O texto a seguir é continuação de A Tragédia Da Teologia: Como A Religião Causou E Prolongou A Idade Das Trevas – Parte 2: A Igreja Contra A Razão
por Andrew Bernstein
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Eis a tragédia da teologia em sua essência destilada: o emprego do gênio, do intelecto humano de alta potência, da dedução lógica profundamente rigorosa – ao estudo de nada. Durante a Idade Média, as grandes mentes com o potencial para transformar o mundo não estudaram o mundo; e assim, por quase um milênio, enquanto os seres humanos gritavam em agonia – cambaleando de fome, devorados pela lepra e pela peste, morrendo em massa no auge de seus vintes anos – os homens de espírito, que poderiam ter providenciado sua salvação terrena, os abandonaram em troca de fantasias transcendentes.
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O erro fundamental da explicação de Stark, a concepção errônea que subjaz à e origina sua interpretação equivocada da história, é sua compreensão equivocada da natureza da razão. Stark sustenta que o Catolicismo é intrinsecamente racional, e, portanto plenamente capaz de produzir um progresso tecnológico e científico significativo. Com efeito, sua visão é: como a Idade Média foi uma fonte de pensamento racional, ela deve ter sido um caldeirão borbulhante de progresso científico – e, consequentemente, afirmações de uma “Idade das Trevas” não seriam nada além de mitologia preconceituosa disseminada pelos inimigos culturais da religião.
No capítulo mais importante de seu livro, “As Bençãos de Uma Teologia Racional”, ele afirma que “os teólogos medievais depositaram na razão uma fé muitíssimo superior à que a maioria dos filósofos está disposta atualmente”. Foi a tentativa cristã de compreender a natureza de Deus que abriu “o precedente para uma teologia da dedução e da inferência…” As bases para o compromisso ocidental com a razão foi estabelecido porque “desde seus primórdios os teólogos do Cristianismo assumiram que a aplicação da razão pode produzir um entendimento cada vez mais preciso da vontade de Deus.”[26]
Para compreender o profundo erro cometido aqui, e compreender a verdadeira natureza da razão, devemos remeter aos fundamentos da filosofia.
A filosofia busca responder a cinco questões principais: Qual é a natureza da realidade? Como – por quais meios – os homens obtêm conhecimento dela? Qual é a natureza do homem? O que é o bem – e o que é o mal? Qual é a sociedade ideal? A religião, como uma espécie particular de filosofia, é uma tentativa de responder a estas questões.
No que tange à realidade, a essência da religião é a crença no dualismo metafísico – ou seja, em dois mundos: o universo natural e um outro mundo mais importante além dele, transcendente. Como não existe nenhum meio de acesso baseado na observação a um mundo “mais elevado”, segue-se que, em relação a conhecimentos importantes, a fé nas verdades infalíveis de um texto revelado fornece a base da cognição. A famosa máxima de Santo Agostinho de que a crença é o fundamento necessário do conhecimento é representativa da abordagem religiosa. Um estudioso escreve: “Em sua maturidade, Santo Agostinho utiliza sua razão sobretudo para compreender aquilo em que já acreditava.“[27] O home é um bípede metafísico: sua alma pertence ao domínio transcendente e seu corpo a este. Uma criatura caída manchada pelo pecado de seus ancestrais, sua carne terrena é propensa à luxúria e à tentação, às quais sua alma transcendente deve resistir piamente. O bem é colocar Deus no mais alto posto de seu panteão de valores, e obedecer cegamente a todos os seus mandamentos; o mal é desobedecer. Uma sociedade adequada é teocrática – baseada nos mandamentos divinos conforme interpretados por uma elite de espiritualmente iniciados: o clero.
A religião, como uma tentativa de responder a todas as questões filosóficas importantes da vida humana, é uma espécie de filosofia, gênero ao qual pertence. A religião é um sistema filosófico baseado na fé, não baseado na razão. A religião pode ser (grosseiramente) definida como um sistema filosófico baseado na fé, não na razão, defendendo a existência e a supremacia de um Deus transcendente que exige a obediência incondicional dos indivíduos humanos pecaminosos por Ele criados e governados. A religião foi o arcabouço filosófico dominante, melhor dizendo, exclusivo, que vigorou no primeiro período da Idade Média, do século VI ao século XII aproximadamente.
