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Posts Tagged ‘Antropologia Cultural’

Nos comentários do post “Mais uma refutação ao poderoso OTF…“, um dos discípulos do profeta apocaliptista travestido de ateu conservador Luciano Ayan  (ele jura que é operado, mas vai até a lua e volta espumando de ódio toda vez que alguém acerta uma pancada contundente em suas intimidades religiosas) fez uma “contribuição de altíssimo nível“, expondo a todos um suposto debate que um suposto John W. Loftus supostamente teria perdido. Desde então Luciano Ayan vem fazendo anúncios bombásticos de uma vindoura refutação humilhante ao OTF, como pode ser visto nos dois screenshots abaixo (coloquei as fontes nas legendas, mas é altamente provável que ele adultere seus posts ao ver sua alegria de pobre abortada e me acuse de te-lo fraudado):

 O motivo dessa hybris pode ser visto nesta arena virtual aqui. Thrasymachus, o desafiante, não faz nada além de reciclar objeções que alguns apologistas já haviam levantado anteriormente, e às quais o autêntico Loftus já havia respondido _ vejam os comentários deste post do blog do Thrasymachus. Observem também como o próprio Thrasymachus, no terceiro round do debate, em vez de comemorar a vitória suspeitosamente fácil, preferiu considerar altamente provável que o perfil que aceitara seu desafio na verdade pertencia a um fake, suspeita que ele já aventara no começo do segundo round ao solicitar que o outro debatedor lhe enviasse alguma confirmação de que era o autêntico Loftus.

O cristão enrustido, naturalmente predisposto a se agarrar à literalmente qualquer bobagem que alguém fale ou escreva em defesa de sua fé e numa atitude típica de pessoas iludidas, levou em consideração só o que lhe era favorável e ignorou o que era de fato relevante. Se fosse o cético full-blown que se jacta de ser a cada duas linhas de seus posts, teria se poupado mais esse constrangimento. V.V., obrigado por propiciar mais essa oportunidade de expor ao ridículo o macho-alfa dos conservopatas.

Quanto à objeção levantada pelo Thrasymachus contra o OTF, trata-se da famigerada e abusada falácia genética, que consiste em afirmar que uma crença é falsa em virtude do modo como foi adquirida. É a quinta das objeções respondidas abaixo. Além disso, observem que o OTF é um argumento indutivo, probabilístico, não um argumento dedutivo. Ele deixa em aberto a possibilidade de que alguma fé religiosa seja verdadeira apesar de adquirida por um processo não confiável de formação de crenças.

Quanto ao Luciano Ayan, este é o último post em que esse infeliz ou algum de seus textos é mencionado aqui no Rebeldia Metafísica. Continuar a faze-lo seria desmerecer o excelente trabalho de desconstrução da equipe do Blog do Mensalão (recomendo a leitura dos seguintes textos: O que é Controle de Frame, Sou ateu parte 1B: Jeremias e Marcelo Rizzo, Uma “breve” biografia de Luciano Ayan). Como meu presente pessoal de despedida, deixo a ele este link  e uma canção que decerto lhe serão úteis no estágio terminal em que se encontra:

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Um: Os crentes religiosos objetarão em uníssono que o OTF não mostra que sua religião particular é falsa simplesmente por ser um fato sociológico incontestável que acreditamos baseados em acidentes históricos e geográficos. William Lane Craig indaga, “Como a mera presença de visões de mundo incompatíveis com o Cristianismo mostra que alegações distintivamente cristãs não são verdadeiras? Logicamente, a existência de reivindicações de verdade múltiplas e incompatíveis implica apenas que todas elas não podem ser (objetivamente) verdadeiras;  mas seria obviamente falacioso inferir que nenhuma delas é (objetivamente) verdadeira.” Ele está certo sobre isso, assim como os muçulmanos e os mórmons que podem dizer a mesma coisa em relação a suas respectivas fés. Afinal, alguém pode estar certo por nenhuma outra razão além da sorte de nascer na época e no lugar certo.

Mas como você justifica racionalmente tal sorte? Foi por isto que desenvolvi o desafio do teste do infiel em primeiro lugar, para testar as fés religiosas contra tal sorte. Se o teste entre fés religiosas é baseado inteiramente na sorte, então quais são as chances, baseado apenas na sorte, que a seita específica do Cristianismo à qual alguém adere seja a correta?

Dois: Objeta-se que existem minorias ínfimas de pessoas que escolheram ser teístas cristãos que nasceram e cresceram em países muçulmanos e que as pessoas podem escapar de sua fé culturalmente adotada. Isto é verdade. Mas estas são as exceções. Os teístas cristãos respondem me pedindo para explicar as exceções. Estou pedindo que eles expliquem a regra. Por que crenças religiosas específicas predominam em áreas geográficas específicas? Por que isso ocorre?

Quando se trata destes convertidos, minha opinião é que a maioria deles não ponderou objetivamente as evidências quando fez seus compromissos religiosos iniciais. Eles mudaram sua maneira de pensar sobretudo devido à influência e à credibilidade do evangelizador e/ou da natureza fantástica e assombrosa do próprio relato religioso. Eles não dispunham de nenhum método inicial para realmente investigar a fé professada. Que evangelista falaria de maneira nua e crua sobre o lado negro da Bíblia e da Igreja enquanto prega as Boas Novas? Nenhum que eu conheça. Que evangelista apresenta um panorama dos inumeráveis problemas que os acadêmicos cristãos como vocês próprios da platéia enfrentam em encontros como este? Nenhum que eu conheça. Que evangelizador dá a um convertido em potencial uma cópia de um livro como o meu junto com uma cópia de um livro de apologética cristã e pede-lhe que leia os dois antes de tomar uma decisão? Mais uma vez, nenhum que eu conheça.

Três: Objeta-se que a mera discordância de pessoas racionais acerca de um tema não justifica o ceticismo acerca de uma afirmação específica. Ao contrário, penso que isso não somente pode justificar como de fato justifica o ceticismo. O grau de ceticismo justificado depende dos critérios que mencionei antes. Pessoas racionais não apostam contra a gravidade, por exemplo, porque há evidências para ela que foram aprendidas à parte do que lhes foi ensinado para acreditarem numa região geográfica distinta. Ela pode testa-la pessoalmente. Sustento que as crenças religiosas estão numa categoria diferente da dos resultados de experimentos científicos reprodutíveis, e que esta afirmação é tanto óbvia quanto incontroversa. De qualquer maneira, o ceticismo é melhor expresso num continuum. Algumas alegações de crença justificarão um ceticismo maior do que outras. Afirmo que crenças religiosas provavelmente justificam o mais elevado grau de ceticismo considerando-se os fatos sociológicos. Correndo o risco de ofender os religiosos aqui, as crenças religiosas, como crenças em elfos na Islândia, em trolls na Noruega e no poder das bruxas na África, devem ser submetidas ao mais elevado grau de ceticismo considerando-se tanto a natureza extraordinária destas afirmações e como algumas destas crenças são adotadas em primeiro lugar.

