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Posts Tagged ‘darwinismo’

Título Original: O Ateísmo Não Foi A Causa Do Holocausto

Autor:  Hector Avalos, PhD

Fonte: The Christian Delusion, págs. 368-395 (John W. Loftus, ed., Prometheus Books, 2010 )

Tradução: Gilmar Pereira dos Santos

Hector Avalos (nascido em Nogales, México, em 8 de Outubro de 1958) é professor de Estudos Religiosos na Iowa University State e autor de diversos livros sobre religião. Ele é ex-pastor pentecostal e ex-criança evangelista.

Ele possui um doutorado em Estudos do Oriente Próximo e da Bíblia Hebraica pela Harvard University (1991), um mestrado em Estudos Teológicos pela Harvard Divinity School (1985) e um bacharelado em Antropologia pela University of Arizona (1982).

Avalos foi admitido na Iowa University no Outono de 1993 após completar seu pós-doutorado (1991-93) nos departamentos de Antropologia e Estudos Religiosos na University of North Carolina em Chapel Hill. Em 1996 Avalos foi eleito Professor do Ano na Iowa State University, onde também foi eleito Melhor Professor no biênio 2003-04. Outros prêmios incluem The Early Achievement in Research and Creative Activity Award (College of Liberal Arts and Sciences, 1996), e the Outstanding Professor Award (College of Liberal Arts and Sciences, 1996).

Avalos é internacionalmente reconhecido por sua ferrenha oposição ao design inteligente e ao movimento neocriacionista, sendo frequentemente associado a Guillermo Gonzalez, um astrofísico defensor do design inteligente a quem foi negada a nomeação para um cargo na Iowa State University em 2007. Avalos corredigiu uma declaração contra o design inteligente em 2005, que por fim foi subscrita por 130 membros da Iowa University State. Esta declaração foi adotada como modelo para outras declarações pela University of Northern Iowa e pela University of Iowa. Ambos Gonzalez e Avalos aparecem no filme Expelled: No Intelligence Allowed (2008).

Avalos é um ateu militante e um defensor da ética humanista secular.

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Em sua réplica às acusações dos autores neoateus de que a religião levou a matanças em larga escala, Dinesh D’Souza, o comentarista conservador, assegura-nos que “o nazismo… foi uma filosofia secular e antirreligiosa que, de modo bastante estranho, compartilhou diversos elementos com o comunismo[1].” Desse modo, D’Souza é capaz de responsabilizar o ateísmo na Alemanha Nazista por 10 milhões de mortes, incluindo as de 6 milhões de judeus. De fato, para D’Souza, os regimes ateístas de Joseph Stalin e Mao Zedong ocupam os dois primeiros lugares no ranking da violência ateísta. De um modo geral, D’Souza afirma que estes três grandes regimes ateístas assassinaram cerca de 100 milhões de pessoas[2].

D’Souza exemplifica à perfeição a categoria dos apologistas cristãos cuja melhor resposta aos genocídios cometidos por autoproclamados cristãos é afirmar que os ateus assassinaram ainda mais. Com efeito, D’Souza calcula que “as mortes causadas por regimes cristãos ao longo de um período de 500 anos equivalem a apenas um porcento das mortes causadas por Stalin, Hitler e Mao num intervalo de poucas décadas”.[3] Bruxas e judeus são alguns dos grupos que D’Souza relutantemente admite que podem ter sido assassinados em decorrência da violência cristã.

Já discuti extensamente a falácia de conceber a violência estalinista em termos de ateísmo[4]. A maior parcela da violência estalinista resultou da coletivização forçada, e documentos publicados recentemente mostram a cumplicidade das autoridades clericais com a agenda estalinista.[5] D’Souza não fornece um único documento ou declaração de Stalin mostrando que ele estava coletivizando ou assassinando por razões ateístas.

Além disso, o comunismo, entendido como um sistema de propriedade coletivizada, é uma noção bíblica já encontrada em Atos 4:32-37. Esse sistema comunista cristão também resultou no assassinato de um casal (Atos 5:1-11) que quebrou sua promessa de renunciar à suas posses. Portanto, o princípio de matar os que não se resignassem à coletivização de suas propriedades é bíblico. A defesa de que o motivo pelo qual Ananias e Safira foram mortos foi simplesmente mentir sobre a entrega de suas posses negligencia a brutalidade do fato de que o valor da vida foi colocado abaixo do valor da renúncia às próprias posses. Pois em vez de apenas bani-los da comunidade, eles foram mortos. Stalin ou Mao provavelmente teriam feito a mesma coisa. Como o comunismo é defendido por alguns autores bíblicos, os assassinatos maoístas e estalinistas não podem ser atribuídos ao ateísmo sem mais nem menos, na medida em que a coletivização forçada pode ser letal tanto em sua forma ateísta como na cristã. (Nota do tradutor: não somente isso, como mesmo intérpretes modernos da doutrina cristã, como o influente apologista inglês C.S. Lewis, reconhecem que no aspecto econômico, uma sociedade construída sob princípios cristãos “seria o que se chama hoje em dia ‘de esquerda'(…) sua vida econômica seria bastante socialista“. Para maiores detalhes vejam o capítulo 3 do terceiro livro de Cristianismo Puro e Simples, Conduta Cristã – Moralidade Social)

Além disso, D’Souza não possui a competência necessária para avaliar as alegações de violência maoísta porque tal tarefa requer um treinamento extensivo na língua e nos documentos chineses para averiguar a acurácia das informações fornecidas pelas fontes inglesas. Como eu também careço de especialização no idioma e na cultura chinesa para avaliar a violência maoísta, não abordarei o maoísmo aqui. O que sabemos é que D’Souza não apresenta uma única citação de Mao ou mesmo de algum documento chinês traduzido para respaldar suas asserções de que Mao assassinou por causa do ateísmo.

Em todo caso, este artigo analisará em grande profundidade o argumento de que as mortes causadas por Hitler deveriam ser atribuídas a algum tipo de ateísmo darwinista, algo enfaticamente defendido por Richard Weikart em seu livro From Darwin to Hitler (2004)[6]. O livro de Weikart é uma das fontes para os pronunciamentos de D’Souza. Na verdade, demonstrarei que:

  • O Holocausto nazista, em vez de resultar de algum tipo de ateísmo darwinista, é efetivamente a mais trágica consequência de uma longa história de racismo e antijudaísmo cristãos.
  • O Nazismo assassinou pessoas por sua etnicidade ou religião seguindo princípios enunciados na Bíblia.

Além disso, mostrarei que diversas alegações de D’Souza apoiam-se em péssimas técnicas de pesquisa histórica e num conhecimento superficial do antijudaísmo cristão.

Princípios Éticos e Números

De acordo com a Convenção das Nações Unidas contra o Genocídio (também chamada de Primeira Convenção de Genebra), o termo genocídio descreve “atos cometidos com o objetivo de destruir, parcial ou totalmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”[7]. Não existe nenhuma distinção ética entre assassinar um grupo religioso ou um grupo étnico. Não existe nenhuma distinção ética entre assassinar um grupo racial ou um grupo nacional. Todos são igualmente proibidos pelos padrões das Nações Unidas. Isto é importante porque D’Souza muitas vezes tenta atenuar a violência religiosa alegando, geralmente sem respaldo documental, que alguns atos atribuídos à violência religiosa são na verdade casos de violência étnica ou racial.

Ademais, D’Souza muitas vezes deixa inexplicado o que há nos grupos étnicos antagônicos que os torna tão mutuamente hostis. D’Souza falha em ver que a etnicidade pode ser criada e/ou exacerbada por diferenças religiosas. Por exemplo, segundo os relatos bíblicos, a criação da etnia hebreia remonta à ordem para que Abraão desse início à sua própria linhagem separada (Gênesis 12:1-7), embora ele e sua família, a esta altura, não fossem “etnicamente” distintos do resto de sua tribo[8]. Além disso, a linhagem de Abraão diferenciou-se pela adesão ao monoteísmo e pelo adoção de algumas práticas religiosas obrigatórias (por exemplo, a endogamia, a circuncisão) que os apartou de seus vizinhos (veja em Gênesis 17:12, 24:3-4). Um fênomeno similar ocorreu entre cristãos e judeus. O conflito inicial era entre judeus que aceitaram Jesus como o Messias e judeus que não o fizeram (veja em João 5:18, Atos 17:2-5, Gálatas 2:11-16).

Com efeito, tais judeus não diferiam “etnicamente” uns dos outros. Não obstante seja claro que alguns personagens no Novo Testamento (NT) consideravam-se judeus e cristãos, ao fim, os “judeus” passaram a ser os que não aceitaram Jesus como o Cristo, conservando a religião tradicional de seus ancestrais. Mais tarde, a Igreja Católica reforçou a separação da identidade religiosa dos judeus através de leis matrimoniais, restrições profissionais, segregação em guetos e utilização obrigatória de trajes característicos, o que os tornou alvos ainda mais distintos e ainda mais facilmente identificáveis[9]. Todavia, foi algo percebido como um antagonismo judaico à figura de Cristo o que muitas vezes foi apresentado oficialmente como a razão primária para tais ações. Assim, quando o Papa Paulo IV publicou em 1555 sua Cum Nimis Absurdum, que estabeleceu a segregação dos judeus num gueto, sua justificativa introdutória foi que os judeus “por sua própria culpa entregaram-se à eterna servidão”[10]. Portanto, não é possível dissociar religião e etnicidade tão facilmente quando D’Souza tenta fazer.

D’Souza também ressalta mais os números do que o princípio ético de que é errado assassinar grupos de seres humanos em virtude de sua raça, etnicidade, nacionalidade ou religião. Mas se, como D’Souza aparentemente pensa, o genocídio é sempre condenável, então os números não importam tanto quanto o princípio. Se D’Souza não pensa que o genocídio é sempre condenável, então ele não é menos relativista moral do que os ateus, e agora teríamos somente suas razões arbitrárias para justifica-lo.

Portanto, suponhamos que dois grupos genocidas, X e Y, estivessem seguindo o mesmo princípio de assassinar todos os membros de algum grupo que eles escolheram por razões étnicas ou religiosas. Chamaremos as vítimas do grupo X de Alvo 1 e as vítimas do grupo Y de Alvo 2. Contudo, suponhamos também que o Alvo 1 seja uma tribo com apenas 1000 pessoas, enquanto o Alvo 2 seja um grupo religioso composto por um milhão de pessoas. Em forma de tabela:

Agora, a repreensibilidade do princípio do genocídio mudaria se o grupo X assassina apenas mil indivíduos ao passo que o grupo Y assassina um milhão? É claro que não, porque podemos supor razoavelmente que se o Alvo 1 possuísse um milhão de membros, então o Grupo X poderia ter assassinado um milhão de indivíduos.

De modo que um truque de ilusionismo está sendo empregado por D’Souza em seu apelo aos números brutos, na medida em que ele imagina que o Cristianismo é de alguma maneira superior simplesmente porque seus representantes tencionaram eliminar grupos menos populosos. Considere que o próprio D’Souza admite que a caça às bruxas cristã assassinou cerca de 100 000 pessoas na Europa[11]. Mas se o princípio de assassinar bruxas continuasse válido, então 10 milhões de bruxas poderiam ter sido assassinadas houvessem os caçadores de bruxas encontrado e matado esse contingente.

O fato de termos somente 100 000 vítimas da caça às bruxas significa apenas que o grupo alvo foi menor, mas não que o objetivo de extermínio total foi diferente. Assim, devemos julgar a moralidade do genocídio não somente por números absolutos de pessoas assassinadas como também pela parcela do grupo alvo marcada para morrer. Como a meta de extermínio presumida para ambos, Hitler ou para os inquisidores cristãos, é de 100%, a repreensibilidade moral de Hitler e dos inquisidores é a mesma. Seus atos genocidas também seriam igualmente condenados pelo padrão das Nações Unidas.

Portanto, a única coisa que D’Souza conseguiu foi mostrar que o Cristianismo não é moralmente superior em seus princípios de genocídio. Cristãos podem e tem procurado assassinar grupos inteiros de pessoas. É um mero acidente histórico que os saldos dos regimes ateístas sejam maiores em comparação com os regimes cristãos, mesmo se concedermos a tese errônea de que Hitler representou um regime ateísta. Caso contrário, o argumento de D’souza é semelhante a afirmar que a Hitler deveria ser dado o crédito por assassinar apenas 6 milhões de judeus porque este contingente foi o máximo que ele conseguiu arrebanhar.

Nazismo e Antijudaísmo Cristão

Ao contrário da polêmica tese defendida por D’Souza de que o nazismo é uma “filosofia antirreligiosa”, o nazismo na verdade é um capítulo da longa história do antijudaísmo cristão. O nazismo não representa um desvio radical das atitudes dos cristãos tradicionais em relação aos judeus. Isto é reconhecido pelo historiador católico Jose M. Sanchez: “Há poucas dúvidas de que o Holocausto remonta à milenar hostilidade dos cristãos contra os judeus[12].

O fato de que o nazismo é simplesmente uma forma modernizada de antijudaísmo cristão é comprovado pelo quão estreitamente o plano nazista para os judeus se assemelha ao do fundador do Cristianismo Protestante, Martinho Lutero (1483-1546). A fim de compreender esta conexão, apresento um resumo extraído do plano de sete pontos de Lutero, publicado em 1543 em seu tratado, Dos judeus e suas mentiras (Nota do Tradutor: versões digitalizadas de uma tradução deste opúsculo são largamente disponibilizadas em sites antissemitas e neonazistas. Por razões óbvias não colocarei nenhum link aqui demonstrando isso, mas uma busca no Google confirma facilmente o que afirmo):

Primeiro, recomendo atear fogo às suas sinagogas e escolas e cobrir com imundície tudo o que não for reduzido à cinzas, de modo que nenhum homem veja novamente uma pedra ou uma brasa deles.

Isto deve ser feito em honra de nosso Senhor e da Cristandade, de modo que Deus possa ver que somos cristãos, e não perdoamos ou toleramos tais ofensas e blasfêmias contra seu filho e seus seguidores…

Segundo, eu recomendo que suas casas também sejam destruídas…

Terceiro, recomendo que todos os seus livros de oração e escritos talmúdicos, em que tais idolatrias, mentiras, blasfêmias e indecências são ensinadas, lhes sejam tomados.

Quarto, eu recomendo que seus rabinos sejam proibidos de ensinar doravante sob pena de perder a vida

Quinto, eu recomendo que o salvo-conduto nas estradas seja abolido completamente para os judeus.

Sexto, eu recomendo que a usura lhes seja proibida, e que todo o seu dinheiro e todas os seus tesouros em ouro e prata sejam confiscados e colocados sob custódia…

Sétimo, recomendo colocar um mangual, um machado, uma enxada, uma pá, uma roca ou um eixo nas mãos de todos os jovens judeus e judias e deixa-los ganhar seu pão com suor de seu rosto, como foi imposto aos filhos de Adão (Gen. 3:19)[13]

Cada um dos ítems no plano de Lutero foi implementado pela política nazista. Por exemplo, durante a Kristallnacht, o horrível surto de violência antijudaica de 1938, os lares, as lojas e as sinagogas judaicas foram incendiados ou saqueados, exatamente como prescrito pelos dois primeiros ítems do plano de Lutero. Além disso, coincidência ou não, os eventos da Kristallnacht desenrolaram-se durante o aniversário de Lutero, no dia 10 de novembro. (Nota do Tradutor: acredito que tenha sido uma irônica coincidência. O pretexto para a Kristallnacht foi o assassinato de um funcionário da embaixada alemã em Paris por um judeu indignado com a situação calamitosa em que sua família se encontrava na fronteira com a Polônia após ser expulsa da Alemanha.) Obras de literatura de autores de ascendência judaica foram queimadas pelos nazistas, exatamente como recomendado no terceiro parágrafo do plano de Lutero. Os rabinos foram proibidos de ensinar, como ordenado pelo quarto ítem de Lutero. As prisões e deportações dos judeus para campos de concentração são consistentes com o quinto conselho de Lutero. Propriedades judaicas, incluindo obras de arte, foram confiscadas pelos nazistas, à semelhança da sexta recomendação de Lutero. O sétimo ponto de Lutero possui uma correspondência com os campos de trabalho forçado, com seu infame slogan Arbeit macht frei (“o trabalho liberta”).

