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Posts Tagged ‘Kant’

por Roger Scruton

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ScrutonRoger Scruton nasceu na Inglaterra e é escritor, filósofo e jornalista. Sua especialização concentra-se na área de estética, com atenção especial para a música e a arquitetura. Escreve frequentemente na imprensa sobre questões políticas e culturais e é atualmente pesquisador do Institute for the Psychological Sciences.

No Brasil, a editora É Realizações já publicou os livros Pensadores da Nova Esquerda, Beleza e Coração Devotado À Morte.

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À semelhança de vários outros filósofos ‘analíticos’, nutro fortes reservas quanto à fenomenologia. Mais especificamente, desconfio do método ‘cartesiano’ de Husserl, que assume que a experiência deve ser descrita do ponto de vista da primeira pessoa. Ao mesmo tempo, sou imensamente devedor de outra ideia de importância capital para a fenomenologia, e cujo reconhecimento pelos praticantes da ‘análise conceitual’ tardou a ocorrer. A ideia é mais antiga que a fenomenologia – talvez tão antiga quanto Aristóteles, certamente tão antiga quanto Kant. De acordo com esta noção, devemos distinguir o mundo da experiência humana do mundo da observação científica. No primeiro, existimos como agentes no comando de nosso destino e relacionamo-nos uns aos outros por meio de concepções estranhas à visão científica do universo. No segundo, existimos como organismos impelidos por uma causalidade arcana e relacionados uns aos outros pelas mesmas leis do movimento que governam todas as outras coisas. Kant descreveu o primeiro mundo como ‘transcendental’, o segundo como ‘empírico’, e mapeou brilhantemente duas concepções exaustivas, mutuamente incompatíveis e, para ele, igualmente impossíveis, da relação que estes mundos mantém entre si. Em uma concepção, o mundo transcendental é um domínio separado do mundo empírico, de modo que os objetos que pertencem a um não são encontrados no outro. Na outra concepção, não estamos lidando com dois mundos distintos, mas com duas maneiras separadas de olhar para o mesmo material: podemos vê-lo ou da perspectiva ‘transcendental’ do agente humano ou da perspectiva ‘empírica’ do observador científico. Acredito que devemos distinguir, não dois mundos, mas duas maneiras de compreender o mundo, e em particular dois empreendimentos conceituais separados pelos quais nosso entendimento é constituído.

O mundo não é apenas mero objeto de curiosidade científica. Ele é dócil aos nossos propósitos: por toda parte encontramos ensejo para a ação e os meios pelos quais realizá-la. O mundo também é diversificado, apresentando objetos de desejo variados e obstáculos díspares à nossa vontade. Na qualidade de seres práticos, desenvolvemos instintivamente categorias que registram e facilitam nosso comércio com as imediações, e estas categorias exibem a dupla chancela do propósito humano e da variedade material – correspondendo em parte aos nossos usos e em parte à condição natural dos objetos descritos. Algumas categorias não fazem mais do que registrar a finalidade para a qual um objeto pode ser empregado: categorias como ‘mesa’, ‘balanço’ e ‘abrigo’. Outros descrevem algum traço recorrente do meio, e talvez ao mesmo tempo postulem uma explanação de sua aparência unificada: categorias como ‘animal’, ‘vegetal’ e ‘rocha’. Outras categorias parecem encaixar-se em ambas as classes, combinando significância funcional e poder explanatório. Quando descrevemos algo como duro, situamos este objeto na trama dos propósitos humanos – trata-se de algo que resiste aos nossos esforços para transformá-lo, e talvez também nos machuque. Ao mesmo tempo, atribuímos uma característica física, uma constituição que o relaciona a uma pluralidade de substâncias aparentadas no mundo da natureza.

Nos últimos anos, os filósofos tem prestado muita atenção à existência destes tipos contrastantes de categorias, e em particular à divisão entre tipos naturais e funcionais.[8] Considerando nossa existência dual como seres ativos e contemplativos, é natural que lancemos mão dos dois tipos de conceitos e que hajam tantas noções situadas na zona cinzenta ocupada por ‘duro’ e ‘macio’. Buscamos tanto compreender o mundo como alterá-lo, e nos empenhamos em ser tão bem sucedidos quanto possível em ambas as empreitadas. Para tanto, nos municiamos com categorias permeáveis à explanação (tipos naturais) e categorias permeáveis a propósitos (tipos funcionais). Mas nossa relação com o mundo é vastamente mais complexa do que isso sugere: além de propósitos e conhecimentos, temos experiências, valores, emoções e crenças religiosas. Estes também ditam suas próprias trajetórias conceituais, suas tentativas separadas de ordenar o mundo como um objeto de nossos interesses.

A classificação pode ser comparada à atividade de um açougueiro, na qual um objeto é dividido, às vezes de acordo com sua natureza, às vezes em conflito com ela. O açougueiro inglês, motivado por um zeloso desprezo pelo cadáver à sua frente, e também pelo homem que irá comê-lo, retalha barbaramente a criatura em amontoados toscos, tendo a recomendá-lo pouco mais do que uma tradição de honestidade. Uma ‘peça’ inglesa pode consistir de uma tira de músculo dorsal, um pedaço de vértebra, uma fatia de rim, alguma pele, algum tutano, alguns pelos e o sinal indelével com que a Fazenda Jones marca seus novilhos. Eventualmente, como no caso da porção de rim, a combinação resultante de sabores origina um interessante ‘tipo gustativo’. Mas isto não fazia parte da intenção. O açougueiro francês, movido por um respeito autóctone por les nourritures terrestres, empenha-se em separar cada textura e cada sabor natural de seus concorrentes, removendo do bife todos os fragmentos de ossos, gordura e vísceras, e a pele que o envolve. Ele se empenha mais do que  seu colega inglês em dividir a natureza em seus pontos de articulação; mas sua lealdade à natureza resulta de interesses que não mantém nenhuma relação necessária com as leis da natureza. Ele ainda não se compara ao anatomista que, renunciando a todo e qualquer interesse pelas aparências, explora os segredos da natureza na ordem em que a natureza os concebeu. Para o anatomista, a verdadeira ordem da carcaça é aquela que explica não apenas seu sabor como também sua estrutura, seus movimentos enquanto vivia, seu vir a ser e seu perecer.

Tanto na classificação como na arte de cortar carnes, muitas vezes estamos mais interessados na relação que os objetos mantém conosco do que em sua causalidade e constituição. Pois procuramos não somente pela causa dos eventos, mas também por seu significado – mesmo quando eles não tem significado algum. Por exemplo, agrupamos as estrelas em constelações de acordo com nossas próprias ficções, e ao fazê-lo cometemos uma violência astronômica. Para o astrônomo nosso conceito de uma ‘constelação’ não exibe nada além das emoções supersticiosas daqueles que a divisaram pela primeira vez. Para o astrólogo, tal conceito comunica a mais profunda iluminação quanto ao mistério das coisas. Para o resto de nós, esta classificação é um registro de nossa familiaridade com o mundo, um tributo à face humana que o reveste. Thomas Hardy desperta em nós uma imensa tristeza quando escreve, a respeito do jovem caixeiro-viajante Hodge, morto na Guerra dos Bôeres, que ele ‘nunca conheceu…/o significado do Grande Karoo‘: morrer em imediações opacas à nossa busca por significado é morrer desconsolado. Portanto, a desolação das ‘constelações alienígenas’ que ‘põem-se/a cada aurora atrás da montanha‘.

Por ora, deixemos de lado as constelações e ocupemo-nos de uma categoria derivada de nosso interesse pela beleza que nos será de maior utilidade: a categoria do ornamental. Consideremos então a classe dos ‘mármores ornamentais’. O propósito desta classificação – de grande importância para escultores, construtores e arquitetos conscienciosos – é assimilar rochas que são objetos de uma preocupação estética singular. Um mármore ornamental pode ser polido; ele possui uma textura, uma cor, uma profundidade e uma translucidez superficial que o tornam recomendável para nossos propósitos decorativos. Sob esta classificação caem o ônix, o porfírio e o próprio mármore. Cientificamente falando, a classificação não faz o menor sentido. Pois o ônix é um óxido, o porfírio um silicato, o mármore um carbonato, ao passo que a pedra de cal – um isótopo do mármore – é terminantemente excluída desta classe. Uma ciência das pedras deve almejar substituir todas as classificações desta natureza – cuja subserviência aos propósitos humanos as priva de um poder explanatório cabal – por outras classificações mais profundas, projetadas para capturar similaridades reais entre os objetos que elas subsomem. Em outras palavras, a ciência busca descobrir tipos naturais. Pois somente uma divisão do mundo em tipos naturais pode nos suprir com os meios para penetrar por debaixo das aparências até alcançarmos as ‘leis do movimento’ subjacentes que as explicam.

Uma ciência das rochas, portanto, classificaria igualmente o mármore e a pedra de cal como formas cristalinas diferentes do carbonato de cálcio geradas pela decomposição sob pressão de organismos biológicos mortos. Tal ciência provavelmente não encontraria uma explicação única para o fato de que a aparência e a utilidade do mármore serem tão estreitamente próximas da aparência e da utilidade do ônix e do porfírio. Logo, certamente não conteria nenhuma classificação que corresponda à nossa ideia de um mármore ornamental. Ao contrário, é provável que elimine todas estas classificações, que tendem a se dissolver à medida em escavamos por debaixo da superfície da experiência humana até alcançarmos a ordem física subjacente que a explica e sustenta.

Alguns conceitos, portanto, incluindo os conceitos das ciências naturais, possuem uma função explanatória. Tais conceitos não somente  fornecem os termos nos quais as explanações são formuladas; eles são explanatórios neles mesmos, no sentido de que subsumir um objeto sob eles já é oferecer uma explanação de sua natureza empiricamente determinável.[9] Outros conceitos, incluindo diversos conceitos de senso comum e de entendimento intuitivo, não são (pelo menos não a princípio) explanatórios. Sua função é recortar o mundo de acordo com nossos interesses, assinalar possibilidades de ação, emoção e experiência que podem muito bem ser frustradas por uma atenção excessiva à ordem subjacente das coisas. Conceitos deste tipo muitas vezes tendem a colapsar sob a pressão da inovação científica. Sentimos esta pressão de várias maneiras; ela se manifesta mais imediatamente como um tipo de instabilidade em nossas descrições ordinárias. É como se mesas e cadeiras não fossem realmente como as descrevemos. Elas não são realmente coloridas, não são realmente sólidas, e assim por diante. Pois a melhor explanação destas aparências indeléveis não faz menção alguma a cores (quando muito falam da experiência da cor), e postula em lugar da mesa ‘sólida’ um aglomerado descontínuo de moléculas separadas umas das outras por uma distância maior do que seu próprio diâmetro.

Não precisamos investigar aqui o que a palavra ‘realmente’ significa nos lábios de quem diz que nenhuma mesa é realmente colorida. O que importa é o contraste entre a ‘fragilidade’ de nossas descrições ordinárias e a solidez ‘pétrea’ das explanações que parecem ameaçá-las, e que, quando muito, apenas levam a explanações melhores do que elas próprias. Ao mesmo tempo, não podemos abrir mão das descrições do pensamento e da ação ordinários. Sem elas, somos privados de um instrumento essencial para a compreensão de nosso mundo. A classificação de rochas como mármores ornamentais indica não uma similaridade estrutural entre as substâncias a que são aplicadas, mas uma similaridade parcialmente fenomênica, parcialmente funcional. E o propósito de assinalar esta similaridade é encapsular a finalidade comum a que estes objetos podem servir numa classificação.

Como nosso exemplo mostra, classificações relativas a finalidades (classificação em termos de ‘tipos funcionais’) não são o único exemplo de descrições ‘frágeis’ geradas pela vida humana diária. Há também classificações relativas a experiências sensoriais imediatas – o tipo de classificação que registra ‘qualidade secundárias’.[10] E há exemplos mais elusivos: classificações relativas a emoções (o temível, o amável, o repugnante), e classificações relativas ao interesse estético (o ornamental, o sereno, o elegante e o harmonioso). Tais classificações registram não as variedades de objetos materiais, mas as variedades da ‘intencionalidade’ humana – tomando emprestado aos fenomenólogos uma tecnicalidade útil.

Por ‘intencionalidade’ eu quero dizer a qualidade de ‘referência exterior’ que está contida na consciência humana: a qualidade de apontar e delinear um objeto de pensamento. A ‘consciência do mundo’ que jaz no coração de minha experiência, e que parece constantemente projetar meus pensamentos sobre uma realidade maior do que eu, existe em várias formas: crença, percepção, imaginação, emoção e desejo. Cada um destes estados mentais demarca um espaço, por assim dizer, diante de mim – uma lacuna na qual um objeto pode ser inserido. Meu medo é medo de algo, minha percepção, percepção de algo, e assim por diante. Às vezes eu próprio sou o objeto de meus pensamentos; entretanto, o mais comum é que o objeto seja alguma outra coisa que não eu mesmo, algo que pertence ao ‘mundo ao redor’ de minha experiência.

Descreverei este ‘mundo ao redor’ como o Lebenswelt (‘mundo da vida’), usando um termo popular entre fenomenólogos, embora não exclusivo deles.[11] O Lebenswelt não é um mundo separado do mundo da ciência natural, mas um mundo descrito de maneira diferente – descrito com os conceitos que designam os objetos intencionais da experiência humana. A intencionalidade implica que minha consciência é também uma forma de representação: minha consciência mostra-me um mundo e também me situa em relação a ele. Mas nem todas as formas de representação são transparentes. As descrições empregadas pela ciência supõem que a natureza dos objetos identificados por elas deve ser descoberta. A representação identifica um objeto: mas sua natureza deve ser determinada por meio de uma investigação. O mesmo não é verdade do Lebenswelt, cujos objetos são identificados por descrições que são, ou pretendem ser, transparentes para nossas experiências e propósitos. Os objetos do Lebenswelt são concebidos sob classificações que refletem nosso próprio interesse prático e contemplativo por eles. Estas classificações tentam dividir o mundo segundo as exigências da razão teórica e prática cotidiana.[12] As classificações que definem os ‘tipos fenomenológicos’ do Lebenswelt são apenas parcialmente responsivas ao empreendimento da predição. Elas às vezes se desintegram sob o impacto da explanação científica, não porque estejam necessariamente em conflito com a visão de mundo científica, mas porque elas não são capazes de resistir ao ponto de vista do observador curioso que olha não para os interesses das pessoas, mas para estrutura da realidade subjacente.

Ao mesmo tempo, a ciência não fornece nenhum substituto para os conceitos que organizam e orientam nossa experiência cotidiana. Um escultor munido de teorias químicas, geológicas e cristalográficas, mas que não disponha do conceito (estranho a estas ciências) de um mármore ornamental, não terá aquele senso imediato de similaridade que habilita seu colega com menos instrução formal a relacionar espontaneamente o ônix ao porfírio. Suas próprias percepções serão diferentes, pois estarão desprovidas de um conceito em cujos termos tais rochas seriam vistas de maneira diferente.