Quatro: Alguém pode objetar que meu argumento se auto-destrói. Elas indagarão: “Minhas condições culturais ‘determinam’ esmagadoramente minha pressuposição cética? Se for o caso, então, como Alvin Plantinga pergunta, seriam minhas crenças igualmente ‘produzidas por um processo de produção de crenças não-confiável’? Se não, então por que razão eu penso que posso transcender a cultura mas um teísta cristão não pode transcender sua cultura?” Em resposta, penso ser extremamente difícil transcender nossa cultura porque, como mencionei antes, elas nos dota com os próprios olhos com os quais vemos. Mas precisamente porque sabemos a partir de estudos psicológicos e antropológicos que isto é o que a cultura faz por e para nós, é possível transcender a cultura em que fomos criados.

[Exemplo] Sabemos que as pessoas não percebem sensorialmente a realidade como ela realmente é. O que vemos é filtrado por nossos olhos. O que ouvimos é filtrado por nossos ouvidos. Vemos e ouvimos apenas uma quantidade muito limitada dos dados do mundo. Mas se víssemos e ouvíssemos o espectro sônico e eletromagnético inteiro nós basicamente veríamos e ouviriamos ruído branco. Sabemos disso mesmo não sendo capazes de realmente ver ou ouvir o ruído branco por nós mesmos. Também sabemos que o chão sobre o qual caminhamos move-se como um enxame de abelhas no nível microscópico. Assim, é o conhecimento científico sobre o mundo que nos leva a sermos céticos sobre o que vemos e ouvimos.

O mesmo pode ser dito quando se trata de estudos psicológicos e antropológicos mostrando que deveríamos ser céticos em relação ao que somos levados a acreditar, apesar de sermos incapazes de realmente ver qualquer coisa acerca de nossas crenças sobre as quais deveríamos ser céticos. E o OTF é sem dúvidas um teste que podemos propor para examinar nossas crenças culturalmente adotadas.

A verdade é que meu argumento definitivamente não se autodestrói. Ele sugere que deveríamos duvidar do que acreditamos. Não é autodestrutivo dizer quais são as chances de que estejamos errados. Afinal, estamos falando sobre as probabilidades aqui. O filósofo agnóstico J.L. Schellenberg lida come este mesmo tipo de críticas nestes termos: “agora, esta objeção pode ser sólida se meus argumentos de fato forem aplicáveis a si próprios, e não é preciso muito para vermos que tal não é o caso.” Pois existe uma diferença colossal entre defender um sistema de crenças religiosas como o único e exclusivo sistema correto, e negar que um sistema de crenças religiosas seja justificado. Sua afirmação é que os adeptos de qualquer sistema de crenças religiosas dado “não foram bem-sucedidos em montar seu caso; ele nos compele a continuar a investigação… porque o ceticismo sempre é uma posição de último recurso em contextos de busca da verdade.”

Cinco: ao afirmar que fés religiosas são adotadas esmagadoramente por “acidentes de nascimento”, terei cometido a falácia genética, uma falácia informal de irrelevância? Esta falácia é cometida sempre que se argumenta que uma crença é falsa devido ao modo como se originou.

Eu não considero a falácia genética tão significativa quanto as pessoas pensam que é, especialmente em contextos religiosos. Se alguém acredita de maneira paranóica que a CIA o está espionando e descobrimos que a gênese (ou origem) de sua crença remonta ao consumo de uma droga alucinógena como o LSD, então possuímos evidências realmente boas para sermos céticos em relação a sua crença paranóica, apesar de não termos realmente demonstrado a falsidade de sua crença de qualquer outro modo, e apesar de ao procedermos assim alguém poder nos acusar de cometer a falácia genética. Portanto, de maneira similar, se podemos determinar que as origens das formas mais primitivas de Cristianismo foram criadas puramente por seres humanos antigos supersticiosos, possuímos boas bases para sermos céticos. Mas ainda mais importante para o caso, se todas as nossas crenças são completamente determinadas por nosso ambiente então esse é o caso independente do fato de que ao argumentar em defesa disso comete-se a falácia genética.

Todavia, não há nenhuma falácia genética aqui, a menos que ao explicar como os fiéis primeiro adotam sua fé eu em seguida concluísse que tal fé é falsa. Não estou afirmando que essas fés são falsas em virtude de como os crentes originalmente as adotam. Estou apenas defendendo que os crentes deveriam ser céticos a respeito de suas fés religiosas culturalmente adotadas em virtude de como eles primeiro vieram a adota-las.

Seis: Uma última objeção pergunta se isto tudo não seria circular. Teria eu meramente escolhido um sistema de crenças metafísicas diferentes baseado em fatores culturais diferentes? Eu nego que isto seja verdade, pois tenho fundamentos iniciais muito bons para começar com o ceticismo baseado em fatos sociológicos, antropológicos e psicológicos. Os procedimentos metodológicos são aqueles testes que utilizamos para investigar alguma coisa. Como procedemos ao investigar alguma coisa é uma questão separada que deve ser justificada em seus próprios termos, e eu tenho feito isto aqui. Uma pessoa não pode dizer que devo ser tão cético acerca do Teste Da Fé do Infiel quanto sou acerca das conclusões a que cheguei quando apliquei o teste, já que justifiquei o teste a partir dos fatos. Deve-se primeiro discutir o teste do infiel em seus próprios termos.

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por Luiz Felipe Pondé

Publicado originalmente na Folha de São Paulo de 13 de Agosto de 2012

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Antropólogos de boutique deveriam pegar um avião e ir para algumas regiões da África

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Hoje em dia gostamos de inventar termos “científicos”. Um deles é “sensibilidade cultural”, e o usamos para criticar formas de “intolerância cultural” (ou insensibilidade cultural), ou seja, tratar mal pessoas com hábitos diferentes dos nossos ou negar o direito de se praticar coisas estranhas para nossa cultura. A forma mais radical de criticar esta intolerância é dizer que “todo outro é lindo”.

Gosto mais da expressão “tolerância” quando era inocentemente aplicada a casas de mulheres que fazem sexo em troca de dinheiro, as chamadas “casas de tolerância”. Tenho saudade do uso da palavra “tolerância” neste sentido. Hoje em dia, a expressão “tolerância” é comumente utilizada por fanáticos que querem afirmar que tudo que vem do “outro” é lindo e maravilhoso.

Polêmicas ao redor do uso do véu islâmico têm sacudido a Europa. Até a Olimpíada em Londres não escapa disso. Recusar o direito de se usar o véu (ou similares) seria falta de sensibilidade cultural ou falta de tolerância cultural.

