por Quentin Smith
O teísta pode retorquir a esta altura que a interpretação ateísta da cosmologia do Big Bang padece de um problema mais grave do que os problemas do projeto ineficiente e da menor simplicidade que assolam a interpretação teísta. O ateu deve supor que o universo começou a existir incausado e esta suposição viola o princípio de causalidade (P1), segundo o qual tudo o que começa a existir tem uma causa, uma condição suficiente de seu vir-à-existência.
Admitir-se-á que esta objeção aparenta possuir alguma força, visto que alguns não-teístas consideram-na convincente (como C. D. Broad, citado na introdução) e tem-lhes provocado reações que variam entre a negação, o embaraço e o silêncio quando confrontados com as implicações da cosmologia do Big Bang. Entretanto, acredito que esta objeção seja insustentável. Uma razão é que se o princípio causal (P1) é considerado uma generalização empírica ele é falso, já que a mecânica quântica tem mostrado que inúmeras partículas (partículas virtuais) começam a existir sem serem causadas a faze-lo. Se (P1) for considerado sintético e a priori, cuja evidência é sua obviedade intuitiva, então mais uma vez a mecânica quântica o solapa fornecendo diversos casos intuitivamente claros de partículas vindo a existir incausadas. Se (P1) fosse verdadeira a priori, então a mecânica quântica, a teoria científica mais bem sucedida elaborada até o momento, deveria ser jogada no lixo, uma possibilidade que nenhuma pessoa racional cogitaria.
O teísta, contudo, pode recuar para uma de duas posições mais conservadoras, cada uma das quais contorna o problema levantado pela mecânica quântica. Uma destas posições é permitir que coisas particulares dentro do universo possam começar a existir espontaneamente, mas que o próprio universo não possa começar a existir espontaneamente. O princípio causal que é sinteticamente a priori é não (P1), mas o mais fraco (P2), segundo o qual é impossível para o ser surgir incausado a partir de absolutamente nada.
A segunda posição mais conservadora consiste em preservar a afirmação original sobre todos os começos de existência mas redefinir ‘causa’ de modo que o termo não mais signifique uma condição suficiente mas uma condição probabilística em algum grau. Uma teoria probabilística da causalidade, como as de Wesley Salmon, Patrick Suppes, Richard Ottes ou David Papineau[29], pode ser adotada, em que x é uma causa de y se e somente se x é antecedente ou simultâneo a y e x tem uma probabilidade, que pode ser baixa, de estar associado de certo modo com y. (As definições de Salmon et al. são, obviamente, consideravelmente mais complicadas e precisas mas não é necessário explicar os detalhes aqui.) Considere partículas virtuais que começam a existir num vácuo. Poderia ser dito que o vácuo tem uma probabilidade de grau muito baixo de estar associado ao nascimento de um par específico de partículas virtuais e, neste sentido, é uma causa das partículas virtuais. Estas reflexões sugerem um princípio causal que não é violado pela mecânica quântica mas é violado pela singularidade do Big Bang ateisticamente interpretada, nomeadamente, (P3), segundo o qual tudo o que começa a existir tem uma causa probabilística, com a probabilidade relevante sendo maior que zero e possivelmente um.
Meu comentário sobre (P3) é que se tal princípio é uma generalização empírica, ele é baseado em observações da categoria de eventos para os quais é logicamente possível que existam causas naturais e, portanto, que não existe nenhuma justificação para supor que (P3) se aplica a eventos de uma categoria diferente, a eventos para os quais é logicamente impossível que existam causas naturais. Por definição, o estado inicial do universo não tem nenhuma causa natural, e por conseguinte situa-se fora do escopo de (P3).
Entretanto, se (P3) fosse sinteticamente necessário sua aplicação não seria restrita a um domínio empírico específico mas poderia ser interpretado como aplicável a tudo, até mesmo à singularidade do Big Bang. (P3), assim como (P2), poderia ser utilizado para excluir em bases a priori a interpretação ateísta da cosmologia do Big Bang. Mas será qualquer um destes dois princípios sinteticamente a priori? As evidências de que um deles seria sinteticamente a priori seria sua ‘obviedade intuitiva’. Esta é a posição de Craig, por exemplo; ele insiste que ‘é intuitivamente óbvio que qualquer coisa que começa a existir, sobretudo o universo inteiro, deve ter uma causa para sua existência’.[30] Minha resposta é negar que qualquer destes dois princípios seja intuitivamente óbvio. Sugeri numa seção anterior que há quatro espécies de verdades necessárias, quais sejam, (1) tautologias, (2) verdades analíticas, (3) verdades sintéticas a priori e (4) verdades metafisicamente necessárias a posteriori. Verdades sintéticas a priori são exemplificadas por ‘Nada que seja completamente verde num momento t é completamente vermelho no momento t’ e verdades metafisicamente necessárias a posteriori são exemplificadas por ‘Água é H2O’. Agora a questão com a qual estamos a lidar concerne às verdades sintéticas a priori, já que as proposições causais devem alegadamente ser deste tipo. Como sugeri na seção anterior, a evidência de que uma proposição é uma verdade sintética a priori é que não se pode conceber que ela seja falsa (em qualquer mundo possível) e ela não é tautológica ou analítica. Este é claramente o caso de ‘Nada que seja completamente verde num instante t é completamente verde no mesmo instante t.’ Não se pode conceber ser possivelmente o caso que alguma coisa, digamos, uma porção de capim, seja completamente verde em t e além disso seja simultaneamente vermelha. Mas este não é o caso de nossas proposições causais. Posso conceber a possibilidade do universo começar a existir incausado. Este começo incausado pode ser completamente desconcertante, mas pode ser concebido que ele possivelmente ocorra, ao contrário de uma folha de capim sendo simultaneamente tanto completamente verde como completamente vermelha.
