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Posts Tagged ‘Argumento evolutivo contra o naturalismo’

Publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo do dia 09 de dezembro de 2012

Autor: Hélio Schwartsman

SÃO PAULO – Bela tentativa. É o que se pode dizer do livro Onde Realmente Está o Conflito – Ciência, Religião e Naturalismo, de Alvin Plantinga, lançado no fim do ano passado nos EUA. O projeto da obra é ambicioso. Plantinga, que é, ao mesmo tempo, um filósofo analítico de renome e um protestante devoto, pretende demonstrar não apenas que as discrepâncias entre a ciência e a religião (em especial, a cristã) são superficiais como também que existe uma contradição insuperável entre a ciência e o naturalismo.

Não creio que tenha alcançado o objetivo, mas isso não implica que o livro seja desinteressante. Ao contrário, ele levanta questões instigantes. É particularmente feliz ao mostrar que naturalismo e materialismo apresentam várias dificuldades filosóficas e, como as religiões, também trazem embutidos uma ontologia e, se quisermos fazer com que Popper revire na tumba, uma metafísica.

Assim como Thomas Nagel, de quem falei algumas semanas atrás, Plantinga explora as implicações do problema mente-corpo. O naturalismo não tem como assegurar que pelo menos parte de nossas percepções e a própria razão (e, com elas, nossas teorias científicas) sejam confiáveis.

O livro falha, creio, quando tenta produzir evidências em favor do teísmo. Minha impressão é a de que aqui Plantinga abre mão do rigor com que tratou o naturalismo. Um exemplo: ele coloca a fé (o “sensus divinitatis” de Calvino) como uma fonte de formação de crenças tão válida quanto a razão ou as percepções.

O resultado é que Plantinga vai criando esconderijos para Deus, nichos filosóficos ou linguísticos onde o todo-poderoso pode abrigar-se de questionamentos contundentes. Mesmo assim, para os que se interessam pelo debate entre ciência e religião, que é um dos grandes temas da atualidade, o livro oferece uma perspectiva teísta que não se restringe a reafirmar os velhos contos da carochinha (embora eles estejam lá).

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Autores: Branden Fitelson e Elliott Sober

Departamento de Filosofia
Universidade de Winscosin – Madison

20 de novembro de 1997

Tradução: Gilmar Pereira dos Santos

Resumo: No capítulo 12 de Warrant and Proper Function, Alvin Plantinga constrói dois argumentos contra o naturalismo evolutivo, que ele interpreta como uma conjunção E&N. A hipótese E diz que “as faculdades cognitivas humanas originaram-se através dos mecanismos para os quais o pensamento evolucionista contemporâneo dirige nossa atenção (p.220).[1]” Plantinga tenta lançar dúvidas sobre a conjunção E&N de duas maneiras. Seu argumento preliminar tem por objetivo mostrar que a conjunção é provavelmente falsa, dado o fato (R) de que nossos mecanismos psicológicos de formação de crenças sobre o mundo são geralmente confiáveis. Seu argumento principal visa demonstrar que a conjunção E&N é autodestrutiva – se você acredita em E&N, então você deveria parar de acreditar nesta conjunção. Plantinga depois desenvolve o argumento principal em seu artigo inédito “Naturalismo invalidado” (Plantinga 1994). Tentaremos mostrar que ambos os argumentos contém erros graves.

Índice:

1. O argumento preliminar
1.1 A proposição R
1.2 Estabelecendo Pr(R)~1
1.3 Pr(R|E&N) possui um valor baixo? Repensando a “dúvida de Darwin”
1.4 O princípio da evidência total
1.5 Uma contradição e duas saídas possíveis
2. O argumento principal de Plantinga contra E&N
2.1 Problemas que o argumento principal herda do argumento preliminar
2.2 O que a invalidação de R significa
2.3 Probabilidade condicional e invalidação
3. Um problema para o evolucionismo

1. O argumento preliminar

Plantinga constrói seu argumento preliminar numa estrutura bayesiana. Seu objetivo é estabelecer que Pr(E&N|R) – a probabilidade de E e N, dado R – é baixa. Para tanto, Plantinga usa o Teorema de Bayes, cujo enunciado diz que esta probabilidade condicional é função de três outras quantidades:

Pr(E&N|R)=Pr(R|E&N)*Pr(E&N)/Pr(R)

Plantinga diz que você deveria atribuir a Pr(R) um valor bastante próximo de 1 baseado no fato de você acreditar em R (p.228) Ele argumenta que a Pr(R|E&N) é baixa. Ainda que Plantinga não forneça uma estimativa a priori da probabilidade Pr(E&N), ele diz que esta é comparável à probabilidade a priori  do teísmo tradicional (TT) (p.229), querendo dizer, supomos, que seus valores não são muito discrepantes.
Esta última alegação deveria levantar sobrancelhas, não somente entre naturalistas evolutivos que rejeitam a idéia de que sua teoria e o teísmo tradicional estejam em pé de igualdade antes que a proposição R seja levada em conta, mas também entre críticos do Bayesianismo, que duvidam que exista alguma base objetiva para tais atribuições de probabilidade. Plantinga diz (p.220, nota de rodapé 7) que suas probabilidades podem ser interpretadas “epistemicamente” ou “objetivamente”, mas que ele prefere a interpretação objetiva. De qualquer maneira, bayesianos nunca foram capazes de dar coerência à idéia de que probabilidades a priori possuam um fundamento objetivo. O canto de sereia do Princípio da Indiferença tem levado muitos a pensar que é possível atribuir probabilidades à hipóteses sem necessidade de evidências empíricas, mas nenhuma versão consistente deste princípio jamais foi formulada. A alternativa sob a qual os bayesianos costumeiramente se refugiam é interpretar probabilidades como uma indicação do grau de crença subjetiva de um agente. O problema com esta abordagem é que ela priva probabilidades a priori (e as probabilidades posteriores que delas dependem) de qualquer força probatória. Se um agente atribui probabilidades similares ao naturalismo evolutivo e ao teísmo tradicional, isto é inteiramente consistente com a atribuição por outro agente de probabilidades bastante desiguais às mesmas hipóteses, se probabilidades meramente refletem intensidades de crença.
Ainda que a estrutura bayesiana de Plantinga obrigue-o a dar sentido à idéia segundo a qual a conjunção E&N possui uma probabilidade a priori, seu argumento não depende de qualquer valor particular atribuído a esta variável. Como Plantinga aponta (p.228), se Pr(R)≈1 e Pr(R|E&N) é baixa, então Pr(E&N|R) também é baixa, não importando qual valor Pr(E&N) possua.

1.1  A proposição R

Para o bem da clareza, vale a pena enunciar mais precisamente a proposição R. O que significa afirmar que nossos mecanismos psicológicos de formação de crenças sejam “geralmente confiáveis”? Em seu manuscrito inédito, Plantinga diz que R significa que a vasta maioria de nossas crenças são verdadeiras (Plantinga 1994, p.2). Deixando de lado o problema da contagem de crenças, não queremos desafiar a veracidade desta alegação sumária. De qualquer maneira, ela subespecifica drasticamente o dado que precisa ser explicado. Pois o que há de consensual neste assunto é que nossos mecanismos cognitivos são confiáveis em alguns domínios, suspeitos em outros e de confiabilidade desconhecida em outros ainda. Deveríamos dividir nossas crenças em categorias e associar um grau característico de confiabilidade a cada uma delas[2]. Talvez certas crenças perceptuais simples sejam muito confiáveis, enquanto crenças sobre outros assuntos sejam menos. Em vez de tentar obter uma afirmação sumária sobre todos estes mecanismos e as crenças que eles originam, seria melhor considerar uma conjunção R1&R2&…&Rn que especifique o grau de confiabilidade que os dispositivos humanos de formação de crenças possuem com respeito a diferentes assuntos, ou em diferentes situações problemáticas. Plantinga (pp. 216-217,227, 231-232, e num comunicado pessoal) não se opõe a este particionamento e o utiliza ele próprio para discutir a probabilidade que E&N confere a R.
Se R é verdadeira, porque deveria alguém se dar ao trabalho de enuncia-la mais detalhadamente? Isto não faria diferença se o argumento de Plantinga fosse dedutivo. Um argumento sólido permanece sólido quando as premissas são suplementadas com mais detalhes verdadeiros. De qualquer maneira, argumentos probabilísticos não possuem esta propriedade. Mesmo se Pr(R|E&N) for menor que Pr(R|TT), permanece por ser demonstrado que Pr(R1&…&Rn|E&N) é menor que Pr(R1&…&Rn|TT).
Antes de nos debruçarmos sobre esta questão comparativa, consideremos se a probabilidade condicional Pr(R1&R2&R3&…&Rn|E&N) é alta ou baixa. Suponha que o naturalismo evolutivo faça um bom trabalho preditivo sobre o conjunto Ri’s, atribuindo a cada elemento uma probabilidade, digamos, de 0.99. Ainda assim poderíamos terminar com E&N conferindo uma baixa probabilidade a esta conjunção. Se