Que a penetração científica sob a superfície das coisas pode tornar a superfície ininteligível – ou pelo menos inteligível lenta e dolorosamente, e com uma hesitação que frustra as necessidades imediatas da ação humana, é uma tese controversa. Enquanto agentes, pertencemos à superfície do mundo e entramos em relação imediata com ele. Os conceitos por meio dos quais o representamos estabelecem uma conexão vital com a realidade, e sem esta conexão a ação apropriada e a resposta apropriada podem não emergir com a rapidez e a competência imprescindíveis para assegurar nossa sobrevivência e nossa felicidade. Não podemos substituir nossos conceitos ordinários mais básicos por qualquer outra coisa melhor do que eles, pois eles evoluíram exatamente sob a pressão da condição humana e em resposta às necessidades das gerações passadas. Qualquer ‘reconstrução racional’ – não importa o quão fiel à verdade que subjaz às coisas e às exigências da objetividade científica – arrisca-se a danificar a conexão vital que liga nossa resposta ao mundo, e o mundo à nossa resposta, numa cadeia de competência humana espontânea.[13]

Não obstante, vários de nossos conceitos ordinários tremulam precariamente sob o impacto do pensamento científico, – o conceito de agente humano, ou pessoa, é o mais importante deles.  É o dever da filosofia, assim como a necessidade da religião, sustentar e validar tais conceitos e a intencionalidade humana à qual eles conferem a direção e o sentido. Estamos bastante familiarizados com os perigos associados à visão científica da condição humana – a visão que nos representa, talvez verdadeiramente, como organismos complexos fustigados pelas inexoráveis engrenagens  de uma causalidade sobre a qual não exercemos o menor controle. Mas é importante não nos precipitarmos com os remédios, não buscarmos nem negar as verdades da ciência – refugiando-nos, por exemplo, em alguma metafísica ilusória da liberdade humana – ou correr impetuosamente para o santuário protetor da fé religiosa, a fim de prover algum respaldo dogmático para concepções que na verdade não passam de criações humanas, e cujo restauração é uma obrigação exclusivamente humana. Precisamos mostrar detalhadamente que  nossas descrições espontâneas do Lebenswelt – descrições que fazem da agência humana o elemento mais importante do mundo que nos rodeia – não são desalojadas pelas verdades da ciência, que elas tem sua própria verdade que, por não competir com o empreendimento da explanação última, não é nem um pouco fragilizada pelas explanações que à primeira vista parecem estar em conflito com ela. A ciência alienou-nos do mundo ao nos fazer desconfiar dos conceitos por meio dos quais respondemos a ele. A filosofia é a arte de olhar pela segunda vez, e sobre seus ombros repousa a tarefa monumental de restituir a seu lugar de direito os conceitos que empregamos na descrição do Lebenswelt.

O conceito crucial para qualquer esforço filosófico tentar fornecer a base para o entendimento humano é o conceito de pessoa. É uma tese filosófica bastante conhecida – expressa em incontáveis idiomas e em incontáveis tons de voz – que os seres humanos podem ser descritos de duas maneiras contrastantes (e, para alguns, conflituosas): como organismos sujeitos às leis da natureza, e como pessoas que às vezes se sujeitam e às vezes se rebelam contra a lei moral. Pessoas são agentes morais; suas ações possuem não somente causas, como também razões. Elas tomam decisões quanto ao futuro, de modo que tem, além de desejos, intenções. Elas nem sempre se permitem ser levadas por seus impulsos, mas ocasionalmente resistem a eles e os subjugam. Em todas as circunstâncias o agente moral é tanto passivo como ativo, e atua como uma espécie de legislador entre suas próprias emoções. Ele também é objeto não apenas de afeição e amor (que podemos estender a toda a natureza), mas também de elogios e de censuras, de raiva e de estima. Em todas estas distinções intuitivas – entre razão e causa, intenção e desejo, ação e paixão, estima e afeição – encontramos aspectos da distinção vital que subjaz a elas e à clarificação daquilo a que Kant devotou algumas de suas mais notáveis páginas: a distinção entre pessoas e coisas. Somente uma pessoa tem direitos, deveres e obrigações; somente uma pessoa age por razões, em acréscimo às causas; somente uma pessoa merece nosso elogio, nossa crítica ou nossa raiva. E é como pessoas que percebemos e atuamos uns em relação aos outros, mediando todas as nossas respostas mútuas com o conceito obscuro, porém indispensável, de agente moral livre.

Não acredito que podemos aceitar a magnífica teoria de Kant, que atribui às pessoas um núcleo metafísico, o ‘ego transcendental’, situado além da natureza e eternamente livre de suas limitações. Não obstante, sua teoria é uma derivação convincente de iluminações sobre a agência humana que não devemos rejeitar. Defendo o que é defensável no ponto de vista de Kant, enquanto evito a intolerável metafísica que ele e, em sua esteira, Husserl, Heidegger, Patocka e vários outros, transformaram na tese central de uma teoria do homem. Ao mesmo tempo, rejeito qualquer tentativa de oferecer uma teoria do homem em termos meramente científicos: em termos da ‘melhor explanação’ do que somos. Pois somos meras aparências, e a melhor explanação de nossa natureza provavelmente não fará uso do conceito de pessoa, ainda que esse conceito defina o que somos para os outros e para nós mesmos.

Eu contrasto dois modos de entendimento: o entendimento científico, que visa explicar o mundo, e o ‘entendimento intencional’, como eu o chamo, que visa descrever, criticar e justificar o Lebenswelt. O segundo é uma tentativa para compreender o mundo em termos dos conceitos por meio dos quais o experienciamos e agimos sobre ele: estes conceitos identificam o ‘objeto intencional’ de nossos estados mentais ordinários. Por conseguinte, um entendimento intencional preenche o mundo com os significados implícitos em nossas emoções e em nossos objetivos. A ideia de tal entendimento é um conhecido donnée da sociologia kantiana, subjacente à visão de que o mundo social em que agimos deve ser compreendido de maneira diferente daquela pela qual compreendemos o mundo do observador neutro, por meio de um ato de Verstehen.[14] Não somente este ‘entendimento intencional’ nos é indispensável enquanto agentes racionais; ele também pode ser insubstituível por qualquer entendimento derivado das ciências naturais. O entendimento intencional preocupa-se não tanto em explicar o mundo como em estar ‘em casa’ nele, reconhecendo ocasiões para a ação, os objetos de simpatia e os locais de repouso.

Nosso entendimento intencional deve inevitavelmente conter elementos largamente explanatórios – pois você não pode ser bem sucedido ao agir sem um sistema de crenças. E possuir uma crença é estar comprometido com a busca da verdade, e consequentemente, com a construção de teorias científicas, e com a subsequente classificação do mundo em termos de tipos naturais. No entanto, não há nenhuma razão para supor que tal classificação fornecerá fundamentos suficientes para nossa conduta racional, assim como não há razão para pensar que a classificação química das rochas oferecerá fundamentos para a atividade do escultor. Mais especificamente, esta visão científica e neutra das coisas pode ser bastante apropriada para descrever os meios de realizar nossos objetivos, mas deve permanecer para sempre incapaz de descrever os fins a que aspiramos. Os fins da vida são também os significados de nossas experiências pessoais, e o mundo da ciência é um mundo desprovido de significados.[15]

Considere as relações humanas mais elementares. As pessoas individuais que encontro são membros de um tipo natural – o tipo ‘ser humano’ – e se comportam de acordo com as leis deste tipo. No entanto, eu subsumo as pessoas e suas ações sob conceitos que não figuram na formulação destas leis. Com efeito, a alucinação destas leis (pois assim elas devem ser descritas em nosso presente estado de ignorância) frequentemente parece perturbar a interação genuinamente humana entre as pessoas. Se, para mim, os fatos fundamentais sobre John são sua constituição biológica, sua essência científica, sua estrutura neurológica, então será difícil para mim responder a ele com afeição, raiva, amor, desprezo ou pesar. Assim descrito ele se torna misterioso para mim, uma vez que essas classificações não capturam o objeto intencional da emoção interpessoal.

Colocando em termos gerais: o esforço científico para penetrar nas ‘profundezas’ dos assuntos humanos é acompanhado quase que universalmente por uma perda da resposta à ‘superfície’. Não obstante, é na superfície que vivemos e agimos: é lá que somos criados, como aparências complexas sustentadas pela interação social que nós, como aparências, também criamos. O ‘mistério’ com o qual a pessoa humana é ocultada do campo de visão do neurofisiologista é exatamente o mesmo que esconde a história humana do determinista marxiano e a moralidade humana do sociobiólogo. Estas ciências fascinam por seu apelo desmistificador; mas elas terminam por mistificar mais profundamente os fenômenos que tencionam explicar, justamente ao criar condições que ensejam o esquecimento do propósito de explica-los. (Nas palavras de Wittgenstein, ‘o que está oculto não nos é de nenhum interesse.’)

No entanto, os conceitos de nosso entendimento intencional não são fáceis de analisar. Seu entranhamento indissolúvel na sensibilidade e na ação dificulta sua focalização. O mundo humano pode não ser ‘profundo’ no sentido científico do termo, mas é denso.[16] Logo, muitas vezes é mais fácil falar da intencionalidade de uma emoção como se se tratasse de uma questão de percepção, e não de pensamento: o objeto de aversão é percebido aversivamente. Compreender o conceito de pessoa pode similarmente exigir que compreendamos um tipo de percepção: entender o que é ver seres humanos como pessoas. E esta percepção, por sua vez, pode não ser fácil de desemaranhar do tecido cultural ao qual pertence, ou dos fins de conduta últimos que ela serve para realçar.

Isto não significa que nosso entendimento intencional produz ‘meras ideologias’ no sentido marxiano – um sistema de crenças sem nada que o recomende, não obstante sua capacidade de mistificar o mundo de maneira a respaldar nossos empreendimentos (‘burgueses’).[17] Os marxistas de fato estão corretos ao diferenciar crenças em termos de sua explanação, e ao assinalar o estatuto epistemológico desviante de uma crença que deve ser explicada sempre em termos de algum interesse humano que não o interesse pela verdade. No entanto, embora vários de nossos conceitos devam ser explicados em termos funcionais, não se segue que uma explanação funcional é apropriada para as crenças em que esses conceitos figuram. Assim, a existência do conceito ‘mármore ornamental’ deve ser explicada em termos de sua utilidade em orientar nossos propósitos esculturais. Não obstante, o escultor que julga alguma rocha como ornamental adquire esta crença como resultado de evidências. Tais crenças ‘frágeis’ são não-científicas, uma vez que empregam conceitos opacos ao método científico. Mas elas podem ser verdadeiras ou falsas,  razoáveis ou francamente absurdas. Pois elas são causadas, em geral, por nossa percepção de como as coisas são, não por nossas necessidades.

Geralmente, o mesmo vale para os conceitos que definem o Lebenswelt. No entanto, a funcionalidade desses conceitos não implica a funcionalidade das crenças que os empregam. A objetividade destas crenças pode ser tão segura quanto a objetividade da ciência, ainda que elas se refiram não à estrutura subjacente da realidade, mas ao Lebenswelt. Se o Lebenswelt é uma invenção burguesa, então devemos exaltar e emular o espírito burguês, que é mais bem adaptado para perceber a realidade humana do que a consciência ordenada do crítico ‘desmistificador’.

Há verdades objetivas genuínas sobre o Lebenswelt a serem esclarecidas pela análise filosófica. Por conseguinte, a filosofia pode trazer verdadeira iluminação da condição humana, exatamente por meio da ‘análise de conceitos’ que, há não muito tempo, muitas vezes aparentou debilitar nossas percepções humanas. Uma análise de conceitos é o que está envolvido no esforço para ampliar e aprofundar o domínio do ‘entendimento intencional’. Nada pode servir para iluminar a intencionalidade de nossas respostas humanas naturais a não ser a análise dos conceitos que estão envolvidos nestas respostas. Este esforço para aprofundar nosso entendimento intencional é um esforço para explorar o domínio do ‘dado’, mas não o do subjetivamente dado. Não estamos preocupados com o conhecimento da experiência em primeira pessoa, mas com as práticas compartilhadas por cujo intermédio uma linguagem pública conecta-se tanto ao mundo como à vida daqueles que o descrevem. Esta é a ideia capturada pelo bordão de Wittgenstein, ‘o que é dado são formas de vida’, e no reconhecimento do próprio Husserl de que o Lebenswelt é dado ‘intersubjetivamente’ (Husserl, no entanto, não renunciou à desastrosa ‘psicologia transcendental’ com que o sobrecarregou).[18]

O fundamento de nossa compreensão do mundo humano reside em práticas compartilhadas e publicamente acessíveis, das quais a linguagem – que define os modos de representação pelos quais percebemos o mundo – é a mais importante. Essa é a razão pela qual não faço distinções entre conclusões ‘fenomenológicas’ e conclusões ‘analíticas’. Dois idiomas estão igualmente à minha disposição, e nenhum deles precisa ser concebido como detentor do monopólio da verdade, uma vez que, tão logo aceitamos que a ideia de uma ‘linguagem privada’ não faz sentido, não pode haver nenhum conflito real entre os dois idiomas.

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[Os parágrafos acima foram traduzidos e ligeiramente adaptados do primeiro capítulo do livro Sexual Desire: A Philosophical Investigation, publicado originalmente em 1986 pela editora britânica Weidenfeld & Nicolson.]

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Notas.

8. Ver Putnam, The Meaning of “Meaning”, e Kripke, Naming and Necessity. O termo ‘tipo natural’ deriva obliquamente de J. S. Mill, A System of Logic, 10ª Ed., Londres, 1879, Livro 1, Cap. VII. Mill refere-se a Tipos que existem na natureza, e daí em diante preserva o ‘T’ maiúsculo a fim de denotar este tipo de tipo. Obviamente, a observação de que nossas classificações são frequentemente funcionais ou analógicas e, portanto, falsificam a natureza daquilo a que são aplicadas é mais antiga do que Mill, inspirando a distinção de Locke entre essências reais e nominais (Essay Concerning Human Understanding, Livro III, Cap. 3, §15), e o método de Buffon na Histoire Naturelle, em que ele rejeita explicitamente nossos hábitos ordinários de classificação, uma que tais hábitos tentam ‘dividir a natureza em pontos em que ela é indivisível’.

Sobre a distinção entre tipos naturais e funcionais, ver David Wiggins, Sameness and Substance, Oxford, 1980, pp. 171ss. A ideia de tipos funcionais talvez seja menos familiar do que a de tipos naturais; todavia, tal noção é necessária para que o ‘funcionalismo’ faça sentido enquanto teoria da mente. O funcionalismo foi exposto em detalhes por D. C. Dennett nos artigos reunidos em seu livro Brainstorms, Brighton, 1978.

9. Esta visão – de que a descrição e a explanação são partes contínuas de um único processo – foi sustentada por vários autores, incluindo W. V. Quine, Word and Object, Cambridge, Mass., 1960, e Wilfred Sellars, Science, Perception and Reality, Londres, 1963.

10. A distinção entre qualidades primárias e qualidades secundárias remonta pelo menos a Pierre Gassendi; não obstante, ela nunca deixou de ser problemática (...)

11. Husserl referiu-se ao mundo da experiência humana como o ‘mundo natural’ (Naturwelt), um termo adotado por vários discípulos seus (por exemplo, por Patočka, em seu The Natural World as a Philosophical Problem, Praga, 1933 – um livro que subsequentemente provou-se fecundo ao sugerir um papel para a filosofia na interpretação da experiência humana que seria distinto do papel da ciência). A terminologia que Husserl veio a preferir mais tarde – Umwelt (‘mundo ao redor’) e Lebenswelt – indicam um reconhecimento tardio de que é precisamente por contraste com uma certa visão da ‘natureza’ que o mundo da experiência humana deveria ser caracterizado. O termo Lebenswelt possui um ancestral mais antigo. Ele ocorre em Dilthey e nas obras de certos teóricos do Einfühlung (como Lipps); ele também ocorre nos sociólogos fenomenológicos como Alfred Schutz, e é relacionado ao vocabulário dos historiadores da arte hegelianos (por exemplo, Wölfflin). (Ver Dilthey, Collected Works, vol. VII. A expressão preferida de Dilthey, no entanto, é mais hegeliana: ‘objetificações da vida’. Ver também Alfred Schutz, The Phenomenology of the Social World, tr. G. Walsh e F. Lehnert, Portland USA 1967; Heinrich Wölfflin, Renaissance and Baroque, tr. K . Simon, London, 1964, pp. 77ss.)