A verdade é que esse negócio de tolerância ou sensibilidade cultural com o outro (da qual partilho) é invenção de ocidental rico. E às vezes, temo, a moçada que gosta de falar disso fica tomando vinho em suas casas em segurança e nada sabem do mundo em chamas por aí. “Outros” são triturados por muitos dos “outros” que teimamos em achar lindo. Só que estes “outros” triturados são invisíveis para olhos acostumados às vítimas “profissionais” da nossa época. A indústria das vítimas oficiais não assimila esses miseráveis de fato em suas campanhas de conscientização chique.

Esses defensores da sensibilidade cultural, antropólogos de boutique, deveriam pegar um avião, sair de Paris, Londres, Nova York e São Paulo, e viajar um pouco. Quem sabe ir para algumas regiões da África, como Sahel (área semiárida no continente), Mali ou norte da Nigéria, dominadas por salafistas muçulmanos fanáticos, e defender a sensibilidade cultural por lá. Queria ver como esses inteligentinhos iriam se virar com esses salafistas que não estão nem aí para suas modinhas culturais.

No Mali, domingo 29 de julho, salafistas pegaram um casal que teve um filho fora do casamento, enterraram os dois até o pescoço e mataram a pedradas. Eles já têm espancado cristãos, destruído seus mausoléus e também destruído locais históricos do próprio islamismo que para eles não seja o “islamismo correto”. Qualquer um que não obedeça sua versão da “sharia”, a lei islâmica, é castigado fisicamente.

Sabe-se muito bem que no Egito, cristãos coptas são espancados há muito tempo e não têm os mesmos direitos civis que os muçulmanos. Por que os inteligentinhos de plantão da sensibilidade cultural não montam uma agência especial de direitos humanos para os cristãos? Que tal propor um jogo de futebol entre muçulmanos e cristãos no Egito para ensinar a “sensibilidade cultural” à maioria muçulmana lá?

Recentemente ouvi relatos antropológicos interessantes acerca de um país importante do golfo Pérsico. País que já ocupou várias vezes a mídia internacional em destaque.

Lá, mulheres estrangeiras (filipinas, paquistanesas) que buscam trabalho são constantemente violentadas por seus patrões e espancadas pelas suas patroas. Muitas vezes mortas. Todo mundo sabe (o país é minúsculo), mas não importa, porque a população local tem mais direitos dos que os estrangeiros.

Quer um exemplo: você pode trabalhar lá a vida inteira e nunca terá direito de comprar uma propriedade para você. Seu passaporte fica retido na mão do seu empregador, e se ele não quiser te dar quando você pedir, se você não achar alguém da população natural local que interceda a seu favor, você poderá não conseguir sair do país. Se você bater num carro de um cidadão natural do país, você nunca terá razão.

Todo mundo sabe que em países desta região, tocar num muçulmano é considerado ilegal. Você poderá ser preso ou deportado se alguém reportar que você tocou um dos seres “sagrados” naturais da terra. Experimente converter um deles. Cadeia na certa. Que insensibilidade cultural, não?

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[O texto a seguir é uma adaptação, para uma palestra proferida por John W. Loftus em março de 2009 num encontro da Evangelical Philosophical Society, do capítulo “The Outsider Test Of Faith” da primeira edição de seu livro Why I Became An Atheist]

Quando se trata de avaliar as reivindicações de veracidade do teísmo cristão, a pergunta mais importante de todas é se deveríamos abordar as evidências disponíveis pelas lentes da fé ou do ceticismo. A neutralidade completa e absoluta, embora desejável, parece ser praticamente impossível, já que a visão de mundo que utilizamos para avaliar as evidências preexiste ao olhar sobre as evidências. Assim, a questão que abordarei hoje é se deveríamos adotar uma predisposição religiosa ou cética antes de examinarmos as evidências para um sistema de crenças religiosas. Defenderei que a adoção de uma predisposição cética é a melhor escolha.

Meu Teste da Fé Do Infiel (Outsider Test Of Faith no original, doravante OTF) é apenas um dos vários argumentos que utilizo para demonstrar que ao examinarmos as evidências para um sistema de crenças religiosas uma predisposição cética é mais do que justificada. Existem evidências esmagadoras, inegáveis e incontroversas para o próprio teste que podem ser encontradas em bancos de dados sociológicos, antropológicos e psicológicos. Começarei com alguns dos dados que constituem os fundamentos para o teste. Então descreverei o teste, oferecerei alguns exemplos do que ele exige do fiel, e o defenderei contra seis objeções principais.

Existe um debate acalorado entre os apologistas cristãos sobre os “fatores de fundo” bayesianos, fatores que desempenham um papel significativo na avaliação da verossimilhança do Cristianismo em geral, da probabilidade da ressurreição de Jesus, da probabilidade da ocorrência de milagres, e do problema do mal. Mas o fator de fundo mais importante de todos para avaliarmos cognitivamente as reivindicações de verdade da fé religiosa é o plano de fundo sociológico e cultural.

O fundamento para o Teste do Infiel foi enunciado com muita propriedade pelo filósofo liberal cristão John Hick: “É evidente que em aproximadamente 99% dos casos a religião que um indivíduo professa e à qual ele adere depende de acidentes de nascimento.” Ou seja, se tivéssemos nascido na Arábia Saudita, hoje seríamos muçulmanos sunitas. Se tivéssemos nascido no Irã, seríamos muçulmanos xiitas. Se tivéssemos nascido na Índia, seríamos hindus. Se tivéssemos nascido no Japão, seríamos xintoístas. Se tivéssemos nascido na Mongólia, seríamos budistas. Se tivéssemos nascido no primeiro século a.C. em Israel, seríamos adeptos da fé judaica daquela época, e se tivéssemos nascido na Europa do ano 1000 d.C., seríamos católicos romanos. Pelos primeiros nove séculos do primeiro milênio da era comum, teríamos acreditado na teoria do resgate como explicação do modo como funciona o sacrifício de Jesus. Como os cristãos que viveram durante a Idade Média tardia, não veríamos nada de errado em queimar bruxas, torturar hereges e reconquistar Jerusalém dos “infiéis” nas Cruzadas. Estas coisas estão o mais próximo possível de serem fatos inegáveis a que se pode chegar no universo sociológico.

Houvéssemos nós vivido no Egito antigo ou na Babilônia, teríamos sido muito supersticiosos e politeístas até a medula. No mundo antigo, teríamos buscado orientação divina através da adivinhação, tentado alterar as circunstâncias por meio de mágicas e acreditado no temível mau-olhado.