Santo Agostinho (354-430) foi a principal influência e porta-voz intelectual do período. Sua filosofia, embora complexa em alguns aspectos, é, em termos essenciais, bastante simples: o conhecimento requer a aceitação da autoridade – Deus em primeiro lugar, a Igreja em seguida. A razão é, na melhor das hipóteses, uma faculdade suplementar, talvez capaz de explicar o que é previamente acreditado, talvez não. Apenas Adão possuiu livre-arbítrio. Seus descendentes são grotesca e irremediavelmente pecaminosos, incapazes de salvar a si próprios; todos merecem, e a maioria receberá, apenas a danação; apenas um seleto grupo será salvo por um rígido processo de predestinação. O pecado é transmitido pelo intercurso sexual, que é maligno e deve ser evitado exceto para propósitos procriativos – e mesmo então, não deve ser desfrutado. Embora a criação de Deus seja intrinsecamente ordenada de acordo com leis, milagres – violações das leis da natureza – ocorrem repetidamente; numerosos homens foram levantados dos mortos, por exemplo. O orgulho é um pecado mortal, sobretudo o orgulho intelectual – o comprometimento com o uso das próprias capacidades racionais para bisbilhotar os mistérios do universo criado e mantido por Deus. Os pensadores gregos foram condenados por seus “esforços para descobrir as leis secretas da natureza”. A ciência foi condenada como a “luxúria dos olhos”.[28]
Um sistema filosófico como esse está em conflito profundo com as bases intelectuais da ciência. Uma condição de possibilidade para a ciência é a visão de que a natureza é fascinante, importante, de um valor supremo – uma convicção logicamente congruente com o entendimento secular da natureza como a realidade. Esta visão é incompatível com a crença cristã de que este mundo é corrupto e deficiente, ao passo que o ideal encontra-se além do alcance da compreensão do homem terreno. A ciência começa com observações dos fatos, não com pronunciamentos infalíveis de um texto revelado. Além disso, a ciência (sobretudo seus ramos aplicados e tecnológicos) apoia-se na premissa de que os seres racionais são (ao menos potencialmente) bons, que a vida do homem sobre a terra é valiosa, que o conhecimento é tanto alcançável como desejável, e que os homens são merecedores de padrões de vida elevados. A ideia de que o homem deveria buscar o desenvolvimento científico é incompatível com a hipótese de que os homens são criaturas, segundo a eloquência de Santo Agostinho, “repulsivas… deformadas… sórdidas… maculadas… e ulcerosas”, inexoravelmente (e compreensivelmente) condenadas à perdição por uma divindade ultrajada.[29] Stark convenientemente ignora estes pontos.
Por que a Igreja medieval perseguiu os livre-pensadores que ousaram desafiar a ortodoxia? Porque, como um exemplo histórico perfeito de religião em estado puro, ela foi necessariamente uma instituição de puro autoritarismo. Ela concebia a si própria como o intermediário entre Deus e o homem desesperadamente caído, que não poderia aspirar à ascensão sem sua intercessão. Sua ortodoxia era literalmente a palavra de Deus; qualquer desvio era uma afronta ao representante de Deus sobre a Terra, portanto ao próprio Deus – e era, consequentemente, profundamente intolerável. Onde os homens não possuem nenhuma capacidade para melhorar seu quinhão terreno – muito menos salvarem-se a si próprios – e são completamente dependentes da Igreja de Deus, qualquer crítica a ela é um ataque à divindade e solapa a única instituição capaz de trazer aos homens a redenção. Tolerar a independência de pensamento, dada a essência desprezível dos homens, é tolerar a inevitável rebelião espiritual. Para que o homem seja salvo de sua natureza irremediavelmente pecaminosa, sua mente deve ser agrilhoada.
Santo Agostinho, filosoficamente um cristão neo-platonista, glorificou o núcleo da visão de mundo platônico-cristã: o dualismo metafísico, a supremacia de um mundo transcendente, a estatura reduzida deste, a ignóbil raiz da existência corpórea do homem. Tais fundamentos conduziram necessariamente à elevação da teologia (o estudo de Deus) como a disciplina cognitiva dominante, e a depreciação da ciência e da filosofia secular (o estudo da natureza e da vida terrena do homem).