12. Compare com a ideia de Heidegger de que, para mim, as ‘coisas’ são essencialmente para ‘ser usadas’: Being and Time, tr. J. Macquarrie e E. S. Robinson, New york, 1962, pp. 96ss.

13. Compare com os argumentos distintos, porém complementares, contra o ‘racionalismo’ na política apresentados por Michael Oakeshott (Rationalism in Politics, Londres, 1968) e por F. A. von Hayek (Studies in Philosophy, Politics and Economics, Londres, 1967).

14. Dilthey, Collected Works, vol. VII; Max Weber, ‘The Nature of Social Action’, in W. G. Runciman (ed.) Weber, Selections in Translation, Cambridge, 1978.

15. Retorno a este ponto no Cap. 15, onde digo mais sobre o que entendo por ‘significado’, e sua conexão com o ponto de vista do sujeito humano que, no fim, está sempre em guerra com a ‘impessoalidade’ da ciência. Para algumas interessantes especulações tchecas sobre este tema, ver V. Belohradsky, Krize Eschatologie Neosobnosti, Munique, 1982, e discurso de doutoramento de Vaclav Havel enviado para a Universidade de Toulouse, ‘Politics and Conscience’, Salisbury Review, 3 (2), 1985.

16. Veja R. A. D. Grant, resenha de S. R. Letwin, The Gentleman in Trollope, Salisbury Revuew, 1 (1) 1982, pp. 41-2.

17.  A teoria marxiana da ideologia tem suas origens em K. Marx e F. Engels, The German Ideology, 1846. O contraste entre ideologia e ciência – vital para a teoria marxiana da história e para a crítica marxiana da filosofia – encontra-se tão bem estabelecido no clima de opinião corrente que um comentador é capaz de dizer que ‘uma propriedade definidora da ideologia é ser não-científica’ (G. A. Cohen, Karl Marx’s Theory of History, A Defence, 1978, p. 46).

18. E. Husserl, Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phäenomenologie, ed. W. Biemel, The Hague, 1976, part 2.0

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por Eric Voegelin

[O texto a seguir é continuação de Quod Deus Dicitur.]

1. O Cenário Pós-Cartesiano:

A análise tomista diz respeito à estrutura paradoxal da tensão entre os símbolos compactos da fé e a operação do intelecto noético. Contudo, sua clara formulação é impedida pela compactação dos símbolos reflexivos de que Tomás dispõe em seu contexto histórico. Trata-se dos símbolos de uma verdade de revelação na tradição da fé judaico-cristã, e dos símbolos filosóficos derivados do contexto culturalmente distinto da civilização helênica. A fim de clarificar algumas destas complicações, será útil mencionarmos brevemente os avanços da análise nos empreendimentos cartesianos e pós-cartesianos.

Considere-se, por exemplo, a formulação dada por Leibniz ao problema em sua obra Principes de la nature et de la grâce. A análise “metafísica” de Leibniz assume o princípio de razão suficiente (raison suffisante) como a explanação para tudo o que acontece na realidade. A busca pela razão suficiente culmina nas duas questões: (a) Por que existe algo, em vez de nada?, e (b) Por que as coisas são como são? Neste nível de simbolização, Leibniz chega a formulações estreitamente semelhantes às de Tomás. A experiência da realidade contingente implica uma razão não-contingente para o que é experienciado como contingente. “Et cette dernière raison des choses est appelée Dieu“.

Embora a formulação de Leibniz assemelhe-se à de Tomás, deve-se estar ciente de sua aura pós-cartesiana. O que está em primeiro plano agora é a inerência da resposta ao evento da questão. Essa característica imaginativa que ultrapassa a mera assunção de um símbolo revelatório deve-se à intuição cartesiana da resposta como algo contido nos atos de duvidar e de desejar. A transição experienciada de um cogito ergo sum aparentemente certo para um ego que duvida e deseja de forma imaginativa é a fonte meditativa da compreensão de que não há nenhum ego sem uma realidade abrangente para ser simbolizada como a perfeição em cuja direção o ego imaginativo arduamente caminha. Um ego que duvida e deseja ir além de si mesmo não é o criador de si mesmo, mas demanda um criador e mantenedor de sua existência dubitativa, e essa causa é o “Deus” que aparece na análise da Terceira Meditação e dos Princípios. Não há nenhuma contingência dubitativa sem a tensão direcionada para a necessidade que evidencia a dúvida como tal.

Este avanço na estrutura imaginativa da questão noética, contudo, ainda é dificultado por outro elemento compacto da análise tomista, isto é, pela construção de uma análise meditativa como uma prova silogística. Mesmo Descartes e Leibniz ainda querem compreender a análise como uma prova da existência do Deus da Revelação, uma assunção que Kant mostrou ser insustentável na Crítica da Razão Pura. No entanto, uma vez que a análise positiva da questão imaginativa por Kant foi insuficiente, coube a Hegel reconhecer, contrariando a crítica de Kant, “as assim chamadas provas da existência de Deus como descrições e análises do processo do próprio Geist… A elevação do pensamento além do sensual, o pensamento transcendendo o finito e o infinito, o salto feito ao  romper com a série do sensual em favor do suprasensual, tudo isto é o próprio pensamento, a transição é somente o próprio pensamento.” (Enzyklopaedie 1830 §50)

Nesta passagem de Hegel pode-se discernir as camadas históricas da análise. Elas são (a) o argumento tomista (baseado, em última análise, em Aristóteles), (b) o progresso cartesiano para o argumento como um evento imaginativo, (c) a crítica kantiana de sua estrutura silogística, e (d) uma nova clareza sobre o processo de análise noética. Contudo, o que torna a iluminação hegeliana ainda insatisfatória é a tendência a alçar a estrutura paradoxal conforme revelada na dimensão reflexiva da consciência ao posto de solução final do problema da divindade. Esta hipóstase da consciência reflexiva obscurece o fato de que o próprio movimento noético, o encontro entre o humano e o divino, ainda é um processo ativo em tensão dirigida para os símbolos da fé. A hipóstase dos símbolos reflexivos leva à construção deformadora do processo de pensamento no pensamento acabado de um Sistema de ciência conceitual.

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2. Condições de Possibilidade da Negação da Divindade:

As dificuldades com que se deparam os pensadores contemporâneos em suas análises positivas inadequadas da consciência da realidade brotam da distinção inadequada  entre o processo de análise noética e os símbolos reflexivos descrevendo o processo histórico de análise. O ponto experiencial da confusão é formulado por Tomás (ibidem I.2) como a diferença entre Deus in se e o Deus duoad nos. Na fé, vivemos na tensão entre a contingência e a necessidade divina. Nos símbolos reflexivos, contudo, o polo contingente e o polo necessário da tensão são reflexivamente hipostasiados em entidades imanentes e transcendentes. Que a necessidade divina não é uma coisa conhecida por suas propriedades é claramente visto por Tomás como a fonte das dificuldades, mas ele não determina com igual clareza a dificuldade, já avistada por Platão no Fedro e no Timeu, que emerge da estrutura intencionalista da linguagem: nossa propensão para pensar em proposições objetuais, isto é, proposições a respeito de objetos que nos são dados em experiências sensoriais, sobre experiências que não são experiências sensoriais. A estrutura primária do encontro entre o humano e o divino deve ser distinguida da simbolização reflexiva dos polos do encontro tensional na forma de entidades objetuais. O progresso de Tomás detêm-se na distinção entre o a priori da necessidade divina e o a posteriori de sua prova a partir do efeito nas experiências contingentes, deixando escapar certas qualidades da análise alcançadas por Anselmo da Cantuária, bem como pelos filósofos helênicos. Portanto, será apropriado enunciar o problema reflexivo da construção silogística em seus pontos principais.

A “prova ontológica” rejeitada por Tomás ainda não existia em sua época nesta forma simbólica. A palavra ontologia aparece no século dezessete no Elementa philosophiae sive Ontosophiae (1647) de Clauberg (ou talvez no Lexicon Philosophicum de Goclenius, de 1613), e encontra aceitação entre os filósofos através de seu emprego por Leibniz, Wolff e Kant no século dezoito. As Meditações de Descartes ainda não estavam oneradas pelo termo e essa é a provável razão pela qual elas ainda podiam estar próximas da busca mais antiga de Anselmo (que Descartes pode não ter conhecido) porque a dinâmica de seu movimento de busca ainda depende da tensão entre a perfeição e a imperfeição. Na Crítica da Razão Pura, Kant aplica o símbolo “prova ontológica” às Meditações cartesianas já como um termo de ampla utilização.

Os dados que acabei de fornecer apontam para uma área do discurso que se movimenta preferencialmente na fronteira da análise experiencial exata; eles sugerem a tentativa de estabelecer o termo “ontologia” como um sinônimo mais preciso para “metafísica” e, por esse meio, de estabelecer a metafísica como alternativa controversa à teologia. O termo próprio “metafísica” foi introduzido por Tomás na filosofia ocidental em seu comentário à Metafísica aristotélica influenciado pelo desenvolvimento do termo pelos filósofos árabes. Estamos tocando o problema da deformação reflexiva da realidade experiencial através de simbolismos reflexivos condicionados por situações históricas concretas.

Isto não significa que não haja um problema experiencial real por trás da deformação, nem que este problema não foi visto e formulado pelo próprio Tomás. A distinção entre a “priora simpliciter” da fé e a “posteriora” de sua realidade obtida a partir de seus efeitos torna possível negar a priora que não permite que suas propriedades sejam conhecidas como se fossem propriedades de um objeto. E como as propriedades objetuais não são conhecidas a não ser pelos seus efeitos, a priora da fé pode ser negada quanto à sua realidade. A base experiencial desta consequência é apresentada por Tomás no simbolismo escritural “Dixit insipiens in corde suo: Non est Deus”. A confusão deformadora no “coração” do insipiens (na tradução para o português: do tolo, do néscio, do insensato) é a fonte experiencial que chama atenção para a estrutura não-objetual dos símbolos divinos. É o cor suum do homem que é o sítio experiencial de uma posição hipostasiante ou de negação da divindade.

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3. O êxito da busca de Anselmo da Cantuária:

A análise de Hegel, apesar da construção reflexiva deformadora, chegou perto da compreensão do processo noético como foi experienciado por Anselmo da Cantuária no começo do escolasticismo. No Proslogion, a análise de Anselmo é explícita acerca dos limites da busca noética. Na segunda parte de sua obra, no Proslogion XIV, ele reconhece que o Deus encontrado pela verdade da razão ainda não é o Deus cuja presença foi experienciada por quem O busca na formação e na re-formação de sua existência. Ele ora a Deus:

Dize à minha alma, que anela por ti, o que tu és, caso não sejas aquilo que ela viu, a fim de que possa enxergar, claramente, aquilo que deseja com tanto ardor.

E no Proslogion XV ele formula a questão estrutural com uma exatidão clássica:

Oh! Senhor, Tu não és apenas aquilo de que não é possível pensar nada maior, mas és, também, tão grande que superas a nossa possibilidade de pensar-te.

Este é o limite da análise conceitual noética desconsiderada por Hegel. Seja observado que na seção sobre Anselmo da Cantuária de sua Geschichte der Philosophie, Hegel lida extensiva e competentemente com a “prova ontológica”, mas não menciona a segunda parte do Proslogion, com sua exploração analógica da luz divina além da razão humana. A busca noética de Anselmo assume então a forma de uma oração por uma compreensão dos símbolos da fé pelo intelecto humano. Por trás da busca, e por trás da fides que a busca supostamente compreende, torna-se agora visível a verdadeira fonte do esforço anselmiano no desejo vivo da alma de mover-se rumo à luz divina. A realidade divina deixa a luz de sua perfeição derramar-se sobre a alma; a iluminação da alma desperta no homem a consciência de sua existência como um estado de imperfeição; e esta consciência provoca o movimento humano em resposta ao apelo divino. A iluminação, como Santo Agostinho designa a experiência, tem para Anselmo o caráter de um apelo, até mesmo de um conselho e de uma promessa. Pois, a fim de expressar a experiência de iluminação ele cita João 6:24:

Pedi e recebereis, que vossa alegria seja completa.

As palavras joaninas do Cristo, e do Espírito que aconselha em seu nome, palavras cujo sentido requer o contexto em que foram proferidas, expressam o movimento divino ao qual Anselmo responde com o contra-movimento jubiloso de sua busca (XXVI). Consequentemente, a última parte do Proslogion consistentemente louva a luz divina na linguagem analógica da perfeição. A Oração de Anselmo é, de acordo com sua formulação da natureza da busca na primeira seção do Monologium, uma meditatio de ratione fidei. A busca orante responde ao apelo da razão na fides; o Proslogion é a fides em ação, em busca de sua própria razão. Devemos, portanto, concluir que Santo Anselmo compreendeu claramente que a estrutura cognitiva é interna ao Metaxo, o Intermédio anímico no sentido platônico.

O significado do Metaxo neste contexto talvez possa ser mais claramente compreendido no Mito do Fedro. Neste Mito, Platão agrupa os deuses olímpicos junto com seus seguidores humanos como os seres no interior do cosmos que são dotados de almas e, portanto, preocupados com sua imortalidade. Os olímpicos, que já desfrutam da condição de imortais, precisam apenas preservá-la pela ação apropriada; ao passo que as almas humanas que desejam a imortalidade ainda precisam alçar-se até esta condição mediante um esforço que é, em diversos graus, dificultado por seus corpos mortais cujas paixões arrastam-nos para baixo. Nem as ações conservativas dos deuses, contudo, nem os esforços sinceros de seus devotos humanos podem alcançar seu objetivo por meio de processos no interior do cosmos. Pois a fonte da imortalidade é a realidade divina extracósmica para além firmamento (exo tou ouranou) que envolve o cosmos, e os seres intracósmicos dotados de almas devem elevar-se até esta fonte por meio das “asas” noéticas que os habilita a ascender à verdade do Além. Esta ascensão das almas não é uma atividade prosaica. Ordinariamente, assim Platão deixa que o Mito nos diga, os deuses e seus devotos tomarão parte de seus negócios intracósmicos, e somente em ocasiões festivas eles elevar-se-ão até à região supracelestial (hyperouranios topos). E lá, do topo do cosmos, eles contemplarão a ousia ontos ousa que é visível somente para o nous, o guia da alma.

(Continua…)

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por Eric Voegelin

[O texto a seguir é continuação de O Diálogo Entre Um Suicida E Sua Alma]

IV

O filósofo ocidental do século XX d.C. encontra-se numa posição substancialmente idêntica à do pensador egípcio do século XX a.C.: ambos, o filósofo e o autor do Diálogo, encontram-se transtornados pela desordem de sua época; ambos estão em busca de uma realidade cuja vida não mais pode ser encontrada nas imagens circundantes; por fim, ambos desejam resgatar o sentido dos símbolos dos abusos sofridos nas discussões cotidianas. Os embates contemporâneos entre as crenças doutrinárias e as objeções igualmente doutrinárias correspondem à primeira parte do Diálogo, de natureza argumentativa; e o filósofo contemporâneo em busca da verdade precisa encontrar seu caminho até a verdade precisamente por meio do tipo de imagens e argumentos que seu precursor de quatro mil anos atrás reconheceu como expressões de um modo deficiente de existência.