Existe toda uma gama de temas e questões que admitem a diversidade também na política e na moral, diversidade esta baseada sobretudo em “acidentes de nascimento”. Homens caucasianos americanos teriam acreditado, como o presidente Andrew Jackson, no destino manifesto, nosso mandato outorgado por Deus para confiscarmos os territórios dos nativos americanos na expansão em direção ao Oeste. Ao longo do século 17 teríamos acreditado que as mulheres eram intelectualmente inferiores aos homens, e consequentemente não teríamos permitido que recebessem a mesma educação ministrada aos homens, e muito menos que votassem. Como Thomas Jefferson e a maioria dos americanos, teríamos pensado desta maneira a respeito das pessoas negras também, que elas eram intelectualmente inferiores aos brancos, ao passo que se tivéssemos nascido nos Estados do Sul, teríamos justificado a escravidão citando a Bíblia. Se no mundo de hoje tivéssemos nascido na Faixa de Gaza palestina, odiaríamos os judeus e provavelmente desejaríamos mata-los todos.

Estes tipos de crenças religiosas, morais e políticas, baseadas em condições culturais, podem ser multiplicadas numa extensa lista de crenças que manteríamos se tivéssemos nascido numa época e/ou num local diferentes. Voltaire estava certo: “Todo homem é uma criatura da época em que vive, e poucos são capazes de elevar-se acima das idéias de seu tempo.

Condições sociais nos municiam com as crenças de controle iniciais que utilizamos desde o primeiro momento para integrar todas as nossas experiências e fatos conhecidos. Esta é a razão pela qual elas são chamadas de crenças de controle. Elas são semelhantes a viseiras. A partir do momento em que as colocamos, vemos muito bem apenas o que nossas viseiras permitam que vejamos, porque a razão e o entendimento são utilizados sobretudo a serviço destas viseiras.

Michael Shermer, um ex-cristão que tornou-se ateu, empreendeu um estudo abraangente das razões pelas quais as pessoas acreditam em Deus e em “coisas estranhas”. Ele afirma: “A maioria de nós a maioria das vezes formamos nossas crenças por uma variedade de razões que tem muito pouco a ver com evidências empíricas e raciocínio lógico. Em vez disso, variáveis como predisposições genéticas, predileções paternas, influências fraternas, pressão dos colegas, experiências educacionais e impressões da vida, todas estas coisas moldam as preferências pessoais e as inclinações emocionais que, combinadas com numerosas influências sociais e culturais, levam-nos a adotar certas crenças. Raramente qualquer de um de nós senta-se diante de uma tabela de fatos, pesa os prós e os contras e escolhe a crença mais lógica e racional, independentemente do que acreditávamos anteriormente. Em vez disso, os fatos do mundo nos alcançam através dos filtros coloridos das teorias, hipóteses, intuições, vieses e preconceitos que acumulamos ao longo de nossa vida. Então ordenamos a massa de dados e selecionamos aqueles que mais confirmam o que já acreditamos, e ignoramos ou racionalizamos os que nos desmentem. Todos fazemos isto, é claro, mas pessoas inteligentes são melhores nisso.

O filósofo cristão Robert McKim concorda em alguns aspectos. Ele escreveu: “Ao que parece possuímos uma admirável capacidade para encontrar argumentos que respaldam as posições que mantínhamos anteriormente. Nossa razão é, em larga escala, uma escrava de nossos compromissos prévios.” Consequentemente, a noção inteira de um “julgamento racional independente” é suspeita, ele afirma. Não estamos aqui negando que os apologistas cristãos defendem sua fé com razões. É claro que eles o fazem. Estes apologistas, quando bons no que fazem, são pessoas inteligentes. Porém, como Michael Shermer também nos lembra, “pessoas inteligentes, justamente porque são mais inteligentes e mais bem educadas, são capazes de dar razões intelectuais justificando as crenças que vieram a adotar por razões não-inteligentes.

A psiquiatra Dra. Valerie Tarico descreve o processo de defesa de crenças não-inteligentes por pessoas inteligentes. Ela afirma, “não são necessárias muitas hipóteses falsas para que nos engajemos numa demorada caça ao ganso.” Para ilustrar isto ela nos conta sobre o mundo mental de um esquizofrênico paranóico. Para uma pessoa assim a sensação de estar sendo perseguida pela CIA parece real. “Você pode sentar, como um psiquiatra, com um manual de diagnóstico próximo a você, e pensar: por mais bizarro que isso soe, a CIA realmente está na cola deste cara. Os argumentos são coesos, a lógica persuasiva, as evidências esmeradamente catalogadas. Tudo o que é preciso para erguer tal impressivo castelo de ilusões é uma mente clara e bem organizada e um punhado de hipóteses falsas. Indivíduos paranóicos podem ser bastante verossímeis.” Em sua opinião, é isto que os cristãos fazem e o que melhor explica por que é tão difícil abalar a fé evangélica. Eu não espero, é claro, que os cristãos concordem com ela que isto é o que fazem, mas a esta altura eles não podem negar que pessoas de fé religiosa fazem isto. O que explicaria de modo mais satisfatório porque ainda existe uma igreja Mórmon agora que as evidências genéticas demonstram conclusivamente que os nativos americanos não vieram do Oriente Médio?

Eu investiguei minha fé de dentro, enquanto a professava presumindo que fosse verdadeira. Mesmo de uma perspectiva interna com o sistema de crenças de controle cristão, eu não fui capaz de continuar a acreditar. Agora, de fora, ela não faz absolutamente nenhum sentido. Os cristãos estão do lado de dentro. Agora estou do lado de fora. Os cristãos veem as coisas de dentro. Eu vejo as coisas de fora. De dentro, ela parece verdadeira. De fora, ela parece quase bizarra. Como Mark Twain sabiamente disse, “A fácil confiança com que eu sei que a religião de outro homem é uma tolice insensata me ensina a suspeitar que a minha própria também é.

Esta questão da perspectiva interna/externa é quase um dilema e prontifica me a propor e argumentar em favor do OTF, cujo resultado torna a pressuposição do ceticismo a postura preferível quando abordamos qualquer fé religiosa, especialmente a que se professa. O Teste do Infiel é simplesmente um desafio para testar a própria fé religiosa com a presunção do ceticismo, como alguém que dela não partilha. Ela exorta os fiéis: “Teste ou examine suas crenças religiosas como se você não as professasse com a mesma presunção de ceticismo que você utiliza para testar ou examinar outras crenças religiosas.” Seu pressuposto é que quando examinamos qualquer sistema de crenças religiosas o ceticismo é justificado, já que há boas chances de que o sistema de crenças religiosas particular do qual você é adepto seja falso.

O OTF  não é diferente do que fez o príncipe na história da Cinderella, que precisou interrogar quarenta e cinco mil garotas para descobrir qual delas perdeu o sapatinho de cristal no baile da noite anterior. Todas afirmavam ser a dona do sapatinho. Portanto, definitivamente, o ceticismo é justificado. Isto é o caso especialmente quando não se dispõe de um pé correspondente empírico.