Craig responde a esta linha de argumentação da seguinte maneira: ‘Podemos representar no olho da mente o universo saltando na existência incausado, mas o fato de que podemos construir e identificar tal quadro mental não quer dizer que a origem do universo poderia realmente ter acontecido desta maneira.’[31] Mas esta resposta não se sustenta já que é baseada num fracasso em distinguir entre verdades metafisicamente necessárias a priori e a posteriori. É verdade acerca das necessidades metafísicas a posteriori que a concepção delas como possivelmente não vigorando não é evidência de que elas não são necessárias. Posso conceber que a água seja XYZ em vez de H2O, mas essa não é uma razão para pensar que não é metafisicamente necessário que a água seja H2O. Mas é um traço distintivo das necessidades metafísicas a priori que não se pode conceber que elas possivelmente não vigorem; é exatamente por isso que se diz que elas são ‘conhecidas a priori’. Se é possível conceber que o universo possivelmente comece a existir incausado, então isto é evidência conclusiva de que “o universo não pode começar incausado” não é uma proposição sintética a priori. Negar isto é supor que este princípio causal é uma verdade necessária metafisicamente a posteriori, e ninguém, até onde sei, sustentou ou sustenta essa hipótese implausível. Portanto, penso que é racional acreditar que o universo pode começar incausado e , consequentemente, que a objeção baseada no ‘princípio causal’ fracassa.
A título de conclusão, eu ressaltaria que mesmo que meus argumentos neste artigo sejam sólidos, isso não implica que Deus não exista. Pois a cosmologia do Big Bang pode ser falsa. Mas mesmo se ela for verdadeira, o ateísmo não se segue, já que há outras objeções a meu argumento que não considerei. Contudo, algumas destas objeções não consideradas foram discutidas em outras ocasiões. Por exemplo, eu defendi[32] que não faz sentido imaginar que Deus sabe, logicamente antes da criação, que se o universo começasse com uma singularidade, esta singularidade emitiria uma configuração de partículas produtora de vida, já que a hipótese de que este contrafactual seja verdadeiro logicamente antes da criação é inconsistente com as propriedades semânticas essenciais dos contrafactuais. Mas há também outras objeções que não considerei em nenhum outro lugar (incluindo, obviamente, as que até agora nem mesmo foram formuladas). Portanto, minha posição final é que, para ser sustentada racionalmente, à conclusão ateísta deste artigo deve atribuído um caráter provisório.[33][34]
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Notas.
29. Wesley Salmon, Scientific Explanation and the Causal Structure of the World (Princeton: University Press, 1984); Patrick Suppes, A Probabilistic Theory of Causality (Amsterdam: North-Holland, 1970); Richard Otte, ‘Indeterminism, Counterfactuals, and Causation,’ Philosophy of Science 54 (1987): 45-62; David Papineau, ‘Probabilities and Causes’, The Journal of Philosophy 82 (1985): 57-74.
30. W. L. Craig, The Kalam Cosmological Argument, op. cit., p. 148. Itálicos meus.
31. Ibid., p. 145.
32. Quentin Smith, ‘Atheism, Theism and Big Bang Cosmology,’ Australasian Journal of Philosophy 69 (March 1991): 48-66.
33. Esta conclusão ateísta não precisa ser tomada como uma rejeição de uma visão de mundo religiosa (num sentido amplo de ‘religião’). Pois pode-se em vez disso rejeitar a pressuposição tradicional de que se Deus não existe, nada é sagrado. Se o ateísmo é verdadeiro, incontestavelmente ainda haverá algo que é sagrado, nomeadamente a existência do universo. Cf. Quentin Smith, ‘An Analysis of Holiness,’ Religious Studies 24 (1988): 511-528. Além disso, o próprio universo é alvo de ‘emoções religiosas’ num senso amplo. Cf. Quentin Smith, The Felt Meanings of the World: A Metaphysics of Feeling (West Lafayette: Purdue University Press, 1986).
34. Gostaria de agradecer a William P. Alston e a um resenhista anônimo por críticas úteis a uma versão preliminar deste artigo, embora considerações editoriais e de espaço exijam que minhas respostas a algumas de suas críticas sejam reservadas para publicação futura.