Os planos são tão parecidos que mesmo Martin H. Bertram, um intelectual luterano e o tradutor do panfleto anti-judaico de Lutero, declara: “É impossível publicar o tratado de Lutero hoje, entretanto, sem notar o quanto suas propostas foram similares às ações do regime nacional-socialista na Alemanha nas décadas de 1930 e 1940[14] E quando se considera a imagem que Hitler tinha de Lutero, o que este representava para ele, tudo o que precisamos é consultar o Mein Kampf: “Ao lado de Frederico, o Grande está Martinho Lutero, assim como Richard Wagner.”[15]

Os cristãos católicos possuem uma história ainda mais longa de antijudaísmo. O décimo-sexto canône do Concílio de Elvira (ca. 306), por exemplo, proibiu o casamento entre judeus e cristãos[16]. De modo que as leis de Nuremberg nazistas, que proibiram o casamento entre alemães e judeus, são uma mera extensão de uma tradição cristã, não uma ruptura radical, como D’Souza quer nos fazer crer. Não obstante o antijudaísmo remontar ao NT, é na Idade Média que começamos a testemunhar alguns dos mais brutais e sistemáticos ataques cristãos contra os judeus[17]. Em parte, a codificação do cânone legal católico foi responsável por uma política mais uniforme em relação aos judeus[18]. E apesar das migalhas de tolerância mostradas esparsamente no cânone legal, a realidade é que os judeus foram expulsos da Inglaterra em 1290 e da França em 1306. Por volta de 1492, como se sabe, a Espanha também expulsou os judeus.

De qualquer maneira, a Primeira Cruzada, que tencionava libertar a Terra Santa do domínio muçulmano, deu origem a uma nova onda de violência sistemática contra os judeus. A primeira cruzada foi proclamada em 1095, e os primeiros contingentes começaram sua viagem em direção ao leste em 1096. Estes contingentes, compostos majoritariamente por leigos, foram responsáveis pela maior parte da violência antijudaica. Hordas de “cruzados” tomaram de assalto cidades como Colônia, Mainz e Worms, e deixaram cerca de 3 mil judeus mortos[19]. Vários dos judeus capturados nestes pogroms recusaram-se a se converter ao Cristianismo. Segundo os relatos judaicos, a seguinte justificativa para o martírio foi proferida:

Depois de tudo, não há dúvidas dos caminhos do Santíssimo, louvado seja… Que nos deu Sua Torá e nos ordenou que permitíssemos que fôssemos mortos e chacinados em testemunho da Unicidade de Seu Santo Nome. Felizes estamos se satisfazemos sua vontade e feliz é aquele que tomba e morre atestando a Unicidade de Seu Nome.[20]

Estes judeus, vitimados pelos cristãos, certamente viram o ódio que lhes era dirigido como enraizado na religião. A defesa de D’Souza de que pelo menos os judeus medievais poderiam ter se convertido, ao contrário da situação na Alemanha Nazista, fracassa pelos padrões das Nações Unidas[21] É proibido exterminar qualquer grupo baseado em sua etnicidade ou religião, de modo que a oportunidade de se converter não faz a menor diferença.

Será que D’Souza pensa que se o número de judeus disponíveis para o abate naquelas cidades alemãs medievais tivesse sido maior, então menos judeus teriam sido mortos? Por um lado, as autoridades clericais de fato denunciaram estes pogroms. Por outro lado, os leigos podem ter agido da maneira como o fizeram por causa de palavras como as do Papa Inocente III, que no dia 9 de Outubro de 1208 expediu ao rei da França Philip II Augustus o seguinte édito a respeito dos hereges e dos judeus:

A fim de que a Santa Cidade de Deus, disposta como uma assustadora frente de batalha, possa prosseguir contra seus mais cruéis inimigos, exterminar [ad exterminandum] os seguidores de heresias abomináveis, que como um verme ou uma úlcera, infectaram a província inteira, formamos guarnições de soldados cristãos a serem convocados juntos…[22]

Observe que, mesmo que nem sempre obedecidas literalmente, a idéia de extermínio de grupos de pessoas (hereges, judeus) já está lá, bem como o uso da linguagem genocida medicalizada (“úlcera… infectaram”) compartilhada com o nazismo[23].

O fato de que Hitler via o que ele estava fazendo como uma continuação da política católica é confirmado por uma conversa que ele teve em 26 de Abril de 1933, com Hermann Wilhelm Berning, bispo de Osnabriick, Alemanha. De acordo com um relatório registrado nos Documentos sobre a Política Externa Alemã:

[Hitler] então trouxe à baila a questão judaica. Justificando sua hostilidade para com os judeus, ele referiu-se à Igreja Católica, que igualmente sempre considerou os judeus como indesejáveis e que em virtude dos perigos morais envolvidos proibiu os cristãos de trabalhar para os judeus. Por estas mesmas razões a Igreja baniu os judeus para o gueto. Ele via os judeus como nada além de inimigos perniciosos do Estado e da Igreja e, por essa razão, quis exclui-los cada vez mais, sobretudo dos cargos públicos e da vida acadêmica[24].

Conforme sumarizado pelo renomado historiador do Holocausto Guenter Lewy, “Hitler simplesmente estava fazendo o que a Igreja havia feito por 1500 anos.”[25] Na verdade, Hitler simplesmente dispunha de tecnologias e logísticas muito superiores para fazer o que os cristãos medievais quiseram fazer aos judeus. Também haviam muito mais judeus vivendo na Alemanha na época de Hitler. Portanto, D’Souza deveria estar contando os acréscimos nas populações-alvo, não apenas as populações como um todo, para avaliar a proporcionalidade da violência ateísta e religiosa.

O Quão Religioso Foi o Antijudaísmo Nazista?

D’Souza levanta a polêmica tese de que o nazismo foi uma “filosofia antirreligiosa”, mas oferece escassas evidências incontestáveis para esta alegação. Se desejamos conhecer motivos, um procedimento razoável é buscar as razões que as pessoas oferecem para o que fazem. Se seguirmos este procedimento, então a seguinte declaração de Hitler no Mein Kampf é bastante relevante:

Por isso hoje acredito que estou agindo em concordância com a vontade do Criador Todo-Poderoso; ao me defender contra o Judeu, estou lutando pela obra do Senhor.[26]

Mas D’Souza descarta a declaração de Hitler como evidência de que Hitler realmente pretendeu dizer o que disse. Em vez disso, D’Souza sugere que uma fonte melhor para os pensamentos de Hitler sobre a religião é Allan Bullock, autor de um livro chamado Hitler e Stalin: Vidas Paralelas, de 1993. Conforme D’Souza expressa em suas palavras: “‘Desde a mais tenra idade’, o historiador Allan Bullock escreve, ‘Hitler não dedicou tempo algum ao catecismo católico, considerando-o uma religião adequada somente para escravos e detestando sua ética.”[28] Esta é claramente uma tática de esquiva, já que D’Souza não explica porque Bullock sabe o que Hitler pensava melhor do que o próprio Hitler. Em geral, é um procedimento de investigação histórica inferior substituir uma fonte primária (isto é, Hitler) por uma fonte secundária (ou seja, Bullock). Além disso, mesmo se Hitler detestasse os ensinamentos católicos, D’Souza confunde ateísmo com anticatolicismo. E a citação acima não é a única em que Hitler invoca Deus, a religião ou o Cristianismo para explicar suas idéias políticas no Mein Kampf. Hitler também declarou: “Pois a vontade de Deus deu aos homens sua forma, sua essência e suas habilidades. Qualquer um que destrua Sua obra está declarando guerra à criação do Senhor, a vontade divina.”[29] No encontro com Berning, Hitler insistiu que “nem uma vida pessoal nem uma nação poderia ser construída sem o Cristianismo.”[30]

Outra tentativa de evitar as implicações óbvias das declarações de Hitler é o apelo de D’Souza ao aspecto propagandístico do Mein Kampf. D’Souza alega que “o próprio Hitler diz no Mein Kampf que suas declarações públicas deveriam ser interpretadas como mera propaganda que não guarda a menor relação com a verdade, sendo antes planejadas para exaltar as massas.”[31] D’Souza não cita um trecho direto de Hitler para esta alegação e apenas nos remete às páginas 177-85 do Mein Kampf, o que mais uma vez reflete um péssimo trabalho de pesquisa histórica. D’Souza parece não notar que esta generalização grosseira sobre o Mein Kampf não guardar “nenhuma relação com a verdade” cria um caso de incoerência autorreferencial. Se a propaganda de Hitler sempre esconde a verdade, então segue-se que o próprio enunciado sobre como ele estava usando a propaganda deve ser falso. E Hitler não acreditou realmente que os judeus são malignos porque o que ele diz no Mein Kampf não possui relação alguma com a verdade? Em vez disso, um procedimento histórico superior é interpretar literalmente os enunciados de um autor sobre suas próprias crenças a menos que o contrário seja provado. Nada do que Hitler disse desmente que ele acreditou estar fazendo a vontade de Deus.

Além disso, D’Souza deixa inexplicado por que Hitler teria pensado que sua retórica antijudaica poderia comover as massas a menos que as massas fossem receptivas a uma mensagem antijudaica. Isto é importante porque as massas das quais D’Souza fala se autoidentificavam majoritariamente como cristãs. Por exemplo, um relatório nazista indica que por volta de 1938, 51,4% dos membros da SS foram identificados como protestantes, 22,7% como católicos, e 25,7% como “crentes em Deus” (Gottglaubigen).[32] Como o antijudaísmo não encontra-se associado às obras do próprio Darwin, trabalhar tendo como pano de fundo uma história de antijudaísmo cristão seria muito mais efetivo no convencimento das massas cristãs.

Cristianismo Positivo

Outro aspecto do nazismo que D’Souza descarta sem muita investigação é a idéia nazista do Cristianismo Positivo. A primeira ocorrência do termo remonta ao ponto 24 do Programa do Partido Nazista de 1924, que diz:

O Partido enquanto tal reflete o ponto de vista de um Cristianismo Positivo não limitado confessionalmente a qualquer denominação específica. Ele combate o espírito materialista judaico.[33]

Mais uma vez, o antijudaísmo foi um de seus principais pilares, o mero resultado de uma longa história de antijudaísmo cristão. Nesse sentido, mais uma vez, o nazismo não é um desvio radical do Cristianismo historicamente ortodoxo.

Quem ler O Mito do Século XX, um tratado sobre o nazismo escrito por Alfred Rosenberg, a quem é atribuída a autoria do Programa do Partido de 1920, entenderá que ele concebia o Cristianismo Positivo como uma restauração dos ensinamentos puros e originais de Cristo.[34] De fato, Rosenberg nos diz que a vida de Cristo é o que deveria ser siginificativo para os alemães.[35] Rosenberg repudiou a idéia do sacrifício de Cristo como uma corrupção judaica, e via Jesus como uma figura cuja verdadeira obra, o amor à própria raça, foi distorcida pela cristandade organizada num amor universal, em vez de um amor restrito ao grupo racial a que se pertence (sobretudo em sua interpretação de Levítico 19:18 e 25:17).

Esta é a razão pela qual Rosenberg o denominou “Cristianismo Positivo” (positive Christentum), que ele contrapôs explicitamente à forma corrupta representada pelo “clero etrusco-asiático” (etrusco-asiatische… Priesterherrschaft), que abraangia o Catolicismo Romano[36]. Assim, para o Cristianismo Positivo, a mera palavra “Cristianismo” muitas vezes significou a forma judaizada e clericalmente organizada vista no Catolicismo Romano, que diferia da originalmente proposta por Jesus. Opor-se ao “Cristianismo”, portanto, não significa opor-se à religião de Cristo ou opor-se à religião.

De fato, Der Mythus é repleto de citações bíblicas. Com algumas das interpretações de Rosenberg da Bíblia decerto até mesmo eruditos judeus poderiam concordar. Por exemplo, ele observa que Levítico 25:17, que declara “Ninguém prejudique o seu próximo”, refere-se ao próximo hebreu, e não a todos os demais[37]. Mas esta interpretação de “teu próximo” é consistente com a interpretação de Harry M. Orlinsky, o grande estudioso do cânone judaico[38]. Rosenberg também pensou que o Evangelho de João foi o que melhor preservou alguns dos ensinamentos de Jesus. Assim ele o comenta: “O Evangelho de João, que ainda é permeado por um espírito aristocrático, combateu a bastardização coletiva, a orientalização e a judaização do Cristianismo”[39]. É no Evangelho de João (8:44) em que o próprio Jesus diz que os judeus são mentirosos filhos do diabo. Esse versículo apareceu bem mais tarde na sinalização de trânsito do regime nazista, ao passo que nenhuma citação de Darwin jamais foi vista nas placas de trânsito nazistas[40]. Este versículo ecoa o título do panfleto de Lutero (Dos judeus e suas mentiras), bem como o longo título que Hitler originalmente propôs para seu livro ([Meus] Quatro anos e meio de luta contra as mentiras… ).

Sim, Rosenberg sincretizou os conceitos cristãos encontrados no NT com mitos germânicos, e mitos de sua própria criação ou adaptação. Mas em que a exegese bíblica e o sincretismo de Rosenberg diferem do que outros autoproclamados cristãos estiveram fazendo ao longo da história? Com efeito, vários estudiosos defendem exatamente que o Cristianismo foi o resultado da combinação de idéias judaicas com outras helenísticas. Ao conceberem a si próprios como restauradores do Cristianismo primitivo, os cristãos positivos não foram menos cristãos do que os primeiros luteranos ou anabatistas. Na verdade, o Cristianismo Positivo possui precursores ilustres dentre os primeiros cristãos que rejeitaram o judaísmo. Estes incluem Marcião (segundo século), o cristão gnóstico que repudiou o Antigo Testamento (AT) por inteiro, e promoveu um cânone consistindo apenas de um Evangelho de Lucas expurgado e algumas das epístolas paulinas. O marcionismo repetiu-se na história cristã, especialmente entre alguns grupos anabatistas e teólogos cristãos (por exemplo, Friedrich Schleiermacher)[41].

Resumindo, se usamos a mesma lógica utilizada por vários teólogos cristãos que reinterpretam radicalmente a Bíblia Hebraica para a prática cristã, poderíamos também argumentar que o Cristianismo Positivo não representa tanto um movimento anticristão quanto representa uma reinterpretação do Cristianismo, um fenômeno constante na história cristã. É por isso que atualmente existem cerca de 25 mil grupos cristãos, alguns dos quais acreditam em coisas radicalmente opostas. Dizer que os marcionitas, os luteranos ou os cristãos positivos não são realmente cristãos é fazer um julgamento teológico mais do que um julgamento histórico.

O que há de tão negativo acerca do Cristianismo Positivo?

Não somente D’Souza exibe uma lastimável compreensão errônea  do Cristianismo Positivo, como as principais objeções que ele lança contra ele são extremamente superficiais. Para D’Souza, o Cristianismo Positivo não pode contar como Cristianismo porque ele “obviamente foi uma ruptura radical do entendimento cristão tradicional, e como tal foi condenado pelo Papa Pio XI na época”[42]. Este último caso é suficiente para mostrar os preconceitos teológicos de D’Souza, já que ele assume que o que quer que o Papa Pio XI condene deve representar um falso cristianismo. E naturalmente, a alegação de que um Cristo ariano é uma ruptura radical do entendimento cristão tradicional é uma grande novidade para qualquer um familiarizado com a longa história da arte cristã, onde Cristo é rotineiramente pintado como um branco europeu. De acordo com Epiphanies Monachus (oitavo ou nono século), um monge grego de Constantinopla, Jesus “tinha seis pés de altura, longos e dourados cabelos, e não muito volumosos…”[43]. Então, como um Cristo ariano nazista pode ser uma ruptura radical?[44]

D’Souza também deixa de dizer a seus leitores que antes do Papa Pio XI se distanciar do nazismo em sua famosa encíclica de 1937 (Mit Brennender Sorge/ “Com Ardente Pesar”), esse mesmo Papa assinou, “na época”, em 1933, um pacto com os nazistas, que Hitler inclusive apreciou como um inestimável auxílio para levar adiante sua “batalha contra a judiaria internacional (‘der kampf gegen das internationale judentum‘)”[45]. E observem como D’Souza não questiona se o Papa Pio XI teve motivos políticos em vez de sublimes motivos humanitários para sua reprovação aos nazistas em 1937. D’Souza não indaga se Pio XI realmente pretendeu dizer o que ele disse, como faz quando Hitler afirma estar acatando a vontade de Deus.