O grau de ceticismo justificado depende do número de pessoas racionais que discordam, se as pessoas que discordam encontram-se separadas em regiões geográficas distintas, a natureza dessas crenças, como elas se originaram, como elas foram pessoalmente adotadas em primeiro lugar, e os tipos de evidências que podem possivelmente ser utilizadas para decidir entre elas. Minha afirmação é que quando se trata de crenças religiosas um elevado grau de ceticismo é justificado em virtude destes fatores.

Seguramente alguém objetará inicialmente que isto é completamente draconiano em seu escopo. Por que assumir uma posição tão extrema? Eis a resposta: devido a como pessoas religiosas abordam todas as outras fés religiosas exceto a sua própria. Se alguém afirma não ser capaz de fazer isso porque ninguém pode testar qualquer coisa sem pressupostos de algum tipo, então este teste desafia o crente a substituir provisoriamente seus pressupostos. Se ele não puder realmente fazer isso, então deixe-me sugerir-lhe fazer o que René Descartes fez com uma dúvida metodológica (ou hiperbólica), apesar de eu não estar sugerindo este tipo de dúvida radical. Considere hipoteticamente sua fé da perspectiva de alguém que dela não partilha.

Se o crente se recusar a fazer isto então ele deve justificar a utilização de tal padrão duplo. Por que ele testa outras crenças religiosas de maneira diferente das suas próprias? Para alguém objetar que o que estou pedindo é injusto, ele tem o ônus da prova de mostrar por que razão sua abordagem inconsistente à fé religiosa é justificada em primeiro lugar.

Estou disposto a reconhecer que o que estou pedindo é uma coisa dificílima de se fazer. Isto porque, como o antropólogo Dr. David Eller explica, nossas crenças culturalmente herdadas são os olhos com que vemos o mundo. Não vemos a cultura. Vemos com a cultura. Nossas crenças culturalmente herdadas são quase como nossos próprios olhos. Não podemos facilmente arrancar nossos olhos para olha-los. Mas devemos tentar isto se desejarmos sinceramente examinar aquilo que nos foi ensinado a acreditar. Apenas os honestos, os consistentes e os corajosos alguma vez farão isso.

Para o teísta cristão o desafio do teste do infiel implica não mais poder citar a Bíblia para defender a alegação de que a morte de Jesus na cruz nos salvou dos pecados. O teísta cristão agora deve tentar explicar isso racionalmente. Não mais citar a Bíblia para mostrar como é possível que Jesus seja 100% Deus e 100% homem sem deixar nenhuma ponta solta. O teísta cristão deve agora tentar dar sentido a esta afirmação, como se ela proviesse de um povo antigo e supersticioso que não via problemas em acreditar que Paulo e Barnabé eram “deuses em forma humana” (Atos 14:11, 28:6). O teísta cristão também não deve presumir antes de examinar as evidências que existe uma resposta ao problema do sofrimento horrendo que existe em nosso mundo. E tem que ser inicialmente cético em acreditar em qualquer dos milagres relatados na Bíblia, assim como deveria ser cético acerca de qualquer alegação de ocorrência miraculosa nos mundo de hoje respaldando outras fés religiosas. Por que? Por que ele não pode começar acreditando na Bíblia, nem pode confiar que as pessoas próximas a ele que são teístas cristãos estejam de posse da verdade, nem confiar em suas próprias experiências religiosas anedóticas, já que tais experiências são vivenciadas por pessoas de todas as fés religiosas que diferem sobre o conteúdo cognitivo aprendido como resultado destas experiências. Ele desejaria evidências e razões para estas crenças.

O teste do infiel também desafia os fiéis a examinar as condições sociais e culturais em que vieram a adotar sua fé religiosa particular em primeiro lugar. Isto é, os fiéis devem interrogar a si próprios quem ou o que os influenciou e quais foram as verdadeiras razões para adotar sua fé em seus estágios primitivos. Cristão, apenas pergunte-se se as razões iniciais que você teve para adotar sua fé foram do tipo fortes. Apenas pense sobre os problemas que você vivenciou em suas igrejas  paralelamente aos problemas intelectuais com que você se digladiou em reuniões como essa. Se você pudesse voltar no tempo sabendo o que você sabe agora sobre como os cristãos se comportam na igreja você ainda escolheria acreditar? E aqueles argumentos iniciais que o converteram seriam considerados por você hoje simplórios e indignos de consideração. Apenas pergunte-se se você teria se tornado um mórmon, houvesse um daqueles jubilosos grupos de mórmons amistosamente te abordado naquela mesma época vulnerável de sua vida. A maioria de nós, a maior parte do tempo, não possui boas razões iniciais para aceitar nossa fé religiosa, que da época de sua adoção em diante atua como um um par de viseiras em relação a como vemos as evidências. Simplesmente terminamos acreditando no que nos foi dito para acreditar por pessoas em quem confiávamos numa cultura dominada pelo Cristianismo.

Na pior das hipóteses, um crente deveria estar disposto a submeter sua fé a um rigoroso escrutínio lendo algumas das mais conceituadas críticas à sua fé, muitas das quais foram escritas por outros crentes declarados e praticantes. A fé evangélica, por exemplo, pode ser concebida como uma pequena ramificação de um galho chamado Cristianismo, que por sua vez está ligado a uma árvore frondosa chamada religião. O debate começaria levantando-se a questão de qual Cristianismo representa o verdadeiro Cristianismo em nosso mundo hoje. Em seguida a fé cristã de hoje guarda pouca semelhança com as teologias e a ética dos Cristianismos do passado, e se assemelhará pouco aos futuros Cristianismos porque a fé cristã é como um camaleão, mudando continuamente com o progresso do conhecimento. Mas uma vez que o debate entre cristãos esteja estabelecido, por mais remota que seja essa possibilidade, o próximo debate é entre o Cristianismo e todas as outras religiões do planeta. Eu afirmo que os evangélicos não podem vencer o primeiro debate, muito menos o segundo. O antropólogo cultural david Eller está certo: “Nada é mais destrutivo para a uma religião do que as outras religiões; é como uma colisão com sua parcela gêmea de antimatéria“.

Não obstante, se após ter investigado sua fé religiosa com a presunção do ceticismo ela sobreviver à inspeção intelectual, então você pode manter sua fé religiosa. É simples assim. Se não, abandone-a como eu fiz. Suspeito que se alguém se dispuser a encarar o desafio do Teste do Infiel, então sua fé religiosa revelar-se-á problemática, frágil e vulnerável e ele a abandonará junto com todas as outras fés religiosas, como aconteceu comigo.

