por Eric Voegelin
[O texto a seguir é continuação de Quod Deus Dicitur.]
1. O Cenário Pós-Cartesiano:
A análise tomista diz respeito à estrutura paradoxal da tensão entre os símbolos compactos da fé e a operação do intelecto noético. Contudo, sua clara formulação é impedida pela compactação dos símbolos reflexivos de que Tomás dispõe em seu contexto histórico. Trata-se dos símbolos de uma verdade de revelação na tradição da fé judaico-cristã, e dos símbolos filosóficos derivados do contexto culturalmente distinto da civilização helênica. A fim de clarificar algumas destas complicações, será útil mencionarmos brevemente os avanços da análise nos empreendimentos cartesianos e pós-cartesianos.
Considere-se, por exemplo, a formulação dada por Leibniz ao problema em sua obra Principes de la nature et de la grâce. A análise “metafísica” de Leibniz assume o princípio de razão suficiente (raison suffisante) como a explanação para tudo o que acontece na realidade. A busca pela razão suficiente culmina nas duas questões: (a) Por que existe algo, em vez de nada?, e (b) Por que as coisas são como são? Neste nível de simbolização, Leibniz chega a formulações estreitamente semelhantes às de Tomás. A experiência da realidade contingente implica uma razão não-contingente para o que é experienciado como contingente. “Et cette dernière raison des choses est appelée Dieu“.
Embora a formulação de Leibniz assemelhe-se à de Tomás, deve-se estar ciente de sua aura pós-cartesiana. O que está em primeiro plano agora é a inerência da resposta ao evento da questão. Essa característica imaginativa que ultrapassa a mera assunção de um símbolo revelatório deve-se à intuição cartesiana da resposta como algo contido nos atos de duvidar e de desejar. A transição experienciada de um cogito ergo sum aparentemente certo para um ego que duvida e deseja de forma imaginativa é a fonte meditativa da compreensão de que não há nenhum ego sem uma realidade abrangente para ser simbolizada como a perfeição em cuja direção o ego imaginativo arduamente caminha. Um ego que duvida e deseja ir além de si mesmo não é o criador de si mesmo, mas demanda um criador e mantenedor de sua existência dubitativa, e essa causa é o “Deus” que aparece na análise da Terceira Meditação e dos Princípios. Não há nenhuma contingência dubitativa sem a tensão direcionada para a necessidade que evidencia a dúvida como tal.
Este avanço na estrutura imaginativa da questão noética, contudo, ainda é dificultado por outro elemento compacto da análise tomista, isto é, pela construção de uma análise meditativa como uma prova silogística. Mesmo Descartes e Leibniz ainda querem compreender a análise como uma prova da existência do Deus da Revelação, uma assunção que Kant mostrou ser insustentável na Crítica da Razão Pura. No entanto, uma vez que a análise positiva da questão imaginativa por Kant foi insuficiente, coube a Hegel reconhecer, contrariando a crítica de Kant, “as assim chamadas provas da existência de Deus como descrições e análises do processo do próprio Geist… A elevação do pensamento além do sensual, o pensamento transcendendo o finito e o infinito, o salto feito ao romper com a série do sensual em favor do suprasensual, tudo isto é o próprio pensamento, a transição é somente o próprio pensamento.” (Enzyklopaedie 1830 §50)
Nesta passagem de Hegel pode-se discernir as camadas históricas da análise. Elas são (a) o argumento tomista (baseado, em última análise, em Aristóteles), (b) o progresso cartesiano para o argumento como um evento imaginativo, (c) a crítica kantiana de sua estrutura silogística, e (d) uma nova clareza sobre o processo de análise noética. Contudo, o que torna a iluminação hegeliana ainda insatisfatória é a tendência a alçar a estrutura paradoxal conforme revelada na dimensão reflexiva da consciência ao posto de solução final do problema da divindade. Esta hipóstase da consciência reflexiva obscurece o fato de que o próprio movimento noético, o encontro entre o humano e o divino, ainda é um processo ativo em tensão dirigida para os símbolos da fé. A hipóstase dos símbolos reflexivos leva à construção deformadora do processo de pensamento no pensamento acabado de um Sistema de ciência conceitual.