No entanto, quando se lê essa encíclica de 1937, o Papa Pio XI admite fazer acordos com a Alemanha Nazista:

Quando, em 1933, consentimos, venerável Brethren, em abrir negociações por um pacto, que o governo do Reich propôs como base de um programa de muitos anos de colaboração… Estávamos propensos pela vontade, como nos é próprio, de assegurar à Alemanha a liberdade da missão beneficente da Igreja e a salvação das almas sob seus cuidados, bem como pelo desejo sincero de prestar ao povo alemão um serviço essencial para seu desenvolvimento pacífico e prosperidade. Assim, apesar de várias e graves dúvidas e inquietações, decidimos então não recusar nosso assentimento pois foi nosso desejo poupar os devotos da Alemanha, na medida em que fosse humanamente possível, dos julgamentos e dificuldades que eles teriam que enfrentar, dadas as circunstâncias, houvessem as negociações malogrado[46]

Por que isso não se qualificaria como uma manobra política, já que almeja proteger os interesses de um grupo distinto (católicos)? Por que não podemos  também dizer que a hierarquia do Vaticano não pretendeu dizer o que disse em 1937? E será que nenhum dos conselheiros do Papa estava familiarizado com o Mein Kampf, que fora publicado aproximadamente uma década antes de 1933?

Na verdade, Diego Von Bergen, o embaixador do Reich na Santa Sé, relatou que enquanto o Papa estava dizendo uma coisa, Eugenio Pacelli, o cardeal secretário do Vaticano e o homem que se tornaria o Papa Pio XII, prometeu que “relações normais e amistosas… seriam reestabelecidas o mais cedo possível” entre o Vaticano e os nazistas após essa encíclica[47]. De fato, por volta de 1939, o arcebispo Cesare Orsenigo, o núncio para Berlim, estava atarefado  abrindo uma recepção de gala para o quinquagésimo aniversário de Hitler[48]. Isso encerra a questão do suposto repúdio da Igreja Católica ao regime nazista.

Caso contrário, tudo depende de se alguém considera a missão da Igreja Católica como digna de tal compromisso, e isso é um julgamento teológico. Se Hitler acreditava ser a vontade de Deus que ele matasse os judeus, não há como averiguar se a inspiração para essa tarefa foi menos divina do que a que levou o Papa Inocente III a manifestar seu desejo de exterminar os judeus e outros hereges na Idade Média. Caso contrário, D’Souza precisa explicar por que o Papa Inocente III estaria certo em dizer que Deus realmente quis que ele exterminasse os judeus ou os hereges na Idade Média, mas este não seria o propósito de Deus para a vida de Hitler no século XX.

O Quão Antirreligioso Foi Hitler?

Equivocar-se sobre a diferença entre o Cristianismo Positivo e o resto do Cristianismo é o que tem levado D’Souza e outros a transformar quaisquer das supostas concepções anticristãs de Hitler em concepções antirreligiosas. Há um problema lógico, obviamente, com a afirmação de que ser anticristão ou ser anticatólico significa ser antirreligioso. A religião abraange muito mais do que o Cristianismo ou o Catolicismo.

Mais substancialmente, pois são uma parcela significativa da evidência em que se baseia, D’Souza apela às Conversações Íntimas de Hitler, que supostamente registram os mais recônditos pensamentos do Führer. Entretanto, a confiabilidade desta fonte para determinar as opiniões de Hitler é bastante questionável. Existem quatro versões principais das Conversaçõs Íntimas, aqui nomeadas de acordo com os principais editores ou tradutores e os anos de publicação: (1) Henry Picker (alemã, 1951, 1963, 1976); (2) Francis Genoud (apenas tradução francesa, 1952); (3) H. R. Trevor-Roper (inglesa 1953, 1973, 2000); e (4) Werner Jochmann (alemã, 1980). Estes registros geralmente são organizado internamente pela data em que Hitler manteve a conversa.

Os problemas com as Conversações Íntimas foram minuciosamente estudados por Richard Carrier[49]. Do meu ponto de vista, na qualidade de historiador acadêmico, existem pelo menos três problemas com a utilização desta fonte; (1) não existem originais autógrafos, do próprio punho de Hitler, desta fonte. Não temos fitas de áudio para verificar as transcrições. O que temos são cópias célebres que muitas vezes foram filtradas através de Martin Borman, auxiliar de Hitler. O fato de estas versões concordarem suficientemente para sugerir uma fonte comum não necessariamente prova que esta fonte comum tenha sido o próprio Hitler. (2) As versões às vezes são discrepantes. Algumas passagens estão ausentes na edição de Trevor Roper em relação à edição de Picker. De modo que é difícil dizer o que vem de Hitler e o que vem dos editores. (3) Trevor-Roper autenticou os Diários de Hitler, apesar de estes mais tarde terem sido desmascarados como uma fraude[50]. Genoud também é um personagem de reputação duvidosa que pode ter estado envolvido em outras falsificações. E como Carrier tem mostrado, ambas as edições de Genoud e Trevor-Roper muitas vezes traduzem com erros grotescos o original alemão.

Além disso, o principal mediador em todas as versões conhecidas das Conversações Íntimas é o secretário pessoal de Hitler, Martin Bormann, conhecido por seus pontos de vista anticristãos[51]. De modo que às vezes podemos estar lendo os pensamentos de Bormann em vez de os de Hitler[52].

Também sabemos, a partir de outras fontes, que Hitler discordou de Bormann e também discordou de suas próprias opiniões expressas nas Conversações Íntimas. Por exemplo, Albert Speer, que foi o arquiteto pessoal de Hitler, disse:

Mesmo após 1942 Hitler prosseguiu sustentando que considerava a Igreja indispensável na vida política. Numa dessas conversas à hora do chá, ele afirmou que ficaria feliz se algum dia um eclesiástico renomado se revelasse adequado para liderar uma das igrejas – ou, se possível, ambas, a católica e a protestante, reunidas.[53]

Speer também relata casos em que Hitler censurou ações anticristãs cometidas por seus subordinados[54].

Assim, se utilizarmos somente as fontes mais confiáveis, D’Souza definitivamente não demonstra seu caso. D’Souza não cita uma única passagem do Mein Kampf, uma fonte incontestavelmente atribuída a Hitler, em que este diz que seus motivos foram ateístas. Todavia, podemos encontrar uma série de passagens do Mein Kampf em que Hitler, não menos do que Martinho Lutero, reivindica estar realizando a vontade de Deus.

Mas mesmo se considerarmos as Conversações Intímas uma fonte confiável, a antirreligiosidade de Hitler não é tão evidente quanto D’Souza afirma porque D’Souza confunde anticristianismo com ateísmo. Das citações que D’Souza fornece, a única que melhor contribuiria para seu caso é: “através do campesinato seremos capazes de destruir o Cristianismo.” Mas D’Souza não fornece o número da página das Conversações Íntimas, e sua nota de rodapé correspondente apenas remete a “Conversações Íntimas de Hitler (New York: Enigma Books, 2000)”, que é uma edição associada a Hugh Trevor-Report[56]. Na melhor das hipóteses, o que temos aqui é um trabalho de documentação bastante desleixado, e nos leva a indagar se D’Souza está mesmo lendo as Conversações Íntimas em primeira mão.

Além disso, D’Souza não revela a frase completa, que na verdade encontra-se nos Pronunciamentos de Hitler, um livro historicamente desacreditado da autoria de Hermann Rauschning: “Mas é através do campesinato que realmente seremos capazes de destruir o Cristianismo porque existe entre eles uma verdadeira religião enraizada no sangue e na natureza.” Assim, em sua versão integral, o alegado objetivo de Hitler é uma religião melhor (“verdadeira religião”), não religião nenhuma.

Houvesse D’Souza lido as diversas versões das Conversações Íntimas cuidadosamente, ele também teria encontrado muita coisa que contradiz sua afirmação de que Hitler foi antirreligioso. Por exemplo, numa conversa referida a 14 de Outubro de 1941 (edição de Trevor Roper) Hitler comenta:

Um homem educado preserva o sentido para os mistérios da natureza e ajoelha-se diante do desconhecido. Um homem inculto, por outro lado, corre o risco de sucumbir ao ateísmo (que é um retorno à animalidade)… [58]

Hitler acrescenta:

Pode-se perguntar se o desaparecimento do Cristianismo acarretaria o desaparecimento da crença em Deus. Isso não seria desejável. A idéia de uma divindade confere à maioria dos homens a oportunidade de concretizar o sentimento que eles possuem da existência de realidades sobrenaturais. Por que deveríamos destruir este maravilhoso poder  que eles possuem de encarnar o sentimento para o divino que há em seu interior?[59]

Assim, mesmo aqui Hitler distingue entre não acreditar no Cristianismo e não acreditar em Deus. Na verdade, no original alemão das Conversações Íntimas, Hitler manifesta sua esperança de vida eterna no paraíso e seu real desprezo por aqueles que escarnecem da providência divina, declarando em vez disso que ele pensa ser possível que Deus o tenha escolhido, e que é nossa crença num Criador que nos distingue dos animais.[60]

E é nas Conversações Íntimas que Hitler distingue claramente os ensinamentos originais de Cristo da forma corrupta que se tornou conhecida como “Cristianismo”. Ele diz (em 21 de Outubro de 1941) que:

Originalmente, o Cristianismo era meramente uma encarnação do Bolchevismo, o destruidor. Não obstante, o Galileu, que mais tarde foi chamado o Cristo, pretendeu algo bastante diferente. Ele deve ser considerado como um líder popular que assumiu Sua posição contra a judiaria.[61]

Em qualquer caso, as ações de Hitler contra quaisquer igrejas não são necessariamente mais anticristãs ou antirreligiosas do que a destruição pelos protestantes de igrejas católicas, ou a destruição pelos católicos dos templos protestantes. Por exemplo, o Rei Henrique VIII (1491-1547), que deu ínicio à Reforma Inglesa, não via a si próprio como anticristão ou antirreligioso quando demoliu os monastérios católicos. Reis cristãos muitas vezes mataram clérigos e perseguiram igrejas que discordavam deles[62]. O que estamos vendo no nazismo é uma guerra sectária ou uma guerra intrarreligiosa, que não deveria ser confundida com antirreligiosidade[63].

O Quão Darwinista foi o Nazismo?

Apesar das esmagadoras evidências apontando que o nazismo é uma continuação do antijudaísmo cristão, D’Souza nos assegura que por trás do nazismo o que realmente está é o darwinismo. Para suas evidências, D’Souza nos remete ao trabalho de Richard Weikart, como a seguir:

Se o nazismo representou a culminância de qualquer coisa, foi da ideologia do final do século 19 e início do século 20 do darwinismo social. Como o historiador Richard Weikart documenta, ambos Hitler e Himmler eram admiradores de Darwin e em várias ocasiões falaram de seu papel como o de descobridor de uma “lei da natureza” que garantiria “a eliminação dos incapazes”. Weikart… conclui que embora o darwinismo não seja uma explicação intelectual “suficiente” para o nazismo, é uma explicação necessária. Sem o darwinismo o nazismo não poderia ter existido.[64]

Como nos casos anteriores, D’Souza aparenta não possuir o treinamento requerido para avaliar e julgar as alegações de Weikart. Já ofereci uma série de longas críticas a Weikart, mas aqui eu resumirei alguns dos problemas com a utilização do livro de Weikart[65].

Primeiro, a própria noção de que o darwinismo foi necessário para o nazismo é desmentida pelo plano de Lutero para os judeus de 1543. Por volta de 1543 era possível levar a cabo com êxito um programa que até os especialistas na obra de Lutero reconhecem ser semelhante ao nazismo, e não havia Darwin algum então. Weikart se esquece completamente de Lutero, e raramente menciona a longa história de antijudaísmo cristão que certamente seria mais importante do que o darwinismo. A maioria dos alemães não era tão familiarizada com as obras de Darwin como eram com a Bíblia ou com as tradições antijudaicas de personagens da história alemã como Lutero.

D’Souza nunca oferece qualquer citação direta para mostrar que Hitler foi um admirador de Darwin. Na verdade, D’Souza aparenta ignorar as exatas visões de Weikart sobre as referências de Hitler a Darwin. Weikart foi citado como dizendo:

É verdade que Hitler quase nunca mencionou o nome de Darwin (a única menção direta a Darwin que fui capaz de encontrar é um relato por um colega Wagener).[66]

No entanto, mesmo o “quase nunca” é enganoso porque Weikart reconhece que a única referência direta a Darwin por Hitler definitivamente não vem de Hitler. Hitler, contudo, menciona e aplaude Lutero no Mein Kampf. Isso por si só nos diz que Hitler atribuiu a Lutero importância suficiente para menciona-lo algumas vezes, ao passo que Darwin não recebeu nenhuma menção.

Além disso, D’Souza e Weikart também ignoram evidências de que o darwinismo foi especificamente banido na Alemanha Nazista, pelo menos em 1935. As evidências derivam desta diretriz numa lista de livros banidos na Alemanha Nazista compilados numa exposição da biblioteca da Universidade do Arizona: “Obras de natureza social e filosófica cujos conteúdos lidam com o Iluminismo científico do Monismo e do Darwinismo primitivo (Häckel)”.[67]

O Darwinismo de Weikart

Um problema decisivo com a tese de Weikart é que ele começa com esta definição demasiado restritiva de “Darwinismo”:

Ao utilizar o termo darwinismo neste estudo, refiro-me à teoria da evolução pela seleção natural como exposta por Darwin em A Origem das Espécies.[68]

É intrigante a razão pela qual Weikart restringe sua definição de darwinismo apenas ao que é encontrado em A origem das espécies (1859), sobretudo porque esse livro não diz absolutamente nada sobre evolução humana ou conflitos raciais. Consequentemente, Weikart precisa empreender uma redefinição contínua de “darwinismo” de forma a incluir outras obras de Darwin e quaisquer outras deturpações do darwinismo que ele for capaz de encontrar. Esta falha de Weikart é ainda mais importante porque ele já criticou outros historiadores reconhecidos por não aderirem às definições que propuseram inicialmente. Por exemplo, numa resenha de um livro escrito por Annette Wittkau-Horgby, Weikart comenta, “Wittkau-Horgby, portanto, não adere à definição de materialismo com que começa…”[69] Para evitar constantemente mover o objetivo definicional proposto para o darwinismo, Weikart poderia te-lo definido de modo mais amplo, e dito “… como exposto por Darwin em suas obras”. Uma vez que, para Weikart, interpretações errôneas das teorias de Darwin ainda contam como “darwinismo”, então ele realmente deveria dizer: “…conforme exposto por Darwin em seus livros e em diversas interpretações de sua obra, sejam esta interpretações corretas ou errôneas.”

A disposição de Weikart em subsumir distorções e deturpações do darwinismo sob o rótulo “darwinismo”, entretanto, não é consistentemente aplicada a outras obras que os nazistas desvirtuaram. Por exemplo, em sua resenha do livro de Richard Steigmann Gall “The Holy Reich“, Weikart comenta: “Vários alemães panteístas utilizaram terminologia religiosa – até mesmo cristã – mas eles muitas vezes a redefiniram.”[70] Assim, quando os escritores nazistas utilizam terminologia panteísta, então eles contam como panteístas, mas quando utilizam terminologia cristã, então eles não são realmente cristãos, mas panteístas. Ao se redefinir o vocabulário cristão, não mais se pode responder pelo Cristianismo, mas redefinir o darwinismo ainda estigmatiza alguém como darwinista. Esta inconsistência lógica é tendenciosa e serve para desviar a responsabilidade do Cristianismo.