(…continua…)

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por Jaco Gericke

As pessoas que escreveram o Antigo Testamento também cometeram o erro fatal de construir Javé com o que hoje em dia nos parece um perfil psicológico (cognitivo, conativo e afetivo) repugnante.[12]

Antes de mais nada, a mente do deus da Bíblia exibe um compêndio de conhecimentos demonstravelmente errôneos. Quando Javé fala na primeira pessoa nos textos do Antigo Testamento, a divindade é muitas vezes retratada fazendo pronunciamentos que incluem referências a fenômenos históricos, cosmográficos, geográficos, biológicos e de outros tipos que atualmente sabemos não serem factuais. O que denuncia a origem demasiado humana da mente divina é o simples fato de que as idéias que Javé contempla acerca da realidade dificilmente vão além das superstições e concepções errôneas dos sistemas de conhecimento autóctones das pessoas que o adoravam.[13]

De modo que o próprio Javé acredita que o universo foi criado literalmente ao longo de um período de seis dias (Exo. 31:17) e que há um oceano acima das estrelas, por trás do firmamento, de onde vem a chuva que cai sobre a terra (Gen. 1:6; Jó 38:34).[14] Ele também acredita que os continentes da terra flutuam sobre água (Deut. 5:8; Salmos 24:2) e que existe literalmente um lugar subterrâneo onde os mortos vivem como sombras agrupados por suas nacionalidades (Num. 16:23-33; Deut. 32:22; Jó 38:16-17; Isa. 7:11; Ez. 26:19:20; 32:18-32; Amós 9:2). Javé também acredita em criaturas míticas como o Leviatã, o Behemoth, o Rahab, monstros marinhos, dragões voadores, demônios rurais, espíritos noturnos malévolos, etc. (confira em Jó 40–41; Isa. 30:6; Lev. 17:7; Isa. 34:14; Amós 9:3; etc.). Ele assume até mesmo que os pensamentos brotam do coração e as emoções dos rins (Jer. 17:12; etc.)

Javé também acredita na historicidade de Adão, Noé, Abraão, Moisés e Davi, conforme retratados nas tradições bíblicas, no mínimo de acordo com os textos em que ele lhes fala diretamente e nas histórias subsequentes em que seu personagem alude retrospectivamente a eles como se fossem pessoas reais (veja, por exemplo, Ez. 14). Mas se estas pessoas conforme retratadas são ficções (como os estudiosos já estabeleceram), como poderia Javé – falando a personagens fictícios e aludindo a eles como se fossem parte da realidade – não ser ele próprio fictício? Certamente tais crenças factualmente errôneas mantidas por Javé demonstram que este deus não pode existir conforme é retratado.[15] Mesmo se insistirmos que o que encontramos nestes textos são simplesmente as crenças errôneas de humanos e não os próprios pensamentos de um deus, teremos perdido quaisquer fundamentos para acreditar que o personagem Javé possui alguma contraparte extratextual. Em todo caso, quem seria Javé sem Adão, Abraão ou Moisés conforme retratados nos textos?

Mas há mais acerca da mente divina que parece bastante absurdo. Não são somente as crenças de Javé acerca do mundo que as vezes parecem demasiado humanas. A divindade também exibe desejos e necessidades demasiado humanos a cuja satisfação ele se dedica obsessivamente. Assim, poucas pessoas param e questionam porque Deus, também conhecido como Javé, deve ter um povo para governar (Êxodo 19:6; Deut. 4:19; 32:8-9) e se empenha arduamente para manter uma reputação baseada em concepções dos valores da honra e da vergonha  cultivados no Oriente Próximo antigo (Deut. 32:26-27; Mal.1-3). Javé preocupa-se muito em manter seu nome em segredo (Gen. 32; Êxodo 6; Juízes 16; etc.) e, como um membro da nobreza aristocrática, prefere ter sua morada num local bem elevado e distante, acima da sociedade humana, de modo a não ser perturbado pelos mortais (Gen. 11,18; Exodo 24, etc.). Javé precisa limitar seu contato direto e pessoal com a população em geral e, na maior parte das vezes, prefere agir através de mediadores, agentes, mensageiros e exércitos. Ele aprecia e exige ser temido (Êxodo 20:19-20; Jó 38-41). Mais do que qualquer outra coisa, Javé anseia por ser adorado e ser constantemente lembrado do quão grande, poderoso e prodigioso ele é (Isa. 6:2-3; etc.).

Considere este último exemplo: o desejo de Javé de ser adorado. Várias pessoas presumem esta necessidade em Deus mas nunca se incomodam em perguntar por que Deus deseja – ou melhor, exige – ser adorado. Uma coisa é se as criaturas, reverentes a seu criador, irrompem espontaneamente em louvores, “não se eximindo de uma espécie de cômica gratidão pelo prodigioso fato de serem, não importa quão grande desventura as assole” . Outra coisa completamente diferente é se o criador deveria ser concebido como alguém que premeditou a formação de criaturas cujo único e exclusivo propósito é lembra-lo perpetuamente do quão excelente e poderoso e benevolente ele é (Isa. 6). Quero dizer, é realmente verossímil acreditar que a realidade última é uma pessoa tão narcisista e ególatra que precisa prescrever em minuciosos detalhes exatamente como deseja ser adorado? Por que admitimos tão ingenuamente a idéia de um deus tão absorto em si próprio a ponto de ameaçar destruir qualquer um que se desvie minimamente de suas instruções? Veja o grau de detalhamento nos capítulos 25 a 40 do livro do Êxodo em relação à mobília e à construção do tabernáculo e os pormenores dos rituais. Tamanha obsessão controladora pode ser explicada somente postulando por trás dela uma projeção do desejo humano por ordem e controle. Como Don Cupitt observa (aludindo a um comentário de Harold Bloom):

O deus da Bíblia Hebraica é como um meninão sinistro e poderoso , um peralta sublime, endiabrado e custoso. Ele se assemelha a Lear e o superego freudiano em ser um Pai demoníaco e perseguidor, inteiramente desprovido de auto-conhecimento e muito relutante até mesmo em aprender qualquer coisa. Como os personagens humanos com que interage, sua consciência se altera continuamente. Ele manifesta a pura força e energia do Devir. Ele é a Vontade de Poder nietzscheana, abrupta e incontrolável, e não submissa a nada nem a ninguém.[16]

O fato de as alegadas necessidades do próprio Javé assemelharem-se perturbadoramente às necessidades historica e culturalmente condicionadas dos “poderes estabelecidos” conhecidos por seus adoradores é melhor explicado concebendo a mente de Javé representada nos textos particulares como o produto de projeções humanas de autocratas inebriados pelo poder que lhes eram familiares sobre um monarca cósmico imaginário. Como governantes humanos paranóicos exibiam estas características, os antigos raciocinaram que, se o próprio cosmos é uma monarquia com um rei (super)humanóide no trono, ele pode ser tão fútil, despótico e carente de atenção quanto qualquer monarca secular (embora tão hábil quanto na manutenção de sua popularidade por atos ocasionais de caridade e boa vontade quanto suas contrapartes terrestres). Quem correria o risco? Melhor prevenir do que remediar.