Aqui reside a causa primordial da tragédia que a Idade Média representa – e do erro fundamental de Stark em atribuir à teologia cristã o compromisso com o pensamento racional. A razão é uma metodologia baseada na observação. Ela não começa com crenças já aceitas sobre bases preconceituosas, e então prossegue para “provar” sua veracidade. Seja estudando o homem, o funcionamento interno de sua mente, os germes, pedras, insetos, átomos, os limites do espaço intergaláctico, ou qualquer outra coisa mais, a razão prossegue a partir da observação sensorial por um método de pensamento lógico que incorpora a famosa Lei Da Não-Contradição de Aristóteles: nenhum existente pode ser tanto x e não-x ao mesmo tempo e no mesmo aspecto.
Mas não há, e nem pode haver, nenhuma experiência sensorial de uma dimensão além desta. Mais especificamente, não existem provas das quais inferir que a existência e as atividades dos corpos materiais resultam de uma causa imaterial. (Como poderia o espírito ou a consciência existir na ausência de um meio corpóreo, por exemplo, orgãos dos sentidos, um sistema nervoso e um cérebro? Como poderia tal fantasma desprovido de corpo criar, controlar ou afetar remotamente os seres corpóreos?) Teólogos e religionistas em geral começam com uma premissa fantasiosa e então vão adiante aplicando uma lógica formal rigorosa para descortinar suas implicações. O próprio Stark assinala que “a teologia consiste do raciocínio formal sobre Deus.” Isto é de uma exatidão admirável. Teólogos, começando com uma criação “conjurada” por suas próprias mentes, analisam as características dessa criação pela aplicação rigorosa dos princípios da lógica formal– ou seja, dedutiva.[30]
Mas o método da razão, adequadamente compreendido, é, enfaticamente, não o emprego da lógica formal para explicar as consequências implicadas por premissas arbitrárias. O raciocínio consiste, primeiro e acima de tudo, na observação e na indução a partir da observação. A lógica dedutiva fornece conhecimento somente quando aplicada a premissas radicadas, em última instância, em fatos observáveis.
Na história da filosofia, o termo ‘racionalismo’ possui dois significados distintos. Num sentido, ele significa um compromisso inviolável com o pensamento racional em oposição a qualquer rejeição irracionalista da mente. Neste sentido, Aristóteles e Ayn Rand são expoentes do racionalismo, contrários a qualquer forma de irrazão, incluindo a fé. Num sentido mais estreito, contudo, o racionalismo contrasta com o empirismo no que se refere à falsa dicotomia entre o compromisso com a assim chamada razão “pura” (isto é, a razão desvinculada da realidade perceptual) e uma confiança exclusiva na experiência dos sentidos (isto é, observações sem inferências subsequentes). O racionalismo, neste sentido, é um compromisso com a razão interpretado como dedução lógica a partir de pontos de partida não-observáveis, e uma desconfiança em relação à experiência sensorial (por exemplo, o método de Descartes). O empirismo, de acordo com esta falsa dicotomia, é uma crença em que a experiência dos sentidos fornece conhecimentos factuais, mas qualquer inferência além da observação não passa de manipulação de palavras ou símbolos verbais (por exemplo, a abordagem de Hume). Tanto Aristóteles como Ayn Rand rejeitam esta falsa dicotomia entre a razão e a experiência dos sentidos; nenhum deles é um racionalista neste sentido estreito.
A teologia é a mais pura expressão do racionalismo no sentido de aplicar a dedução lógica à premissas sem fundamentos em fatos observáveis – dedução sem referência à realidade. O assim chamado “raciocínio” envolvido aqui é puramente formal, infundado de uma perspectiva oservacional, desprovido de fatos, desvinculado da realidade. Tomás de Aquino, por exemplo, foi o mais destacado especialista de todos os tempos num campo conhecido como “angeologia”. Ninguém poderia rivalizar seu “conhecimento” sobre os anjos, e ele dedicou muito mais espaço em sua monumental Summa Theologica a eles do que às ciências naturais.
Eis a tragédia da teologia em sua essência destilada: o emprego do gênio, do intelecto humano de alta potência, da dedução lógica profundamente rigorosa – ao estudo de nada. Durante a Idade Média, as grandes mentes com o potencial para transformar o mundo não estudaram o mundo; e assim, por quase um milênio, enquanto os seres humanos gritavam em agonia – cambaleando de fome, devorados pela lepra e pela peste, morrendo em massa no auge de seus vintes anos – os homens de espírito, que poderiam ter providenciado sua salvação terrena, os abandonaram em troca de fantasias transcendentes. Mais uma vez, estes fatos filosóficos fundamentais reduzem a pó o argumento de Stark, e no entanto ele simplesmente os ignora.