Tudo isto é importante porque nenhuma das obras de Darwin, e sobretudo A Origem das Espécies, aborda o antijudaísmo. O antijudaísmo é um componente essencial do nazismo, compartilhado não com as obras de Darwin, mas com o Cristianismo primitivo (por exemplo, João 8:44, Apocalipse 2:9-10). Mais uma vez, mesmo se Darwin possuísse uma agenda antijudaica, a maioria dos alemães não estaria tão familiarizada com as obras de Darwin quanto estavam com a Bíblia.

Racialização dos Judeus

D’Souza afirma que os judeus medievais pelo menos poderiam ter se convertido ao Cristianismo ao passo que a eugenia darwinista dos nazistas racializou os judeus até um ponto em que estes não mais poderiam alterar sua identidade. Como já discuti, isto realmente não faz a menor diferença para a repreensibilidade moral do genocídio baseado na religião ou na etnicidade. Mas a idéia de que os judeus eram uma categoria racial, não somente uma categoria religiosa, já possuía uma longa história no Cristianismo muito antes do surgimento de Darwin.

Considere a idéia hitlerista da “pureza do sangue” (Reinhaltung des blutes). Esta noção não teve início com Darwin, nem sequer foi discutida como tal por Darwin em A origem das espécies. Em vez disso, a terminologia específica de Hitler corresponde muito de perto à terminologia católica espanhola (limpieza de sangre/”limpeza ou pureza do sangue”) aplicada contra os judeus na Espanha. Em particular, Juan Martinez Siliceo, o arcebispo de Toledo, propôs em 1547 uma legislação baseada muito especificamente sobre esta noção de limpieza de sangre.[72] Normas decretadas em Toledo em 1449 também se concentraram na pureza do sangue como um meio para discriminar os judeus que haviam se convertido mas não eram espanhóis  “de sangue”.

Como até mesmo os estudiosos judeus observaram, diversos personagens bíblicos podem ser interpretados como defensoras de práticas eugênicas séculos antes que o termo fosse inventado. O rabino Max Reichler, um dos autores de Eugenia judaica e outros ensaios, nos diz:

Certamente a eugenia como ciência dificilmente poderia ter existido entre os antigos judeus; mas diversas regras eugênicas de fato foram incorporadas na vasta coleção de leis bíblicas e rabínicas. Na verdade existem indícios inequívocos de um esforço consciente para utilizar todas as influências capazes de aumentar as qualidades inatas das raças judaicas e resguardar contra quaisquer práticas que poderiam conspurcar a pureza da raça ou “prejudicar as qualidades raciais das futuras gerações” seja física, mental ou moralmente… O próprio fundador da raça judaica, o patriarca Abraão, reconheceu a importância de certas qualidades hereditárias, e insistiu que a esposa de seu “único filho amado” não deveria vir “das filhas dos cananitas”, mas da semente de uma linhagem superior.[73]

D’Souza não fornece nada realmente comparável, além de uma referência secundária a Weikart, mostrando que o A origem das espécies de Darwin contenha quaisquer noções de pureza do sangue ou eugenia ainda mais próximas disto. Como as coisas estão, D’Souza aparenta estar confundindo seleção natural, o principal conceito por trás de A Origem das Espécies, com a seleção artifical que foi um componente essencial do nazismo.

Se olharmos para as justificativas racialistas do próprio Hitler, descobriremos que ele invoca a Bíblia, não o A Origem das Espécies, para respalda-lo. Um exemplo é esta passagem do Mein Kampf  a respeito da miscigenação:

… é uma daquelas a respeito do que é dito com tão grandiosa e terrível justiça que os pecados dos pais são vingados até a décima geração… O pecado contra o sangue e a profanação da raça são o pecado original neste mundo…[74].

Mas de onde Hitler tirou a idéia de que a profanação do sangue é um pecado que macula até a décima geração? Não a vemos em nenhuma das obras de Darwin. Mas no livro de Esdras, capítulo 9, versículos 1-2 e 12, lemos:

Acabadas, pois, estas coisas, chegaram-se a mim os príncipes, dizendo: O povo de Israel, os sacerdotes e os levitas, não se têm separado dos povos destas terras, seguindo as abominações dos cananeus, dos heteus, dos perizeus, dos jebuseus, dos amonitas, dos moabitas, dos egípcios, e dos amorreus.  Porque tomaram das suas filhas para si e para seus filhos, e assim se misturou a linhagem santa com os povos dessas terras; e até os príncipes e magistrados foram os primeiros nesta transgressão. (…) Agora, pois, vossas filhas não dareis a seus filhos, e suas filhas não tomareis para vossos filhos, e nunca procurareis a sua paz e o seu bem; para que sejais fortes, e comais o bem da terra, e a deixeis por herança a vossos filhos para sempre. (Ênfase do autor)

Observe que o objetivo da endogamia é “para que sejais fortes”, o que exemplifica a concepção clássica de eugenia de aprimorar algumas características desejadas através da procriação adequada. Por conseguinte, o Mein Kampf sugere que é a Bíblia, não o A Origem das Espécies, que parece ser a influência mais direta sobre Hitler.

Conflitos raciais são uma parte do Cristianismo

Weikart rotula como particularmente darwiniana a noção da história como uma luta racial. Weikart tem utilizado repetidamente a seguinte citação de A Descendência do Homem para respaldar esta tese controversa:

Em algum período futuro, não tão distante que não possa ser medido por séculos, as raças civilizadas do homem irão certamente exterminar e substituir as raças selvagens pelo mundo afora.[76]

Mas esta passagem está descontextualizada. O contexto apropriado é um lamento por esta extinção – não um endosso dela. Este lamento é ainda mais evidente quando se lê o que vem em seguida, onde Darwin observa que, de fato, “”os selvagens não eram tão afetados pelas nações invasoras clássicas” até que as civilizações modernas (não as raças modernas) as usurpassem, uma vez que nas eras clássicas “não há esse tipo de queixa entre os escritores clássicos a respeito de uma possível destruição dos valores dos bárbaros”[77]. Consequentemente, Darwin acreditava que tecnologias e culturas superiores, não sangue inferior, eram os responsáveis pelo extermínio das “raças selvagens”.

E a concepção da história como uma luta entre raças é um componente muito importante da história cristã. Já em 1853, e alguns anos antes da publicação de A Origem das Espécies, George Fitzhugh, o advogado americano pró-escravidão, havia articulado a noção de conflito racial numa matriz de sobrevivência dos mais aptos quando disse:

Os membros do Congresso do Partido Jovem Americano, orgulhem-se do fato de que a raça anglo-saxã está manifestamente destinada a devorar as outras raças, assim como o capim-açu destrói e toma o lugar de outras plantas rasteiras.[78]

E ao contrário da afirmação de Weikart de que a orientação espiritual do judeocristianismo resistiu a tais idéias racialistas, Robert Knox, o famoso escritor racialista escocês, declarou:

Agora, esteja a Terra superpopulada ou não, uma coisa é certa, os fortes sempre irão se apoderar das terras e das propriedades dos fracos. Estou convicto de que esta conduta não é, em absoluto, incompatível com a mais elevada moral e mesmo com o sentimento cristão.[79]

Com efeito, John Campbell, um escritor cristão favorável à escravidão, viu a luta racial como um componente essencial da história da humanidade, e ele cita Knox em seu ensaio de 1851, “Negro-Mania“:

O antagonismo das raças opera por si próprio  em toda situação em que duas raças são colocadas em colisão, seja pela extinção rápida ou lenta da raça mais frágil e inferior (…) Knox nos mostrou que em todos os lugares o sangue branco atropela e extermina as raças mais escuras.” O Saxão (ele observa) não se associará com qualquer raça escura, tampouco lhe permitirá manter qualquer acre de terra no país que vier a ocupar … Não há nada que negue o fato de que o Saxão – chame-lhe pelo nome que desejar – possui o mais perfeito horror por seus irmãos mais escuros”.[80]

Em geral, Weikart parece beatificamente ignorante da abundância de literatura racialista cristã pré-nazista que mostraria que o nazismo aboslutamente não representa nenhuma ruptura da história cristã.

Conclusão

D’Souza fracassa de maneira espetacular em seus esforços para pintar o nazismo como uma “filosofia antirreligiosa” responsável por dez milhões de mortes. Primeiro, D’Souza não fornece quase nenhuma documentação para suas alegações, e o que ele de fato oferece vem em sua maior parte de fontes secundárias. Ele aparentemente é incapaz de ler fontes alemãs primárias na língua original. Ele também confunde quaisquer esforços contra o Cristianismo organizado com antirreligiosidade. Mas mesmo nas Conversações Íntimas, uma fonte questionável utilizada por D’Souza, Hitler deixa claro que ser contra o Cristianismo não é o mesmo que ser contra a crença em Deus.

A prestidigitação numérica de D’Souza simplesmente oculta o fato de que tanto a moralidade teísta quanto a não-teísta podem resultar em genocídios. Quaisquer diferenças no número de mortes é mais um acidente histórico do que uma diferença num princípio que pode justificar o assassinato de grupos baseado na etnicidade, na raça, na nacionalidade ou na religião. Pelos padrões das Nações Unidas, os genocídios cometidos pelos cristãos são tão reprováveis quanto os cometidos pelos maoístas ou pelos estalinistas porque todos eles dedicaram-se igualmente ao extermínio de 100% de seus respectivos grupos alvo.

Mas o mais significativo problema com o argumento de D’Souza é sua conveniente amnésia acerca da longa história do antijudaísmo cristão que precede em séculos o nascimento de Darwin ou Hitler. O clamor pelo extermínio dos hereges e judeus na França pelo Papa Inocente III na Idade Média não precisou do darwinismo. E o criminoso plano de sete pontos de Lutero, que é praticamente idêntico ao do nazismo, demonstra além de qualquer dúvida que o darwinismo certamente não foi “necessário” para se chegar à ideologia nazista (veja o quadro abaixo). O nazismo, na verdade, foi muitíssimo facilitado por  uma longa tradição de antijudaísmo cristão.

UMA COMPARAÇÃO DAS POLÍTICAS ANTIJUDAICAS DE HITLER E AS POLÍTICAS DEFENDIDAS EM NAS OBRAS DE MARTINHO LUTERO E CHARLES DARWIN

Notas.

1. Dinesh D’Souza, A Verdade sobre o Cristianismo, pág. 215. (Thomas Nelson Brasil – Rio de Janeiro – 2008).

2. D’Souza, A verdade, p. 215. D’Souza está respondendo especificamente aos argumentos de Sam Harris, A morte da fé: religião, terror e o futuro da razão (Companhia das Letras, 2009); Daniel Dennett, Quebrando o Encanto – A religião como um fenômeno natural (Ed. Globo, 2007); e Richard Dawkins, Deus, um delírio (companhia das Letras, 2007).

3. D’Souza, A verdade, p. 214.

4. Hector Avalos, Fighting Words: The Origins of Religious Violence (Amherst, NY: Prometheus Books, 2005), pp. 325-34.

5. Vejam sobretudo Tatiana A. Chuinachenko, Church and State in Soviet Russia. Russian Orthodoxy from World War II to the Krushchev Years, trans. Edward E. Roslof (Armonk, NY: M. E. Sharpe, 2002).

6. Richard Weikart, From Darwin to Hitler Evolutionary Ethics Eugenics, and Racism in Germany (New York: PalgraveMacmillan, 2004).

7. Um sumário das convenções da Nações Unidas sobre Direitos Humanos pode ser lido em: http://www.hrweb.org/legal/undocs.html#CAG.

8. Para discussões recentes sobre teorias da etnicidade, veja Richard H. Thompson, Theories of Ethnicity: A Critical Appraisal (New York: Greenwood Press, 1989). Para o antigo Israel, veja Kenton Sparks, Ethnicity and Identity in Ancient Israel – Prolegomena to the Study of Ethnic Sentiments and Their Expression in the Hebrew Bible (Winona Lake: IN: Eisenbrauns, 1998).

9. Veja também, Solomon Grayzel, The Church and the Jews in the XIIIth Century (New York: Hermon Press, 1966); Kenneth R. Stow, Catholic Thought and Papal Jewry Policy, 1555-1593 (New York: Jewish Theological Seminary of America, 1977).

10. Stow, Catholic Thought, p. 295; Latin (p. 291): quos propia culpa perpetua servituta submisit.

11. D’Souza, A verdade, p. 208.

12. Jose M. Sanchez, Pius XII and the Holocaust- Understanding the Controversy (Washington, DC: Catholic University of America Press, 2002), p. 70.

13. Martinho Lutero, “Dos judeus e suas mentiras,” trad. Martin H. Bertram in Luther’s Works: The Christian in Society IV, ed. Franklin Sherman (Philadelphia, PA: Fortress Press, 1971), pp. 268-72.

14. Martinho Lutero, “Dos judeus,” p. 268 n. 173. Veja também William Montgomery McGovern, From Luther to Hitler: The History of Fascist Nazi Political Philosophy (Cambridge, MA: Houghton Mifflin, 1941).

15. Adolf Hitler, Mein Kampf, trad. Ralph Manheirn (Boston: Houghton Mifflin, 1971), p. 213; German (p. 232): Neben Friedrich der Grossen stehen bier Martin Luther sowohl als wie Richard Wagner. Utilizamos a edição alemã Adolf Hitler, Mein Kampf (Munchen: Muller, 1938). Doravante, esta fonte será referida como “Alemã (nº da pág.).”

16. Sobre o Concílio de Elvira, veja Louis H. Feldman, Jew and Gentile in the Ancient World- Attitudes and Interactions from Alexander to Justinian (Princeton: Princeton University Press, 1993), pp. 373, 380, 398.

17. Para um ponto de vista de um erudito católico sobre este período, especialmente à luz do Vaticano II, veja Edward A. Synan, The Pope and the Jews in the Middle Ages (New York: Macmillan, 1965).

18. John Y. B. Hood, Aquinas and the Jews (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1995), p. 25.

19. Veja Robert Chazan, In the Year 1096 The First Crusade and the Jews (Philadelphia, PA: Jewish Publication Society, 1996), p. 129.

20. Shlomo Eidelberg, The Jews and the Crusaders: The Hebrew Chronicles of the First and Second Crusades (Madison: University of Wisconsin Press, 1977), p. 31.

21. D’Souza, A verdade, p. 218.

22. Grayzel, The Church and the Jews, p. 133; Texto latino na p. 132. Inocente (Grayzel, The Church and the Jews, pp. 92-93) paradoxalmente também endossa a idéia agostiniana de manter alguns judeus vivos como um símbolo da descrença, ele também acreditou que “não se deveria destruir os judeus completamente” (em latim: ne deleveris omnino Judeos). Sobre esta idéia posterior, veja Jeremy Cohen, Living Letters of the Law: Ideas of the Jew in Medieval Christianity (Berkeley: University of California Press, 1999).

23. Para este aspecto do nazismo, vejam Gotz Aly, Peter Chroust, e Christian Pross, Cleansing the Fatherland Nazi Medicine and Racial Hygiene, trans. Belinda Cooper (Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, 1994).

24. Paul R. Sweet, ed., Documents on German Foreign Policy, 1918-1945, dos arquivos do Ministério do Exterior alemão (Washington, DC: United States Printing Office, 1949), series C, vol. 1, p. 347.

25. Guenter Lewy, The Catholic Church and Nazi Germany (New York: De Capo Press, 2000), p. 51.

26. Hitler, Mein Kampf, p. 65 / Alemã (p. 70): So glaube ich heute im Sinne des allmachtigen Schopfers zu handeln: Indem ich mich des ,juden erwehre, kampfe ich fur day Werk des herrn.

27. D’Souza, A verdade, p. 217.

28. Ibid.

29. Hitler, Mein Kampf, p. 562 / alemã (p. 630): Denn Gottes WillegabdenMen- sehen einst ihre Gestalt, ihr Wesen and ihre Fahigkeiten. Wer sein Wert zerstort sagt damit der Schopfung des hernn, dem gattlichen Wollen, den kampf an.