De qualquer maneira, sabemos que _ se é que sabemos alguma coisa _ o universo não é um galinheiro cujo posto mais alto na hierarquia das bicadas é ocupado por um rei com o perfil psicológico de um imperador do Oriente Próximo antigo narcisista e bipolar dirigindo todo o espetáculo. Podemos ver claramente o absurdo de se imaginar a existência de um deus cujo perfil psicológico exibe desejos humanos culturalmente relativos e historicamente contingentes. Observe também que nenhuma destas características psicológicas divinas foram compreendidas em seus contextos bíblicos como sendo meras representações metafóricas ou o resultado de uma suposta “adaptação” divina.[17] Tampouco podem estas características serem racionalizadas e completamente explicadas como o produto da representação “antropopática” deliberada e intencional de alguma coisa que na realidade é presumivelmente inefável. Estas maneiras de considera-las surgem apenas quando precisamos reprimir o fato de não mais acreditarmos em Deus, também conhecido como o deus da Bíblia.

Um terceiro e último aspecto da representação da mente de Deus parece igualmente absurdo. Encontramos no perfil psicológico de Javé valores morais que o deus considera serem eterna e universalmente normativos mas que são obviamente tabus culturais locais. Análoga à desconcertante maneira em que o conhecimento de Javé acerca do mundo nunca ultrapassa o de seus redatores de discuros, assim, também, a ética divina parece perturbadoramente similar à moralidade projetada de um povo mergulhado em superstição.

Por exemplo, considere o desejo divino por sacrifícios. Quando você reflete sobre isso, tudo se resume à idéia de um criador que espera que algumas de suas criaturas (humanas) matem e queimem outras criaturas de um certo tipo (animais) a fim de prover o sustento divino (Javé aprecia o cheiro de churrasco, de acordo com Lev. 1:6) e para expiar a culpa (Lev. 1-7). Que tal o fato de que Javé acredita que dar à luz uma garota deixa a mãe impura por um período duas vezes maior do que quando ela dá à luz a um varão (Lev. 12:4-5)? E por que Javé considera moralmente errado a utilização de duas matérias-primas diferentes na confecção de roupas, ou que os campos sejam semeados com duas variedades diferentes de sementes (Lev. 19:19)? Por que Javé acha os processos fisiológicos humanos objetivamente ofensivos, quando ele os criou (Lev. 12)? Por que alguns animais são considerados abominações horrendas, mesmo por seu próprio criador (Lev. 11; Deut. 14)?

O código moral de Javé assemelha-se demais ao que os humanos das antigas culturas do Oriente Próximo já consideravam ser o caso – muito antes que a religião de Javé desse seus primeiros passos. O Javeísmo e seus tabus são retardatários na história das religiões, e muitas das crenças morais contidas em seu sistema de valores podem ser rastreadas em outras religiões pagãs que precedem seu aparecimento em Israel e Judá (a circuncisão e os tabus referentes ao porco já eram práticas estabelecidas no Egito, por exemplo).[18] Assim, “Deus” e os mandamentos divinos tem uma história que entrega o jogo. Vários religiosos fundamentalistas podem não estar muito perturbados por isso porque consideram as leis de culto obsoletas – mesmo que Javé nunca tenha contemplado sua revogação. Tais cristãos estão apenas reprimindo o fato de que eles próprios não mais acreditam em Javé, que entrementes foi atualizado para alguma coisa mais intelectualmente verossímil. Na verdade, toda a teologia cristã não passa de ateísmo javeísta.

(…continua…)

Notas.

12. Para uma discussão mais detalhada e evidências desta projeção polimórfica, veja Gericke, “Yahwism and Projection,” 418–22; veja também o capítulo 6 escrito por Valerie Tarico no livro The End of Christianity, “Why the Biblical God is Hopelessly Human.”

13. Este ponto foi concisamente discutido em Harwood, Mythology’s Last Gods.

14. Para mais exemplos desta ignorância cosmológica exibida no Antigo Testamento (correspondendo exatamente às mesmas crenças coincidentemente mantidas pelas sociedades pagãs ao redor, veja Ed Babinski, “The Cosmology of the Bible,” The Christian Delusion, ed. John Loftus (Amherst, NY: Prometheus Books, 2010): 109–47.

15. Sobre a inexistência destes personagens, veja o capítulo 4 de The End of Christianity, escrito por Hector Avalos, Por Que Os Estudos Bíblicos Devem Terminar, e a discussão e as conclusões dos estudos citados em Paul Tobin, “The Bible and Modern Scholarship,” em Loftus, The Christian Delusion, 148–80.

16. Don Cupitt, After God: The Future of Religion (London: SCM Press, 1997), 45.

17. Para uma introdução à teologia do “ser menos que perfeito” do Antigo Testamento, não obstante uma apresentação demasiado otimista completamente ignorante do lado negro de Javé, veja Terrence E. Fretheim, The Suffering of God: An Old Testament Perspective (OBT 14, Philadelphia: Fortress Press, 1984). Para 24 exemplos desse negligenciado lado negro, veja “The Will of God” no compêndio online The Christian Delusion: http://sites.google.com/site/thechristiandelusion/Home/the-will-of-god.

18. Sobre o quão suspeita é a semelhança entre os códigos legais de Javé no Antigo Testamento e os códigos feitos pelos habitantes humanos das culturas pagãs das vizinhanças quando o Antigo Testamento foi escrito, veja Hector Avalos, “Yahweh Is a Moral Monster,” em Loftus, The Christian Delusion, 209–36.

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Os Futuros dos Cristianismos

por David Eller

Algumas pessoas dizem que o teste definitivo para o Cristianismo virá se e quando descobrirmos vida inteligente em outro planeta: supostamente nesta ocasião o Cristianismo será desacreditado de uma vez por todas, já que os humanos não mais serão uma espécie ímpar no universo, a criação especial de seu Deus. Entretanto, as religiões mostraram-se altamente resilientes no passado e continuarão a sê-lo no futuro. Quando os cristãos encontraram-se pela primeira com os nativos ameríndios, eles foram compelidos a um árduo trabalho de reflexão e interpretação a fim de integrar aquelas sociedades na cosmovisão cristã (Seriam eles realmente humanos? Seriam descendentes de Adão e Eva? Teriam almas? Seriam capazes de religião?), mas os cristãos providenciaram o ajuste. Seja lá quando for que finalmente ocorra nosso encontro com extraterrestres, os cristãos serão igualmente engenhosos. Alguns concluirão que somente os humanos são piedosos e qualificados para serem cristãos, ao passo que os ET’s são animais ímpios, até mesmo estúpidos. Outros contemplarão de bom grado a noção de que seu Deus criou também os extraterrestres; alguns chegarão ao ponto de sugerir que Jesus morreu também pelos pecados dos seres do espaço longínquo, ou até mesmo que seu Deus pode ter tido um filho com alguma fêmea alienígena e providenciado a salvação exclusiva de sua espécie. E pelo menos algumas congregações ambiciosas enviarão missionários ao planeta distante, como no romance de ficção científica The Sparrow, de Mary Doria Russell (provavelmente com os mesmos resultados trágicos). Você pode estar certo de que se os nativos do espaço forem dotados de religião e cultura próprias, o Cristianismo hibridizará com elas e produzirá alguns cultos cristãos interplanetários.