Pr(R1&R2&. . .&Rn |E&N) = Pr(R1 |E&N) · Pr(R2 |E&N) · · · Pr(Rn |E&N)
(isto é, se as Ri forem probabilisticamente independentes umas das outras e condicionadas por E&N), então o termo à esquerda da igualdade pode possuir um valor baixo, embora cada termo do produto à direita possua um valor alto. Eleve 0.99 a uma potência suficientemente alta e você obtem um valor próximo de zero. Isto pode acontecer a qualquer boa teoria; uma baixa probabilidade pode ser conferida a uma conjunção gigantesca de observações embora cada elemento individual da conjunção possua uma probabilidade bastante alta.
Uma vez decomposta a proposição R numa conjunção de alegações, não fica nem um pouco óbvio que a teoria da evolução faz um trabalho pior de predição desta conjunção do que o do teísmo tradicional. Plantinga diz que o teísmo tradicional “acredita que Deus é o conhecedor primário e criou-nos seres humanos à sua imagem, uma parte importante da qual envolve  um reflexo de seus poderes como conhecedor (p.237).” Entretanto, uma perspectiva influente nas ciências cognitivas afirma que o entendimento humano está sujeito a uma ampla variedade de vieses. Não apenas que pessoas eventualmente se equivoquem, mas que a faculdade racional humana aparenta funcionar segundo métodos heurísticos que levam ao erro sistemático (Kahnemann, Tversky and Slovic 1982). Não seria surpreendente, de um ponto de vista evolutivo, se os seres humanos possuíssem dispositivos altamente confiáveis para formação de crenças acerca questões práticas que afetam a sobrevivência e a reprodução, mas sejam um tanto menos dotados quando o assunto é filosofia, teologia e ciência teórica. A teologia tradicional também prevê este resultado? Sem dúvidas, pode-se especificar uma teologia que faça qualquer previsão conveniente. Entretanto, não é de todo claro que a teologia tradicional de Plantinga faça um bom trabalho preditivo acerca dos graus variáveis de confiabilidade que a mente humana exibe. Plantinga deve lidar com o mesmo problema que o argumento do design de Paley enfrenta: por que uma divindade onipotente, onisciente e benevolente produziria organismos que exibem adaptações tão escandalosamente imperfeitas (Sober 1993)?

1.2 Estabelecendo Pr(R)≈1

Mencionamos previamente que Plantinga estabelece Pr(R)~1 porque acredita na veracidade da proposição R. No contexto da teoria da confirmação bayesiana, especificar a evidência de que uma probabilidade esteja próxima da unidade possui uma consequência peculiar, como mostraremos agora.
Bayeasianos definem confirmação em termos de aumento da probabilidade; uma observação O confirma uma hipótese H se e somente se a probabilidade posterior Pr(H|O) é maior que a probabilidade a priori Pr(H). Se reescrevermos o teorema de Bayes como a seguir

Pr(H|O)/Pr(H)=Pr(O|H)/Pr(O)

fica claro que O não pode confirmar H se Pr(O)=1. Com esta atribuição, o termo à direita da igualdade não pode ser maior do que 1, consequentemente o termo à esquerda também não pode. A estipulaçao de Plantinga que Pr(R) é próxima de 1  não assegura que R não pode confirmar uma hipótese H. Depois de tudo, é possível que Pr(R|H) seja ainda mais próxima de 1 que Pr(R). Digamos que a hipótese H é quase-determinística  com respeito a R se Pr(R|H)>Pr(R)≈1. Se o naturalismo evolutivo não é quase deterministico neste sentido, então R não pode confirma-lo, dada a atribuição de Plantinga. A proposição R pode deixar inalterada a probabilidade de E&N, ou pode diminui-la; a única opção é cair. A não ser que o teísmo tradicional seja quase deterministico com respeito a R, ele também não pode ser confirmado pela proposição R, se Pr(R)≈1.

Bayesianos gostam de assinalar que uma das consequencias do teorema de Bayes é a incapacidade de uma observação confirmar uma hipótese quando esta observação é totalmente trivial. contudo, para a maior parte das previsões de interesse mínimo, um agente bayesiano não possui garantias prévias de que elas se realizarão; quando previsões surpreendentes se realizam, elas fornecem  uma confirmação. A calçada molhada (M) confirma a hipótese de que tem chovido. O fato de você acreditar que a calçada está molhada não deveria leva-lo a atribuir a esta evidência uma probabilidade igual a 1. Uma atribuição razoável de valor para Pr(M) é dada pelo fato de que a calçada raramente está molhada. A observação é, por conseguinte, algo surpreendente, e capaz de confirmar a hipótese, portanto. Assim, a alegação de Plantinga de que Pr(R) é bastante próxima de 1 é bastante excêntrica, para dizer o mínimo; e ela é crucial para seu argumento segundo o qual Pr(E&N|R) possui um valor baixo. Plantinga precisa de uma justificativa melhor para esta atribuição do que o fato de ele acreditar em R.
O argumento preliminar de Plantinga pode ser substituído por um argumento diferente, um que procure estabelecer que Pr(TT|R)>Pr(E&N|R). O objetivo agora é comparar duas probabilidades a posteriori, não estimar seus valores absolutos. Esta desigualdade é verdadeira especificamente quando

Pr(R|TT)*Pr(TT)>Pr(R|E&N)*Pr(E&N).

Observe que o valor de Pr(R) agora é irrelevante. O argumento pode começar com a afirmação de que é mais provável que nossos mecanismos psicológicos para formação de crenças sejam confiáveis se TT é verdadeiro do que seria o caso se E&N fosse verdadeiro. Se Deus existe e intervém nos processos naturais para garantir que os seres humanos terminem com faculdades cognitivas confiáveis, isto torna R algo mais certo do que seria o caso se processos naturais aleatórios forem as únicas causas explicativas para o equipamento mental que possuímos.[3] (Aqui os problemas a respeito de como a proposição (R) deve ser enunciada, esboçados da seção 1.1,são ignorados.) Se TT e E&N recebem a mesma probabilidade a priori, segue-se que TT possui a maior probabilidade a posteriori.
O presente argumento proporciona uma maneira para substituir qualquer teoria não-determinista nas ciências naturais. Se a mecânica quântica prevê que um determinado resultado experimental é meramente bastante provável, por que não aceitar, em vez disso, a hipótese teísta segundo a qual este resultado decorre inevitavelmente da vontade divina? O teísmo pode ser formulado de maneira tal que torna o que observamos tão provável quanto se deseje. Aqueles que sentem a necessidade de apelar para a intervenção divina no caso da mente humana deveriam explicar porque não procedem assim em relação à todas as observações do mundo natural.

1.3 Pr(R|E&N) possui um valor baixo? Repensando a “dúvida de Darwin”

Plantinga (pp. 223-228) argumenta que Pr(R|E&N) possui um valor baixo, arrolando vários cenários logicamente concebíveis que descrevem como crenças e ações podem estar relacionadas. Para cada um deles, ele afirma que é muito improvável que os mecanismos cognitivos que neles evoluíram sejam altamente confiáveis[4]. Eis as possibilidades que Plantinga considera:

(i) crenças não são causalmente conectadas com comportamentos;
(ii) crenças não determinam causalmente comportamentos, mas são efeitos de comportamentos ou são efeitos de eventos que também determinam causalmente comportamentos;
(iii)crenças causam comportamentos, mas o fazem em virtude de sua sintaxe, não de sua semântica;
(iv)as propriedades semânticas de uma crença causam um comportamento, mas o comportamento é adaptativamente disfuncional;
(v)crenças determinam causalmente comportamentos adaptativos;.