30. Sweet, Documents on German Foreign Policy, series C, vol. 1, p. 347.

31. D’Souza, A verdade, p. 217.

32. Richard Steigmann-Gall, The Holy Reich: Nazi Conceptions of Christianity, 1919-1945 (Cambridge: Cambridge University Press, 2003), p. 221. Para um estudo da  receptividade ao antijudaísmo pelas populações alemãs, veja Daniel Goldhagen, Hitler’s Willing Executioners.- Ordinary Germans and the Holocaust (New York: Little, Brown, 1996).

33. Alfred Rosenberg, Das Parteiprogramm: Wesen, Grundsatze and Ziele der NSDAP (Munich: Zentralverlag der NSDAP, 1922 [25th edition, 1943]), p. 13: Die Partei als solche vertritt den Standpunkt eines positiven Christentums, ohne rich konfessionell an ein bestimmtes Bekenntnis zu binden. Sic bekampft den judisch-materialistischen Geist… .

34. Alfred Rosenberg, Der Mythus des 20, Jahrhunderts: Ewe Wertung der seeliseh- geistigen Gestaltentkampfe unserer Zeit, (‘Munchen: Hoheneichen Verlag, 1938). Steigmann-Gall (The Holy Reich, pp. 92-93) defende que o livro de Rosenberg não recebeu muita atenção dentro do Partido Nazista. Entretanto, Albert Speer (Inside the Third Reich, trad. Richard e Clara Winston [New York: Macmillan, 1970], p. 115), o arquiteto pessoal de Hitler, diz que  “o público considerava o livro como o texto de referência para a ideologia do partido”.

35. Rosenberg, Der Mythus, p. 74.

36. Ibid., p. 78: Das positive Christentum gegenuber dem negativum der auf der etrusco-asiatische Vorstellung zuruckgehende Priesterherrschaft and des Hexenwahns.

37. Alfred Rosenberg, Race and Race History and Other Essays, ed. Robert Pois e trad. Jonathon Cape (New York: Harper & Row, 1970), p. 180.

38. Veja Harry M. Orlinsky, “Nationalism-Universalism and Internationalism in Ancient Israel,” in Translating and Understanding the Old Testament Essays in Honor of Herbert Gordon May, eds. Harry Thomas Frank and William L. Reed (Nashville, TN: Abingdon, 1970), pp. 206-36, especially pp. 210-11.

39. Rosenberg, Der Mythus, p. 75. My translation of the German: Gegen these gesamte Verbastardierung, Verointalisierung and Verjudung des Christentums wehrte rich bereits day durchaus noch aristokratischen Geist atmende johannes evangelium. A edição de Robert Pois (Race and Race History and Other Essays, p. 70) traduziu johannes evangelium como “ensinamentos evangélicos de São João,” que obscurece as referências mais específicas ao livro que chamamos de Evangelho de João.

40. Para imagens de sinais de trânsito nazistas com este versículo, veja Robert P. Ericksen e Susannah Heschel, Betrayal – German Churches and the Holocaust (Minneapolis, MN: Fortress Press, 1999), fig. 6.

41. Para uma história do cânone e do marcionismo entre os anabatistas, veja meu artigo “The Letter Killeth: A Plea for Decanonizing Violent Biblical Texts,” Journal of Religion, Conflict, and Peace 1, no. 1 (Outono 2007): http://www.plowshares project.org/journal/php/article.php?issu_list_id=8&article_list_id=22.

42. D’Souza, A verdade, p. 217.

43. Frederic W. Farrar, The Life of Christ as Represented in Art (London: Adam and Charles Black, 1901), p. 84.

44. Veja também, Susannah Heschel, An Aryan Jesus. Christian Theologians and the Bible in Nazi Germany (Princeton: Princeton University Press, 2008).

45. Minha citação vem das minutas de uma reunião do governo nazista ocorrida em 14 de Julho de 1933. Minha fonte é Walther Hofer, ed., Der Nationalsozialismus.• Dokumente 1933-1945 (Frankfurt: Fischer Taschenbuch Verlag, 1976), p. 130.

46. Mit Brennender Sorge, disponível em http://www.newadvent.org/library/docs_pi11mb.htm.

47. Telegrama de Diego von Bergen para Eugenio Pacelli conforme preservado em Raymond James Sontag et al., eds., Documents on German Foreign Policy, 1918-1945, dos Archives of the German Foreign Ministry (Washington, DC: United States Printing Office, 1949), series D, vol. 1, p. 991.

48. Veja Richard Phayer, The Catholic Church and the Holocaust, 1930-1965 (Bloomington: Indiana University Press, 2000), p. 45.

49. Veja Richard Carrier, “Hitler’s Table Talk: Troubling Finds,” German Studies Review 26, no. 3 (2003): 561-76.

50. Para uma história dos Diários de Hitler, veja Charles Hamilton, The Hitler Diaries: Fakes That Fooled the World (Louisville: University Press of Kentucky, 1991) e Robert Harris, Selling Hitler (New York: Pantheon Books, 1986).

51. Steigmann-Gall, The Holy Reich, pp. 243-60.

52. Carrier, “Hitler’s Table Talk,” p. 573.

53. Speer, Inside the Third Reich, p. 113.

54. Ibid., p. 114.

55. D’Souza, A verdade, p. 218.

56. Ibid., p. 327 n. 12.

57. Hermann Rauschning, ed., Hitler Speaks: A Series of Conversations with Adolf Hitler on His Real Aims (London: Thornton Butterworth, 1939; Reprint: Whitefish, MT: Kessinger, 2007), p. 63. Sobre a confiabilidade desta fonte, veja SteigmannGall, The Holy Reich, pp. 28-29.

58. H. R. Trevor-Roper, ed., Hitler’s Table Talk, 1941-1944: His Private Conversations (London: Phoenix Press, 2000), p. 59.

59. Trevor-Roper, ed., Hitler’s Table Talk, p. 61.

60. Carrier, “Hitler’s Table Talk,” págs. 566-72 (todas as quatro declarações aparecem na entrada datada da tarde de 27 de Fevereiro de 1942, no original alemão).

61. Trevor-Roper, ed., Hitler’s Table Talk, p. 76. Hitler rotineiramente igualou “bolchevismo” e “judaísmo”. Ele também acreditava que Jesus foi um ariano cuja mensagem verdadeira foi corrompida pelo judeu Paulo (Carrier, “Hitler’s Table Talk,” p. 572).

62. Veja também, Peter A. Dykema and Heiko Oberman, eds., Anticlericalism in Late Medieval and Early Modern Europe (Leiden: Brill, 1993), que também discute vários conflitos entre protestantes e católicos.

63. Diego von Bergen, o embaixador alemão no Vaticano, relatou especificamente que o Papa temia que “uma ‘terceira’ fé está sendo organizada e encorajada” em adição ao catolicismo e às fés evangélicas (Documentos sobre a política externa alemã, série D, vol. 1, p. 988). Isto mostra que o Vaticano via a religião nazista como uma fé concorrente, e não como “ateísmo”, um termo que ocasionalmente também aplicado a fés concorrentes.

64. D’Souza, A verdade, p. 219; Richard Weikart, From Darwin to Hitler. Evolutionary Ethics, Eugenics, and Racism in Germany (New York: Palgrave, 2004).

65. Para minha críticas a Weikart, veja “Avalos contra Weikart: Part I: General Problems with Dr. Weikart’s Methods“; e “Avalos Contra Weikart: Part II: Weikart’s Seven Darwinian Aspects of Nazism“. See also Sander Gliboff, H. G. Bromm, Ernst Haeckel, and the Origins of German Darwinism: A Study in Translation and Transformation (Cambridge, MA: MIT Press, 2008).

66. Denise O’Leary, “Post-Details: Expelling the Outrage: Hitler and Darwinism“(accessado em 3 Julho de 2009).

67. “Guidelines from Die Bucherei,” 2:6, 1935, p. 279.

68. Weikart, From Darwin to Hitler, p. 9.

69. Richard Weikart, “Review of Annette Wittkau-Horgby, Materialismus: Enstehung and Wirkung in den Wissen.rchaften des 19. Jahrhunderts (Gottingen: Vande- hoek and Ruprecht, 1998),” German Studies Review 24, no. 3 (October 2001): 610.

70. Richard Weikart, “Review of Richard Steigmann-Gall’s The Holy Reich: Nazi Conceptions of Christianity,” German Studies Review 27, no. 1 (February 2004): 175.

71. Veja Mein Kampf, p. 312: “manter seu sangue puro” / versão alemã (p. 342): Rein- haltung seines Blutes.

72. Veja também, Linda Martz, “Pure Blood Statutes in Sixteenth-Century Toledo: Implementation as Opposed to Adoption,” Sefarad 61, no. 1 (1994): 91-94; Albert Sicroff, Los estatutos de limpieza de sangre.: Controversial entre los siglos xvy xvii (Madrid: Taurus, 1985); Henry Kamen, The Spanish Inquisition.A Historical Revision (London: Weidenfeld and Nicolson, 1997), sobretudo págs. 242-54; Henry Kamen, Philip of Spain (New Haven, CT: Yale University Press, 1997), pp. 33-34.

73. Max Reichler, Jewish Eugenics and Other Essays (New York: Bloch, 1916), pp. 7-8.

74. Hitler, Mein Kampf, p. 249.

75. Ibid., p. 286.

76. Weikart, From Darwin to Hider, p. 186.

77. Charles Darwin, A origem do Homem e a Seleção Sexual, (Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2004 [1874]), p. 135 (contexto: págs. 125-143). Veja também Patrick Brantlinger, Dark Vanishings: Discourse on the Extinction of Primitive Races 1800-1930 (Ithaca, NY: Cornell University Press, 2003).

78. George Fitzhugh, “Sociology for the South or the Failure of Free Society,” em Antebellum Writings of George Fitzhugh and Hinton Rowan Helper on Slavery, ed. Harvey Wish (New York: Capricorn Books, 1960 [reprint of 1854 edition]), p. 61.

79. Robert Knox, The Races of Men (Philadelphia, PA: Lea & Blanchard, 1850), pp. 38-39.

80. John Campbell, “Negro-Mania,” in E. N. Elliott, Cotton Is King and ProSlavery Arguments: Comprising the Writings of Hammond, Harper Christy, Stringfellow, Hodge, Bledsoe, and Cartwright, on This Important Subject (Augusta, GA: Pritchard, Abbott and Loomis, 1860), p. 520.

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Autor: Luiz Felipe Pondé

Publicado originalmente na Folha de São Paulo de 09 de Abril de 2012

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Na Bíblia, primogênitos foram mortos e muitos deles eram crianças inocentes, não?

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Muitos leitores me perguntaram o que aquela peça kafkiana cujo título era “Páscoa” queria dizer na coluna do dia 2/4/2012.

O texto era simplesmente isto: a descrição de um ritual religioso muito próximo dos centenas de milhares que devem ter acontecido em nossa Pré-História.

Horror puro, mas é assim que deve ter começado toda a gama de comportamentos que hoje assumimos como cheios de significados espirituais. Entender a origem de algo “darwinianamente”, nada tem a ver com a “cara” que esse algo possui hoje. Vejamos o que nos diz um especialista.

O evolucionista Stephen Jay Gould (1941-2002), num artigo de 1989 cujo título é “The Creation Myths of Cooperstown“, compara a origem mítica do beisebol (supostamente nascido em território americano e já “pronto”) com a explicação evolucionaria do beisebol.

Gould está fazendo no texto uma metáfora do que seria uma explicação evolucionária de um esporte. Ele narra como o beisebol “evoluiu” a partir de comportamentos humanos casuais que na origem consistiam apenas em bater com prazer em frutas redondas ou em cabeças com pedaços de pau, e que a forma final aconteceu na Inglaterra e não nos EUA, muito tempo depois.

A revolta dos americanos orgulhosos de sua mítica criação do beisebol, com a “tese monstruosa” do evolucionista Gould, foi óbvia.

Segundo ele, o que caracteriza a diferença entre conhecer a origem darwiniana de algo, por exemplo, a religião, e fazer mitos sobre ela, é saber que antes de tudo o sentido que a ela damos hoje em dia (religião = “o Bem”?) nada tem a ver com sua origem e que sua evolução deve ter ocorrido a partir de fragmentos desconexos de comportamentos, afetos e ideias, derivados dos subprodutos fisiológicos das mutações genéticas e físicas que sofremos em nossa pré-história.

Cerca de 500 anos atrás praticávamos canibalismo cerebral ritualístico e colocávamos as cabeças íntegras em posições geométricas como numa espécie de santuário.

Achados semelhantes datados de cerca de 300 mil anos atrás, no Paleolítico – como o que descrevo ao final do texto da semana passada -, apontam para rituais semelhantes (ver “A Prehistory of Religion, Shamans, Sorcerers and Saints”, de Brian Hayden, Smithonian Books, Washington, 2003).

Praticávamos canibalismo ritualístico de cérebros humanos, e crianças sempre foram mais fáceis de serem capturadas -claro, de outros bandos. Tirávamos os cérebros com cuidado para depois colocarmos as cabeças em posições geométricas e com elas fazíamos algo como o que hoje chamamos de santuário.

Semana passada foi Páscoa. Este ano, ela coincidiu com a semana que começa o Pessach, Páscoa judaica. Quando Jesus jantava com seus apóstolos na Quinta-Feira Santa, Ele celebrava o Pessach.

Para os judeus, essa data representa a saída da escravidão do Egito. Para os cristãos, a Páscoa também celebra a liberdade do povo de Israel, mas ressignificando-a como uma liberdade não só política, mas a liberdade da alma diante das várias escravidões da vida.

Os hebreus pintaram as portas com sangue de cordeiro, seguindo a ordem de Deus, para que o anjo da morte não matasse seus primogênitos como mataria os dos egípcios. Esta era a última das pragas que levaria os hebreus à liberdade.

Primogênitos seriam mortos e muitos deles eram crianças inocentes, não?

Cristãos comem o corpo e bebem o sangue de Cristo, um inocente. E “nós” o matamos ou você duvida de qual lado você estaria na história?

Aqueles que pensam que nossos ancestrais monstruosos nada nos ensinam, se enganam.

O grau de parentesco entre a “páscoa” deles e a nossa não é tão distante assim. Celebramos a morte de crianças (egípcias antigas), bebemos sangue e comemos o corpo (simbolicamente) de um inocente, mas isso tudo pra nós representa vida, liberdade.

Afinal, o que teria representado para nossos patriarcas o que eles faziam? Seriam as crianças que eles comiam as “crianças egípcias” deles? Ou seriam elas seus “cordeiros inocentes” por serem crianças?

Enfim, duas certezas: a “Páscoa” melhorou muito nos últimos 300 mil anos e Darwin ainda é diabólico.

ponde.folha@uol.com.br

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Autor: André Comte-Sponville

Fonte: O Espírito do Ateísmo, págs 113-116

(…)

Meu quinto argumento para justificar meu ateísmo concerne menos ao mundo do que aos humanos: quanto mais os conheço, menos posso crer em Deus. Digamos que não tenho uma idéia muito elevada da humanidade em geral, e de mim mesmo em particular, para imaginar que um Deus esteja na origem desta espécie e deste indivíduo. É mediocridade demais por toda parte. Pequenez demais. Nulidade [dénéantise] demais, como dizia Montaigne. Vanidade demais, como ele também diz (“De todas as vanidades, a mais vã é o homem”). Que belo resultado para um ser onipotente! Você me dirá que Deus talvez tenha feito coisa melhor em outros domínios… Admitamos. Mas será essa uma razão para se contentar com tão pouco neste? O que você diria de um artista que, a pretexto de ter feito algumas obras primas, pretendesse lhe vender os seus refugos? Pode ser que isso não seja raro em nossos artistas, mas não é aceitável num Ser supostamente onipotente e infinitamente bom… Enfim, a idéia de que Deus tenha podido consentir em criar tamanha mediocridade – o ser humano – me parece, mais uma vez, de uma plausibilidade baixíssima.