A religião enquanto um campo de estudos é, em seus melhores momentos, racionalismo – dedução aplicada a premissas fantasiosas – não uma racionalidade genuína. (Em seus piores momentos, ela repudia até mesmo esta conexão tênue com a lógica em favor da adesão à fé autêntica.) O próprio Stark fornece um exemplo perfeito deste método falacioso. Embora seja amplamente conhecido pelos estudiosos que Jesus teve pelo menos um irmão, Tiago, um líder da igreja de Jerusalém após a morte de Cristo, Stark afirma, como um exemplo notável do “raciocínio” cristão, que “Tomás de Aquino analisou a doutrina do nascimento virginal de Cristo para deduzir que Maria não teve outros filhos.” Em outras palavras, a abordagem religiosa à “verdade” é ignorar os fatos se eles entram em conflito com deduções lógicas extraídas de premissas fidelistas bizarras. Portanto, mesmo um gênio monumental como Tomás de Aquino – um aristotélico, um pensador que mantinha um grande respeito pelos fatos e pela observação, e o maior filósofo cristão de todos os tempos – não ficou imune à infecção cognitiva pela metodologia religiosa.[31]
Pela própria natureza de sua metafísica, a religião é incapaz de promover, encorajar e defender a razão. A religião é compatível somente com deduções racionalistas extraídas de premissas baseadas na fé. E, na Idade Média, se as deduções de alguém colidissem com a ortodoxia, este corria o sério risco de ser punido por heresia. A religião e a racionalidade são antípodas primordiais. (Há um campo da religião natural que emprega a observação na tentativa de provar a existência de Deus; mas ela deriva sua crenças originais da fé, executa saltos gratuitos no mundo transcendente, é facilmente refutada pelos filósofos racionais e, consequentemente, sua validade é debatida acaloradamente mesmo pelos teólogos.)
A racionalidade inclui – na verdade, começa com – um respeito incondicional pelos fatos. Como Jones assinala, porém, a identificação dos fatos, de importância crucial para Aristóteles e os secularistas contemporâneos, foi considerada de pouco valor pelos homens do período medieval. Para eles, as exigências da salvação eram esmagadoramente mais importantes do que os fatos da natureza. “Em relação a coisas não concernentes à fé – sobre as propriedades das safiras ou sobre a cura para a lepra, por exemplo – não fazia muita diferença se se estava ou não errado.”[32]
O maior filósofo da história, o homem cujo método incorporou a racionalidade baseada na observação acima de qualquer coisa, foi Aristóteles. Apesar de seus erros, as realizações extraordinárias de Aristóteles aumentaram significativamente nosso entendimento da natureza, nossos métodos para determinar suas propriedades, e, portanto, nossa capacidade de nos engajarmos na ciência. É impossível reconhecer a falsidade criminosa da alegação de Stark de que o Catolicismo medieval, e não a cultura grega, foi o maior responsável pelo compromisso ocidental com a razão sem levarmos em consideração a obra e a influência de Aristóteles.
26. Rodney Stark, The Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and Western Success (New York: Random House, 2005), pp. 8–9.
27. Adrian Hastings, “Reason,” The Oxford Companion to Christian Thought (Oxford: Oxford University Press, 2000). Citado em Charles Freeman, The Closing of the Western Mind: The Rise of Faith and the Fall of Reason (New York: Vintage Books, 2005), pp. 286–287.
28. W. T. Jones, A History of Western Philosophy, vol. 2, The Medieval Mind (New York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1969), pp. 72–138.
29. Santo Agostinho, Confessions, tradução de J. G. Pilkington (Liveright, NY, 1943), VIII, pp. vii, 16. Citado em W. T. Jones, A History of Western Philosophy, vol. 2, The Medieval Mind (New York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1969), p. 106.
30. Rodney Stark, The Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and Western Success (New York: Random House, 2005), p. 5.
31. Ibid., p.6. L. Michael White, From Jesus to Christianity (San Francisco: HarperSanFrancisco, 2004), pp. 149, 219, 229–230, 277.
32. W. T. Jones, A History of Western Philosophy, vol. 2, The Medieval Mind (New York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1969), pp. 169–170.