Por agora, devemos restringir nossas especulações ao Planeta Terra, onde existem oportunidades e evidências mais do que suficientes para a evolução cristã. O cristianismo apareceu pela primeira vez no mundo como um pequeno movimento religioso no Oriente Médio, rapidamente ultrapassou as fronteiras para tornar-se uma religião de mistérios helenística, então foi perseguida e então transformada numa religião imperial pelo Império Romano, difundiu-se pela Europa e metamorfoseou-se numa religião européia, e subsequentemente foi levada para a América do Norte e todas as partes do mundo, onde assimilou feições locais e compatibilizou-se com estas características locais. Agora o Cristianismo é verdadeiramente uma religião mundial – ou uma associação livre de espécies religiosas com apenas uma vaga semelhança familiar entre elas. Não existe de fato tal coisa como o Cristianismo mas somente cristianismos, e cada vez mais deles, cada vez mais  diferentes uns dos outros e da espécie ancestral, o Movimento de Jesus – a cada dia.

O pior de tudo para os cristãos ocidentais contemporâneos, a globalização do Cristianismo não somente promete mudar o mundo como mudar também o Cristianismo. Atualmente, os vetustos e familiares cristianismos caucasianos/ocidentais estão cedendo espaço a cristianismos não-caucasianos e não ocidentais, que por sua vez estão retroalimentando as seitas e espécies ancestrais que as originaram: como Philip Jenkins coloca, “o Cristianismo como um todo está crescendo e se alterando de maneiras que tendem a passar despercebidas aos observadores ocidentais.”[36] Em 2002, Jenkins estimou que quase a metade da população da África era cristã, e por volta de 2025 mais da metade de todos os cristãos do mundo viverão na África ou na América Latina, com outros 17 porcento na Ásia; isso significaria que os cristãos europeus ou ocidentais, outrora o grupo dominante e os responsáveis pela aparência recente da religião (em todos os sentidos do termo), serão uma minoria distinta. Com efeito, pode ser que já existam mais anglicanos na Nigéria do que na Inglaterra.

Os efeitos desta mudança serão, e em certa medida já são, uma modificação profunda do Cristianismo, algo equivalente ao fim da era dos dinossauros e ao começo da era dos mamíferos. O autor católico Walbert Buhlmann chegou ao ponto de divisar uma nova Reforma, uma “Terceira Igreja” diferente de todos os cristianismos católicos, ortodoxos e protestantes que a antecederam (o que na verdade a tornaria uma quarta igreja, mas quem está contando?). Não somente o centro de gravidade dos cristianismos globais se deslocaria (algum dia pode haver um papa latino, asiático ou africano!), como os conteúdos dos cristianismos locais não-ocidentais são e continuarão a ser diferentes das cômodas variedades ocidentais e impactarão de volta sobre estas cômodas variedades ocidentais. Jenkins prevê:

A revolução ocorrendo na África, Ásia e na América Latina é muito mais completa e abraangente em suas implicações do que qualquer tendência em curso na religião norte-americana, seja católica ou protestante. Há uma tensão crescente entre o que se pode chamar de Reforma Setentrional liberal e a revolução religiosa meridional emergente, que pode ser equiparada à Contra-Reforma, como tornaram-se conhecidas as reformas católicas internas que ocorreram ao mesmo tempo que a Reforma Protestante… De qualquer maneira, não importa a terminologia, uma ruptura parece inevitável.[37]

Esta ruptura será não somente geográfica como também profundamente cultural: devido às tradições religiosas autóctones bem como a seu conservadorismo muita vezes exacerbado, “em escala mundial, o cristianismo está na verdade movendo-se em direção ao sobrenaturalismo e à neoortodoxia, e de diversas maneiras rumo à antiga visão de mundo expressa no Novo Testamento.”[38] Naturalmente, alguns conservadores religiosos americanos e ocidentais podem endossar esta tendência, mas mesmo eles descobrirão que o novo tradicionalismo cristão não é o tradicionalismo cristão de seus avós. Para os cristãos liberais e ortodoxos (e para os não-cristãos, é claro), estes desenvolvimentos são indesejáveis e até mesmo ameaçadores. Por exemplo, o arcebispo anglicano da Nigéria, Peter Jasper Akinola, não somente posicionou-se firmemente em seu país contra a homossexualidade e a ordenação de sacerdotes gays como também pressionou seus correligionários britânicos e americanos para barrar tal conduta, à qual ele tem se referido como “um ataque contra a Igreja de Deus – um ataque satânico contra a Igreja de Deus.”[39]

Quer figuras como Akinola representem ou não o futuro do Cristianismo – ou um futuro local de um cristianismo local – a lição final é a mesma. O Cristianismo não é nem nunca foi uma religião unificada com uma moralidade e um dogma monolíticos. O cristianismo, como todas as outras religiões e todas as outras culturas, é um organismo. Tão logo exemplares de seu primeiro ancestral sejam soltos no mundo, eles absorvem os nutrientes de seus ambientes, adaptam-se às condições locais, sofrem mutações, e hibridizam com outras espécies ao seu redor. As novas espécies resultantes destes acasalamentos se multiplicam, migrando para novos territórios assim como retroalimentando a população ancestral. O resultado final são diversas espécies localmente únicas, com algumas extinções pelo caminho, cada uma delas relacionada estreita ou longinquamente a sua ancestral, mas nenhuma perfeitamente idêntica a ela e nenhuma mais ou menos “verdadeira” do que qualquer outra. O ancestral “original” (o Movimento de Jesus) há muito desapareceu, nunca será revivido, e – assim como ocorre com qualquer árvore evolucionária – não era, em qualquer aspecto, mais autêntico, verdadeiro ou especial do que qualquer de seus descendentes.

Notas.

36. Philip Jenkins, “The Next Christianity,” Atlantic Monthly, October 2002: 54.

37. Ibid.

38. Ibid.

39. Philip Jenkins, “Defender of the Faith,” Atlantic Monthly, November 2003: 46.

(John W. Loftus, ed., Prometheus Books, 2010 )

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