Com base neste paralelo, podemos estabelecer duas regras para o filósofo. Por um lado, não lhe é permitido cerrar fileiras com os crentes e, em particular, ele não deve permitir-se discutir a questão doutrinal acerca da imortalidade do homem ou de sua alma. Pois, numa discussão doutrinal, os símbolos são alçados ao estatuto de entidades; e ao tomar parte nessa discussão, o filósofo incorre no erro que Whitehead designou de falácia da concretude deslocada. Por outro lado, tampouco lhe é permitido cerrar fileiras com os objetores, uma vez que eles negam a validade de proposições sobre Deus, a Alma e a Imortalidade alegando que elas não podem ser verificadas ou falseadas como proposições sobre objetos da percepção sensorial. Este argumento, contudo, não faz sentido, já que ninguém sustenta que proposições doutrinais referem-se ao mundo exterior; sua fachada de objeção advém da falsa premissa de que a verdade doutrinal não é derivativa, mas originária. Não obstante, enquanto percorre a estreita vereda ladeada por adversários, o filósofo deve permanecer ciente dos respectivos méritos de ambas as posições. Ele deve conceder ao objetor a superioridade intelectual, porque ele evita a falácia de operar com símbolos hipostasiados na qual o fiel incorre. Ele deve conceder a superioridade existencial ao fiel, porque o preço que objetor paga por sua integridade intelectual é a completa negação da verdade, enquanto o fiel preserva a verdade experienciada pelo menos em sua derivação doutrinal. Porém, a ponderação empática não deve degenerar em sentimentalismos de condenação ou indecisão. O verdadeiro filósofo não deve condenar – pois a tensão entre a fé e a razão, a natureza ao mesmo tempo conspiratória e conflituosa de sua interação no tempo, é um mistério. Se o fiel tradicionalista que professa a verdade em sua forma doutrinal não se encontra talvez ainda mais afastado da verdade do que o objetor intelectual que a nega por sua forma doutrinal, o filósofo não sabe. Apenas Deus sabe quem se encontra mais próximo do fim que é o começo. Tampouco deve o filósofo permanecer indeciso porque não é capaz de penetrar o mistério – pois até onde as limitações de seu entendimento humano lhe permitem discernir, o objetor que não é capaz de perceber uma realidade íntegra por trás das imagens fraturadas move-se no mesmo patamar da existência deficiente que o tradicionalista que, talvez desesperadamente, acredita na integridade de sua imagem fraturada. A indecisão colocaria o filósofo no papel desempenhado pela Alma no Diálogo; seu ônus, contudo, é desempenhar o papel do Homem.

O filósofo move-se no campo das tensões aludidas há pouco. Precisamos dirigir nossa atenção para suas propriedades extensionais e estruturais. Quanto à sua extensão, Platão formulou o princípio de que a Sociedade é o Homem em larga escala – um princípio que hoje deve ser ampliado de modo a incluir a história. Tanto a Sociedade como a História são o Homem em larga escala. Isso significa que o campo das tensões não se restringe ao Homem individual, mas abrange a pluralidade dos seres humanos na sociedade e na história; pois as tensões que o Homem experiencia em sua existência pessoal são as mesmas que ele reconhece estruturando outros setores do campo em que a tensão se manifesta. Quanto à estrutura do campo, podemos distinguir duas dimensões principais. Há, primeiro, a tensão entre a existência na verdade e os modos deficientes de existência. Esta é exatamente a tensão na qual o filósofo vive e se move. Por conseguinte, ele se ocupa não com a verdade enquanto fragmento de informação que escapou a seus contemporâneos, mas como um polo na tensão entre a ordem e a desordem, entre a realidade e a perda da realidade que ele experiencia como sua. Sua existência abrange a desordem pela qual ele se sente repelido tanto quanto a ordem em cuja direção deseja mover-se. Depois, há as tensões no nível da existência deficiente. Quando a realidade da verdade degenera na crença tradicionalista em símbolos, o palco está armado para a entrada em cena da descrença e da objeção racional à crença. Pois a crença, quando perde contato com a verdade experienciada, não somente provoca objeção como também auxilia o inimigo criando o ambiente doutrinário no qual a objeção pode tornar-se socialmente efetiva. Esta classe de tensões, isto é, a dinâmica da crença e da descrença, eu chamarei de subcampo da existência doutrinária. Agora, o interesse do filósofo é dirigido não a essa ou aquela região do campo, mas à sua totalidade – à toda sua extensão e a todas as suas dimensões estruturais – , pois ele se perderia em sua busca se desconsiderasse os pontos de orientação. Em particular, ele deve resistir à tentação profissional de posicionar-se no polo de tensão em cuja direção ele deseja se mover; se ele começar a pregar sermões sobre a existência na verdade como se tal modo de existência fosse um objeto absoluto em sua posse, ele decairia numa existência doutrinária.

Encontramos na variante moderna deste subcampo uma classe de símbolos sem paralelos na cena egípcia, qual seja, as assim chamadas objeções ideológicas à crença doutrinal. Seu prodigioso êxito em nossa sociedade pode ser explicado somente se recorrermos à regra de que a crença doutrinária prefigura o padrão do argumento ideológico e, portanto, torna a sociedade receptiva a ele. Como um caso representativo, selecionei para análise a pièce de résistance do objetor moderno: “A experiência é uma ilusão.”

Em primeiro lugar, articularei a estrutura intelectual da objeção: a proposição é um exemplar do raciocínio desleixado bastante comum no discurso cotidiano. Falando cautelosamente, teríamos que dizer que uma experiência jamais é uma ilusão, mas sempre uma realidade; o predicado “ilusão” deveria ser utilizado com referência não à experiência, mas ao seu conteúdo, no caso de tal conteúdo possuir um caráter ilusório. Tomada em si, a formulação incorreta não merece mais do que a atenção necessária para evitar um mal-entendido. No contexto da polêmica ideológica, contudo, a transferência do predicado é utilizada sutilmente para o propósito mesmo de criar uma confusão, qual seja, que a proposição incorretamente formulada em primeiro plano carrega, por direito próprio, o sentido possível da proposição no plano de fundo. A transferência desvia a atenção da premissa inarticulada. O resultado é uma proposição sem sentido projetada para bloquear a questão sobre se o sentido possível da proposição no plano de fundo realmente faz sentido no caso concreto. Quebremos, portanto, o tabu, e levantemos a questão tacitamente proibida: Que significa dizer que o conteúdo de uma experiência deve ser caracterizado como uma ilusão? Há dois sentidos possíveis: um radical, em que o objeto experienciado pelo sujeito não existe de forma alguma; outro em que, de maneira mais nuançada, o objeto existe, mas sob uma inspeção mais cautelosa revela características distintas das manifestadas no objeto conforme experienciado. Em ambos os casos, o juízo de ilusão apoia-se em experiências de controle do objeto existente, em potência ou em ato, fora da experiência. Com esta observação, no entanto, a razão – ou pelo menos uma das razões pela qual o sentido possível no plano de fundo deve ser mantido oculto torna-se visível. Pois um juízo de ilusão pode ser aplicado apenas a experiências de objetos existentes, não a experiências de participação na realidade não-existente. Quando articulado, portanto, o sentido velado no plano de fundo mostra-se tão absurdo quanto a proposição em primeiro plano.

Embora exija um parágrafo para ser articulado, o erro intelectual é demasiado óbvio para que a proposição sobreviva por mais do que alguns instantes num ambiente crítico; a fim de explicar sua efetividade social em polêmicas, devemos introduzir o fator do assentimento existencial. Este assentimento é determinado em parte pela prontidão generalizada de nossa sociedade para pensar (se é que “pensar” é o termo correto) de forma doutrinal. Como o argumento do objetor aceita a doutrina do fiel por seu valor de face, o erro intelectual que deveria desacreditar o argumento torna-se a fonte de sua credibilidade numa sociedade predominantemente doutrinária. Esta prontidão generalizada, contudo, também é característica de outras civilizações de outros períodos da história da humanidade. Para a causa específica do assentimento, devemos olhar para a atmosfera de linguagem e opinião especificamente ocidental e moderna que se formou ao longo de dois séculos de ideologias.

A atmosfera ocidental moderna à qual me refiro é uma selva intelectual e emocional a tal ponto cerrada que seria um desatino isolar uma ideologia particular como a maior responsável por tal estado de coisas. Não obstante, as correntes mais importantes do denso emaranhado podem ser discernidas e enumeradas. A posição de destaque deve ser concedida à psicologia desenvolvida por Feuerbach em sua obra A Essência do Cristianismo. Feuerbach estava perplexo – como Kant estivera antes dele em sua Crítica da Razão Pura – pelo fato de que as proposições dogmáticas, sejam teológicas ou metafísicas, sobrevivem socialmente mesmo quando sua natureza falaciosa é completamente analisada e exibida em público. Deve haver alguma realidade engendrando e sustentando sua vida, afinal; para um fiel doutrinário suficientemente suscetível aos efeitos desestabilizadores do racionalismo, esta realidade não pode ser nem uma entidade transcendente nem uma verdade experienciada. Consequentemente, ele julga que os símbolos devem ter alguma causa imanente ao mundo. Em sua Crítica da Razão Pura, Kant já havia empregado o termo “ilusão”, embora não tivesse sido explícito sobre a realidade responsável pelas ilusões e por sua tenacidade. No século dezenove, quando a tentativa de solucionar o enigma da realidade faltante através da especulação gnóstica malogrou em seu intento, a questão assumiu uma feição desesperada: após os grandes sistemas “idealistas”, chegara o momento das respostas inequívocas, ainda que algo exasperadas, por meio do apelo à natureza humana como a causa das ilusões. Consequentemente, Feuerbach interpretou os símbolos como projeções da consciência humana imanente ao mundo. Sua psicologia da projeção permaneceu um dos pilares do credo do ideólogo desde então, e pode-se até mesmo dizê-la uma força mais poderosa hoje do que na época de Feuerbach, já quem em nosso século ela foi fortalecida pela psicanálise de Freud e Jung. Outro componente importante da atmosfera ideológica é a crítica da religião elaborada por Marx. Marx apoiou-se na psicologia de Feuerbach, mas sofisticou-a pela introdução do “Ser”, no sentido de Produktionsverhältnisse, como a causa dos vários estados de consciência que induzem ou impedem as projeções ilusórias. Além disso, deve ser mencionado a philosophie positive de Comte, que interpretou os símbolos da verdade experienciada como peculiares à “fase teológica” doutrinária da história, seguida por uma “fase metafísica” igualmente doutrinária, ambas prestes a serem suplantadas pelo dogmatismo da “ciência positiva”. E, finalmente, não devemos nos esquecer de Freud e seu ensaio O Futuro de uma Ilusão, já que o título da obra tornou-se uma expressão popular imbuindo a linguagem de ilusão do ideólogo da autoridade de uma ciência tão imune a críticas quanto a Psicologia. A lista poderia continuar, mas já está suficientemente longa para estabelecer o problema: as convencionalmente chamadas ideologias são construções da história que interpretam o modo doutrinal da verdade como uma fase da consciência humana prestes a ser suplantada por uma nova fase que será a mais elevada bem como a última da história.

 A proposição “A experiência é uma ilusão”, portanto, opera com dois ardis intelectuais. Em primeiro lugar, ela obscurece a falácia da concretude deslocada que sua premissa de fundo usurpou da verdade doutrinal; depois, ela oculta a ideologia resultante que esculpe a história numa série de segmentos monolíticos, cada um governado por um estado de consciência. Que o segundo ardil é, assim como o primeiro, prefigurado pela doutrina que critica é um ponto demasiado evidente para ser elaborado; relembro apenas a figuração mais estrepitosa, nomeadamente, a substituição da era de Cristo pela era de Comte, o Fondateur da le Religion de l’Humanité. Ao conceder seu assentimento existencial ao dispositivo ardiloso, o fiel doutrinário é duplamente fisgado: pelo primeiro ardil, ele se torna vítima de sua própria falácia; pelo segundo, ele é varrido de cena como uma relíquia obsoleta do passado. A proposição é, de fato, um excelente dispositivo erístico.

A questão sobre como o problema da história se apresenta ao filósofo foi em grande parte respondida pela análise precedente. Descrevemos, é verdade, o problema como ele aparece no nível da existência doutrinária, mas não o descrevemos como ele aparece para o doutrinário. Para as pessoas que vivem neste nível, o subcampo é um mundo fechado; não há nada além dele, ou pelo menos nada que julguem digno de ser conhecido, mesmo quando desconfortavelmente sentem que, afinal, há algo lá fora. Nossa análise, ao contrário, enquanto descreve este mundo em que tais pessoas vivem, não se move em seu interior, mas o descreve como um subcampo no horizonte de realidade mais amplo do filósofo. Consequentemente, emerge o problema do qual depende uma compreensão filosófica da história: o problema consiste em que a verdade experienciada é excluída do subcampo, ao passo que o campo mais amplo é caracterizado por sua inclusão. Agora, as implicações desta diferença estrutural para uma visão abrangente da história devem ser explicitadas.

A existência doutrinária afeta as operações do espírito. Uma vez que o modo de existência deficiente pertence ao campo abrangente da história, as deformações patológicas que caracterizam o subcampo são forças históricas. Devemos tomar nota das duas principais deformações que se tornaram visíveis em nossa análise:

( I ) A verdade experienciada pode ser excluída do horizonte da realidade, mas não da própria realidade. Quando é excluída do universo do discurso intelectual, sua presença na realidade faz-se sentir pelo distúrbio das operações mentais. Conforme exposto acima, a fim de salvar as aparências da razão, o doutrinário deve lançar mão de meios irracionais, como deixar premissas inarticuladas, recusar-se a discuti-las, ou inventar dispositivos para obscurecê-las, e usar falácias. Ele não mais se move no reino da razão, encontrando-se rebaixado ao submundo da opinião, no sentido técnico da doxa de Platão. Neste subcampo, portanto, as operações mentais são caracterizadas pelo modo de pensamento dóxico, em oposição ao modo de pensamento racional.