“Deus criou o homem à sua imagem”, lemos no Gênesis. Isso nos faz duvidar do original. Parece-me muito mais concebível, muito mais sugestivo, muito mais verossímil que o homem descenda do macaco. Darwin, mestre de misericórdia.

Devemos por isso dar razão aos misantropos? De jeito nenhum! O homem não é entranhadamente mau. Ele é entranhadamente medíocre, mas não tem culpa disso. Ele faz o que pode com o que tem ou o que é, e ele não é grande coisa, e não pode muito. É o que nos deve tornar indulgentes em relação a ele, às vezes até mesmo admirativos. O materialismo, dizia La Mettrie, é o antídoto da misantropia: é porque os homens são animais que não vale a pena odia-los, nem tampouco despreza-los. Como cópias de Deus, seríamos ridículos ou inquietantes. Como animais produzidos pela natureza, não somos de todo desprovidos de qualidades e méritos. Partimos de tão baixo! Quem poderia adivinhar, cem mil anos atrás, que aquelas espécies de grandes símios iriam à Lua, gerariam Michelângelo e Mozart, Shakespeare e Einstein, que inventariam os direitos humanos e até os direitos dos animais? Nós lutamos, por exemplo, para proteger as baleias e os elefantes. Temos razão. Mas imaginem que a humanidade se torne, isso talvez venha a acontecer, uma espécie em extinção: baleias ou elefantes não levantariam a nadadeira ou a tromba para nos preservar. A ecologia é própria do homem (sim, apesar da poluição, ou antes, por causa dela), e os direitos dos animais, inclusive, só existem para os humanos. Isso diz muito sobre nossa espécie.

Religião do homem? Claro que não. Que péssimo deus ele daria! O humanismo não é uma religião, é uma moral (a qual inclui também nossos deveres para com as outras espécies animais). O homem não é nosso Deus; ele é nosso próximo. A humanidade não é nossa Igreja, mas nossa exigência. Trata-se, repitamos com Montaigne, de “fazer bem o homem””, e nunca se para de fazê-lo! Humanismo sem ilusões, e de salvaguarda. Devemos perdoar os homens – e nós mesmos – por serem apenas o que são. Nem anjos, nem bestas, como diz Montaigne antes de Pascal, nem escravos nem super-homens: “Eles querem se pôr fora de si e escapar do homem. É loucura: em vez de se transformar em anjos, eles se transformam em bestas; em vez de se elevar, eles se rebaixam. Esses humores transcendentes me assustam, tal como os lugares altos e inacessíveis.” A lucidez basta, e é melhor.

Finitude do homem: exceção do homem. O mesmo homo sapiens, que não seria mais do que uma imitação grotesca de Deus, é o mais extraordinário, de longe, de todos os animais: ele tem um cérebro espantosamente complexo e eficiente; é capaz de amor, de revolta de criação; inventou as ciências e as artes, a moral e o direito, a religião e a irreligião, a filosofia e o humor, a gastronomia e o erotismo… Não é pouco! O que ele fez de melhor, nenhum animal teria feito. O que ele fez de pior, também não. Isso diz bastante sobre sua singularidade. Daí a imagina-lo criado por um Deus… Como? Toda essa mesquinharia, todo esse narcisismo, todo esse egoísmo, todas essas pequenas rivalidades, esses pequenos ódios, esses pequenos rancores, essas pequenas invejas, esses pequenos divertimentos, essas pequenas satisfações de conforto ou de amor-próprio, essas pequenas covardias, essas pequenas ou grandes ignomínias – seria necessário um Deus para explicar isso? Coitado! Como ele deve se chatear, se existir, se é que não se envergonha! Veja nossos principais canais de televisão, basta ver somente um dia, e – diante de tanta bsteira, violência vulgaridade – pergunte-se simplesmente: como é que um Ser onipotente e onisciente poderia querer isto? Você vai me dizer que não é Deus que faz os programas. Sem dúvida. Mas ele é que teria criado a humanidade, a qual dá ibope aos programas… Como, diante de tamanha mediocridade das criaturas, ainda crer na infinita perfeição de um Criador?

Estou carregando nas tintas? Não muito, parece-me. Estou simplificando, tenho de faze-lo, estou abreviando, digamos que, para ir mais depressa, examino apenas um lado da questão. Sei que também existem (e, às vezes, está na televisão) obras-primas, gênios, heróis; enfim, dentre alguns verdadeiros canalhas, uma larga maioria de gente de bem. Mas esses dois lados da humanidade, sombra e luz, grandeza e miséria, em se tratando de nosso debate, não tem a mesma pertinência, nem a mesma força. A miséria do homem, como diz Pascal, me parece muito mais incompatível com sua origem divina do que sua grandeza com sua origem natural! O fato de sermos capazes de amor e de coragem, de inteligência e de compaixão, isso a seleção natural pode bastar para explicar: são vantagens seletivas, que tornam a transmissão de nossos genes mais provável. Mas que sejamos a tal ponto capazes de ódio, de violência e de mesquinharia, isso (que o darwinismo explica sem dificuldade) me parece exceder os recursos de qualquer teologia. É inútil explicar que não sou exceção. Quando mais eu me conheço, menos posso crer em nossa origem divina. E, quanto mais conheço os outros, menos a coisa se arranja… Crer em Deus, escrevi em algum lugar, é pecado de orgulho. Seria atribuir a nós mesmos uma causa muito grande para um efeito tão pequeno. O ateísmo, ao contrário, é uma forma de humildade. Somos filhos da terra (humus, de onde vem “humildade”), e dá para sentir essa filiação… Mais vale assumi-la e inventar o céu que corresponda a ela.

(…)

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Autores: Branden Fitelson e Elliott Sober

Departamento de Filosofia
Universidade de Winscosin – Madison

20 de novembro de 1997

Tradução: Gilmar Pereira dos Santos

Resumo: No capítulo 12 de Warrant and Proper Function, Alvin Plantinga constrói dois argumentos contra o naturalismo evolutivo, que ele interpreta como uma conjunção E&N. A hipótese E diz que “as faculdades cognitivas humanas originaram-se através dos mecanismos para os quais o pensamento evolucionista contemporâneo dirige nossa atenção (p.220).[1]” Plantinga tenta lançar dúvidas sobre a conjunção E&N de duas maneiras. Seu argumento preliminar tem por objetivo mostrar que a conjunção é provavelmente falsa, dado o fato (R) de que nossos mecanismos psicológicos de formação de crenças sobre o mundo são geralmente confiáveis. Seu argumento principal visa demonstrar que a conjunção E&N é autodestrutiva – se você acredita em E&N, então você deveria parar de acreditar nesta conjunção. Plantinga depois desenvolve o argumento principal em seu artigo inédito “Naturalismo invalidado” (Plantinga 1994). Tentaremos mostrar que ambos os argumentos contém erros graves.

Índice:

1. O argumento preliminar
1.1 A proposição R
1.2 Estabelecendo Pr(R)~1
1.3 Pr(R|E&N) possui um valor baixo? Repensando a “dúvida de Darwin”
1.4 O princípio da evidência total
1.5 Uma contradição e duas saídas possíveis
2. O argumento principal de Plantinga contra E&N
2.1 Problemas que o argumento principal herda do argumento preliminar
2.2 O que a invalidação de R significa
2.3 Probabilidade condicional e invalidação
3. Um problema para o evolucionismo

1. O argumento preliminar

Plantinga constrói seu argumento preliminar numa estrutura bayesiana. Seu objetivo é estabelecer que Pr(E&N|R) – a probabilidade de E e N, dado R – é baixa. Para tanto, Plantinga usa o Teorema de Bayes, cujo enunciado diz que esta probabilidade condicional é função de três outras quantidades:

Pr(E&N|R)=Pr(R|E&N)*Pr(E&N)/Pr(R)

Plantinga diz que você deveria atribuir a Pr(R) um valor bastante próximo de 1 baseado no fato de você acreditar em R (p.228) Ele argumenta que a Pr(R|E&N) é baixa. Ainda que Plantinga não forneça uma estimativa a priori da probabilidade Pr(E&N), ele diz que esta é comparável à probabilidade a priori  do teísmo tradicional (TT) (p.229), querendo dizer, supomos, que seus valores não são muito discrepantes.
Esta última alegação deveria levantar sobrancelhas, não somente entre naturalistas evolutivos que rejeitam a idéia de que sua teoria e o teísmo tradicional estejam em pé de igualdade antes que a proposição R seja levada em conta, mas também entre críticos do Bayesianismo, que duvidam que exista alguma base objetiva para tais atribuições de probabilidade. Plantinga diz (p.220, nota de rodapé 7) que suas probabilidades podem ser interpretadas “epistemicamente” ou “objetivamente”, mas que ele prefere a interpretação objetiva. De qualquer maneira, bayesianos nunca foram capazes de dar coerência à idéia de que probabilidades a priori possuam um fundamento objetivo. O canto de sereia do Princípio da Indiferença tem levado muitos a pensar que é possível atribuir probabilidades à hipóteses sem necessidade de evidências empíricas, mas nenhuma versão consistente deste princípio jamais foi formulada. A alternativa sob a qual os bayesianos costumeiramente se refugiam é interpretar probabilidades como uma indicação do grau de crença subjetiva de um agente. O problema com esta abordagem é que ela priva probabilidades a priori (e as probabilidades posteriores que delas dependem) de qualquer força probatória. Se um agente atribui probabilidades similares ao naturalismo evolutivo e ao teísmo tradicional, isto é inteiramente consistente com a atribuição por outro agente de probabilidades bastante desiguais às mesmas hipóteses, se probabilidades meramente refletem intensidades de crença.
Ainda que a estrutura bayesiana de Plantinga obrigue-o a dar sentido à idéia segundo a qual a conjunção E&N possui uma probabilidade a priori, seu argumento não depende de qualquer valor particular atribuído a esta variável. Como Plantinga aponta (p.228), se Pr(R)≈1 e Pr(R|E&N) é baixa, então Pr(E&N|R) também é baixa, não importando qual valor Pr(E&N) possua.

1.1  A proposição R

Para o bem da clareza, vale a pena enunciar mais precisamente a proposição R. O que significa afirmar que nossos mecanismos psicológicos de formação de crenças sejam “geralmente confiáveis”? Em seu manuscrito inédito, Plantinga diz que R significa que a vasta maioria de nossas crenças são verdadeiras (Plantinga 1994, p.2). Deixando de lado o problema da contagem de crenças, não queremos desafiar a veracidade desta alegação sumária. De qualquer maneira, ela subespecifica drasticamente o dado que precisa ser explicado. Pois o que há de consensual neste assunto é que nossos mecanismos cognitivos são confiáveis em alguns domínios, suspeitos em outros e de confiabilidade desconhecida em outros ainda. Deveríamos dividir nossas crenças em categorias e associar um grau característico de confiabilidade a cada uma delas[2]. Talvez certas crenças perceptuais simples sejam muito confiáveis, enquanto crenças sobre outros assuntos sejam menos. Em vez de tentar obter uma afirmação sumária sobre todos estes mecanismos e as crenças que eles originam, seria melhor considerar uma conjunção R1&R2&…&Rn que especifique o grau de confiabilidade que os dispositivos humanos de formação de crenças possuem com respeito a diferentes assuntos, ou em diferentes situações problemáticas. Plantinga (pp. 216-217,227, 231-232, e num comunicado pessoal) não se opõe a este particionamento e o utiliza ele próprio para discutir a probabilidade que E&N confere a R.
Se R é verdadeira, porque deveria alguém se dar ao trabalho de enuncia-la mais detalhadamente? Isto não faria diferença se o argumento de Plantinga fosse dedutivo. Um argumento sólido permanece sólido quando as premissas são suplementadas com mais detalhes verdadeiros. De qualquer maneira, argumentos probabilísticos não possuem esta propriedade. Mesmo se Pr(R|E&N) for menor que Pr(R|TT), permanece por ser demonstrado que Pr(R1&…&Rn|E&N) é menor que Pr(R1&…&Rn|TT).
Antes de nos debruçarmos sobre esta questão comparativa, consideremos se a probabilidade condicional Pr(R1&R2&R3&…&Rn|E&N) é alta ou baixa. Suponha que o naturalismo evolutivo faça um bom trabalho preditivo sobre o conjunto Ri’s, atribuindo a cada elemento uma probabilidade, digamos, de 0.99. Ainda assim poderíamos terminar com E&N conferindo uma baixa probabilidade a esta conjunção. Se

Pr(R1&R2&. . .&Rn |E&N) = Pr(R1 |E&N) · Pr(R2 |E&N) · · · Pr(Rn |E&N)
(isto é, se as Ri forem probabilisticamente independentes umas das outras e condicionadas por E&N), então o termo à esquerda da igualdade pode possuir um valor baixo, embora cada termo do produto à direita possua um valor alto. Eleve 0.99 a uma potência suficientemente alta e você obtem um valor próximo de zero. Isto pode acontecer a qualquer boa teoria; uma baixa probabilidade pode ser conferida a uma conjunção gigantesca de observações embora cada elemento individual da conjunção possua uma probabilidade bastante alta.
Uma vez decomposta a proposição R numa conjunção de alegações, não fica nem um pouco óbvio que a teoria da evolução faz um trabalho pior de predição desta conjunção do que o do teísmo tradicional. Plantinga diz que o teísmo tradicional “acredita que Deus é o conhecedor primário e criou-nos seres humanos à sua imagem, uma parte importante da qual envolve  um reflexo de seus poderes como conhecedor (p.237).” Entretanto, uma perspectiva influente nas ciências cognitivas afirma que o entendimento humano está sujeito a uma ampla variedade de vieses. Não apenas que pessoas eventualmente se equivoquem, mas que a faculdade racional humana aparenta funcionar segundo métodos heurísticos que levam ao erro sistemático (Kahnemann, Tversky and Slovic 1982). Não seria surpreendente, de um ponto de vista evolutivo, se os seres humanos possuíssem dispositivos altamente confiáveis para formação de crenças acerca questões práticas que afetam a sobrevivência e a reprodução, mas sejam um tanto menos dotados quando o assunto é filosofia, teologia e ciência teórica. A teologia tradicional também prevê este resultado? Sem dúvidas, pode-se especificar uma teologia que faça qualquer previsão conveniente. Entretanto, não é de todo claro que a teologia tradicional de Plantinga faça um bom trabalho preditivo acerca dos graus variáveis de confiabilidade que a mente humana exibe. Plantinga deve lidar com o mesmo problema que o argumento do design de Paley enfrenta: por que uma divindade onipotente, onisciente e benevolente produziria organismos que exibem adaptações tão escandalosamente imperfeitas (Sober 1993)?

1.2 Estabelecendo Pr(R)≈1

Mencionamos previamente que Plantinga estabelece Pr(R)~1 porque acredita na veracidade da proposição R. No contexto da teoria da confirmação bayesiana, especificar a evidência de que uma probabilidade esteja próxima da unidade possui uma consequência peculiar, como mostraremos agora.
Bayeasianos definem confirmação em termos de aumento da probabilidade; uma observação O confirma uma hipótese H se e somente se a probabilidade posterior Pr(H|O) é maior que a probabilidade a priori Pr(H). Se reescrevermos o teorema de Bayes como a seguir

Pr(H|O)/Pr(H)=Pr(O|H)/Pr(O)

fica claro que O não pode confirmar H se Pr(O)=1. Com esta atribuição, o termo à direita da igualdade não pode ser maior do que 1, consequentemente o termo à esquerda também não pode. A estipulaçao de Plantinga que Pr(R) é próxima de 1  não assegura que R não pode confirmar uma hipótese H. Depois de tudo, é possível que Pr(R|H) seja ainda mais próxima de 1 que Pr(R). Digamos que a hipótese H é quase-determinística  com respeito a R se Pr(R|H)>Pr(R)≈1. Se o naturalismo evolutivo não é quase deterministico neste sentido, então R não pode confirma-lo, dada a atribuição de Plantinga. A proposição R pode deixar inalterada a probabilidade de E&N, ou pode diminui-la; a única opção é cair. A não ser que o teísmo tradicional seja quase deterministico com respeito a R, ele também não pode ser confirmado pela proposição R, se Pr(R)≈1.

