por Quentin Smith
Neste capítulo os aspectos relevantes da teoria do Big Bang são explicados em quatro etapas. Estes aspectos constituirão as quatro premissas científicas do argumento em favor do ateísmo que formularei no próximo capítulo.
(i) A primeira etapa é a apresentação da assim chamada ‘equação de Einstein’, que é o núcleo da Teoria da Relatividade Geral de Einstein.[8] A equação de Einstein diz, em termos simplificados, que a geometria (curvatura) do espaço-tempo é determinada pela distribuição de massa e energia no espaço-tempo. A equação pode ser expressa de forma simplificada como
(curvatura do espaçotempo) = 8*pi*(densidade da matéria)
Esta equação sugere que se a matéria no universo for suficientemente densa, a curvatura do espaço-tempo aumentará tanto que o espaçotempo será reduzido a praticamente um ponto, como o vértice de um cone. A história de uma partícula ou raio de luz é uma trajetória no espaçotempo, e se o espaçotempo se curvar até ficar praticamente reduzido a um ponto, estas trajetórias no espaçotempo convergirão e se interceptarão neste ponto. Se esta intersecção ocorrer em algum momento no futuro, o ponto de intersecção constituirá o fim do espaçotempo. Se a intersecção ocorreu no passado, de modo que as trajetórias no espaçotempo emerjam de um ponto de intersecção e afastem-se gradualmente umas das outros, o ponto de intersecção pareceria constituir o começo do espaçotempo. Esta possibilidade leva a uma discussão do próximo aspecto relevante da cosmologia do Big Bang.
(ii) A equação de Einstein admite várias soluções e qual solução descreve nosso universo é uma questão empírica. As soluções de Friedmann (primeiro obtidas por Friedmann em 1922 e 1924[9] são as consideradas válidas para nosso universo. H é a solução que descreve um universo perfeitamente isotrópico (parece o mesmo em todas as direções) e perfeitamente homogêneo (a matéria encontra0se distribuída uniformemente). Se aplicarmos à equação de Einstein uma métrica que descreve um universo perfeitamente isotrópico e homogêneo, as soluções de Friedmann são obtidas, que podem ser expressas numa forma simplificada como
-3*(aceleração da expansão ou desaceleração da contração do universo) = 4*pi*(densidade da matéria)
As soluções de Friedmann nos dizem que se existe matéria uniformemente distribuída pelo universo, então o universo deve estar se expandindo numa taxa decrescente ou se contraindo numa taxa crescente (exceto no instante, se algum houver, em que a expansão para e reverte para uma contração). Para ver isto, observe que o lado direito da equação (simplificada) acima representa a densidade da matéria multiplicada por 4*pi. Se existe matéria no universo, então a densidade da matéria do universo é positiva. Isto implica que o valor para a aceleração da expansão ou para a desaceleração da contração é multiplicado por -3 e o resultado deve ser igual ao número positivo representado pelo lado direito da equação. Se o valor da aceleração da expansão é negativo, isto significa que o universo está se expandindo a uma taxa cada vez menor. Se o valor da desaceleração da contração é negativo, isso significa que o universo está se contraindo a uma taxa cada vez maior. Este resultado é de uma significância crucial, pois implica que se o universo contém matéria uniformemente distribuída então sua existência é temporalmente limitada. Se o universo está se contraindo a uma taxa cada vez maior, então ele não pode se contrair eternamente mas deve eventualmente alcançar um ponto final, quando se curva até ficar reduzido a um ponto e seu raio se torna zero. Se o universo está se expandindo a uma taxa cada vez menor, então ele não pode estar se expandindo eternamente, mas deve ter começado a se expandir em algum momento no passado, quando seu raio começou a crescer a partir de zero.