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2. Condições de Possibilidade da Negação da Divindade:
As dificuldades com que se deparam os pensadores contemporâneos em suas análises positivas inadequadas da consciência da realidade brotam da distinção inadequada entre o processo de análise noética e os símbolos reflexivos descrevendo o processo histórico de análise. O ponto experiencial da confusão é formulado por Tomás (ibidem I.2) como a diferença entre Deus in se e o Deus duoad nos. Na fé, vivemos na tensão entre a contingência e a necessidade divina. Nos símbolos reflexivos, contudo, o polo contingente e o polo necessário da tensão são reflexivamente hipostasiados em entidades imanentes e transcendentes. Que a necessidade divina não é uma coisa conhecida por suas propriedades é claramente visto por Tomás como a fonte das dificuldades, mas ele não determina com igual clareza a dificuldade, já avistada por Platão no Fedro e no Timeu, que emerge da estrutura intencionalista da linguagem: nossa propensão para pensar em proposições objetuais, isto é, proposições a respeito de objetos que nos são dados em experiências sensoriais, sobre experiências que não são experiências sensoriais. A estrutura primária do encontro entre o humano e o divino deve ser distinguida da simbolização reflexiva dos polos do encontro tensional na forma de entidades objetuais. O progresso de Tomás detêm-se na distinção entre o a priori da necessidade divina e o a posteriori de sua prova a partir do efeito nas experiências contingentes, deixando escapar certas qualidades da análise alcançadas por Anselmo da Cantuária, bem como pelos filósofos helênicos. Portanto, será apropriado enunciar o problema reflexivo da construção silogística em seus pontos principais.
A “prova ontológica” rejeitada por Tomás ainda não existia em sua época nesta forma simbólica. A palavra ontologia aparece no século dezessete no Elementa philosophiae sive Ontosophiae (1647) de Clauberg (ou talvez no Lexicon Philosophicum de Goclenius, de 1613), e encontra aceitação entre os filósofos através de seu emprego por Leibniz, Wolff e Kant no século dezoito. As Meditações de Descartes ainda não estavam oneradas pelo termo e essa é a provável razão pela qual elas ainda podiam estar próximas da busca mais antiga de Anselmo (que Descartes pode não ter conhecido) porque a dinâmica de seu movimento de busca ainda depende da tensão entre a perfeição e a imperfeição. Na Crítica da Razão Pura, Kant aplica o símbolo “prova ontológica” às Meditações cartesianas já como um termo de ampla utilização.
Os dados que acabei de fornecer apontam para uma área do discurso que se movimenta preferencialmente na fronteira da análise experiencial exata; eles sugerem a tentativa de estabelecer o termo “ontologia” como um sinônimo mais preciso para “metafísica” e, por esse meio, de estabelecer a metafísica como alternativa controversa à teologia. O termo próprio “metafísica” foi introduzido por Tomás na filosofia ocidental em seu comentário à Metafísica aristotélica influenciado pelo desenvolvimento do termo pelos filósofos árabes. Estamos tocando o problema da deformação reflexiva da realidade experiencial através de simbolismos reflexivos condicionados por situações históricas concretas.
Isto não significa que não haja um problema experiencial real por trás da deformação, nem que este problema não foi visto e formulado pelo próprio Tomás. A distinção entre a “priora simpliciter” da fé e a “posteriora” de sua realidade obtida a partir de seus efeitos torna possível negar a priora que não permite que suas propriedades sejam conhecidas como se fossem propriedades de um objeto. E como as propriedades objetuais não são conhecidas a não ser pelos seus efeitos, a priora da fé pode ser negada quanto à sua realidade. A base experiencial desta consequência é apresentada por Tomás no simbolismo escritural “Dixit insipiens in corde suo: Non est Deus”. A confusão deformadora no “coração” do insipiens (na tradução para o português: do tolo, do néscio, do insensato) é a fonte experiencial que chama atenção para a estrutura não-objetual dos símbolos divinos. É o cor suum do homem que é o sítio experiencial de uma posição hipostasiante ou de negação da divindade.