Bayesianos gostam de assinalar que uma das consequencias do teorema de Bayes é a incapacidade de uma observação confirmar uma hipótese quando esta observação é totalmente trivial. contudo, para a maior parte das previsões de interesse mínimo, um agente bayesiano não possui garantias prévias de que elas se realizarão; quando previsões surpreendentes se realizam, elas fornecem  uma confirmação. A calçada molhada (M) confirma a hipótese de que tem chovido. O fato de você acreditar que a calçada está molhada não deveria leva-lo a atribuir a esta evidência uma probabilidade igual a 1. Uma atribuição razoável de valor para Pr(M) é dada pelo fato de que a calçada raramente está molhada. A observação é, por conseguinte, algo surpreendente, e capaz de confirmar a hipótese, portanto. Assim, a alegação de Plantinga de que Pr(R) é bastante próxima de 1 é bastante excêntrica, para dizer o mínimo; e ela é crucial para seu argumento segundo o qual Pr(E&N|R) possui um valor baixo. Plantinga precisa de uma justificativa melhor para esta atribuição do que o fato de ele acreditar em R.
O argumento preliminar de Plantinga pode ser substituído por um argumento diferente, um que procure estabelecer que Pr(TT|R)>Pr(E&N|R). O objetivo agora é comparar duas probabilidades a posteriori, não estimar seus valores absolutos. Esta desigualdade é verdadeira especificamente quando

Pr(R|TT)*Pr(TT)>Pr(R|E&N)*Pr(E&N).

Observe que o valor de Pr(R) agora é irrelevante. O argumento pode começar com a afirmação de que é mais provável que nossos mecanismos psicológicos para formação de crenças sejam confiáveis se TT é verdadeiro do que seria o caso se E&N fosse verdadeiro. Se Deus existe e intervém nos processos naturais para garantir que os seres humanos terminem com faculdades cognitivas confiáveis, isto torna R algo mais certo do que seria o caso se processos naturais aleatórios forem as únicas causas explicativas para o equipamento mental que possuímos.[3] (Aqui os problemas a respeito de como a proposição (R) deve ser enunciada, esboçados da seção 1.1,são ignorados.) Se TT e E&N recebem a mesma probabilidade a priori, segue-se que TT possui a maior probabilidade a posteriori.
O presente argumento proporciona uma maneira para substituir qualquer teoria não-determinista nas ciências naturais. Se a mecânica quântica prevê que um determinado resultado experimental é meramente bastante provável, por que não aceitar, em vez disso, a hipótese teísta segundo a qual este resultado decorre inevitavelmente da vontade divina? O teísmo pode ser formulado de maneira tal que torna o que observamos tão provável quanto se deseje. Aqueles que sentem a necessidade de apelar para a intervenção divina no caso da mente humana deveriam explicar porque não procedem assim em relação à todas as observações do mundo natural.

1.3 Pr(R|E&N) possui um valor baixo? Repensando a “dúvida de Darwin”

Plantinga (pp. 223-228) argumenta que Pr(R|E&N) possui um valor baixo, arrolando vários cenários logicamente concebíveis que descrevem como crenças e ações podem estar relacionadas. Para cada um deles, ele afirma que é muito improvável que os mecanismos cognitivos que neles evoluíram sejam altamente confiáveis[4]. Eis as possibilidades que Plantinga considera:

(i) crenças não são causalmente conectadas com comportamentos;
(ii) crenças não determinam causalmente comportamentos, mas são efeitos de comportamentos ou são efeitos de eventos que também determinam causalmente comportamentos;
(iii)crenças causam comportamentos, mas o fazem em virtude de sua sintaxe, não de sua semântica;
(iv)as propriedades semânticas de uma crença causam um comportamento, mas o comportamento é adaptativamente disfuncional;
(v)crenças determinam causalmente comportamentos adaptativos;.

Nesta última categoria, os comportamentos adaptativos podem ser causados por crenças verdadeiras, mas também podem ser causados por crenças falsas. Para esclarecer este ponto, Plantinga descreve um hominídeo pré-histórico chamado Paul que consegue evitar ser comido por tigres embora deseje ser consumido por eles. Paul obtém o que é bom para ele desejando o que é ruim; ele fica livre de encrencas porque suas crenças são falsas de uma maneira que o favorece. Em cada um destes cenários, Plantinga diz que é improvável que nossas faculdades cognitivas tenham evoluído para serem altamente confiáveis. Então Pr(R|E&N) é baixa.
Na parte principal de seu mais recente manuscrito inédito, Plantinga também diz que Pr(R|E&N) é baixa sob o cenário (ii) (epifenomenalismo); entretanto, ele apresenta uma conclusão diferente na nota de rodapé 15 (p.8). Se crenças e ações possuem eventos neurais como causas comuns, então Plantinga conclui que a probabilidade é “inescrutável”, querendo dizer que ele não pode descobrir qual valor deveria ser atribuído. Consideramos este como o ponto de vista vigente de Plantinga sobre o assunto submetido a análise. Embora Plantinga esteja desenvolvendo o argumento principal contra o naturalismo evolutivo em seu manuscrito e não esteja falando sobre o argumento preliminar, é digno de menção que esta conclusão solapa o argumento preliminar, que se assenta na atribuição de um valor baixo a Pr(R|E&N).
Seja ou não a visão atual de Plantinga que Pr(R|E&N) é inescrutável sob o cenário (ii), esta deveria ser sua opinião, dada a informação que ele considera. Presumir que crenças não determinam ações não é o mesmo que presumir que elas sejam completamente desconexas. Resistência à malária não causa anemia, nem anemia causa resistência à malária, contudo, estas características são correlacionadas num número de populações humanas porque são fenótipos causados pelo mesmo gene. Não há como dizer a priori o quão provável R é sob o cenário (ii).
Quando Plantinga dirige sua atenção para a categoria (v) _ o caso em que crenças causam comportamentos adaptativos _ ele argumenta que crenças adaptativas falsas são tão prováveis de evoluir quanto crenças adaptativas verdadeiras. A razão é que os comportamentos produzidos por um conjunto de crenças verdadeiras também poderiam ser produzidos por um conjunto de crenças falsas. O exemplo do hominídeo Paul exemplifica como isto poderia ser verdade. Plantinga oferece outro exemplo no manuscrito inédito. Se “isso é uma árvore” é uma crença verdadeira, então “isso é uma árvore-feiticeira” é uma falsa crença que teria as mesmas consequencias comportamentais, e assim seria igualmente adaptativa. Aqui, o erro de Plantinga é ignorar o fato de que a probabilidade de uma característica evoluir depende não somente de seu valor adaptativo, mas também de sua disponibilidade. A razão pela qual as zebras não possuem metralhadoras com as quais repelir o ataque de leões não é o menor valor adaptativo dos disparos destas metralhadoras em relação a simplesmente fugir correndo; esta característica nunca evoluiu porque nunca esteve disponível como uma variação sobre qual a seleção natural pudesse agir hereditariamente (veja também Fodor 1997).
Isto quer dizer que o argumento de Plantinga segundo o qual Pr(R|E&N) possuirá um valor baixo nas situações encontradas no cenário (v) é inadequado. Plantinga pode replicar dizendo que crenças em bruxas e outros sistemas de crenças falsas adaptativas estiveram disponíveis para nossos ancestrais. Entretanto, não vemos qualquer razão para pensar que esta alegação substancial sobre o passado pode ser defendida com êxito. Ao ignorar o problema da disponibilidade, Plantinga, com efeito, assume que a seleção natural atua sobre um conjunto de variantes concebíveis. Isto não ocorre; ela atua sobre um conjunto de variantes reais.
Em geral, a maneira de duas propriedades (logicamente independentes) serem bem correlacionadas é através de uma conexão causal entre elas _ uma ser causada pela outra ou ambas remontarem a uma causa comum. Se crença e ação falham em ser causalmente conectados em qualquer destas duas formas, então seria surpreendente se a seleção sobre ações conduzisse à evolução de mecanismos cognitivos altamente confiáveis. No entanto, se crença e ação são causalmente conectados, então é necessário um argumento mais detalhado do que o fornecido por Plantinga para concluir que dispositivos de formação de crença confiáveis são improváveis de evoluir pela seleção sobre atos. A proposição R é improvável no cenário (i), mas isto é tudo que pode ser dito.

1.4 O princípio da evidência total

Suponhamos que Plantinga esteja certo em dizer que Pr(E&N|R) possui um valor baixo. Disto não se segue que E&N é improvável em relação a todas as evidências relevantes. Naturalista evolutivos podem alegremente aceitar a idéia de que a probabilidade condicional mencionada é baixa; não se segue que eles deveriam diminuir sua confiança atual na verdade da teoria evolutiva e do naturalismo.
Se você retira aleatoriamente uma carta de um baralho padrão, a probabilidade de você retirar um sete de ouros é de somente 1/52. Se você retira esta carta, isto não significa que você deve concluir que o baralho é viciado ou que a carta não foi retirada ao acaso. Se você possui evidência independente de que o baralho é honesto e de que a retirada foi aleatória, você simplesmente aceita o fato de que algumas das coisas que ocorrem não possuem grandes probabilidades. Mesmo que aconteça de existirem aspectos da configuração cognitiva humana que sejam improváveis sob a hipótese de que os humanos evoluíram, há evidêcias avassaladordas de que a mente humana é um produto da evolução. Sob esta luz, a coisa sensata a fazer é aceitar a teoria da evolução e concordar com o fato de que os processos evolutivos as vezes produzem resultados improváveis[5].
Assim como para a hipótese isolada do naturalismo, que para Plantinga significa ateísmo conjugado com outras proposições que ele não enuncia, estas também devem ser avaliadas à luz de todas as evidências, não somente em relação à proposição R.

1.5 Uma contradição e duas saídas possíveis

Mencionamos que Plantinga pensa que Pr(1) possui um valor próximo de 1, Pr(R|E&N) um valor baixo, Pr(R|TT) um valor alto, e que os valores de Pr(E&N) e Pr(TT) são “comparáveis”. O argumento preliminar de Plantinga também inclui a pressuposição de que N e TT são as únicas “alternativas significativas” (p.228).
Se a afirmação de que os valores de Pr(E&N) e Pr(TT) são “comparáveis” significa que não estão muito afastados, e se a afirmação de que E&N e TT são as únicas “alternativas significativas” significa que elas são as únicas possibilidades que possuem probabilidades significativas, então este conjunto de afirmações probabilísticas é contraditório. Para ver o porque, vamos desenvolver Pr(R):

Pr(R)=Pr(R|E&N)*Pr(E&N) + Pr(R|TT)*Pr(TT).

Se E&N e TT são exaustivas, então a afirmação de Plantinga de que ambas possuem probabilidades a priori “comparáveis” significa que cada uma delas possui uma probabilidade em torno de 0.5. Substituindo estes e outros valores que Plantinga atribui aos componentes da expressão, obtemos

1≈(valor baixo)*0,5 + (valor alto)*0,5.

Isto é impossível _ uma contradição dos axiomas da teoria das probabilidades.
Há duas maneiras de contornar esta dificuldade. Uma delas é manter os valores inicialmente atribuídos, mas negar que E&N e TT esgotam as alternativas significativas. Se uma terceira possibilidade, uma teoria X, é admitida, então Pr(R) se desenvolve como

Pr(R)=Pr(R|E&N)*Pr(E&N) + Pr(R|TT)*Pr(TT) + Pr(R|X)*Pr(X).

Se Pr(R)≈1, Pr(E&N) e Pr(TT) são próximos, e Pr(R|E&N) é baixa, então Plantinga deve atribuir a Pr(E&N) e Pr(TT) valores desprezíveis, de modo que Pr(X) seja próxima de 1. Ele também deve atribuir a Pr(R|X) um valor próximo da unidade. Esta revisão no argumento de Plantinga requer, portanto, a existência de uma alternativa ao teísmo tradicional que seja imensamente mais provável a priori, e que implica que a proposição R é, de fato, muito provável. O efeito destas atribuições é fazer Pr(E&N|R)  e Pr(TT|R) baixas e Pr(X|R) alta. Se um valor baixo para Pr(E&N|R) basta para rejeitar o naturalismo evolutivo, o mesmo vale para o teísmo tradicional. Esta revisão de seu argumento indica que a alternativa mais aceitável é a teoria X.
Outra maneira de eliminar a contradição é reinterpretar o que queremos dizer por “Pr(E&N) e Pr(TT) são comparáveis”. Plantinga nos sugeriu (através de um comunicado pessoal) que isto deve ser considerado como uma descrença, por parte do agente, de que as duas teorias possuam valores de probabilidades muito diferentes. Por exemplo, suponha que o agente coloque E&N e TT no mesmo amplo intervalo de probabilidades (digamos, entre 0,05 e 0,95) e é incapaz de ser mais específico do que isto.
As várias alegações de Plantinga podem ser tornadas consistentes após esta revisão. Para ver porque, retornemos ao desenvolvimento de Pr(R) e vejamos o que ocorre quando deixamos Pr(E&N) e Pr(TT) incógnitos, exceto pelo fato de que ambos devem estar situados no intervalo entre 0,05 e 0,95:

Pr(R)= Pr(R|E&N)*Pr(E&N) + Pr(R|TT)*Pr(TT)
1≈(valor baixo)*(?) + (valor alto)*(?)

A introdução de sinais interrogativos garante que  nenhuma contradição surja. Entretanto, os valores a que estes sinais se referem não são deixados em aberto; (PrE&N) deve ser bastante próximo de zero e Pr(TT) deve ser muito próximo de 1. O argumento agora é consistente, mas completamente privado de sua força probatória. Consistência ( e a interpretação revisada do significado de “Comparável”) requer a pressuposição de que o teísmo tradicional seja praticamente verdadeiro a priori, e que o naturalismo evolutivo seja quase com certeza falso, novamente a priori. Aqueles que não estiverem convencidos de que o teísmo tradicional seja imensamente mais provável que o naturalismo evolutivo antes de que a proposição R seja considerada rejeitarão o argumento logo de início. Além disso, esta revisão do argumento preliminar de Plantinga solapa sua motivação original. A idéia de Plantinga era desenvolver o que ele chama “a dúvida de Darwin” _ se Pr(R|E&N) possui um valor baixo. Entretanto, uma vez que o valor de Pr(R) seja colocado próximo de 1, e o valor de Pr(E&N) seja pressuposto baixo, segue-se automaticamente que Pr(E&N|R) é ainda menor, não importa qual valor aconteça de Pr(R|E&N) possuir.

2. O argumento principal de Plantinga contra E&N

O argumento descrito acima é um prelúdio ao ato principal, no qual Plantinga (pp. 234-235) demonstra que E&N é autodestrutiva. O argumento principal não intenta demonstrar que a conjunção E&N seja provabelmente falsa (ou que seja menos provável que TT), mas que as pessoas não deveriam acreditar em E&N:

1. Pr(R|E&N) possui um valor baixo ou inescrutável.
2. Portanto, E&N é um invalidador de R _ se você acredita em E&N, então você deveria se recusar a aquiescer com R.
3. Se você deve se recusar a aquiescer com R, então você deveria se recusar a aquiescer com qualquer outra coisa mais em que você acredita.
4. Se você acredita em E&N, então você deveria se recusar a acreditar em E&N (E&N é autodestrutiva).
__________________________________________________

Você não deve acreditar em E&N.

Plantinga vai além, tanto no livro quanto no manuscrito. Ele argumenta que o naturalismo por si só é autodestrutivo. No livro, ele diz que “se o naturalismo é verdadeiro, consequentemente também a evolução (p.236).” No manuscrito, ele diz que Pr(E|N) possui um valor alto (p.11). Nenhuma destas alegações é correta. Recorde que a proposição E refere-se aos processos e mecanismos descritos na teoria evolutiva contemporânea. Se esta teoria se mostrasse insuficiente, isto não implicaria a falsidade do naturalismo; os naturalistas poderiam perfeitamente, e sem se contradizerem, sair em busca de uma teoria científica melhor. No manuscrito Plantinga assegura que E é “o único jogo na cidade” para um naturalista; isto pode ser verdade ou não (atualmente), mas dificilmente mostra que o naturalismo por si só torna a teoria evolutiva contemporânea provável.