Nesta última categoria, os comportamentos adaptativos podem ser causados por crenças verdadeiras, mas também podem ser causados por crenças falsas. Para esclarecer este ponto, Plantinga descreve um hominídeo pré-histórico chamado Paul que consegue evitar ser comido por tigres embora deseje ser consumido por eles. Paul obtém o que é bom para ele desejando o que é ruim; ele fica livre de encrencas porque suas crenças são falsas de uma maneira que o favorece. Em cada um destes cenários, Plantinga diz que é improvável que nossas faculdades cognitivas tenham evoluído para serem altamente confiáveis. Então Pr(R|E&N) é baixa.
Na parte principal de seu mais recente manuscrito inédito, Plantinga também diz que Pr(R|E&N) é baixa sob o cenário (ii) (epifenomenalismo); entretanto, ele apresenta uma conclusão diferente na nota de rodapé 15 (p.8). Se crenças e ações possuem eventos neurais como causas comuns, então Plantinga conclui que a probabilidade é “inescrutável”, querendo dizer que ele não pode descobrir qual valor deveria ser atribuído. Consideramos este como o ponto de vista vigente de Plantinga sobre o assunto submetido a análise. Embora Plantinga esteja desenvolvendo o argumento principal contra o naturalismo evolutivo em seu manuscrito e não esteja falando sobre o argumento preliminar, é digno de menção que esta conclusão solapa o argumento preliminar, que se assenta na atribuição de um valor baixo a Pr(R|E&N).
Seja ou não a visão atual de Plantinga que Pr(R|E&N) é inescrutável sob o cenário (ii), esta deveria ser sua opinião, dada a informação que ele considera. Presumir que crenças não determinam ações não é o mesmo que presumir que elas sejam completamente desconexas. Resistência à malária não causa anemia, nem anemia causa resistência à malária, contudo, estas características são correlacionadas num número de populações humanas porque são fenótipos causados pelo mesmo gene. Não há como dizer a priori o quão provável R é sob o cenário (ii).
Quando Plantinga dirige sua atenção para a categoria (v) _ o caso em que crenças causam comportamentos adaptativos _ ele argumenta que crenças adaptativas falsas são tão prováveis de evoluir quanto crenças adaptativas verdadeiras. A razão é que os comportamentos produzidos por um conjunto de crenças verdadeiras também poderiam ser produzidos por um conjunto de crenças falsas. O exemplo do hominídeo Paul exemplifica como isto poderia ser verdade. Plantinga oferece outro exemplo no manuscrito inédito. Se “isso é uma árvore” é uma crença verdadeira, então “isso é uma árvore-feiticeira” é uma falsa crença que teria as mesmas consequencias comportamentais, e assim seria igualmente adaptativa. Aqui, o erro de Plantinga é ignorar o fato de que a probabilidade de uma característica evoluir depende não somente de seu valor adaptativo, mas também de sua disponibilidade. A razão pela qual as zebras não possuem metralhadoras com as quais repelir o ataque de leões não é o menor valor adaptativo dos disparos destas metralhadoras em relação a simplesmente fugir correndo; esta característica nunca evoluiu porque nunca esteve disponível como uma variação sobre qual a seleção natural pudesse agir hereditariamente (veja também Fodor 1997).
Isto quer dizer que o argumento de Plantinga segundo o qual Pr(R|E&N) possuirá um valor baixo nas situações encontradas no cenário (v) é inadequado. Plantinga pode replicar dizendo que crenças em bruxas e outros sistemas de crenças falsas adaptativas estiveram disponíveis para nossos ancestrais. Entretanto, não vemos qualquer razão para pensar que esta alegação substancial sobre o passado pode ser defendida com êxito. Ao ignorar o problema da disponibilidade, Plantinga, com efeito, assume que a seleção natural atua sobre um conjunto de variantes concebíveis. Isto não ocorre; ela atua sobre um conjunto de variantes reais.
Em geral, a maneira de duas propriedades (logicamente independentes) serem bem correlacionadas é através de uma conexão causal entre elas _ uma ser causada pela outra ou ambas remontarem a uma causa comum. Se crença e ação falham em ser causalmente conectados em qualquer destas duas formas, então seria surpreendente se a seleção sobre ações conduzisse à evolução de mecanismos cognitivos altamente confiáveis. No entanto, se crença e ação são causalmente conectados, então é necessário um argumento mais detalhado do que o fornecido por Plantinga para concluir que dispositivos de formação de crença confiáveis são improváveis de evoluir pela seleção sobre atos. A proposição R é improvável no cenário (i), mas isto é tudo que pode ser dito.

1.4 O princípio da evidência total

Suponhamos que Plantinga esteja certo em dizer que Pr(E&N|R) possui um valor baixo. Disto não se segue que E&N é improvável em relação a todas as evidências relevantes. Naturalista evolutivos podem alegremente aceitar a idéia de que a probabilidade condicional mencionada é baixa; não se segue que eles deveriam diminuir sua confiança atual na verdade da teoria evolutiva e do naturalismo.
Se você retira aleatoriamente uma carta de um baralho padrão, a probabilidade de você retirar um sete de ouros é de somente 1/52. Se você retira esta carta, isto não significa que você deve concluir que o baralho é viciado ou que a carta não foi retirada ao acaso. Se você possui evidência independente de que o baralho é honesto e de que a retirada foi aleatória, você simplesmente aceita o fato de que algumas das coisas que ocorrem não possuem grandes probabilidades. Mesmo que aconteça de existirem aspectos da configuração cognitiva humana que sejam improváveis sob a hipótese de que os humanos evoluíram, há evidêcias avassaladordas de que a mente humana é um produto da evolução. Sob esta luz, a coisa sensata a fazer é aceitar a teoria da evolução e concordar com o fato de que os processos evolutivos as vezes produzem resultados improváveis[5].
Assim como para a hipótese isolada do naturalismo, que para Plantinga significa ateísmo conjugado com outras proposições que ele não enuncia, estas também devem ser avaliadas à luz de todas as evidências, não somente em relação à proposição R.

1.5 Uma contradição e duas saídas possíveis

Mencionamos que Plantinga pensa que Pr(1) possui um valor próximo de 1, Pr(R|E&N) um valor baixo, Pr(R|TT) um valor alto, e que os valores de Pr(E&N) e Pr(TT) são “comparáveis”. O argumento preliminar de Plantinga também inclui a pressuposição de que N e TT são as únicas “alternativas significativas” (p.228).
Se a afirmação de que os valores de Pr(E&N) e Pr(TT) são “comparáveis” significa que não estão muito afastados, e se a afirmação de que E&N e TT são as únicas “alternativas significativas” significa que elas são as únicas possibilidades que possuem probabilidades significativas, então este conjunto de afirmações probabilísticas é contraditório. Para ver o porque, vamos desenvolver Pr(R):

Pr(R)=Pr(R|E&N)*Pr(E&N) + Pr(R|TT)*Pr(TT).

Se E&N e TT são exaustivas, então a afirmação de Plantinga de que ambas possuem probabilidades a priori “comparáveis” significa que cada uma delas possui uma probabilidade em torno de 0.5. Substituindo estes e outros valores que Plantinga atribui aos componentes da expressão, obtemos

1≈(valor baixo)*0,5 + (valor alto)*0,5.

Isto é impossível _ uma contradição dos axiomas da teoria das probabilidades.
Há duas maneiras de contornar esta dificuldade. Uma delas é manter os valores inicialmente atribuídos, mas negar que E&N e TT esgotam as alternativas significativas. Se uma terceira possibilidade, uma teoria X, é admitida, então Pr(R) se desenvolve como

Pr(R)=Pr(R|E&N)*Pr(E&N) + Pr(R|TT)*Pr(TT) + Pr(R|X)*Pr(X).