( 2 ) Um estudo crítico da história baseado no conhecimento empírico dos fenômenos é impossível quando uma classe inteira de fenômenos é excluída do escopo da consciência. Como as aparências do conhecimento empírico e da ciência crítica devem ser salvas tanto quanto as aparências da razão, um considerável aparato técnico foi desenvolvido com o propósito de encobrir a deficiência. Chamarei tais dispositivos de metodologia dóxica; ao tipo resultante de ciência doutrinária, empirismo dóxico. O problema é determinado pelas construções da história abordadas em nossa análise: elas nutrem-se de sua oposição não à fé e à filosofia, mas às formas doutrinais da teologia e da metafísica; e elas próprias permanecem no mesmo nível de doutrina a cujos fenômenos específicos elas se opõem. O persuasivo truque de esculpir a história em fases ou estados de consciência ascendentes, com o propósito de colocar a consciência do escultor no topo da hierarquia, só pode ser realizado sob o pressuposto de que a consciência do homem é imanente ao mundo e nada além disso; o fato de que o homem é capaz de apreender

O ponto de intersecção do atemporal/Com o tempo

bem como os simbolismos que expressam tal apreensão, deve ser ignorado. O campo da realidade histórica, além disso, precisa ser identificado e definido como um campo de doutrina; e, como os grandes eventos de participação não desaparecem da realidade, eles devem ser dilapidados e reduzidos até que nada reste além de escombros doutrinários. Sobretudo Platão precisou escrutinar as deformações mais aberrantes para familiarizar-se com os modismos doutrinários em voga. Durante os últimos cem anos, seleções de seu disjecta membra foram utilizados para apresenta-lo como um Socialista, um Utópico, um Fascista e um Intelectual Autoritário. Para sua legitimação, a carnificina perpetrada pelos ideólogos da história exige os dispositivos de ocultação que caem sob a rubrica de métodos – sejam eles da variedade psicológica ou materialista, cientificista ou historicista, positivista ou behaviorista, rigorosa ou isenta de valores. Na segunda metade do século dezenove, quando as construções dóxicas da história proliferaram a ponto de atrair a atenção para sua incompatibilidade mútua, o fato da construção doutrinária chegou a ser transformado num princípio metodológico: a “História” deveria ser uma seleção construtiva de materiais em concordância com a opinião ou ponto de vista privado de alguém; tais pontos de vista foram chamados de “valores”, enquanto a compilação de materiais orientada por tais “valores” foi chamada de “ciência isenta de valores”; os próprios pontos de vista, ou valores, deveriam ser isentos de exame crítico; e o postulado da isenção foi blindado com a recusa estrita em admitir a existência de critérios de seleção. O ritmo frenético com que os pontos de vista são expelidos da linha de produção da consciência não é o traço menos grotesco de uma era grotesca. De fato, a cena pública tornou-se tão saturada de pontos de vista que, no século XX, a Sociedade Aberta – a de Popper, não a de Bergson – precisou ser inventada a fim de  prevenir colisões públicas entre opiniões privadas. Lamentavelmente, contudo, o dispositivo para assegurar a coexistência pacífica de opiniões, se não de mentes, não é à prova de idiotas. Pois ocorre que neste exato momento há um detentor de um ponto de vista que se leva muito a sério e confronta todos os demais com a alternativa de juntar-se a ele em sua prisão intelectual ou ser jogado num campo de concentração.

Leis férreas de uma história segmentada são construídas a fim de lançar os contemporâneos num estado de consciência angustiado que parece desejável para o respectivo intelectual dóxico. A concepção da lei férrea é o sonho de um terrorista. A história não possui fase alguma governada por estados de consciência, porque não há tal coisa como uma consciência imanente ao mundo que segregaria discretamente este ou aquele tipo de projeção em obediência à prescrição do doutrinário. Pois a História é o Homem – não: o Doutrinário – em larga escala; e como a consciência do homem é a realidade da tensão dirigida para o fundamento divino de sua existência, a história é a luta entre a existência na verdade e os modos deficientes de existência. Um setor representativo desta luta foi iluminado pela análise do Diálogo. Há a terra devastada das discussões; esta terra devastada pressupõe uma verdade experienciada que engendrou os símbolos agora fraturados; e uma irrupção espiritual ocorre em revolta contra a inverdade da existência. O setor é representativo no sentido de que não dispomos de nenhum conhecimento empírico de um padrão diferente na história: não há nem uma terra devastada de doutrinas literalistas e ceticismo que não seja reconhecível como um derivativo de uma verdade experienciada, nem irrupções espirituais num campo vazio de uma verdade experienciada degenerada. Para o conflito no tempo, não há nenhum pós-conflito no tempo; ou, se desejarmos expressar o mesmo pensamento numa linguagem vetusta, a civitas Dei e a civitas terrena entrelaçam-se na história, percorrendo seu caminho do começo ao fim da humanidade. Portanto, a história da humanidade é uma sociedade aberta – a de Bergson, não a de Popper – abrangendo em tensão a verdade e a inverdade. É certo que o equilíbrio da tensão pode se alterar – pessoalmente, socialmente e historicamente – na direção de um polo ou outro; e certamente as alterações no equilíbrio podem ser empregadas para caracterizar períodos históricos. A era em que vivemos, por exemplo, deve ser caracterizada como uma era em que a existência deficiente, bem como sua expressão simbólica, é socialmente hegemônica. Mas a hegemonia social de um polo não suprime a existência do outro e, com ela, a tensão. Falar de períodos caracterizados por um dos polos às custas da exclusão do outro seria equivalente a dizer que há períodos na história da humanidade caracterizados pela inexistência do Homem – e ainda assim, esporadicamente indivíduos cedem à tentação de se entregar a esta fantasia.

A segmentação doutrinária da história atingiu seu clímax na fórmula: “Estamos vivendo numa era pós-cristã”. Todo estilo, mesmo o doutrinário, possui suas belezas de perfeição – e o filósofo não pode suprimir sua admiração pelo engenhoso truque de transformar o “pós-Cristo” dos cristãos no “pós-cristão” dos ideólogos. Graças ao assentimento existencial, a fórmula tornou-se amplamente aceita em nossa sociedade. Pensadores que em outros aspectos estão situados acima do nível dos intelectuais ordinários propõem tal fórmula com um semblante sério, embora melancólico; e mesmo os teólogos, que deveriam estar mais bem preparados, estão fraquejando sob a constante pressão e mostrando-se dispostos a desmitologizar seu dogma, a abandonar os milagres mais fascinantes, a renunciar ao Nascimento Virginal e a admitir, consternados, que Deus está morto. A atitude é lamentável; pois uma verdade cujos símbolos tornaram-se opacos e suspeitos não pode ser salva pelas concessões doutrinais ao Zeitgeist, mas somente por um retorno à realidade da experiência originária que engendrou os símbolos. O retorno engendrará sua própria exegese – como ocorre nesta palestra – e a linguagem exegética tornará os símbolos mais antigos novamente translúcidos.

A efetividade social da fórmula indica uma confusão e um desamparo generalizados; esclarecerei, portanto, os diversos níveis de seu significado. O simbolismo pertence à autointerpretação de um movimento revolucionário no modo de existência deficiente. Seu significado abrange uma parcela da realidade do processo histórico tão ínfima quanto a ponta de um iceberg; isolarei primeiro esta camada realista do significado. Em sua maior parte, o significado encontra-se submerso no mundo onírico da existência doutrinária desconectada da realidade da tensão existencial; lidarei com este bloco submerso do significado depois. Como a fórmula “pós-cristão” deriva de “pós-Cristo”, lidarei, por fim, com as implicações do simbolismo para o “pós-” cristão.

A fórmula “era pós-cristã” pode ser compreendida na medida em que expressa uma consciência revolucionária de época. A revolta setecentista, instituída em nome da ciência e da razão contra o íncubo da teologia e da metafísica doutrinárias, foi certamente uma “época”, e o desdobramento de seu impulso até os dias atuais assinala definitivamente uma “era” na história. Além disso, a consumação da revolta através da hegemonia social de sua doutrina pode infundir nos conformistas tardios um agradável sentimento de que a eles pertence a época que na verdade foi a época do século XVIII. Na medida em que a revolta contra o Cristianismo doutrinário foi excepcionalmente bem sucedida em nossa sociedade, há sólidas razões para nos referirmos à era como “pós-cristã”. Contudo, tão logo o significado realista da fórmula é revelado, os limites para seu sentido, bem como para a era que ela denota, tornam-se visíveis. Quanto ao sentido, não devemos nos esquecer que a revolta ocorreu no subcampo da existência deficiente; sua fúria foi dirigida contra a doutrina cristã que se tornara opaca, não contra a fé cristã. Portanto, distinguir a era da revolta ideológica como uma “era pós-cristã” seria atribuir à revolta uma profundidade que ela não tem – seria conferir-lhe uma honra excessiva. Quanto aos limites da era, eles são dados pela própria falta de profundidade. Pois a revolta contra a teologia e a metafísica não recuperou a tensão da existência que emanava dos antigos símbolos; ao contrário, ela abandonou completamente a verdade experienciada, com o resultado inevitável de degenerar numa nova doutrina da consciência imanente ao mundo. A perda da realidade não foi reparada, mas apenas agravada pelo desenvolvimento das doutrinas ideológicas que, por seu turno, agora tornaram-se opacas e perderam sua credibilidade. Contudo, aparentemente a revolta teve que ser vivida por completo a fim de trazer a questão da verdade contra a doutrina a uma consciência aguda: no século vinte, ao menos os primórdios de uma revolta verdadeiramente radical contra todas as variedades de doutrina, incluindo as ideológicas, podem ser discernidos – como indiquei no começo desta palestra. O que os ideólogos designam a “era pós-cristã” aparenta estar recuando para o passado, e aqueles dentre nós que preferem viver no presente caracterizarão sua época como pós-doutrinal.

No sentido realista a “era pós-cristã” é uma revolta antidoutrinária que, tendo fracassado em resgatar a realidade da tensão existencial, degenerou em um novo dogmatismo. O adepto de uma seita ideológica, no entanto, não aceitaria nossa interpretação como o significado que ele associa a seu símbolo. Ele se exaltaria indignado com a ideia de que seu “pós-“particular deva um dia se tornar uma relíquia do passado, com um novo “pós-” ingressando no presente; pois ele, de sua parte, acredita que o símbolo “pós-” denota o estabelecimento de um estado final da sociedade sobre a Terra. Além disso, ele ridicularizaria nossa acusação de que ele fracassou em resgatar a verdade experienciada; ele replicaria, corretamente, que jamais tentara tal contrassenso, já que “a experiência é uma ilusão”. E, finalmente, ele insistiria que levanta objeções contra a teologia e a metafísica não porque a doutrina é um modo de verdade secundário, mas porque elas são concepções errôneas do mundo e já obscureceram por tempo demais a realidade que é o único objeto de seu interesse. Este protesto enérgico não pode ser varrido para debaixo do tapete. A posição do ideólogo parece estar fundamentada na realidade; devemos determinar com precisão que realidade é essa, e como ela é transformada nas construções oníricas da história.

O ideólogo apela não à realidade da verdade experienciada, mas à realidade do mundo, e por uma boa razão. Pois, de fato, a revolta ideológica contra a espécie mais antiga de doutrina extrai o melhor de sua força da experiência contemporânea do poder sobre a natureza obtido através do uso da ciência e da razão. A ideologia é um comensal da ciência moderna, extraindo sua agressividade e seu apelo dos conflitos dos cientistas com a Igreja e o Estado. No século XVI, e em algumas regiões da civilização ocidental em pleno século XX, a sombra da contemptus mundi cristã ainda paira sobre a natureza; e a exploração da natureza foi explicitamente prejudicada pela crença dos literalistas na doutrina cristã como fonte infalível de informação acerca da estrutura do mundo. Inevitavelmente, os exploradores da realidade até então negligenciada precisaram sofrer perseguições dos doutrinários literalistas. Não há nada de onírico acerca destes fatos: a ciência, a tecnologia, a indústria e as memórias do conflito são o terreno sólido sobre o qual o ideólogo pode assumir sua posição. Não obstante, o terrorismo dos grupos e regimes ideológicos também é real; e a reivindicação das ideologias ao estatuto de “ciências”, bem como o desenvolvimento das metodologias dóxicas, não deixam dúvidas de que o pesadelo se encontra de alguma maneira conectado com a ciência no sentido racional. Deve existir um fator cuja adição transforma a realidade do poder sobre a natureza, com seus usos racionais na economia da existência humana, no sonho do terrorista de dominação sobre o homem, a sociedade e a história; e não há dúvida de qual é este fator: trata-se da libido dominandi liberada quando os símbolos da verdade experienciada são drenados de sua realidade. Quando a realidade da ciência e do poder foi conquistada, a realidade da tensão existencial foi perdida, de modo que da combinação de ganho e perda, com a libido dominandi como catalisador, o novo sonho pode surgir. A técnica pela qual os símbolos oníricos são produzidos é bem conhecida. A carapaça da doutrina, vazia de sua realidade engendrante, é transformada pela libido dominandi em sua equivalente ideológica. A contemptus mundi é metamorfoseada na exaltatio mundi; a Cidade de Deus na Cidade dos Homens; o milênio apocalíptico no milênio ideológico; a metástase escatológica através da ação divina na metástase imanente ao mundo através da ação humana; e assim por diante. O centro do qual os símbolos particulares recebem seu significado é a transformação do poder humano sobre a natureza num poder humano de salvação. Nietzsche elaborou o símbolo da auto-salvação com a intenção de expressar a opus alquímica do homem criando-se a si próprio à sua própria imagem. Neste sonho de auto-salvação, o homem assume o papel de Deus e redime-se a si próprio por sua própria graça.

Entretanto, a auto-salvação é a auto-imortalização. Como o sonho de participação numa “era pós-cristã” assegura ao fiel ideológico a imortalidade que, nos termos das imagens fraturadas, tornou-se inacreditável, ele não pode aceitar nem o significado realista de sua própria expressão, nem o argumento racional em geral. Seu problema se tornará claro tão logo enunciemos as alternativas à persistência neste sonho. A fim de aceitar a razão, ele teria que aceitar a verdade experienciada – mas a realidade da tensão existencial, uma vez atrofiada, é de difícil restauração. Se, no entanto, a prisão de seu sonho for quebrada de alguma outra maneira que não pelo retorno à realidade, o único panorama que se descortinaria diante de seus olhos seria a crua desolação da existência numa época imanente ao mundo em que tudo é pós-tudo-que-veio-antes ad infinitum. A segunda alternativa seria liberar um dilúvio de angústia, e a aterrorizante perspectiva deste dilúvio mantém as portas da prisão firmemente trancadas. Deveríamos estar cientes deste horror, quando ocasionalmente ficamos perplexos com a resistência do ideólogo à argumentação racional. A alternativa à vida no paraíso de seu sonho é a morte no inferno de sua banalidade. Sua imortalidade autofabricada está em jogo; e a fim de protegê-la, ele deve aferrar-se à sua concepção do tempo. Pois o tempo em que o ideólogo situa sua construção não é o tempo da existência na tensão dirigida para a eternidade, mas um símbolo pelo qual ele tenta forçar a identidade entre o atemporal e o tempo de sua existência. Assim, conquanto a realidade da tensão entre o atemporal e o tempo seja perdida, a forma da tensão é preservada pelo ato onírico de forçar a unificação entre os dois polos. Podemos caracterizar a “era pós-cristã” do ideólogo, portanto, como um símbolo engendrado por seu libidinoso sonho de auto-salvação.

O filósofo também tem seus problemas com o “pós-“. Pois a participação na realidade inexistente do fundamento é a participação no atemporal; a consciência do fundamento é a área da realidade em que o atemporal toca o tempo. Onde, então, devemos situar a tensão existencial? No tempo com seus “pós-“, ou no atemporal em que presumivelmente não há nenhum “pós-“? A experiência de uma realidade interveniente entre os dois polos é excelsamente simbolizada por duas passagens dos Quatro Quartetos de T. S. Eliot: “A história é um padrão de momentos atemporais“; e “o ponto de intersecção do atemporal com o tempo“. Para expressar a mesma experiência da realidade, Platão desenvolveu o símbolo do metaxo, do intermédio, no sentido de uma realidade que participa do tempo e da eternidade e, portanto, não pertence integralmente a um ou outro. Parece haver um fluxo de existência que não é a existência no tempo. Como a filosofia moderna não desenvolveu um vocabulário para descrever o metaxo, utilizarei o termo “presença” para denotar o ponto de intersecção na existência do homem; e a expressão “fluxo de presença” para denotar a dimensão da existência que é e não é o tempo. Então será levantada a questão, que sentido faz o símbolo “pós-” se a história é um fluxo de presença? E, em sentido contrário, que sentido faz o símbolo “presença” se a presença da intersecção é um fluxo análogo ao tempo?

