogas é que elas são supremacias da mais elevada espécie possível. A pessoa, o existente, o fenômeno moral ou o fenômeno valorizado supremos são qualitativamente superiores aos membros supremos de outras classes, e são tais que nada poderia possuir uma espécie mais elevada de supremacia do que a que eles possuem. Intuitivamente, as propriedades constitutivas da personalidade suprema (santidade religiosa) ou bondade suprema (santidade moral) constituem um tipo de perfeição superior ou mais exaltado do que o ostentado pelas propriedades constitutivas da velocidade suprema ou do calor supremo.

A análise decomposicional da “santidade” isola as propriedades constitutivas que compõem cada uma destas quatro propriedades completas. Ela especifica as propriedades que configuram unicamente a supremacia na classe das pessoas, que compõem unicamente a supremacia na classe dos fenômenos morais, e que compõem unicamente a supremacia na classe dos fenômenos valorizados e a supremacia na classe dos existentes. As quatro seções restantes desta série são dedicadas sobretudo a esta análise decomposicional. A análise decomposicional é passível de ser empreendida em grande extensão e profundidade; neste artigo eu a levarei adiante apenas até onde for necessário para oferecer uma ideia geral do tipo de complexidade envolvida em cada uma das quatro propriedades completas.

Um entendimento mais concreto da análise decomposicional e analógica da “santidade” pode ser desenvolvido em termos da noção de explicação exposta em minha obra prévia “The Felt Meanings of the World: A Metaphysics of Feeling“.[6] Um desenvolvimento completo deste entendimento não é possível aqui, mas um breve esboço mostrará como as ideias desta obra podem ser aplicadas às observações precedentes sobre a “santidade”. Neste livro eu argumento que cada fenômeno é suscetível tanto de uma explicação mimética e evocativa como de uma explicação mais precisa e teoricamente rigorosa, tal que os termos utilizados na primeira espécie de explicação referem-se vaga e evocativamente exatamente aos mesmos itens que os termos usados na segunda espécie de explicação se referem de maneira mais exata e detalhada. Uma pessoa deslumbrada em meio a uma tempestade pode dizer “A tempestade é violenta” e se referir vaga e evocativamente exatamente à mesma propriedade complexa da tempestade à qual o meteorologista se refere precisa e detalhadamente quando diz “A tempestade trouxe ventos de mais de 80 km/h, verteu mais de duas polegadas de chuva por hora, etc.”. Minha tese é que não há duas propriedades diferentes da tempestade, ser violenta e ter ventos de mais de 80 km/h e verter mais de duas polegadas de chuva por hora, etc., mas uma propriedade que é ou intuitivamente evocada (por “violenta”) ou teoricamente especificada.

Aplicando esta distinção à minha explicação da santidade, podemos dizer que “santidade” ou “sacralidade” (como usado em algumas ocasiões) é uma designação evocativa de uma propriedade intuitivamente percebida de um item, e que as análises analógica e decomposicional desta designação evocativa representam (em diferentes graus) explicações precisas do fenômeno evocado. Imagine que em alguma ocasião uma pessoa intui afetivamente alguma coisa que é religiosamente santa, e exclama “Isto é santo!” ou “Isto tem santidade!” A análise analógica de “santo” e “santidade” guarnece a propriedade que a pessoa designa evocativamente por este uso do termo com uma explicação algo mais precisa. A expressão “possui o mais elevado tipo possível de supremacia numa classe” denota a mesma propriedade complexa que é denotada mais vagamente pelo uso que ela faz de “santidade”, embora a primeira expressão não seja completamente precisa já que falha em especificar a natureza ímpar ou os constituintes desta propriedade. A análise decomposicional relevante leva a cabo esta especificação adicional, e é expressa numa forma como “possui as propriedades F, G, H, etc., que são constitutivas da supremacia na classe das pessoas”. O que estou sugerindo é que “santidade” não se refere a uma propriedade simples do item, mas (neste exemplo) à mesma propriedade complexa que é denotada mais precisa e detalhadamente por “possui as propriedades F, G, H, etc. que são constitutivas da supremacia na classe das pessoas”.

A última questão que desejo abordar nesta seção introdutória concerne ao fundamento para minha afirmação de que existem quatro propriedades completas da santidade em vez de algum número menor ou maior. De que maneira eu “provo” que todos e apenas os itens supremos nas classes das pessoas, fenômenos morais, fenômenos valorizados e existentes exemplificam a mais elevada espécie possível de supremacia? Do mesmo modo que vários outros tipos de crenças filosóficas são justificadas, apelando às nossas intuições sobre o assunto. Examinamos intuitivamente uma série de exemplos e então nos baseamos em nossas intuições sobre a santidade. É intuitivamente evidente para mim e eu acredito que será evidente para todos os que considerarem exaustivamente o assunto que ser o existente perfeito é uma espécie superior de perfeição do que ser perfeitamente liso. Naturalmente,  os filósofos eventualmente discordam quando se trata de intuições, mas isto não é uma razão para rejeitar o ‘apelo à intuição como um método’ mais do que o fato de que os filósofos eventualmente discordam sobre quais argumentos são sólidos é uma razão para rejeitar a argumentação como um método. Ambos os tipos de discordância são passíveis, ao menos em princípio, de resolução, conquanto, em virtude da falibilidade da mente humana e da complexidade dos temas investigados, resoluções definitivas e universalmente aceitas sejam improváveis. Se alguém discorda de minha explicação neste artigo, tal pessoa pode refuta-lo (i) oferecendo exemplos de itens que são intuitivamente percebidos como santos que eu não levei em consideração e (ii) oferecendo contraexemplos aos exemplos que apresento de itens alegadamente santos, contraexemplos mostrando que os itens do tipo em questão não são realmente santos. Este método intuitivo pode ser formulado mais rigorosa e detalhadamente, mas essa é uma tarefa para um artigo sobre métodos. Apresentarei a seguir minha explicação das quatro propriedades completas da santidade.

Notas.

1. Uma exceção parcial a esta tendência pode ser encontrada em Richard Swinburne, The Coherence of Theism (Oxford, 1977), p. 292-4, em que a santidade é considerada como uma propriedade complexa da divindade. Esta exceção é apenas parcial, já que Swinburne compartilha da assunção comum de que a santidade é exemplificável somente por Deus.

2. Max Scheler, Formalism in Ethics and Non-Formal Ethics of Values (Evanston, 1973), trans. Frings and Funk, p. 108.

3. Rudolph Otto, The Idea of the Holy (Oxford, 1953), trad. Harvey, p. 5. Otto reconhece alguma complexidade, entretanto, na medida em que considera o numinoso como sendo um elemento no significado de ‘santidade’ conforme o uso corrente, sendo o outro elemento a completa bondade.

4. Charles Kielkopf, ‘The Sense of the Holy and Ontological Arguments’, The New Scholasticism LVIII (1984), 24.

5. Ibid. p. 25.

6. Quentin Smith, The Felt Meanings of the World. A Metaphysics of Feeling (West Lafayette, 1986).

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