Se Pr(R)≈1, Pr(E&N) e Pr(TT) são próximos, e Pr(R|E&N) é baixa, então Plantinga deve atribuir a Pr(E&N) e Pr(TT) valores desprezíveis, de modo que Pr(X) seja próxima de 1. Ele também deve atribuir a Pr(R|X) um valor próximo da unidade. Esta revisão no argumento de Plantinga requer, portanto, a existência de uma alternativa ao teísmo tradicional que seja imensamente mais provável a priori, e que implica que a proposição R é, de fato, muito provável. O efeito destas atribuições é fazer Pr(E&N|R)  e Pr(TT|R) baixas e Pr(X|R) alta. Se um valor baixo para Pr(E&N|R) basta para rejeitar o naturalismo evolutivo, o mesmo vale para o teísmo tradicional. Esta revisão de seu argumento indica que a alternativa mais aceitável é a teoria X.
Outra maneira de eliminar a contradição é reinterpretar o que queremos dizer por “Pr(E&N) e Pr(TT) são comparáveis”. Plantinga nos sugeriu (através de um comunicado pessoal) que isto deve ser considerado como uma descrença, por parte do agente, de que as duas teorias possuam valores de probabilidades muito diferentes. Por exemplo, suponha que o agente coloque E&N e TT no mesmo amplo intervalo de probabilidades (digamos, entre 0,05 e 0,95) e é incapaz de ser mais específico do que isto.
As várias alegações de Plantinga podem ser tornadas consistentes após esta revisão. Para ver porque, retornemos ao desenvolvimento de Pr(R) e vejamos o que ocorre quando deixamos Pr(E&N) e Pr(TT) incógnitos, exceto pelo fato de que ambos devem estar situados no intervalo entre 0,05 e 0,95:

Pr(R)= Pr(R|E&N)*Pr(E&N) + Pr(R|TT)*Pr(TT)
1≈(valor baixo)*(?) + (valor alto)*(?)

A introdução de sinais interrogativos garante que  nenhuma contradição surja. Entretanto, os valores a que estes sinais se referem não são deixados em aberto; (PrE&N) deve ser bastante próximo de zero e Pr(TT) deve ser muito próximo de 1. O argumento agora é consistente, mas completamente privado de sua força probatória. Consistência ( e a interpretação revisada do significado de “Comparável”) requer a pressuposição de que o teísmo tradicional seja praticamente verdadeiro a priori, e que o naturalismo evolutivo seja quase com certeza falso, novamente a priori. Aqueles que não estiverem convencidos de que o teísmo tradicional seja imensamente mais provável que o naturalismo evolutivo antes de que a proposição R seja considerada rejeitarão o argumento logo de início. Além disso, esta revisão do argumento preliminar de Plantinga solapa sua motivação original. A idéia de Plantinga era desenvolver o que ele chama “a dúvida de Darwin” _ se Pr(R|E&N) possui um valor baixo. Entretanto, uma vez que o valor de Pr(R) seja colocado próximo de 1, e o valor de Pr(E&N) seja pressuposto baixo, segue-se automaticamente que Pr(E&N|R) é ainda menor, não importa qual valor aconteça de Pr(R|E&N) possuir.

2. O argumento principal de Plantinga contra E&N

O argumento descrito acima é um prelúdio ao ato principal, no qual Plantinga (pp. 234-235) demonstra que E&N é autodestrutiva. O argumento principal não intenta demonstrar que a conjunção E&N seja provabelmente falsa (ou que seja menos provável que TT), mas que as pessoas não deveriam acreditar em E&N:

1. Pr(R|E&N) possui um valor baixo ou inescrutável.
2. Portanto, E&N é um invalidador de R _ se você acredita em E&N, então você deveria se recusar a aquiescer com R.
3. Se você deve se recusar a aquiescer com R, então você deveria se recusar a aquiescer com qualquer outra coisa mais em que você acredita.
4. Se você acredita em E&N, então você deveria se recusar a acreditar em E&N (E&N é autodestrutiva).
__________________________________________________

Você não deve acreditar em E&N.

Plantinga vai além, tanto no livro quanto no manuscrito. Ele argumenta que o naturalismo por si só é autodestrutivo. No livro, ele diz que “se o naturalismo é verdadeiro, consequentemente também a evolução (p.236).” No manuscrito, ele diz que Pr(E|N) possui um valor alto (p.11). Nenhuma destas alegações é correta. Recorde que a proposição E refere-se aos processos e mecanismos descritos na teoria evolutiva contemporânea. Se esta teoria se mostrasse insuficiente, isto não implicaria a falsidade do naturalismo; os naturalistas poderiam perfeitamente, e sem se contradizerem, sair em busca de uma teoria científica melhor. No manuscrito Plantinga assegura que E é “o único jogo na cidade” para um naturalista; isto pode ser verdade ou não (atualmente), mas dificilmente mostra que o naturalismo por si só torna a teoria evolutiva contemporânea provável.

2.1 Problemas que o argumento principal herda do argumento preliminar

Discutimos a razão pela qual estamos insatisfeitos com o argumento de Plantinga segundo o qual Pr(R|E&N) possui um valor baixo. Também demonstramos que ainda que Pr(E&N|R) possua um valor baixo, isto não implica que R basta para rejeitar E&N. O ponto de simetria em relação ao argumento principal é que mesmo se Pr(R|E&N) possuir um valor baixo, isto não obrigaria as pessoas que acreditam em E&N a suspender sua crença em R. Por exemplo, pode-se argumentar que R é uma proposição básica que dispensa suporte teórico, ou que R deriva suas credenciais epistêmicas de algo diverso do naturalismo evolutivo.
O mesmo é válido se você não sabe que valor atribuir a Pr(R|E&N). Pessoas que acreditam em E&N não devem considerar o fato de que a probabilidade de que esta conjunção seja verdadeira ser inescrutável como uma razão para rejeitar R. Suspeitamos que várias pessoas que estão bem familiarizadas com a teoria da relatividade especial e que pensam que os pássaros voam não sabem que valor atribuir a Pr(Relatividade Especial|pássaros voam), especialmente se a probabilidade tiver que ser um valor objetivo; entretanto, isto não mostra que elas deveriam abandonar sua crença na relatividade especial. O princípio da indiferença falha porque afirma obter os valores de probabilidades a partir da ignorância; o início do argumento principal de Plantinga comete o erro complementar de sustentar que a ignorância a respeito das probabilidades é um guia para a crença.
À luz do que foi exposto, considere a seguinte passagem de Warrant and Proper Function (p. 229, os itálicos e colchetes são nossos) na qual Plantinga justifica o primeiro passo do argumento principal:

Alguém que aceita E&N e também acredita que a atitude correta em relação a Pr(R|E&N) é uma postura agnóstica [ou, um baixo grau de confiança] claramente possui uma boa razão para ser agnóstico em relação a [ou, possuir um baixo grau de confiança em relação a] R também. [i]Tal pessoa não dispõe de outras informações sobre R… mas a fonte de informações que possui não lhe dá nenhuma razão para crer ou descrer em R.[i]
Observe que Plantinga assume que os naturalistas evolutivos não possuem outro fundamento para decidir o que pensar sobre R além da própria conjunção E&N. Esta pressuposição crucial jamais é defendida seja em Warrant and Proper Function seja no manuscrito inédito Naturalismo invalidado.

2.2 O que a invalidação de R significa

No segundo passo do argumento principal, Plantinga diz que a invalidação que E&N impõe a R significa que naturalistas evolutivos deveriam sustar sua confiança em qualquer coisa mais em que acreditem _ por exemplo, na própria E&N. Isto extrapola em demasia as reais implicações da invalidação da proposição R. A proposição R diz que “a grande maioria” das crenças que possuímos é verdadeira (Plantinga 1994, p.2). Se os naturalistas evolutivos devem retirar sua confiança em R, isto não significa que devam sustar a confiança na maior parte do que acreditam, menos ainda em tudo o que acreditam. Ainda que E&N invalidasse a alegação de que “ao menos 90% de nossas crenças são verdadeiras”, não se segue que E&N também invalida a alegação mais modesta de que “ao menos 50% de nossas crenças são verdadeiras.” Plantinga deve mostrar que E&N não somente invalida R, como também invalida a afirmação de que “ao menos uma minoria não-desprezível de nossas crenças é verdadeira.”