Os filósofos cristãos ocuparam-se do problema. Pois, convertida em doutrina, a verdade da salvação e da imortalidade através da fé em Cristo é capaz de condenar ao inferno todos os seres humanos que viveram antes de Cristo. Deixando de lado a brutalidade do procedimento, um filósofo não ficará muito satisfeito com tal doutrina, pois ele sabe que a tensão da fé em direção a Deus não é um privilégio exclusivo do cristão, mas um traço da natureza humana. Um Santo Agostinho, por exemplo, tinha plena consciência de que a estrutura da história é a mesma da existência pessoal; e ele não hesitou em empregar inversamente símbolos históricos para expressar a realidade da tensão pessoal. Nas Enarrationes in Psalmos, 64,2, ele permite aos símbolos históricos do Êxodo e da Babilônia expressarem o movimento da alma quando é atraída pelo amor a Deus:

Incipit exire qui incipit amare./Exeunt enim multi latenter,/et exeuntium pedes sunt cordis affectus: /exeunt autem de Babylonia.

Ele que começa a amar começa a abandonar./Muitos dos que abandonam não o conhecem./Pois os pés dos que saem são afecções do coração:/além disso, eles estão deixando a Babilônia.

Sua concepção da história como um conto de duas Cidades, entremeando-se desde os primórdios da humanidade até seu fim, concebe-a como uma narrativa em larga escala do Êxodo pessoal do homem. Mas como o “Cristo histórico”, com uma data fixa na história, se encaixa em sua concepção filosófica? Santo Tomás levantou a questão e a burilou até seu ponto crítico: ele pergunta “se Cristo é a Cabeça de todos os homens” (ST III.8.2), e responde inequivocamente que Ele é, de fato, a cabeça de todos os homens, e que consequentemente o Corpo Místico da Igreja consiste de todos os homens que já existiram e existirão do começo ao fim do mundo. Filosoficamente, a proposição implica que Cristo é tanto o “Cristo histórico”, com um “pré-” e um “pós-” no tempo, e a atemporalidade divina, onipresente no fluxo da história, sem nem um “pré-” nem um “pós-“. À luz destas implicações, então, o simbolismo da Encarnação expressaria a experiência, com uma data na história, de Deus fazendo-se presente no Homem e revelando-Se como a Presença que é o fluxo da presença desde o começo do mundo até seu fim. A História é o Cristo em larga escala. Esta última formulação não está com conflito com o “Homem em larga escala” platônico. É verdade que os dois simbolismos diferem, porque o primeiro é engendrado por uma experiência pneumática no contexto da revelação judaico-cristã, enquanto o segundo é engendrado por uma  experiência noética no contexto da filosofia helênica; mas eles não diferem quanto à estrutura da realidade simbolizada. A fim de confirmar a constância da estrutura exprimida em diferentes simbolismos, citarei duas passagens essenciais da Definição da Calcedônia (451 A.D.), tratando da união das duas naturezas na pessoa única de Cristo: “Nosso Senhor Jesus Cristo… verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem… reconhecido em duas naturezas… a distinção das naturezas não sendo de maneira alguma anulada pela união, mas antes as características de cada natureza sendo preservadas e reunindo-se para formar uma pessoa e uma substância.” Esta ousada tentativa dos Padres de expressar a realidade duas-em-uma da participação de Deus no homem, sem comprometer a separação das duas ou dividir o que é singular,  diz respeito à mesma estrutura de realidade intermediária, o metaxo, que o filósofo encontra quando analisa a consciência de participação do homem no fundamento divino de sua existência. A realidade do mediador e a realidade intermediária da consciência têm a mesma estrutura.

Na atmosfera intelectual predominante em nossa época, nossa análise de símbolos equivalentes pode levar a equívocos. Portanto, deixem-me alerta-los: o filósofo não pode fazer mais do que a ajudar a tornar a Revelação inteligível; uma filosofia da consciência não é um sucedâneo para a Revelação. Pois o filósofo é um homem em busca da verdade; ele não é Deus revelando a verdade. Esta advertência é necessária, pois Hegel tentou combinar filosofia e revelação no ato de produzir um sistema de especulação dialética. Ele imaginou uma Revelação incipiente de Deus através de Cristo realizando-se plenamente através da consciência tornando-se autoconsciente em seu sistema; e, consequentemente, imaginou o Deus que morreu em Cristo morto agora. Não quero entrar em detalhes – estamos familiarizados com a devastação hegeliana na forma da teologia existencialista e do movimento Deus-está-morto. Este sonho hegeliano de transformar Deus numa consciência, de modo que a consciência pode ser a Revelação, pertence à “era pós-cristã”. Nossa investigação não é nem uma construção “pós-cristã” da história, nem uma revelação da verdade; trata-se na verdade de uma aventura anamnética com o intuito de resgatar a presença a partir da “confusão geral da imprecisão de sentimentos”. T. S. Eliot capturou a essência de tal empreendimento nas linhas a seguir:

E o que há por conquistar/ Por força e submissão já foi descoberto/ Uma ou duas ou várias vezes, por homens com quem não se pode/ Pretender rivalizar – mas não se trata de competição -/ E sim de uma luta para recuperar o que se perdeu – e agora em condições/ Que não parecem favoráveis

Talvez as condições atuais sejam menos hostis do que pareceram ao poeta quando ele escreveu estes versos, quase uma geração atrás. De qualquer modo, devemos agora mergulhar no fluxo de presença, a fim de recuperar o significado da Imortalidade que irrompeu no Diálogo egípcio.

(Conclui a seguir.)

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Autor: Karl Popper

Fonte: Textos Escolhidos, David Miller, org. (Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2010), págs. 207-216.

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Se consideramos que uma teoria é uma proposta para solucionar um conjunto de problemas, então ela logo se presta ao debate crítico – mesmo que seja não empírica e irrefutável. Podemos fazer perguntas como: ela resolve o problema? Resolve-o melhor do que outras teorias? Será que apenas deslocou o problema? A solução é simples? É fecunda? Contradiz, talvez, outras teorias filosóficas necessárias para resolver outros problemas?

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Para evitar desde o início o risco de nos perdermos em generalidades, talvez seja melhor explicar de uma vez, com o auxílio de cinco exemplos, o que pretendo dizer com teoria filosófica ou metafísica.

Um exemplo típico é a doutrina kantiana do determinismo no mundo da experiência. Embora, no fundo, Kant fosse indeterminista, ele escreveu na Crítica da Razão Prática[1] que o conhecimento pleno de nossas condições psicológicas e fisiológicas e do ambiente tornaria possível prever nosso comportamento futuro com a mesma certeza com que sabemos prever um eclipse solar ou lunar.

Em termos mais gerais, poderíamos formular da seguinte maneira a doutrina determinista [ver também o texto 20, Indeterminismo e Liberdade Humana (1965) seção II, infra]:

O futuro do mundo empírico (ou fenomênico) é completamente predeterminado por seu estado atual, até os menores detalhes.

Outra teoria filosófica é o idealismo, a exemplo de Berkeley ou de Schopenhauer; talvez possamos expressa-lo aqui com a seguinte tese: “o mundo empírico é minha ideia” ou “o mundo é meu sonho”. [Ver também texto 17, Realismo (1970)  adiante.]

Uma terceira teoria filosófica, hoje importantíssima, é o irracionalismo epistemológico, que poderíamos explicar assim:

Como sabemos, desde Kant, que a razão humana é incapaz de apreender ou conhecer o mundo das coisas em si, devemos perder a esperança de conhecê-lo ou então tentar conhece-lo de outro modo que não seja a razão; já que não podemos nem queremos abrir mão dessa esperança, resta-nos usar meios irracionais ou suprarracionais como o instinto, a inspiração poética, os estados de espírito ou as emoções.

Segundo os irracionalistas, isso é possível porque, em última análise, nós mesmos somos coisas em si; por isso, se de algum modo conseguirmos obter conhecimento íntimo e imediato sobre nós mesmos, descobriremos como são as coisas em si.

Esse argumento simples do irracionalismo é característico da maioria dos filósofos pós-kantianos do século 19, a exemplo do engenhoso Schopenhauer. Ele descobriu que, como nós, coisas em si, somos vontade, a vontade deve ser a coisa em si. O mundo como coisa em si é vontade; como fenômeno é ideia. Estranhamente, essa filosofia obsoleta, vestida com nova roupagem, tornou-se de novo a última moda, embora – ou talvez porque – sua notável semelhança com as velhas ideias pós-kantianas tenha permanecido oculta (tanto quanto algo pode permanecer oculto sob a nova roupa do imperador). A filosofia de Schopenhauer passou a ser sugerida numa linguagem obscura e impressionante. Sua reveladora intuição de que, em última análise, o homem como coisa em si é vontade deu lugar à reveladora intuição de que o homem pode entediar-se tão completamente que esse tédio prova que a coisa em si é nada – é o Nada, o Vazio em si. Não quero negar alguma originalidade a essa variante existencialista da doutrina de Schopenhauer: sua originalidade aparece no fato de que esse filósofo nunca desvalorizou a tal sua própria capacidade de se entreter. O que ele descobriu em si foram vontade, atividade, tensão e emoção – mais ou menos o inverso do que descobriram alguns existencialistas: o tédio extremo do entediante em si entediado de si mesmo. Porém, Schopenhauer já não está em voga: a grande moda da nossa época pós-kantiana e pós-racionalista é o que Nietzsche (“assombrado por pressentimentos e suspeitas sobre seus seguidores”) chamou, com acerto, de “niilismo europeu”.[2]

Tudo isso é digressão. Temos agora, diante de nós, uma lista de cinco teorias filosóficas.

Primeira, o determinismo: o futuro está contido no presente, é plenamente determinado pelo presente.

Segunda, o idealismo: o mundo é meu sonho.

Terceira, o irracionalismo: temos experiências irracionais ou suprarracionais em que nos experimentamos como coisas em si; portanto, temos uma espécie de conhecimento das coisas em si.

Quarta, o voluntarismo: em nossas volições, conhecemos a nós mesmos como vontade; a coisa em si é vontade.

Quinta, o niilismo: em nosso tédio, conhecemos a nós mesmos como nada; a coisa em si é o nada.

Nossa lista terminou. Escolhi os exemplos de um modo que, após exame criterioso, posso dizer que cada uma dessas cinco teorias é falsa. Deixem-me enuncia-lo com mais exatidão: sou, em primeiro lugar, indeterminista, em segundo, realista, em terceiro, racionalista. No que concerne a meu quarto e quinto exemplos, admito de bom grado – com Kant e outros racionalistas críticos – que não podemos alcançar nada que se assemelhe a um conhecimento completo do mundo real, infinitamente rico e belo. Nem a física nem qualquer outra ciência pode nos ajudar nessa meta. Mas estou certo de que a fórmula voluntarista “o mundo é vontade” também não pode nos ajudar. Quanto aos niilistas e existencialistas que se entediam (e talvez entediem os outros), só posso ter piedade deles. Devem ser cegos e surdos, coitados, pois falam do mundo como um cego falaria das cores de um Perugino ou um surdo, da música de Mozart.

Por que fiz questão de selecionar teorias filosóficas que creio serem falsas? Porque, dessa maneira, espero enunciar com mais clareza o problema contido no seguinte enunciado, que é importante:

Embora eu considere falsa cada uma dessas cinco teorias, estou convencido de que todas são irrefutáveis.

Quem ouve essa afirmação pode indagar como uma teoria pode ser, ao mesmo tempo, falsa e irrefutável. Como um racionalista, como eu, pode dizer que uma teoria é falsa e irrefutável? Na condição de racionalista, não sou obrigado a refutar uma teoria depois de afirmar que ela é falsa? Inversamente, não sou obrigado a admitir que uma teoria irrefutável é verdadeira?

Com essas perguntas, finalmente cheguei ao nosso problema.

A última pergunta pode ser respondida de maneira bem simples. Houve pensadores que acreditaram que a verdade de uma teoria podia ser deduzida de sua irrefutabilidade. É um erro flagrante. É possível haver duas teorias incompatíveis mas igualmente irrefutáveis – por exemplo, o determinismo e seu oposto, o indeterminismo. Como duas teorias incompatíveis não podem ser, ambas, verdadeiras, percebemos, pelo fato de ambas serem irrefutáveis, que a irrefutabilidade não implica verdade.

É inadmissível inferir a verdade de uma teoria a partir de sua irrefutabilidade, independentemente da maneira como interpretemos irrefutabilidade. Usa-se essa palavra em dois sentidos.

O primeiro é puramente lógico: podemos usar “irrefutável” no sentido de “irrefutável por meios puramente lógicos”. Mas isso significa o mesmo que “coerente”. Ora, é óbvio que uma teoria não pode ser considerada verdadeira por ser coerente.

O segundo sentido de “irrefutável” refere-se a refutações que usam não apenas suposições lógicas (ou analíticas), mas também suposições empíricas (ou sintéticas); em outras palavras, aqui se admitem refutações empíricas. Neste segundo sentido, “irrefutável” significa o mesmo que “não empiricamente refutável” ou, em termos mais exatos, “compatível com qualquer enunciado empírico possível” ou “compatível com qualquer experiência possível”.

Ora, as irrefutabilidades lógica e empírica de um enunciado ou de uma teoria podem ser facilmente compatíveis com a falsidade delas. No caso da irrefutabilidade lógica, isso se evidencia pelo fato de que qualquer enunciado empírico e sua negação devem ser logicamente irrefutáveis. Por exemplo, os enunciados “hoje é segunda-feira” e “hoje não é segunda-feira” são logicamente irrefutáveis. Logo, existem enunciados falsos que são logicamente irrefutáveis.

A situação é um pouco diferente quando tratamos da irrefutabilidade empírica. Os exemplos mais simples de enunciados empiricamente irrefutáveis são os chamados enunciados existenciais estritos ou puros. Eis um exemplo: “Existe uma pérola que é dez vezes maior do que a segunda maior pérola”. Se restringirmos a palavra “existe” a uma região finita do espaço e do tempo, esse enunciado poderá tornar-se refutável. Por exemplo, o seguinte enunciado é obviamente passível de refutação empírica: “Neste momento e nesta caixa existem pelo menos duas pérolas, uma das quais é dez vezes maior do que a segunda maior pérola da caixa.” Mas tal enunciado já deixou de ser um enunciado existencial estrito ou puro: trata-se, antes, de um enunciado existencial restrito. O enunciado existencial estrito ou puro aplica-se ao universo inteiro. Ele é irrefutável simplesmente porque nenhum método pode refuta-lo. Mesmo que pudéssemos vasculhar o universo inteiro, o enunciado existencial estrito ou pruo não seria refutado se não encontrássemos a pérola procurada: ela poderia estar escondida num lugar que não houvéssemos examinado.

Eis alguns exemplos de enunciados existenciais empiricamente irrefutáveis que apresentam maior interesse:

“Existe um tratamento completamente eficaz para o câncer ou, mais precisamente, existe um composto químico que pode ser tomado sem efeitos nocivos e que cura o câncer.” Tal enunciado não diz que tal composto químico já é conhecido, nem que ele será descoberto em determinado prazo.