Consideremos também o caso da expansão, estado em que o universo encontra-se atualmente. Quanto mais recuamos no passado seguindo a trajetória no universo, mais rápida é a taxa de expansão que encontramos. À medida em que a taxa de expansão aumenta, a curvatura do universo e a densidade da matéria aumentam e o raio do universo diminui, até que se atinge um ponto em que a curvatura do universo é infinita, a densidade da matéria infinita e o raio do universo é zero. Devido a esta curvatura infinita, as trajetórias rumo ao passado das partículas no espaçotempo convergem, tal que cada trajetória no espaçotempo termina em algum ponto no qual outras trajetórias no espaçotempo também terminam. Se as equações de Friedmann descrevem um universo esférico, o universo é finito em extensão e consequentemente todas as trajetórias no espaço tempo no sentido do passado se interceptam em um ponto. Toda a matéria é comprimida neste único ponto, que possui zero dimensões espaciais. Este ponto existe instantaneamente antes de explodir no Big Bang. O ponto instantaneamente existente é uma singularidade, o que significa que é um ponto final do espaçotempo; não existe momento mais antigo do que o instante da singularidade pois a própria singularidade é o primeiro instante do tempo. Por outro lado, se o universo é plano (não-curvo) ou hiperbólico (curvado como uma sela) ele é infinito em extensão, o que implica que as trajetórias no espaço tempo orientadas para o passado terminam numa singularidade espacialmente unidimensional. Apenas um volume finito de espaço pode ser comprimido num ponto; consequentemente, se existe um número infinito de volumes espaciais de qualquer tamanho finito determinado (o que seria o caso se o universo fosse plano ou hiperbólico), então deve haver um número infinito de pontos constitutivos da singularidade. Estes pontos existem instantaneamente (no primeiro instante do tempo) e então explodem num Big Bang infinitamente prolongado.
Entretanto, as soluções de Friedmann para as equações de Einstein por si próprias não mostram que nosso universo começou numa singularidade do Big Bang. Há uma certa incongruência entre suas soluções e as propriedades globais de nosso universo, uma incongruência que pode tornar inaplicável sua previsão de uma singularidade do Big Bang. O enunciado e a resolução deste problema levam a um terceiro aspecto da cosmologia do Big Bang que é pertinente para meu argumento.
(iii) As soluções de Friedmann são baseadas na hipótese de que o universo é perfeitamente isotrópico e homogêneo. Mas esta hipótese é inconsistente com as evidências observacionais, que revelam que o universo consiste de aglomerados ou superaglomerados de galáxias separados por vastas extensões de espaço vazio ou aproximadamente vazio. O universo é isotrópico e homogêneo somente de um ponto de vista estatístico, calculando-se a média ao longo de distâncias de bilhões de anos-luz. (Por exemplo, podemos assumir que diferentes regiões cúbicas do espaço diferem quanto a sua massa por menos de um porcento somente se se considera que estas regiões tenham três bilhões ou mais de anos-luz de diâmetro.) Isto pode sugerir que a previsão de uma singularidade do Big Bang é inaplicável ao universo já que esta previsão é baseada nas hipóteses de perfeitas homogeneidade e isotropia. A hipótese de perfeita isotropia implica que o movimento relativo de qualquer par de partículas é puramente radial e a hipótese de perfeita homogeneidade implica a inexistência de gradientes de pressão. O fato de que nosso universo é imperfeitamente isotrópico e homogêneo implica que as trajetórias espaçotemporais orientadas para o passado de partículas exibem velocidades transversas e aglomerações que produzem agregados de matéria. Isto sugere que as trajetórias divergirão em vez de convergir num único ponto. Isto por sua vez sugere que a atual fase de expansão do universo resulta de um ‘ricochete’ que terminou uma fase de contração anterior do universo. Mas esta sugestão de um universo oscilante foi contestada no final da década de 1960 pelos teoremas da singularidade Hawking-Penrose, [9A] que demonstram que sob certas condições imperfeitamente isotrópicas e homogêneas universos também se originam numa singularidade do Big Bang. Formulados com precisão, os teoremas enunciam que uma singularidade é inevitável dadas as cinco condições a seguir:
a) A Teoria da Relatividade Geral de Einstein é verdadeira em nosso universo.
b) Não existem curvas de natureza temporal fechadas (isto é, viajar no tempo rumo ao próprio passado é impossível e o princípio de causalidade não é violado).
c) A gravidade é sempre uma força de atração.
d) A superfície do espaçotempo não é demasiadamente simétrica; isto é, toda trajetória de uma partícula ou raio de luz no espaçotempo encontra alguma matéria ou curvatura aleatoriamente orientada.
e) Existe algum ponto p tal que todas as trajetórias espaçotemporais orientadas para o passado (ou futuro) partindo de p começam a convergir novamente. Esta condição implica que existe matéria suficiente no universo para concentrar toda trajetória espaçotemporal orientada para o passado ou futuro a partir de algum ponto p.