2.1 Problemas que o argumento principal herda do argumento preliminar

Discutimos a razão pela qual estamos insatisfeitos com o argumento de Plantinga segundo o qual Pr(R|E&N) possui um valor baixo. Também demonstramos que ainda que Pr(E&N|R) possua um valor baixo, isto não implica que R basta para rejeitar E&N. O ponto de simetria em relação ao argumento principal é que mesmo se Pr(R|E&N) possuir um valor baixo, isto não obrigaria as pessoas que acreditam em E&N a suspender sua crença em R. Por exemplo, pode-se argumentar que R é uma proposição básica que dispensa suporte teórico, ou que R deriva suas credenciais epistêmicas de algo diverso do naturalismo evolutivo.
O mesmo é válido se você não sabe que valor atribuir a Pr(R|E&N). Pessoas que acreditam em E&N não devem considerar o fato de que a probabilidade de que esta conjunção seja verdadeira ser inescrutável como uma razão para rejeitar R. Suspeitamos que várias pessoas que estão bem familiarizadas com a teoria da relatividade especial e que pensam que os pássaros voam não sabem que valor atribuir a Pr(Relatividade Especial|pássaros voam), especialmente se a probabilidade tiver que ser um valor objetivo; entretanto, isto não mostra que elas deveriam abandonar sua crença na relatividade especial. O princípio da indiferença falha porque afirma obter os valores de probabilidades a partir da ignorância; o início do argumento principal de Plantinga comete o erro complementar de sustentar que a ignorância a respeito das probabilidades é um guia para a crença.
À luz do que foi exposto, considere a seguinte passagem de Warrant and Proper Function (p. 229, os itálicos e colchetes são nossos) na qual Plantinga justifica o primeiro passo do argumento principal:

Alguém que aceita E&N e também acredita que a atitude correta em relação a Pr(R|E&N) é uma postura agnóstica [ou, um baixo grau de confiança] claramente possui uma boa razão para ser agnóstico em relação a [ou, possuir um baixo grau de confiança em relação a] R também. [i]Tal pessoa não dispõe de outras informações sobre R… mas a fonte de informações que possui não lhe dá nenhuma razão para crer ou descrer em R.[i]
Observe que Plantinga assume que os naturalistas evolutivos não possuem outro fundamento para decidir o que pensar sobre R além da própria conjunção E&N. Esta pressuposição crucial jamais é defendida seja em Warrant and Proper Function seja no manuscrito inédito Naturalismo invalidado.

2.2 O que a invalidação de R significa

No segundo passo do argumento principal, Plantinga diz que a invalidação que E&N impõe a R significa que naturalistas evolutivos deveriam sustar sua confiança em qualquer coisa mais em que acreditem _ por exemplo, na própria E&N. Isto extrapola em demasia as reais implicações da invalidação da proposição R. A proposição R diz que “a grande maioria” das crenças que possuímos é verdadeira (Plantinga 1994, p.2). Se os naturalistas evolutivos devem retirar sua confiança em R, isto não significa que devam sustar a confiança na maior parte do que acreditam, menos ainda em tudo o que acreditam. Ainda que E&N invalidasse a alegação de que “ao menos 90% de nossas crenças são verdadeiras”, não se segue que E&N também invalida a alegação mais modesta de que “ao menos 50% de nossas crenças são verdadeiras.” Plantinga deve mostrar que E&N não somente invalida R, como também invalida a afirmação de que “ao menos uma minoria não-desprezível de nossas crenças é verdadeira.”

2.3 Probabilidade condicional e invalidação

Embora nós, como uma quantidade significativa de outros comentadores, tenhamos interpretado o argumento principal de Warrant and Proper Function como uma declaração de que um baixo valor para Pr(R|E&N) basta para que E&N invalide R, Plantinga (1994) nega que seja isto o que ele quis dizer e tenta desenvolver uma interpretação de invalidação que esclareça como o argumento supostamente funciona. Entretanto, como Plantinga ainda gasta tempo em seu último manuscrito discutindo que Pr(R|E&N) possui um valor baixo ou inescrutável, presume-se que ele ainda julga que tal valor é relevante para estabelecer a invalidação de R por E&N.
Plantinga desenvolve três princípios que ele imagina governar a relação de invalidação. Ainda que ele explique porque julga que estes princípios estão corretos, ele nunca explica como eles são relevantes para estabelecer que E&N invalidam R. Na verdade, sua forma lógica os tornam incapazes de preencher a lacuna entre as premissas 1 e 2. O primeiro e o terceiro princípios declaram condições suficientes para que Y não invalide X. O segundo enuncia uma condição necessária para que Y invalide X.
Além disso, o “primeiro princípio de invalidação” de Plantinga aparentemente ajuda a estabelecer que E&N não é um invalidador de R. Substituindo R e E&N por A e B neste princípio produz

se S racionalmente acredita que a justificação que possui para E&N é derivada da justificativa que possui para R, então E&N não é, para ele, um invalidador de R.

suspeitamos que vários naturalistas evolutivos racionalmente acreditam que sua justificativa para acreditar em E&N depende de eles estarem justificados em acreditar que suas faculdades cognitivas são altamente confiáveis[6].
Não somente um baixo valor para Pr(X|Y) não é suficiente para que Y invalide X; também não é necessário, se o conceito de invalidabilidade fundamenta a idéia de autoinvalidação. A razão é que Pr(Y|Y)=1, para todo Y. E tão difícil quanto conectar uma baixa probabilidade a invalidabilidade é divisar porque a inescrutabilidade de Pr(X|Y) deveria ajudar a estabelecer que Y invalida X.
No argumento preliminar, Plantinga atribui a Pr(R) um valor próximo de 1 porque acredita que R seja verdadeira. No argumento principal como formulado em Warrant and proper function, ele aparenta pensar que os naturalistas evolutivos deveriam abandonar sua crença em R porque E&N falha em conferir uma probabilidade suficientemente alta a R. Estas são duas maneiras de expressar o mesmo sentimento: uma probabilidade alta é necessária para um crença racional. Entretanto, o manuscrito mais recente “Naturalismo invalidado” repudia a idéia de que existe tal relação simples entre probabilidade e aceitação.
Aqui, Plantinga está vindo de encontro a algo similar ao fenômeno que o paradoxo da loteria de Kyburg (1961) tornou nítido. Suponha que existam 10 000 bilhetes numa loteria honesta; um bilhete ganhará e cada um deles tem a mesma chance de ser o vencedor. Suponha que você adote o seguinte critério de crença _  você aceita uma proposição se você pensa que ela possui uma probabilidade alta. Então, você aceitará cada proposição do tipo “o bilhete i não será o ganhador”. Entretanto, a conjunção destas proposições contradiz a pressuposição inicial de que a loteria é honesta. Consequentemente, uma alta probabilidade não é suficiente para uma crença racional. Um contraexemplo parecido pode ser construído para mostrar que uma alta probabilidade também não é necessária para uma crença racional. Considere quaisquer n proposições P1,…,Pn tais que (i) você aceita cada uma das Pi, e (ii) cada uma das Pi é altamente provável. A conjunção P1&…&Pn pode vir a mostrar-se bastante improvável (veja a seção 1.1 para um exemplo concreto deste fenômeno probabilístico). Não obstante, aparentemente você estaria sendo racional ao aceitar a conjunção P1&…&Pn. Consequentemente, uma alta probabilidade não é necessária para uma crença racional (veja também Maher 1993, seção 6.2.4). Filósofos da teoria das probabilidades extraíram destes paradoxos uma de duas lições _ ou os conceitos de aceitação e rejeição são suspeitos, ou eles estão numa relação mais sutil com o conceito de probabilidade que o critério preliminar recém-descrito.
Esta conexão com o paradoxo da loteria sugere que Plantinga tem pela frente uma tarefa hercúlea para consertar o argumento principal. Esse argumento começa com alegações sobre probabilidades, move-se para alegações sobre invalidação, e então conclui com uma alegação sobre auto-invalidação. Cada passo ao longo do caminho requer princípios bastante distintos dos descritos por Plantinga até agora. Deixamos a cargo dos leitores o trabalho de especular sobre a existência de princípios plausíveis que estabeleçam as conexões necessárias.

3. Um problema para o evolucionismo

Ainda que o argumento de Plantinga não funcione, ele trouxe a tona uma questão que precisa ser respondida pelas pessoas que acreditam na teoria da evolução e que também acreditam que esta teoria declara que nossas habilidades cognitivas são imperfeitas de formas variadas. A teoria da evolução diz que um dispositivo que é confiável no ambiente no qual evoluiu pode ser altamente ineficiente quando utilizado num ambiente estranho. É perfeitamente possível que nosso maquinário mental deva trabalhar bem em tarefas perceptuais simples, mas seja bem menos confiável quando aplicado a questões teóricas. Apressamo-nos a acrescentar que isto é possível, não inevitável. Pode ser o caso que procedimentos cognitivos que funcionam bem num domínio também funcionem bem em outros; modus ponens pode ser útil para evitar ser comido por tigres e para fazer física quântica.
De qualquer maneira, se a teoria da evolução diz que nossa habilidade em teorizar sobe o mundo tende a ser pouco confiável, como os evolucionistas lidam com este resultado em relação às suas próprias crenças teóricas, incluindo sua crença na evolução? Uma lição que deveria ser extraída é uma certa humildade _ uma admissão de falibilidade. Isto não será nenhuma novidade para os evolucionistas que assimilaram o fato de que a ciência em geral é um empreendimento falível. A teoria da evolução apenas fornece uma parte importante da explicação do porque de nosso raciocínio sobre temas teóricos ser falível.
Longe de demonstrar que a teoria da evolução se autoinvalida, esta consideração deveria levar aqueles que acreditam na teoria a admitir que o melhor que podem fazer ao teorizar é fazer o melhor que podem. Estamos atados ao equipamento cognitivo que possuímos. Deveríamos tentar ser tão escrupulosos e circunspectos quanto formos capazes ao fazer uso deste equipamento. Quando afirmamos que a teoria da evolução é uma teoria muito bem confirmada, estamos julgando esta teoria com os recursos cognitivos falíveis de que dispomos. Não temos opção.
Plantinga sugere que o naturalismo evolutivo é autodestrutivo, mas não o teísmo tradicional. Entretanto, a verdade é que nenhuma das duas posições possui uma resposta para a dúvida hiperbólica. Evolucionistas não possuem outra forma de justificar a teoria em que acreditam além de avaliar criticamente a evidência acumulada empregando regras de inferência que parecem sólidas após reflexão. Se alguém desafia todas as observações e regras de inferência utilizadas na ciência e no cotidiano, exigindo que sejam justificadas a partir do nada, o desafio não pode ser satisfeito. Um problema análogo surge para os teístas que acham que sua convicção da confiabilidade de seus próprios poderes racionais é suportada pelo fato de que a mente humana foi planejada por um Deus que não trapaceia. O teísta, como o naturalista evolutivo, é incapaz de construir um argumento não-circular que refute o ceticismo global.

Notas:

1. Todas as referencias de páginas são de Warrant and Proper Function (viz., Plantinga 1993), salvo indicação em contrário.

2. Uma estratégia ainda melhor seria associar um grau característico de sensibilidade a uma faculdade mental numa dada configuração ambiental. Grosso modo, sensibilidade é uma relação “mundo-para-cabeça”(?), medida pela probabilidade de que o agente acreditará em p, condicionada pela veracidade de p. Em contraste, confiabilidade é uma relação “cabeça-para-mundo”(?), medida pela probabilidade de que p seja verdadeira, condicionada pela crença do agente em p. Sensibilidade tende a ser uma propriedade mais estável dos dispositivos de medição do que a confiabilidade. Veja Sober (1994, ensaios 3 e 12)  para discussão.

3. Aqui fazemos o mesmo uso que Plantinga da expressão “teísmo tradicional”, segundo o qual esta doutrina faz observações preditivas diferentes daquelas do naturalismo evolutivo. Entretanto, há espaço para argumentar se este ponto de vista sobre as questões é o único disponibilizado pelas mais variadas tradições religiosas (McMullin 1993). Plantinga compreende o teísmo tradicional como a idéia, não somente de que Deus configurou e desencadeou os processos evolutivos (onde este são compreendidos nos termos das melhores  teorias fornecidas pela ciência atual), mas de que Ele ocasionalmente intervém neles para assegurar que certos resultados sejam obtidos. A idéia de que Deus intervém nas etapas iniciais, mas não nas finais, confere à proposição R exatamente a mesma probabilidade que a teoria da evolução, por si mesma, confere a R. Isto pode ser visto mais claramente na seguinte figura:


Figura: as possíveis relações entre D, E e O

Se os processos evolutivos (E) “separam (screen off)” a atividade divina de nosso campo de observação (O), então Pr(O|E&D)=Pr(O|E&não-D). Plantinga pensa que esta equação é falsa; ele sustenta que a evolução ateísta confere às observações (mais especificamente, à proposição R) uma probabilidade diferente daquela conferida pela evolução teísta. Isto quer dizer que Plantinga concebe Deus não simplesmente agindo através dos processos evolutivos naturais, mas afetando o mundo por uma via “miraculosa”, independente destes processos.

4.Ao discutir a “dúvida de Darwin”, Plantinga (1994, p.4) cita com louvor um apontamento feito por Churchland (1987, p.548)  em relação ao efeito de que a seleção natural “se importa” apenas a respeito de quão adaptativo é um comportamento causado por um conjunto de crenças; ela não “se importa”, além disso, se estas crenças são verdadeiras. Plantinga interpreta isto como significando que crenças verdadeiras não são mais prováveis de evoluir do que as falsas, mas uma representação probabilística do apontamento de Churchland (que é sobre independência condicional) mostra que isto não sucede. Churchland observa que

Pr(Conjunto de crenças B evolui|B produz comportamento adaptativo & B é falso).

Todavia, não se segue que

Pr(Conjunto de crenças B evolui|B é verdadeiro)=Pr(Conjunto de crenças B evolui|B é falso)

Da mesma maneira, embora seja verdadeiro que

Pr(choverá amanhã|uma tempestade se aproxima & a leitura do barômetro está baixa)=Pr(choverá amanhã|uma tempestade se aproxima & a leitura do barômetro está alta),

não se segue que

Pr(choverá amanhã|a leitura do barômetro está baixa)=Pr(choverá amanhã|a leitura do barômetro está alta).

5. O argumento que estamos construindo aqui está de acordo com o que Plantinga (1994) denomina “a objeção da transpiração”, que ele atribui a “Wykstra, DePaul, e outros”. Não obstante discutir como a objeção deveria ser formulada, até onde vimos, Plantinga não oferece nenhuma resposta a ela.

Seja F a afirmação de que a função da transpiração é resfriar o corpo. Agora, a probabilidade de F dado (somente) E&N também é baixa. Mas certamente seria absurdo afirmar que isto dá ao naturalista um invalidador para a crença de que F é verdadeira. Por conseguinte, também é absurdo afirmar possui um invalidador de R em virtude de sua aceitação da tese probabilística.

6. Obviamente, não se pode deduzir E&N de R somente. Porém, os naturalistas evolutivos podem razoavelmente sustentar que R é uma dentre várias premissas que subscrevem suas inferências não-dedutivas sobre a plausibilidade de E&N. Vale mencionar que o próprio Plantinga faz uso deste tipo de “derivação de justificativas” não-dedutiva. Na página 39 de “Naturalismo invalidado”, ele diz, no contexto da discussão de uma objeção a seu argumento, que a justificativa que P possui para você (onde P é tal que Pr(R|E&N&P é alta, mas P é logicamente independente de R) é “…derivada da justificativa que você possui para R… é difícil ver que outra fonte [de justificativa] poderia haver [para P].” Não vemos nenhuma razão pela qual seria os naturalistas evolutivos estariam sendo irracionais ao dizer a mesma coisa sobre a justificativa que possuem para E&N.

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