Exemplos similares são: “existe cura para qualquer doença infecciosa” e “existe uma fórmula em latim que, se pronunciada de maneira ritualmente correta, cura todas as doenças”.

Temos aí um enunciado empiricamente irrefutável que poucos de nós consideraríamos verdadeiro. Ele é irrefutável porque é impossível experimentar todas as fórmulas concebíveis em latim, combinadas com todas as maneiras concebíveis de pronuncia-las. Portanto, sempre resta a possibilidade lógica de que exista, afinal, uma fórmula mágica em latim com o poder de curar todas as doenças.

Mesmo assim temos razões para crer que esse enunciado existencial irrefutável é falso. Não podemos provar sua falsidade, mas tudo o que sabemos sobre doenças depõe contra sua veracidade. Em outras palavras: embora não possamos estabelecer sua falsidade, a conjectura de que tal fórmula mágica em latim não existe é muito mais razoável do que a conjectura de que ela existe.

Ao longo de quase 2 mil anos, homens cultos acreditaram na veracidade de um enunciado existencial muito semelhante a esse, e por isso persistiram na busca da pedra filosofal. O fato de não a terem encontrado não prova nada: as proposições existenciais são irrefutáveis.

Portanto, a irrefutabilidade lógica ou empírica de uma teoria não é razão suficiente para considera-la verdadeira. Tenho o direito de acreditar que aquelas cinco teorias filosóficas são irrefutáveis e falsas.

Cerca de vinte anos atrás propus distinguir teorias empíricas ou científicas e as não empíricas ou não científicas, justamente definindo as empíricas como refutáveis e as não empíricas como irrefutáveis. Eis as minhas razões para essa proposta. Qualquer teste sério de uma teoria é uma tentativa de refuta-la. Logo, a testabilidade é idêntica a refutabilidade ou falseabilidade. Como só devemos chamar de “empíricas” ou “científicas” as teorias que podemos submeter a testes empíricos, podemos concluir que a possibilidade de refutação empírica é o que distingue as teorias empíricas ou científicas. [Ver texto 8, O Problema da Demarcação (1974), supra.]

Quando esse “critério de refutabilidade” é aceito, logo percebemos que teorias filosóficas ou metafísicas são irrefutáveis por definição.

Agora, minha afirmação de que nossas cinco teorias filosóficas são irrefutáveis talvez pareça quase trivial. Por isso, embora eu seja racionalista, não sou obrigado a refutar essas teorias para ter o direito de considerá-las falsas. Isso nos traz ao centro doproblema:

Se todas as teorias filosóficas são irrefutáveis, como é possível distinguir entre teorias verdadeiras e falsas?

Eis o sério problema que emerge da irrefutabilidade das teorias filosóficas.

Para enunciar o problema com mais clareza, vou reformula-lo da seguinte maneira:

Podemos distinguir aqui três tipos de teoria.

Primeiro, teorias lógicas e matemáticas.

Segundo, teorias empíricas e científicas.

Terceiro, teorias filosóficas ou metafísicas.

Como é possível, em cada um desses grupos, distinguir teorias verdadeiras e falsas?

Com respeito ao primeiro grupo, a resposta é óbvia. Sempre que encontramos uma teoria matemática que não sabemos se é falsa ou verdadeira, nós a testamos, primeiro superficialmente, depois com mais rigor, tentando refuta-la. Quando não logramos êxito, tentamos prova-la ou refutar sua negação. Se falhamos de novo, é possível que tornem a surgir dúvidas sobre a veracidade da teoria. Voltamos a tentar refuta-la e assim sucessivamente, até que chegamos a uma decisão ou deixamos o problema em suspenso por considera-lo difícil demais.

Essa situação também pode ser descrita da seguinte maneira. Nossa tarefa é a testagem, o exame crítico de duas ou mais teorias rivais. Nós a executamos procurando refuta-las, até chegarmos a uma decisão. Na matemática, e somente nela, tais decisões costumam ser definitivas: são raras as provas inválidas que escapam à detecção.

Nas ciências empíricas, em geral seguimos fundamentalmente o mesmo procedimento. Também nelas testamos nossas teorias: as examinamos criticamente e tentamos refuta-las. A única diferença importante é que, agora, nosso exame crítico também pode usar argumentos empíricos. Tais argumentos, porém, exigem outras considerações críticas. O pensamento crítico continua a ser o principal instrumento. Só usamos observações quando elas se encaixam em nosso debate crítico.

Se aplicarmos tais considerações às teorias filosóficas, nosso problema pode ser reformulado da seguinte maneira:

Será possível examinar criticamente teorias filosóficas irrefutáveis? Em caso afirmativo, em que pode consistir o debate crítico de uma teoria, se não em tentativas de refuta-la? Que argumentos razoáveis podemos apresentar a favor e contra uma teoria que sabemos não ser demonstrável nem refutável?

Para ilustrar com exemplos essas diversas formulações de nosso problema, retornemos ao problema do determinismo. Kant sabia que somos incapazes de prever atos futuros de um ser humano com a exatidão com que sabemos prever um eclipse. Explicou essa diferença com a suposição de que sabemos muito menos sobre as condições atuais do homem – seus desejos e medos, seus sentimentos e motivações – do que sobre o estado atual do sistema solar. Essa suposição contém, implicitamente, a seguinte hipótese:

“Existe uma descrição verdadeira do estado atual deste homem que (juntamente com leis naturais verdadeiras) poderia permitir a previsão de seus atos futuros.”

Mais uma vez, é claro, trata-se de um enunciado puramente existencial e, por conseguinte, irrefutável. Mesmo assim, será que podemos debater de maneira racional e crítica o argumento de Kant?

Como segundo exemplo, podemos considerar a tese de que “o mundo é meu sonho”. Embora se trate de uma tese claramente irrefutável, poucos acreditarão que seja verdadeira. Podemos debate-la de modo racional e crítico? Não será sua irrefutabilidade um obstáculo instransponível para qualquer debate crítico?

Talvez se pense que o debate crítico da doutrina kantiana do determinismo possa começar da seguinte maneira: “Meu prezado Kant, não basta afirmar que existe uma descrição verdadeira suficientemente detalhada para nos habilitar a prever o futuro. Você precisa nos dizer exatamente em que consistiria essa descrição, para que possamos testar sua teoria empiricamente.” Esse discurso, contudo, equivale a supor que as teorias filosóficas – isto é, irrefutáveis – não podem ser debatidas e que um pensador responsável está fadado a substituí-las por teorias empiricamente testáveis, a fim de possibilitar um debate racional.

Espero que nosso problema tenha ficado suficientemente claro. Passarei a propor uma solução.

Minha solução é esta: se uma teoria filosófica fosse uma afirmação isolada sobre o mundo, lançada sobre cada um de nós, implicitamente, com um “pegar” ou “largar”, sem ligação com mais nada, seria impossível debatê-la. Porém, o mesmo se pode dizer de uma teoria empírica. Se alguém nos presenteasse as equações de Newton, ou mesmo suas teses, sem primeiro nos explicar quais eram os problemas que essa teoria pretende resolver, não seríamos capazes de debater racionalmente a sua veracidade – não mais do que a veracidade do livro do Apocalipse. Sem nenhum conhecimento dos resultados de Galileu e de Kepler, dos problemas que eles resolveram e do problema de Newton – explicar as soluções de Galileu e de Kepler por meio de uma teoria unificada –, consideraríamos impossível debater a teoria newtoniana, tanto quanto qualquer teoria metafísica. Em outras palavras, toda teoria racional, seja científica ou filosófica, é racional à medida que tenta solucionar determinados problemas. Uma teoria só é abrangente e sensata quando relacionada a uma dada situação problemática e só pode ser racionalmente debatida mediante o debate dessa relação.

Ora, se consideramos que uma teoria é uma proposta para solucionar um conjunto de problemas, então ela logo se presta ao debate crítico – mesmo que seja não empírica e irrefutável. Podemos fazer perguntas como: ela resolve o problema? Resolve-o melhor do que outras teorias? Será que apenas deslocou o problema? A solução é simples? É fecunda? Contradiz, talvez, outras teorias filosóficas necessárias para resolver outros problemas?

Perguntas assim mostram que o debate crítico de teorias irrefutáveis pode revelar-se viável.

Mais uma vez, permitam-me dar um exemplo: o idealismo de Berkeley ou Hume (que substituí pela fórmula simplificada “o mundo é meu sonho”). Esses autores não desejavam defender uma teoria tão extravagante, o que se percebe pela insistência reiterada de Berkeley em que suas teorias estavam de acordo com o sólido senso comum.[3] Pois bem: se tentarmos compreender a situação problemática que os induziu a propor essa teoria, veremos que Berkeley e Hume acreditavam que todo conhecimento humano é redutível a impressões sensoriais e a associações entre imagens mnêmicas. Essa suposição levou os dois filósofos a adotarem o idealismo a contragosto, particularmente no caso de Hume. Este só se tornou idealista por ter fracassado na tentativa de reduzir o realismo a impressões sensoriais.

É perfeitamente sensato criticar o idealismo de Hume, assinalando que sua teoria sensorial do conhecimento e da aprendizagem era insatisfatória. Teorias menos insatisfatórias da aprendizagem não tem consequências idealistas indesejáveis.

De modo semelhante, agora podemos debater de maneira racional e crítica o determinismo kantiano. A intenção fundamental de Kant era indeterminista: embora acreditasse que o determinismo do mundo fenomênico fosse uma consequência inevitável da teoria de Newton, ele nunca duvidou que o ser humano, como ser moral, era indeterminado. Kant jamais conseguiu solucionar o conflito entre sua filosofia teórica e sua filosofia prática de um modo que o satisfizesse completamente, e perdeu a esperança de um dia encontrar uma solução real.

No contexto dessa situação problemática torna-se possível criticar o determinismo de Kant. Podemos indagar, por exemplo, se a teoria newtoniana resulta, de fato, nesse determinismo. Conjecturemos por um momento que não. [Ver texto 20, Indeterminismo e Liberdade Humana (1965), seção III, adiante.] Não duvido que uma demonstração clara da veracidade dessa conjectura convencesse Kant a renunciar à sua doutrina do determinismo – apesar de essa doutrina ser irrefutável (ele não seria logicamente obrigado a abandona-la).

Ocorre algo semelhante com o irracionalismo. Ele entrou na filosofia racional, pela primeira vez, com Hume. Quem leu Hume, aquele analista calmo, sabe que não era isso que ele pretendia. O irracionalismo foi a consequência não intencional da convicção humiana de que realmente aprendemos por indução baconiana, aliada à demonstração lógica humiana de que é impossível justificar racionalmente a indução. “Pior para a justificação racional” – eis a conclusão de Hume, diante dessa situação. Ele aceitou tal conclusão irracional com a integridade característica do verdadeiro racionalista, que não recua de uma conclusão desagradável quando lhe parece impossível evitá-la.

Nesse caso, porém, ela não era inevitável, mesmo que assim parecesse a Hume. Ao contrário do que ele acreditava, não somos máquinas baconianas de indução. No processo de aprendizagem, o hábito ou costume não desempenha o papel que Hume lhe atribuiu. Assim, o problema humiano se desfaz e, com ele, sua conclusão irracionalista.

A situação do irracionalismo pós-kantiano é um pouco parecida. Schopenhauer, em particular, opôs-se sinceramente ao irracionalismo. Escreveu com um único desejo: ser compreendido. Escreveu de maneira mais lúcida que qualquer outro filósofo alemão. Seu empenho em se fazer compreender transformou-o num dos grandes mestres da língua alemã.

Mas os problemas de Schopenhauer eram os da metafísica de Kant – o problema do determinismo no mundo fenomênico, o problema da coisa em si e o problema de estarmos em um mundo de coisas em si. Ele solucionou esses problemas – que transcendem qualquer experiência possível – à sua maneira, tipicamente racional. Mas era fatal que a solução fosse irracional. Schopenhauer era kantiano e, como tal, acreditava nos limites kantianos da razão: acreditava que os limites da razão humana coincidiam com os limites da experiência possível.

Também aí há outras soluções possíveis. Os problemas de Kant podem e devem ser revistos, e a direção que essa revisão deve tomar é indicada por sua ideia fundamental de racionalismo crítico ou autocrítico.

A descoberta de um problema filosófico pode ser algo definitivo, feito de uma vez por todas. Mas sua solução nunca é definitiva. Não pode basear-se numa demonstração final ou numa refutação final, uma decorrência da irrefutabilidade das teorias filosóficas. A solução tampouco pode basear-se nas fórmulas mágicas dos profetas filosóficos inspirados (ou entediados). Mas pode basear-se no exame consciencioso e crítico de uma situação problemática e das suposições subjacentes a ela, bem como das várias maneiras possíveis de resolvê-la.

Notas.

1. Ver I. Kant, Crítica da Razão Prática, trad., introdução e notas de Valério Rohden, São Paulo: Martins Fontes, 2002.

2. Ver Julius Kraft, Von Husserl zu Heidegger, 2ª ed., 1957, págs. 103s, 136s e, em especial, pág. 130, onde Kraft escreve: “Assim, é difícil compreender como o existencialismo pode ter sido considerado algo novo na filosofia, do ponto de vista epistemológico.” Ver também o instigante artigo de H. Tint, Heidegger and the ‘Irrational'”, Proceedings of the Aristotelian Society LVII, 1956-1957, pág. 253-268.

3. Isso também pode ser visto pela franca admissão de Hume de que, “seja qual for a opinião do leitor neste momento, […] daqui a uma hora estará convencido de que tanto existe um mundo externo quanto um mundo interno”, ver D. Hume, A Treatise of Human Nature, Livro I, Parte IV, Seção II; edição de L. Selby-Bigge, pág. 218. [Para um comentário, ver a nota 4 do texto 7, O Problema da Indução (1953, 1974), supra.]

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por Richard Carrier

A partir de fatos solidamente estabelecidos é necessariamente o caso que cada ser humano compartilha com todos os outros seres humanos algum subconjunto de fatos verdadeiros do mundo (aspectos ambientais, mentais e corporais em comum, em virtude de partilharem a mesma biologia e habitarem o mesmo universo) e algum subconjunto de desejos inatos (decorrentes de uma biologia e de vários aspectos da experiência consciente compartilhados). Consequentemente, é possível que o que cada indivíduo mais quer (quando racional e suficientemente informado) será o mesmo que todos os outros querem – caso em que fatos morais universais necessariamente existem. Pois nessas circunstâncias todos (quando racionais e suficientemente informados) desejarão a mesma coisa acima de tudo, e como a obtenção da mesma coisa nas mesmas circunstâncias depende de fatos do universo que são universalmente os mesmos para todos nessas mesmas circunstâncias, os mesmos imperativos morais são factualmente verdadeiros para todos. Precisamos apenas descobrir quais são estes imperativos. (Nota do Tradutor: o teólogo Richard Swinburne concorda, como atestam estas páginas de seu livro The Existence of God.)