2.3 Probabilidade condicional e invalidação

Embora nós, como uma quantidade significativa de outros comentadores, tenhamos interpretado o argumento principal de Warrant and Proper Function como uma declaração de que um baixo valor para Pr(R|E&N) basta para que E&N invalide R, Plantinga (1994) nega que seja isto o que ele quis dizer e tenta desenvolver uma interpretação de invalidação que esclareça como o argumento supostamente funciona. Entretanto, como Plantinga ainda gasta tempo em seu último manuscrito discutindo que Pr(R|E&N) possui um valor baixo ou inescrutável, presume-se que ele ainda julga que tal valor é relevante para estabelecer a invalidação de R por E&N.
Plantinga desenvolve três princípios que ele imagina governar a relação de invalidação. Ainda que ele explique porque julga que estes princípios estão corretos, ele nunca explica como eles são relevantes para estabelecer que E&N invalidam R. Na verdade, sua forma lógica os tornam incapazes de preencher a lacuna entre as premissas 1 e 2. O primeiro e o terceiro princípios declaram condições suficientes para que Y não invalide X. O segundo enuncia uma condição necessária para que Y invalide X.
Além disso, o “primeiro princípio de invalidação” de Plantinga aparentemente ajuda a estabelecer que E&N não é um invalidador de R. Substituindo R e E&N por A e B neste princípio produz

se S racionalmente acredita que a justificação que possui para E&N é derivada da justificativa que possui para R, então E&N não é, para ele, um invalidador de R.

suspeitamos que vários naturalistas evolutivos racionalmente acreditam que sua justificativa para acreditar em E&N depende de eles estarem justificados em acreditar que suas faculdades cognitivas são altamente confiáveis[6].
Não somente um baixo valor para Pr(X|Y) não é suficiente para que Y invalide X; também não é necessário, se o conceito de invalidabilidade fundamenta a idéia de autoinvalidação. A razão é que Pr(Y|Y)=1, para todo Y. E tão difícil quanto conectar uma baixa probabilidade a invalidabilidade é divisar porque a inescrutabilidade de Pr(X|Y) deveria ajudar a estabelecer que Y invalida X.
No argumento preliminar, Plantinga atribui a Pr(R) um valor próximo de 1 porque acredita que R seja verdadeira. No argumento principal como formulado em Warrant and proper function, ele aparenta pensar que os naturalistas evolutivos deveriam abandonar sua crença em R porque E&N falha em conferir uma probabilidade suficientemente alta a R. Estas são duas maneiras de expressar o mesmo sentimento: uma probabilidade alta é necessária para um crença racional. Entretanto, o manuscrito mais recente “Naturalismo invalidado” repudia a idéia de que existe tal relação simples entre probabilidade e aceitação.
Aqui, Plantinga está vindo de encontro a algo similar ao fenômeno que o paradoxo da loteria de Kyburg (1961) tornou nítido. Suponha que existam 10 000 bilhetes numa loteria honesta; um bilhete ganhará e cada um deles tem a mesma chance de ser o vencedor. Suponha que você adote o seguinte critério de crença _  você aceita uma proposição se você pensa que ela possui uma probabilidade alta. Então, você aceitará cada proposição do tipo “o bilhete i não será o ganhador”. Entretanto, a conjunção destas proposições contradiz a pressuposição inicial de que a loteria é honesta. Consequentemente, uma alta probabilidade não é suficiente para uma crença racional. Um contraexemplo parecido pode ser construído para mostrar que uma alta probabilidade também não é necessária para uma crença racional. Considere quaisquer n proposições P1,…,Pn tais que (i) você aceita cada uma das Pi, e (ii) cada uma das Pi é altamente provável. A conjunção P1&…&Pn pode vir a mostrar-se bastante improvável (veja a seção 1.1 para um exemplo concreto deste fenômeno probabilístico). Não obstante, aparentemente você estaria sendo racional ao aceitar a conjunção P1&…&Pn. Consequentemente, uma alta probabilidade não é necessária para uma crença racional (veja também Maher 1993, seção 6.2.4). Filósofos da teoria das probabilidades extraíram destes paradoxos uma de duas lições _ ou os conceitos de aceitação e rejeição são suspeitos, ou eles estão numa relação mais sutil com o conceito de probabilidade que o critério preliminar recém-descrito.
Esta conexão com o paradoxo da loteria sugere que Plantinga tem pela frente uma tarefa hercúlea para consertar o argumento principal. Esse argumento começa com alegações sobre probabilidades, move-se para alegações sobre invalidação, e então conclui com uma alegação sobre auto-invalidação. Cada passo ao longo do caminho requer princípios bastante distintos dos descritos por Plantinga até agora. Deixamos a cargo dos leitores o trabalho de especular sobre a existência de princípios plausíveis que estabeleçam as conexões necessárias.

3. Um problema para o evolucionismo

Ainda que o argumento de Plantinga não funcione, ele trouxe a tona uma questão que precisa ser respondida pelas pessoas que acreditam na teoria da evolução e que também acreditam que esta teoria declara que nossas habilidades cognitivas são imperfeitas de formas variadas. A teoria da evolução diz que um dispositivo que é confiável no ambiente no qual evoluiu pode ser altamente ineficiente quando utilizado num ambiente estranho. É perfeitamente possível que nosso maquinário mental deva trabalhar bem em tarefas perceptuais simples, mas seja bem menos confiável quando aplicado a questões teóricas. Apressamo-nos a acrescentar que isto é possível, não inevitável. Pode ser o caso que procedimentos cognitivos que funcionam bem num domínio também funcionem bem em outros; modus ponens pode ser útil para evitar ser comido por tigres e para fazer física quântica.
De qualquer maneira, se a teoria da evolução diz que nossa habilidade em teorizar sobe o mundo tende a ser pouco confiável, como os evolucionistas lidam com este resultado em relação às suas próprias crenças teóricas, incluindo sua crença na evolução? Uma lição que deveria ser extraída é uma certa humildade _ uma admissão de falibilidade. Isto não será nenhuma novidade para os evolucionistas que assimilaram o fato de que a ciência em geral é um empreendimento falível. A teoria da evolução apenas fornece uma parte importante da explicação do porque de nosso raciocínio sobre temas teóricos ser falível.
Longe de demonstrar que a teoria da evolução se autoinvalida, esta consideração deveria levar aqueles que acreditam na teoria a admitir que o melhor que podem fazer ao teorizar é fazer o melhor que podem. Estamos atados ao equipamento cognitivo que possuímos. Deveríamos tentar ser tão escrupulosos e circunspectos quanto formos capazes ao fazer uso deste equipamento. Quando afirmamos que a teoria da evolução é uma teoria muito bem confirmada, estamos julgando esta teoria com os recursos cognitivos falíveis de que dispomos. Não temos opção.
Plantinga sugere que o naturalismo evolutivo é autodestrutivo, mas não o teísmo tradicional. Entretanto, a verdade é que nenhuma das duas posições possui uma resposta para a dúvida hiperbólica. Evolucionistas não possuem outra forma de justificar a teoria em que acreditam além de avaliar criticamente a evidência acumulada empregando regras de inferência que parecem sólidas após reflexão. Se alguém desafia todas as observações e regras de inferência utilizadas na ciência e no cotidiano, exigindo que sejam justificadas a partir do nada, o desafio não pode ser satisfeito. Um problema análogo surge para os teístas que acham que sua convicção da confiabilidade de seus próprios poderes racionais é suportada pelo fato de que a mente humana foi planejada por um Deus que não trapaceia. O teísta, como o naturalista evolutivo, é incapaz de construir um argumento não-circular que refute o ceticismo global.

Notas:

1. Todas as referencias de páginas são de Warrant and Proper Function (viz., Plantinga 1993), salvo indicação em contrário.

2. Uma estratégia ainda melhor seria associar um grau característico de sensibilidade a uma faculdade mental numa dada configuração ambiental. Grosso modo, sensibilidade é uma relação “mundo-para-cabeça”(?), medida pela probabilidade de que o agente acreditará em p, condicionada pela veracidade de p. Em contraste, confiabilidade é uma relação “cabeça-para-mundo”(?), medida pela probabilidade de que p seja verdadeira, condicionada pela crença do agente em p. Sensibilidade tende a ser uma propriedade mais estável dos dispositivos de medição do que a confiabilidade. Veja Sober (1994, ensaios 3 e 12)  para discussão.