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3. O êxito da busca de Anselmo da Cantuária:
A análise de Hegel, apesar da construção reflexiva deformadora, chegou perto da compreensão do processo noético como foi experienciado por Anselmo da Cantuária no começo do escolasticismo. No Proslogion, a análise de Anselmo é explícita acerca dos limites da busca noética. Na segunda parte de sua obra, no Proslogion XIV, ele reconhece que o Deus encontrado pela verdade da razão ainda não é o Deus cuja presença foi experienciada por quem O busca na formação e na re-formação de sua existência. Ele ora a Deus:
Dize à minha alma, que anela por ti, o que tu és, caso não sejas aquilo que ela viu, a fim de que possa enxergar, claramente, aquilo que deseja com tanto ardor.
E no Proslogion XV ele formula a questão estrutural com uma exatidão clássica:
Oh! Senhor, Tu não és apenas aquilo de que não é possível pensar nada maior, mas és, também, tão grande que superas a nossa possibilidade de pensar-te.
Este é o limite da análise conceitual noética desconsiderada por Hegel. Seja observado que na seção sobre Anselmo da Cantuária de sua Geschichte der Philosophie, Hegel lida extensiva e competentemente com a “prova ontológica”, mas não menciona a segunda parte do Proslogion, com sua exploração analógica da luz divina além da razão humana. A busca noética de Anselmo assume então a forma de uma oração por uma compreensão dos símbolos da fé pelo intelecto humano. Por trás da busca, e por trás da fides que a busca supostamente compreende, torna-se agora visível a verdadeira fonte do esforço anselmiano no desejo vivo da alma de mover-se rumo à luz divina. A realidade divina deixa a luz de sua perfeição derramar-se sobre a alma; a iluminação da alma desperta no homem a consciência de sua existência como um estado de imperfeição; e esta consciência provoca o movimento humano em resposta ao apelo divino. A iluminação, como Santo Agostinho designa a experiência, tem para Anselmo o caráter de um apelo, até mesmo de um conselho e de uma promessa. Pois, a fim de expressar a experiência de iluminação ele cita João 6:24:
Pedi e recebereis, que vossa alegria seja completa.
As palavras joaninas do Cristo, e do Espírito que aconselha em seu nome, palavras cujo sentido requer o contexto em que foram proferidas, expressam o movimento divino ao qual Anselmo responde com o contra-movimento jubiloso de sua busca (XXVI). Consequentemente, a última parte do Proslogion consistentemente louva a luz divina na linguagem analógica da perfeição. A Oração de Anselmo é, de acordo com sua formulação da natureza da busca na primeira seção do Monologium, uma meditatio de ratione fidei. A busca orante responde ao apelo da razão na fides; o Proslogion é a fides em ação, em busca de sua própria razão. Devemos, portanto, concluir que Santo Anselmo compreendeu claramente que a estrutura cognitiva é interna ao Metaxo, o Intermédio anímico no sentido platônico.
O significado do Metaxo neste contexto talvez possa ser mais claramente compreendido no Mito do Fedro. Neste Mito, Platão agrupa os deuses olímpicos junto com seus seguidores humanos como os seres no interior do cosmos que são dotados de almas e, portanto, preocupados com sua imortalidade. Os olímpicos, que já desfrutam da condição de imortais, precisam apenas preservá-la pela ação apropriada; ao passo que as almas humanas que desejam a imortalidade ainda precisam alçar-se até esta condição mediante um esforço que é, em diversos graus, dificultado por seus corpos mortais cujas paixões arrastam-nos para baixo. Nem as ações conservativas dos deuses, contudo, nem os esforços sinceros de seus devotos humanos podem alcançar seu objetivo por meio de processos no interior do cosmos. Pois a fonte da imortalidade é a realidade divina extracósmica para além firmamento (exo tou ouranou) que envolve o cosmos, e os seres intracósmicos dotados de almas devem elevar-se até esta fonte por meio das “asas” noéticas que os habilita a ascender à verdade do Além. Esta ascensão das almas não é uma atividade prosaica. Ordinariamente, assim Platão deixa que o Mito nos diga, os deuses e seus devotos tomarão parte de seus negócios intracósmicos, e somente em ocasiões festivas eles elevar-se-ão até à região supracelestial (hyperouranios topos). E lá, do topo do cosmos, eles contemplarão a ousia ontos ousa que é visível somente para o nous, o guia da alma.
(Continua…)
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