Somente se o que um indivíduo mais deseja (quando racional e suficientemente informado) diferir do que todos os demais desejam este não será o caso. Então, um conjunto diferente de fatos morais será verdadeiro para cada um deles (não obstante, ainda assim fatos morais verdadeiros continuam a existir; mais uma vez, eles apenas serão relativos a diferentes grupos ou indivíduos). Mas esse resultado é altamente improvável para membros da mesma espécie. Isto porque quando racional e suficientemente informado, qualquer indivíduo preferirá obedecer a desejos racionalmente informados em detrimento de todos os outros desejos, fato este que sempre implica a descoberta de que certos desejos são instrumentalmente necessários para a obtenção de qualquer outra coisa que alguém deseje, e em virtude de uma mesma biologia fundamental (em oposição à incidental) compartilhada e do mesmo ambiente (incluindo o ambiente social – porque, afinal, ainda temos que viver uns com os outros), todos compartilham um conjunto de desejos instrumentalmente necessários e derrogatórios que em virtude de serem necessários e derrogatórios devem ser obedecidos acima de todos os outros, e que por definição implicam um sistema moral comum.

Desejos racionalmente esclarecidos (mesmo antes de se tornarem racionalmente esclarecidos) podem vir a existir apenas de duas maneiras: a partir da biologia fundamental ou a partir de condicionamentos ambientais (o que inclui escolhas deliberadas).[39] Como consequência do escrutínio de todos os nossos desejos a fim de nos cientificarmos de todos os fatos relevantes, podemos então escolher racional e esclarecidamente obedecer a um desejo condicionado na medida em que tal desejo, em última análise, satisfaça um desejo biológico inalterável ou tenha êxito em lidar com uma condição inalterável de nosso ambiente. Isto porque qualquer coisa alterável podemos alterar em vez de obedecer, de modo que qualquer coisa que devemos obedecer sempre ultrapassará qualquer coisa que não precisamos obedecer. Consequentemente as condições inalteráveis de nossa biologia ou de nosso ambiente sempre nos compelirão a querer algo mais. Em outras palavras, sempre existe algum enunciado verdadeiro “Eu preciso de x“, e para qualquer pessoa racionalmente esclarecida, “Eu preciso de x” sempre implica querer x mais do que z sempre que duas condições são satisfeitas: x implica ~z e “Eu quero, mas não necessito de, z.” Se x não implica ~z, então não há nenhum conflito (consequentemente desejos incidentais não fazem diferença nenhuma para os fatos morais fundamentais – veja na próxma parte o exemplo das “alergias”). Mas quando há um conflito, o que é necessário sempre vem em primeiro lugar, e assim a alternativa não pode ser um imperativo moral. E como isto adicionalmente implica que necessidades podem ser suplantadas somente por outras necessidades, somente necessidades (as quais são desejos inalteráveis que são fundamentalmente ou instrumentalmente necessários) podem ser fundamentos de um sistema moral verdadeiro. E necessidades somente são implicadas por constantes inalteráveis (de nossa biologia ou de nosso ambiente); caso contrário, por serem alteráveis, elas não deixam de ser necessárias (porque ao altera-las podemos remover sua necessidade).

Por conseguinte, o que queremos acima de tudo (quando racionais e suficientemente esclarecidos) sempre será implicado por, e somente por, fatos biológicos inalteráveis ou fatos ambientais inalteráveis. Mas seres humanos, em virtude de suas origens e de sua contínua miscigenação, não exibem diferenças biológicas no que concerne a seus desejos fundamentais, inalteráveis e instrumentalmente necessários. De fato, isso seria extraordinariamente improvável (em virtude da extrema variabilidade genética que tal fato exige, a qual não pode ser alcançada por mutações aleatórias, exceto com uma raridade tão extraordinária que podemos esperar nunca encontrar uma pessoa assim em dezenas de milhões de anos). Por exemplo: todos precisamos comer, respirar, nos movimentar, pensar, e cooperar e socializar numa comunidade; geralmente as mesmas coisas são letais ou prejudiciais para todos nós (fisicamente e em alguns casos emocionalmente, tais como os efeitos cientificamente documentados da solidão e da privação afetiva); todos podemos construir uma autoconsciência deliberada quando saudáveis e despertos; todos possuímos neurônios-espelho e confiamos em teorias inatas da mente para entender outras pessoas (a menos que sejamos mentalmente incapazes, mas mesmo a maioria dos autistas, por exemplo, pode aprender uma teoria da mente e aplica-la em seu processo de tomada de decisões, e como o resto de nós eles ainda precisam ser bem-sucedidos ao transitar em seu mundo social).[40] E assim por diante.

Felicidade e alegria, portanto, dependem de uma combinação de fatos biológicos universais compartilhados por todos os seres humanos. Mesmo o que já se pensou ser uma exceção a esta regra (psicopatas) já foi demonstrado não ser: apesar de serem cognitivamente anormais, quando fazem depoimentos sinceros e são suficientemente informados das diferenças entre suas vidas e seus estados mentais e os dos não-sociopatas, eles sempre reconhecem que são profundamente insatisfeitos e admitem desejar mais do que tudo serem pessoas diferentes; todavia, são incapazes de obter o que mais desejam devido a seus defeitos cognitivos. Portanto, (quando plenamente racionais e esclarecidos) eles não “desejam acima de tudo” qualquer coisa fundamentalmente diferente do que nós desejamos, eles apenas são incapazes de alcança-la. E eles não são incapazes de alcança-la devido a um obstáculo externo a seu raciocínio, mas como consequência de um defeito em seu raciocínio.[41] Eles são, portanto, inescapavelmente irracionais, que é a razão pela qual eles são classificados como insanos. Nossa incapacidade de persuadi-los racionalmente a serem morais é exatamente a mesma incapacidade que temos de persuadir racionalmente um esquizofrênico. E o fato de que lunáticos não podem ser racionalmente persuadidos não constitui um defeito numa teoria moral.

Como nossos desejos biológicos primários (primários significando os que são fundamentais, inalteráveis ou instrumentalmente necessários) não podem diferir frequentemente, e portanto não produzem diferenças em nossos desejos mais derrogatórios, isso deixa as diferenças ambientais inalteráveis. Mas estas não fazem nenhuma diferença para uma moralidade universal. Por serem inalteráveis, elas constituem condições a que um agente é forçado a se sujeitar. Como os fatos morais dependentes de um contexto (como qualquer imperativo hipotético deve ser, isto é, as condições de verdade exigidas implicam que o fim deve ser alcançável pela ação prescrita, que sempre dependerá do contexto), quando fatos ambientais inalteráveis implicam querer alguma coisa mais do que aquelas que num ambiente diferente não serão desejáveis acima de tudo, esta conclusão já é implicada por qualquer sistema de moralidade universal. Isto é, qualquer sistema de fatos morais verdadeiros já incluirá o fato de que, se fôssemos forçados nas mesmas condições, seríamos compelidos pelos mesmos imperativos que então vigoram. Em outras palavras, que uma pessoa possa querer mais alguma outra coisa na condição C do que na condição D não implica que fatos morais diferentes vigoram, porque neste caso o imperativo difere somente em relação às condições individuais, não em relação a quaisquer desejos que ainda vigorariam na ausência daquelas condições, e todos os fatos morais são relativos às condições.

Mesmo o mais inflexível cristão conservador reconhecerá que as condições podem alterar o que é moralmente correto fazer, e em última análise até mesmo Kant seria obrigado a concordar. Seu imperativo categórico implicou que devemos “agir somente de acordo com a máxima pela qual você pode ao mesmo tempo querer que se torne uma lei universal”, e nós certamente desejamos que seja uma lei universal que sempre que uma uma exceção apareça, nosso comportamento deve adaptar-se a ela. Por exemplo, matar em autodefesa: jamais desejaríamos que fosse uma lei universal uma proibição grosseira contra matar, exatamente porque sabemos que podemos ter que matar um assassino em potencial em nossa própria defesa. Portanto, antes desejaríamos que fosse uma lei universal uma proibição contra matar apenas em certas circunstâncias, com permissão para matar em outras. Portanto, nós incorporamos diferenças nas condições, mesmo numa lei moral universal. Por conseguinte, porque desejaríamos que fosse uma lei universal que uma pessoa numa condição C deveria querer mais uma coisa, mas numa condição D deveria querer mais alguma outra coisa, exatamente porque essa pessoa não pode alterar essas condições, diferenças no desejo supremo implicadas por fatores ambientais inalteráveis não fazem a menor diferença para a existência de fatos morais universais.

Como a biologia jamais criará um conjunto diferente de fatos morais para qualquer indivíduo humano (exceto tão raramente a ponto de ser insignificante), e o ambiente não é capaz de criar um conjunto diferente de fatos morais para qualquer indivíduo humano (porque, como demonstrado, tal efeito é logicamente impossível), e estas são as únicas fontes possíveis para tal diferença (sendo as únicas fontes possíveis de uma diferença racionalmente esclarecida num desejo supremo), segue a conclusão de que fatos morais universais devem existir necessariamente (para todos ou, no mínimo, para quase todos os seres humanos).[42]

Notas.

39. Acredito que a ciência estabeleceu uma mais do que abraangente explicação da motivação humeana (Carrier, Sense and Goodness, 193-197, para a discussão e a bibliografia cientifica), e todas as objeções filosóficas a isso foram competentemente liquidadas por Neil Sinhababu, “The Humean Theory of Motivation Reformulated and Defended,” Philosophical Review 118, no. 4 (2009): 465–500 (embora ele ocasionalmente confunda a fenomenologia do desejo com a mecânica lógica do desejo, isto interfere apenas em sua habilidade para unificar o internalismo e o cognitivismo; o restante de seu argumento permanece correto mesmo utilizando minha definição de desejo exposta na nota 4). Não obstante, minha teoria moral conforme enunciada aqui é compatível tanto com explicações humeanas quanto com não-humeanas da motivação moral (por exemplo, “Quando racional e suficientemente esclarecido, você desejará x mais do que ~x” não pressupõe de onde este desejo por x se origina, somente que ele sobreviverá a um exame racional).

40. Sobre teorias da mente inatistas ou empiristas e seu papel no autismo, veja Simon Baron-Cohen, Mindblindness: An Essay on Autism and Theory of Mind (Cambridge, MA: MIT Press, 1995).

41. Veja a discussão e as fontes em Carrier, Sense and Goodness, 342–44; e em Sinnott-Armstrong, Moral Pyschology, 1:390, 3:119–296, 363–66, 381–82. Todavia, sua insanidade não significa que os psicopatas possuem uma desculpa, pois quando agem imoralmente eles geralmente ainda sabem que o que estão fazendo é errado (veja a nota 35). E mesmo quando não sabem, como os esquizofrênicos, ainda precisamos dete-los e nos proteger deles.

42. Eis a prova formal dessa afirmação:

ARGUMENTO 4: EXISTE UM SISTEMA MORAL VERDADEIRO PARA PRATICAMENTE TODOS OS SERES HUMANOS

Definições:

CH = o resultado ou conjunto de resultados possíveis que praticamente todos os membros da espécie humana desejariam acima de qualquer outro resultado possível (nas mesmas circunstâncias).

TL = o sistema moral implicado pelo resultado ou conjunto de resultados possíveis que
L deseja acima de qualquer outro resultado possível.

THo sistema moral implicado pelo resultado ou conjunto de resultados possíveis que praticamente todos os membros da espécie humana desejam acima de que qualquer outro resultado possível.

U = um sistema moral aproximadamente universal.

BDa biologia fundamental de difere da do resto da espécie humana no que diz respeito à determinação do que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado.

~BDsomente alguma outra das circunstâncias de L que não a biologia fundamental difere da do resto da espécie humana no que diz respeito à determinação do que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado, ou então nenhuma diferença.

EXCL é incrivelmente excepcional entre os humanos por possuir uma biologia que determina diferentemente o que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado.

VNB = praticamente todos os membros da espécie humana não tem uma biologia que determina diferentemente o que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado.

VNA = o resultado ou conjunto de resultados possível que praticamente qualquer membro da espécie humana deseja acima de que qualquer outro resultado possível.

MVNA = resultados que praticamente qualquer membro da espécie humana deseja acima de qualquer outro resultado possível.

MH = o sistema moral implicado pelo resultado ou conjunto de resultados que praticamente todos os membros da espécie humana desejam acima de qualquer outro resultado possível.

Argumento:

4.1 Se D vigora, então C é ou CH ou ~CH. (e a partir de 3.2, se existe D, então existe C)

4.2 Se C é CH, então TL é TH. (e a partir de 3.7, se L e D, então TL)

4.3 Se TL é TH, então existe U.

4.4 Portanto, se C é CH, então U existe.

4.5 Se C é ~CH, então ou BD ou ~BD.

4.6 Se ~BD, então se D vigora, então C é CH.

4.7 Portanto, se ~BD, então se D vigora, então U existe. (isto é, se 4.4 e 4.6, então 4.7)

4.8 Se BD, então EXC.

4.9 Se EXC, então VNB.

4.10 Se VNB, então se D vigora, então VNA é CH.

4.11 Se VNA é CH, então MVNA é MH.

4.12 Se MVNA é MH, então U existe.

4.13 Portanto, se D vigora, então se BD, então existe U. (isto é, se BD, então EXC; e se EXC, então VNB; e se VNB, então se D vigora, VNA é CH; e se VNA é CH, então MVNA é MH e se MVNA é MH, então existe U; portanto, se BD e D vigoram, então existe U)

4.14 Portanto, ou C é CH ou C é ~CH; se C é CH, então existe U, e se C é ~CH, então ou BD ou ~BD; e se ~BD e D vigoram, então U existe; e se BD e D vigoram, então U existe; portanto, se ~CH e D vigoram, então U existe; portanto, se D e C vigoram, então U existe.

4.15 Portanto, se D vigora, então U existe. (isto é, se 3.2 e 4.14, então 4.15)

Portanto, quando o que qualquer um deseja é racionalmente deduzido do máximo possível de fatos verdadeiros razoavelmente alcançáveis concernentes a todas as suas preferências e do resultado total de cada comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias, existe um sistema moral aproximadamente universal.

Esta é a prova formal de que estes fatos morais são cientificamente acessíveis:

ARGUMENTO 5: QUE A CIÊNCIA PODE DESCOBRIR EMPIRICAMENTE O VERDADEIRO SISTEMA MORAL

5.1 Existe T se existe B e D e W (isto é, se 1.8, 3.2, 3.3 e 3.7, então 5.1)

5.2 Portanto, T é plenamente implicado para qualquer L pelos “fatos verdadeiros” acerca de “todas as suas preferências” e do “resultado total” de “cada comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias” e de qual “comportamento cujo resultado ele deseja acima de qualquer outro” até onde “ele possa razoavelmente” conhecer nestas circunstâncias.

5.3 Os “fatos verdadeiros” para qualquer L acerca de “todas as suas preferências” e o “resultado total” de “cada possível comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias” e qual “comportamento cujo resultado ele deseja acima de qualquer outro resultado” (tanto quanto “ele possa razoavelmente” conhecer nestas circunstâncias) são todos fatos empíricos.

5.4 A ciência pode descobrir quaisquer fatos empíricos para os quais ela desenvolva métodos capazes de investiga-los.

5.5 Portanto, se a ciência pode desenvolver os métodos requeridos, então a ciência pode descobrir os “fatos verdadeiros” para qualquer L no que concerne a “todas as suas preferências” e ao “resultado total” de “cada comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias” e qual o “Comportamento cujo resultado ele deseja mais do que qualquer outro resultado” tanto quanto “ele possa razoavelmente” saber nestas circunstâncias.

5.6 A ciência pode desenvolver os métodos requeridos (ao menos até certo ponto).

5.7 Portanto, a ciência pode descobrir T (o sistema moral verdadeiro) pelo menos até certo ponto.

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