3. Aqui fazemos o mesmo uso que Plantinga da expressão “teísmo tradicional”, segundo o qual esta doutrina faz observações preditivas diferentes daquelas do naturalismo evolutivo. Entretanto, há espaço para argumentar se este ponto de vista sobre as questões é o único disponibilizado pelas mais variadas tradições religiosas (McMullin 1993). Plantinga compreende o teísmo tradicional como a idéia, não somente de que Deus configurou e desencadeou os processos evolutivos (onde este são compreendidos nos termos das melhores  teorias fornecidas pela ciência atual), mas de que Ele ocasionalmente intervém neles para assegurar que certos resultados sejam obtidos. A idéia de que Deus intervém nas etapas iniciais, mas não nas finais, confere à proposição R exatamente a mesma probabilidade que a teoria da evolução, por si mesma, confere a R. Isto pode ser visto mais claramente na seguinte figura:


Figura: as possíveis relações entre D, E e O

Se os processos evolutivos (E) “separam (screen off)” a atividade divina de nosso campo de observação (O), então Pr(O|E&D)=Pr(O|E&não-D). Plantinga pensa que esta equação é falsa; ele sustenta que a evolução ateísta confere às observações (mais especificamente, à proposição R) uma probabilidade diferente daquela conferida pela evolução teísta. Isto quer dizer que Plantinga concebe Deus não simplesmente agindo através dos processos evolutivos naturais, mas afetando o mundo por uma via “miraculosa”, independente destes processos.

4.Ao discutir a “dúvida de Darwin”, Plantinga (1994, p.4) cita com louvor um apontamento feito por Churchland (1987, p.548)  em relação ao efeito de que a seleção natural “se importa” apenas a respeito de quão adaptativo é um comportamento causado por um conjunto de crenças; ela não “se importa”, além disso, se estas crenças são verdadeiras. Plantinga interpreta isto como significando que crenças verdadeiras não são mais prováveis de evoluir do que as falsas, mas uma representação probabilística do apontamento de Churchland (que é sobre independência condicional) mostra que isto não sucede. Churchland observa que

Pr(Conjunto de crenças B evolui|B produz comportamento adaptativo & B é falso).

Todavia, não se segue que

Pr(Conjunto de crenças B evolui|B é verdadeiro)=Pr(Conjunto de crenças B evolui|B é falso)

Da mesma maneira, embora seja verdadeiro que

Pr(choverá amanhã|uma tempestade se aproxima & a leitura do barômetro está baixa)=Pr(choverá amanhã|uma tempestade se aproxima & a leitura do barômetro está alta),

não se segue que

Pr(choverá amanhã|a leitura do barômetro está baixa)=Pr(choverá amanhã|a leitura do barômetro está alta).

5. O argumento que estamos construindo aqui está de acordo com o que Plantinga (1994) denomina “a objeção da transpiração”, que ele atribui a “Wykstra, DePaul, e outros”. Não obstante discutir como a objeção deveria ser formulada, até onde vimos, Plantinga não oferece nenhuma resposta a ela.

Seja F a afirmação de que a função da transpiração é resfriar o corpo. Agora, a probabilidade de F dado (somente) E&N também é baixa. Mas certamente seria absurdo afirmar que isto dá ao naturalista um invalidador para a crença de que F é verdadeira. Por conseguinte, também é absurdo afirmar possui um invalidador de R em virtude de sua aceitação da tese probabilística.

6. Obviamente, não se pode deduzir E&N de R somente. Porém, os naturalistas evolutivos podem razoavelmente sustentar que R é uma dentre várias premissas que subscrevem suas inferências não-dedutivas sobre a plausibilidade de E&N. Vale mencionar que o próprio Plantinga faz uso deste tipo de “derivação de justificativas” não-dedutiva. Na página 39 de “Naturalismo invalidado”, ele diz, no contexto da discussão de uma objeção a seu argumento, que a justificativa que P possui para você (onde P é tal que Pr(R|E&N&P é alta, mas P é logicamente independente de R) é “…derivada da justificativa que você possui para R… é difícil ver que outra fonte [de justificativa] poderia haver [para P].” Não vemos nenhuma razão pela qual seria os naturalistas evolutivos estariam sendo irracionais ao dizer a mesma coisa sobre a justificativa que possuem para E&N.

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Segue abaixo o primeiro de dois artigos que tentam demonstrar porque o argumento evolutivo contra o naturalismo, na formulação de Plantinga, é falho. Antes de passarmos ao artigo, gostaria de deixar minha opinião leiga sobre o argumento, minhas razões para, se não descarta-lo sumariamente como mais um dos inúmeros “sofismas e ilusões” dos quais a literatura teológica é um manancial inesgotável, ao menos manter uma forte suspeita de sua falta de solidez.

É verdade que nossas habilidades cognitivas dependem de nosso aparato neurológico, e que tal aparato foi produzido por um processo cego, mecânico, automático, não-direcionado e extremamente avaro que seleciona adaptações que incrementam, ou melhor, mantém o equilíbrio entre as pressões seletivas ambientais e a capacidade de sobrevivência e reprodução de um organismo. É razoável suspeitar que um processo dessa natureza possa produzir o que à primeira vista parece ser um dispositivo repleto de extravagâncias e acessórios de luxo como o cérebro humano e seu potencial para as artes, a tecnologia e o pensamento abstrato.  Não é imediatamente evidente a maneira pela qual habilidades cognitivas sofisticadas, capazes de produzir a Nona Sinfonia de Beethoven, o teto da Capela Sistina, Os portões do Inferno e a mecânica quântica possam ser o resultado de pressões exercidas pelo ambiente no qual ocorreu a maior parte da evolução de um cérebro que tinha que lidar com a satisfação de necessidades fisiológicas e instintivas práticas, imediatas e urgentes como escapar de predadores, obter alimentos e encontrar um parceiro sexual. Num cenário assim, na melhor das hipóteses, a evolução produziria um sistema neurossensorial que coletasse estritamente e interpretasse convenientemente informações acerca do ambiente relevantes para a satisfação das necessidades citadas. Há poucas dúvidas de que tal sistema seria um filtro extremamente restritivo para o fluxo de informações advindo do exterior, como hoje sabemos. Somos cegos e surdos para uma ampla faixa de freqüencias das ondas acústicas e eletromagnéticas que constituem os sons e a luz, respectivamente, e nossas representações mentais do mundo exterior são de uma simplicidade franciscana se comparadas à profusão de complexidades, sutilezas e minúcias cujo conhecimento é supérfluo para organismos com uma biologia como a nossa.

Por outro lado, considerando-se o arrocho econômico que a evolução darwiniana impõe aos organismos a ela submetidos, é ainda mais inconcebível uma maneira pela qual uma neurologia por ela produzida  representaria de forma tão extravagantemente incongruente como Plantinga supõe o ambiente no qual ela está inserida, e ainda assim obteria êxito na sobrevivência e na reprodução. Admito que é remotamente concebível que crenças falsas determinem comportamentos bem adaptados _ um exemplo fácil de como isso poderia ocorrer é o caso de um homem, digamos assim, esteticamente desfavorecido, mas que vê a si próprio como bastante atraente para o sexo oposto, e que em virtude de tal crença falsa a respeito de si é autoconfiante e audacioso ao abordar possíveis parceiras, o que termina por aumentar sua chance de deixar descendentes _ ainda mais se considerarmos que a fêmea da espécie humana, em geral, seleciona mais por atributos psicológicos do que físicos _  em relação a um outro sujeito dotado de boa aparência, mas extremamente autocrítico, retraído e tímido, o que termina por minimizar suas chances de se envolver num relacionamento satisfatório que culmine na geração de uma prole. Mas crenças falsas na escala em que Plantinga sugere? Crenças em sua maioria falsas? Uma crença falsa em relação a um determinado aspecto do mundo exterior pode até ser útil numa situação específica, mas em todos os conjuntos de circunstâncias possíveis que compreendam o aspecto em questão? Para continuar com o exemplo do feioso sem-noção, imaginem que esse sujeito se acha não somente atraente em geral para as mulheres, mas que também pense que pode ser bem-sucedido abordando mulheres casadas com o objetivo de engravida-las e deixar o sustento de sua prole ao cargo de outros homens; não me parece que tal sujeito teria uma expectativa de vida ou de reproduzir-se muito alta. Ao que parece sou menos otimista que Plantinga em relação às contingências de um cenário altamente competitivo como o darwiniano.

Passemos agora ao parecer técnico especializado.

O ataque de Alvin Plantinga contra a busca da verdade

por Matthew Waitkus*

O argumento evolucionista contra o naturalismo do Dr. Alvin Plantinga envolve a afirmação de que naturalismo e evolução são incompatíveis. Essa alegação é melhor refutada ao examinarmos quais fatores influenciam a estrutura e a funcionalidade de nossa neurologia, assim como a maneira como avaliamos a veracidade de nossas crenças. Será mostrado que o processo de evolução naturalista é tal que necessariamente cria uma neurologia confiável, capaz de manter crenças que, embora imperfeitas, podem ser consideradas genericamente confiáveis e sujeitas a um escrutínio adicional para determinar sua veracidade. É a probabilidade de verdade a posteriori, subsequente à testagem empírica, que determina se as crenças podem ser racionalmente mantidas, e não a probabilidade a priori associada a crenças baseadas em impressões individuais.