As soluções para os teoremas Hawking- Penrose mostram, como Hawking observa, que “em geral existirá uma curvatura-singularidade que interceptará qualquer linha do mundo. Portanto, a relatividade geral prevê um começo do tempo.’[10]
(iv) O último aspecto da cosmologia do Big Bang que preciso como premissa em meu argumento em favor do ateísmo é o princípio de ignorância de Hawking, que declara que singularidades são inerentemente caóticas e imprevisíveis. Nas palavras de Hawking,
Uma singularidade é um lugar em que os conceitos clássicos de espaço e tempo, bem como todas as leis conhecidas da física, são inaplicáveis porque são todas formulados num contexto de espaço-tempo clássico. Neste artigo afirma-se que esta inaplicabilidade não é meramente uma consequência de nossa ignorância da teoria correta mas que constitui uma limitação fundamental à nossa habilidade de prever o futuro, uma limitação análoga porém suplementar à limitação imposta pelo princípio da incerteza da mecânica quântica ortodoxa.[11]
Uma das relações de incerteza da mecânica quântica refere-se à posição q e ao momento p de uma partícula. Esta relação declara que (delta p)*(delta q) = h/(4*pi), que implica que se a posição de uma partícula é definidamente previsível então seu momento não o é, e vice versa. O princípio da ignorância é mais forte no sentido de que implica que não se pode definidamente prever nem a posição nem o momento de qualquer partícula emitida por uma singularidade. Na verdade, este princípio implica que nenhum dos valores físicos das partículas emitidas são definidamente previsíveis. De acordo com este princípio, a singularidade do Big Bang “emitiria todas as configurações de partículas com igual probabilidade.”[12]
A imprevisibilidade da singularidade implica que deveríamos esperar um transbordamento caótico de seu “interior”. Esta expectativa está alinhada com a representação feita pelos cosmologistas do Big Bang dos estágios primordiais do universo, pois estes estados são concebidos como maximamente caóticos (envolvendo a mais completa entropia). A singularidade emitiu partículas com microestados aleatórios, e isto resultou num macroestado global de equilíbrio térmico.
A significância do princípio de ignorância pode facilmente passar despercebida. Ele implica que a singularidade do Big Bang possui um comportamento completamente imprevisível no sentido de que nenhuma lei física governa seu comportamento. A imprevisibilidade da singularidade não é simplesmente uma questão epistêmica, significando que ‘nós humanos não somos capazes de prever o que surgirá dali, mesmo que haja uma lei governando a singularidade que, se conhecida, nos habilitaria a fazer previsões precisas.’ William Lane Craig assume que a imprevisibilidade é meramente epistêmica; ele escreve que ‘a imprevisibilidade [é] uma questão epistêmica que pode ou não resultar de indeterminismo ontológico. Pois claramente, seria inteiramente consistente manter o determinismo no nível quântico mesmo se não pudéssemos, mesmo em princípio, prever com precisão tais eventos.’[13] Agora, eu reconheço que há usos legítimos do termo ‘imprevisibilidade’ que são meramente epistêmicos em sentido, mas este não é o sentido em que a palavra é utilizada na formulação do princípio da ignorância de Hawking. A imprevisibilidade que diz respeito ao princípio da ignorância de Hawking é uma imprevisibilidade derivada da ausência de leis, não da incapacidade humana de conhecer as leis. Não há nenhuma lei, nem mesmo uma lei probabilística, governando a singularidade que coloque restrições sobre o que ela pode emitir. Hawking escreve que
Uma singularidade pode ser considerada um local em que há um colapso do conceito clássico de espaço-tempo como uma superfície com uma métrica pseudo-Reimanniana. Porque todas as leis da física são formuladas num contexto de espaço-tempo clássico, todas irão entrar em colapso numa singularidade. Este é um resultado crítico para a física; pois significa que não é possível prever o futuro. Não é possível saber o que surgirá de uma singularidade.[14]
Leis deterministas ou mesmo probabilísticas não podem vigorar em nível quântico no interior da singularidade, pois não há nenhum nível quântico no interior da singularidade; a superfície do espaço-tempo que os processos quânticos pressupõem ruiu. A singularidade é um violento e aterrorizante caldeirão de anarquia. Como Paul Davies observa, ‘qualquer coisa pode surgir de uma singularidade aberta – no caso do Big Bang o universo surgiu. Sua criação representa a suspensão instantânea das leis físicas, o lampejo de anarquia nomológica abrupto e repentino que permitiu que alguma coisa surgisse do nada’.[15] A questão que examinarei é se esta anarquia nomológica primordial é consistente com a hipótese de uma criação divina. Argumentarei contra esta hipótese.