Segundo Plantinga, a teoria da evolução e o naturalismo metafísico são incompatíveis. Ele tenta apoiar esta alegação argumentando que, como existe a possibilidade de que nossas faculdades cognitivas não sejam confiáveis, não podemos presumir que nossas crenças sejam verdadeiras. Ele escreve:

“Não se pode aceitar racionalmente o naturalismo e a evolução, não se pode, racionalmente, ser um naturalista evolucionista. O problema … é que o naturalismo, ou o naturalismo evolucionista, parece conduzir a um ceticismo profundo e insidioso. Isso leva à conclusão de que nossas faculdades cognitivas ou produtoras de crenças _ memória, percepção, compreensão lógica, etc _ são falíveis, instáveis e duvidosas e não são dignas de confiança no que se refere à produção de crenças predominantemente verdadeiras.”

Segundo Plantinga, a posse de uma neurologia imperfeita impossibilita um indivíduo de possuir crenças majoritariamente verdadeiras. Seu argumento se baseia na afirmação de que uma neurologia moldada pela seleção natural é confiável apenas em termos de comportamento adaptativo, independentemente da veracidade das crenças que causam o comportamento. Plantinga oferece o seguinte exemplo:

Todas as suas crenças podem ser falsas, ridiculamente falsas; se seu comportamento é adaptativo, você vai sobreviver e se reproduzir. Considere um sapo sentado sobre uma vitória-régia. Uma mosca nos arredores, o sapo arremessa sua língua para capturá-la. Talvez a neurofisiologia que causa este comportamento também cause crenças. No que diz respeito a sobrevivência e a reprodução, tanto faz qual seja o conteúdo dessas crenças: se esta neurofisiologia adaptativa causa uma crença verdadeira (por exemplo, aquelas coisinhas pretas são boas para comer), ótimo. Mas se causa uma crença falsa (por exemplo, se eu pegar a coisinha preta certa, vou me transformar em um príncipe), isto também é bom.

Plantinga afirma que nossa neurologia é adaptada somente para a obtenção dos itens ambientais necessários para a sobrevivência e reprodução, e não para a produção de crenças verdadeiras. Por exemplo, seria razoável argumentar que a religião teria, num momento ou noutro, conferido uma vantagem reprodutiva a seus adeptos apesar de sua falsidade. Por isso, Plantinga afirma que seria despropositado supor que o comportamento adaptativo resulta necessariamente em crenças verdadeiras. Assim, todo o argumento para a incompatibilidade entre naturalismo e evolução baseia-se na veracidade da afirmação de que comportamentos adaptativos têm igual probabilidade de serem determinados por crenças verdadeiras ou falsas. Nesta base, Plantinga afirma que a combinação de naturalismo e evolução deve ser rejeitada em favor da combinação de teísmo e evolução porque na evolução teísta há uma maior probabilidade do processo resultar numa produção preponderante de crenças verdadeiras.

É correto descrever nossa neurologia como adaptativa. No entanto, o argumento de Plantinga falha porque não reconhece que o funcionamento de nossa neurologia depende do processo pelo qual é formada, e não do ponto de partida do processo. Em outras palavras, ambos os casos (teísmo vs. naturalismo) resultam em evolução adaptativa formada pela fidelidade com que os neurônios sensoriais traduzem informações químicas, energéticas e mecânicas em informação elétrica. Esta informação elétrica é posteriormente transmitida ao sistema nervoso central para a integração e formação de crenças que influenciam nosso comportamento. Simplesmente declarando o pressuposto de que Deus nos teria criado de maneira tal que poderíamos ter conhecimentos não é o bastante. Seria necessário demonstrar por que a escolha de Deus de um processo idêntico para moldar nossa neurologia resultaria numa diferente probabilidade a priori de crenças verdadeiras.

É importante notar que Plantinga nunca confessa explicitamente se acredita que a neurologia humana é confiável. O que ele realmente escreve é isto:

… mesmo que ele [Deus] tenha utilizado processos evolutivos para nos criar, ele presumivelmente quis que nos assemelhássemos a ele em sua capacidade de conhecer, mas então a maior parte do que acreditamos pode ser verdade mesmo que nossas mentes tenham se desenvolvido a partir das mentes de animais inferiores.

Plantinga presume que a evolução planejada por um Deus e a evolução por processos naturalistas, são diferentes de alguma forma. Ele não oferece nenhuma explicação sobre como os mesmos processos ocorrendo em igualdade de condições produzem resultados diferentes. A implicação é que se começarmos com Deus, em vez de uma explicação naturalista, a probabilidade de que uma crença seja verdadeira aumenta. Ao simplesmente parafrasear a crença cristã de que somos criados à imagem e semelhança de Deus, Plantinga não consegue nada em termos de demonstrar a maior probabilidade de crenças verdadeiras manifestadas por uma neurologia adaptativa evoluída sob supervisão divina.

Os processos que envolvem as interações entre o ambiente e o organismo são os mesmos para as condições de evolução teísta e evolução naturalista. São estes processos que determinam a estrutura e a função de nossa neurologia, e é nossa neurologia que determina nossos sistemas de crença. Consequentemente, o argumento de Plantinga é essencialmente sem sentido. Ele simplesmente afirma que se Deus for introduzido na explicação naturalista então ele pode usar a evolução naturalista para justificar pressupostos religiosos dogmáticos. Esta estratégia é tão desonesta quanto desleixada, pois introduz uma hipótese alternativa não-testável e infalseável numa explicação (evolução) deduzida pelo método científico. Este método faz com que seu grau de confiabilidade seja compatível com as evidências surgidas da avaliação de hipóteses testáveis e falsificáveis. Assim, quando Plantinga oferece uma alternativa não-testável e empiricamente irrefutável para a evolução naturalista, ele não está realmente oferecendo qualquer explicação. Em vez disso, a única coisa que Plantinga consegue é acoplar superstição religiosa à investigação racional. Dessa forma, Plantinga só dá mais um passo na construção de uma tautologia infinitamente expansível, onde até os métodos empíricos utilizados para avaliar as crenças são debilitados por um hábil ofuscamento da distinção entre ciência e superstição. Antes de examinar como podemos chegar a possuir crenças verdadeiras, vamos definir o que queremos dizer com os termos realidade, verdade (ou crença verdadeira), e neurologia. Quando falamos em realidade estamos nos referindo a nós mesmos e à energia, espaço e matéria exterior a nossas mentes. Verdade, ou crença verdadeira, é uma crença que seja consistente com a realidade como existe independentemente de nossas faculdades cognitivas. Por neurologia queremos dizer nossas faculdades cognitivas _ a ferramenta com a qual apreendemos a realidade exterior.

A evolução nos diz que nossos traços fenotípicos são transmitidos aos nossos descendentes ligeiramente modificados, e que a subsequente variabilidade na capacidade de sobrevivência da prole resulta numa mudança na freqüência gênica através do sucesso reprodutivo diferencial. Assim, então, o que determina a variabilidade na capacidade de sobrevivência? Os organismos precisam interagir com seu ambiente externo a fim de obter os recursos necessários para a sobrevivência e a reprodução. Comida, água, abrigo, evitar predadores e encontrar parceiros envolvem interações com uma realidade objetiva externa à neurofisiologia de um animal.

Como a sobrevivência e a reprodução dependem de nossa interação com a matéria e energia existentes além da nossa neurologia, é seguro concluir que nossa neurologia evoluiu de forma a produzir uma representação acurada da realidade exterior. Além disso, como a veracidade de nossas crenças só pode ser avaliada em termos de sua comparação com nosso ambiente externo, que outro processo de desenvolvimento produziria um método mais confiável para retratar a verdadeira realidade do que um processo evolutivo que interage diretamente com essa realidade externa (imagine fótons incidindo nos receptores da retina acoplados à proteína G, ou neurônios olfatórios)? Estas funções neurológicas fornecem informações diretamente do universo além do nosso corpo físico. Como a realidade externa que estimula nossa neurologia e a realidade externa com a qual comparamos nossas crenças para avaliar  sua veracidade são as mesmas, podemos razoavelmente concluir que a nossa neurologia é genericamente confiável, ainda que imperfeita, na produção de crenças sobre esta realidade (na pior das hipóteses, melhor do que os 50/50 que Plantinga alega).