Notas.
7. Quentin Smith, ‘The Anthropic Principle and Many-Worlds Cosmologies,’ The Australasian Journal of Philosophy 63 (1985): 336-348, ‘World Ensemble Explanations’, Pacific Philosophical Quarterly 67 (1986): 73-86, ‘The Uncaused Beginning of the Universe,’ Philosophy of Science 55 (1988), 39-57, ‘A Natural Explanation of the Existence and Laws of Our Universe,’ Australasian Journal of Philosophy 68 (March 1990): 22-43.
8. Veja ‘The Foundation of the General Theory of Relativity’ de Einstein e ‘Cosmological Considerations on the General Theory of Relativity’ em Einstein et al., The Principle of Relativity (London: Dover, 1923). A equação de Einstein expressa
Rab – 1/2*R*gab + lamda*gab = (8*pi*G/c2)*Tab
Rab é o tensor Ricci da métrica gab, R é o escalar Ricci, lambda é a constante cosmológica (provavelmente zero), c é a velocidade da luz e G é a constante gravitacional de Newton.
9. Alexander Friedmann, ‘Uber die Krummung des Raumes,’ Zeitschrif fur Physik 10 (1922), 377-386; uma tradução deste ratigo aparece em A Source Book in Astronomy and Astrophysics: 1900-1975, eds. by K. R. Lang and O. Gingerich (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1979). O segundo artigo de Friedmann sobre modelos com curvatura negativa foi publicado originalmente em Zeitschrift fur Physik 21 (1924), 326. As soluções de Friedmann, com a constante cosmológica omitida, são
-3*(d2a/dt2 = 4*pi*G*(p+3*P/c2)*a
3*(da/dt)2 = 8*pi*G*pa2 – 3*k*c2
Nestas equações, a é o fator escalar representando o raio do universo num dado instante. da/dt é a taxa de variação de a com o tempo; é a taxa em que o universo se expande ou se contrai. d2a/dt2 é a taxa de variação de da/dt; é a aceleração da expansão ou a desaceleração da contração. G é a constante gravitacional de Newton e c a velocidade da luz. P é a pressão da matéria e p sua densidade. k é a constante que assume um dos seguintes valores: zero para um espaço euclidiano plano, -1 para um espaço hiperbólico ou +1 um espaço esférico.
9A. Veja Penrose, ‘Gravitational Collapse and Space-Time Singularities,’ Physical Review Letters 14 (1965), 57-59; S. W. Hawking, ‘Singularities in the Universe,’ Physical Review Letters 17 (1966), 444-445 e ‘The Occurrence of Singularities in Cosmology. III. Causality and Singularities,’ Proceedings of Royal Society of London A, 300 (1967), 187-201; S. W. Hawking e R. Penrose, ‘Singularities in Homogenous World Models,’ Physical Letters 17 (1965), 246-247 e ‘The Singularities of Gravitational Collapse and Cosmology,’ Proceedings of the Royal Society of London A, 314 (1970), 529-548.
10. S. W. Hawking, ‘Theoretical Advances in General Relativity,’ Some Strangeness in the Proportion, ed. H. Woolf (Addison-Wesley, 1980), p. 149.
11. S. W. Hawking, ‘Breakdown of Predictability in Gravitational Collapse,’ Physical Review D, 14 (1976), 2460.
12. Ibid.
13. W. L. Craig, ‘The Caused Beginning of the Universe: A Response to Quentin Smith,’ op. cit., p. 29, n. 2.
14. S. W. Hawking, ibid.
15. P. Davies, The Edge of Infinity (New York: Simon and Schuster, 1981), p. 161.
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