A confusão criada por Plantinga baseia-se na afirmação de uma proposição cujo valor de verdade não seja posteriormente testado. Os seres humanos avaliam constantemente suas crenças em termos das evidências que as apóiam (por exemplo, é seguro atravessar a rua, a panela está quente, esta comida está estragada, etc?). No exemplo de Plantinga de sapos comendo moscas, ele afirma que eles poderiam comer moscas porque as moscas são boas para comer (crença verdadeira _ definido por Plantinga), ou porque a mosca certa poderia transformá-lo num príncipe (crença falsa/adaptativa). Agora, segundo Plantinga ambas as situações têm igual probabilidade de ocorrer no contexto do naturalismo evolutivo. Mesmo se isso fosse verdade, os humanos ainda têm a capacidade de avaliar e testar suas crenças de tal forma que nosso grau de confiança em sua veracidade seja compatível com a quantidade de evidências que as suportam. Consequentemente, mesmo se as proposições de crença tivessem uma probabilidade de verdade a priori de 1:1, evidências empíricas ainda nos permitiriam manter racionalmente conjuntos de crenças refinando a posteriori suas probabilidades de verdade. Tais evidências podem ser criadas por experimentos científicos controlados nos quais os pesquisadores testam uma única variável enquanto fazem apenas um número mínimo de suposições necessárias para conduzir os experimentos.

Será que Plantinga pensa que nossa neurologia é confiável? De sua declaração “se Deus criou o homem à sua imagem, então Deus nos criou de tal forma que pudéssemos conhecer as coisas”, podemos presumir que sim, ele pensa que nossa neurologia é confiável. É preocupante observar, no entanto, que todos os exemplos de Plantinga lidam com impressões individuais. Será que estamos a presumir que Plantinga considera impressões individuais dignas de confiança? Essa visão seria completamente contrária à posição da ciência moderna. Na ciência, assumimos que, embora nossa neurologia seja útil e capaz de experenciar a realidade externa, as impressões individuais são inerentemente falíveis e duvidosas. Portanto, nossa certeza deve estar fundamentada em experiências reprodutíveis, testáveis e falseáveis. Plantinga, por outro lado, diz que as impressões individuais são confiáveis porque são mantidas por pessoas feitas à imagem e semelhança de Deus. Sua visão não chega a causar surpresa uma vez que muitos fenômenos religiosos dependem fortemente de impressões individuais (os milagres, as relacionamentos com Deus, o significância emocional das cerimônias religiosas, orações respondidas, etc.). Será que Plantinga realmente gostaria de ver um mundo no qual sua opinião sobre a confiabilidade das crenças individuais seja universalmente aceita? Duvido muito.

O ponto importante é que podemos regular a força de nossa convicção de forma a compatibiliza-la com o volume de evidências empíricas disponíveis. A relação entre a convicção da verdade e a evidência disponível é o que nos permite manter crenças racionais apesar da imperfeição de nossa neurologia e da falibilidade das impressões individuais. A racionalidade das crenças, então, depende da testabilidade e refutabilidade das proposições. Em outras palavras, dada uma neurologia evoluída que pode confundir coincidência com causalidade, podemos fazer progressos rumo à verdade somente se as proposições forem testáveis e falsificáveis. Caso contrário, não poderemos gerar nenhuma evidência (não testável) ou estaremos diante de uma tautologia infinitamente expansível (irrefutável). A resposta de Plantinga para o problema de uma neurologia imperfeita não é um método de avaliação da veracidade de proposições neurologicamente baseadas. Em vez disso, Plantinga só consegue apresentar uma alternativa não-testável e irrefutável. Este acréscimo não representa nenhum progresso em direção à verdade. Ao contrário, impossibilita qualquer avanço em direção à verdade ao criar um obstáculo desnecessário e inamovível quando já dispomos de ferramentas para a busca da verdade.

Vimos que a confiabilidade da neurologia depende do processo evolutivo. Se esse processo é naturalista, ou se existe um Deus, o processo ainda depende de uma interação direta entre a neurologia do organismo que abriga o material genético e o ambiente externo. A relação dinâmica entre o ambiente e o organismo, bem como o papel desta relação na capacidade adaptativa do organismo, sugere que a nossa neurologia existe de tal maneira que representa com precisão a realidade exterior a ela. Além disso, na medida em que nossa neurologia é capaz de manter as falsas crenças, é também capaz de criar e compreender métodos empíricos para avaliar a veracidade das crenças manifestadas por nossa neurologia. No entanto, uma vez que essas crenças são uma manifestação consciente de uma neurologia que experiencia acuradamente a realidade, e a verdade é definida pelas comparações com a mesma realidade, podemos razoavelmente concluir que as crenças, embora longe da perfeição, são melhores do que o palpite de 50/50 de Plantinga.

Mais importante ainda, reconhecer-se dotado de uma neurologia imperfeita não impede um indivíduo de acreditar racionalmente em ambos o naturalismo e a evolução. Tal como acontece com todas as proposições, se um indivíduo pode criar uma maneira de testar essa proposição e oferecer uma condição falseável antes do teste, podem surgir evidências para determinar sua veracidade. É o arranjo da nossa convicção de verdade em harmonia com as evidências que serviram para apoiar a teoria da evolução. Se uma pessoa viesse a ter uma crença, a testasse centenas de vezes, sempre alcançasse resultados que a refutassem, e depois continuasse a manter a crença, então essa crença estaria sendo irracionalmente mantida. Por outro lado, se resultados que a contradissessem nunca fossem encontrados, então a pessoa pode razoavelmente manter a crença como sendo verdadeira. Tal é o caso com a evolução. Todas as evidências disponíveis, convergindo da paleontologia, da genética molecular, anatomia comparada, cosmologia, biogeografia, etc, indicam que a evolução é verdadeira. Assim, independentemente de quaisquer impressões individuais originais de neurologia adaptativa, o único posicionamento racional é aceitar a evolução.


*À época da redação deste artigo, Matthew Waitkus era estudante do terceiro ano de graduação  e membro da Sociedade Estudantil pelo Livre-Pensamento. Ele é graduado em Farmacologia pela Ohio State e estava em vias de adquirir seu Ph.D em biologia regulatória pela Cleveland State.

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Alvin Plantinga, nascido em 1932 en Ann Arbor, Michigan, é considerado um dos maiores pensadores contemporâneos da filosofia ocidental. Aclamado pela revista Time como “liderança mundial na filosofia da religião”, desempenhou um papel central na reabilitação intelectual do teísmo ortodoxo nos meios acadêmicos ocidentais na segunda metade do século XX. Embora o grosso de sua produção intelectual seja restrita ao campo da filosofia da religião (ou filosofia cristã, como ele próprio prefere chamar), sua carreira também abraange contribuições importantes à metafísica modal e à teoria epistêmica, o que lhe valeu o respeito _ e por vezes o despeito _ de seus pares mais destacados.

William Lane Craig é um grande admirador de sua obra, tendo inclusive ministrado um curso intitulado “O Pensamento de Alvin Plantinga” na Trinity Evangelical Divinity School.

Nos próximos posts, disponibilizarei traduções de artigos que desconstroem seus dois argumentos que mais embaraço e constrangimento causam aos ateus _ o Argumento Evolutivo Contra o Naturalismo e a célebre Defesa do Livre-Arbítrio, que tem sido considerada uma refutação definitiva do Problema Lógico do Mal. Acredito que ao final da leitura dos artigos, e em que pesem suas contribuições a outras disciplinas além da filosofia da religião, a maioria concordará com o diagnóstico preciso pronunciado em 1918 pelo inigualável H.L. Mencken:

“…o teólogo médio é um sujeito corado, robusto e bem alimentado, sem nenhuma desculpa patológica discernível. Ele dissemina sua cantilena não inocentemente, como um filósofo, mas maliciosamente, como um político. Num mundo bem organizado, ele estaria com as mãos num cabo de enxada. Mas no mundo em que vivemos, somos obrigados a ouvir o que ele diz não apenas educada e reverentemente, mas babando de boca aberta.”

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