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Autor: Quentin Smith

Tradução: Gilmar Pereira dos Santos

[Publicado originalmente em Religious Studies, Vol. 24, Dezembro de 1988, págs. 511-528]

Resumo: Esta investigação é motivada pela questão: se o ateísmo é verdadeiro, seria não obstante o caso que a santidade ou sacralidade seja exemplificada? Acredito que a resposta a esta questão seja afirmativa, e que o caminho para sua afirmação passa pela rejeição da hipótese tradicional segundo a qual a santidade é uma propriedade simples e exclusiva de uma divindade que elude qualquer tentativa de análise. A visão oposta, segundo a qual existem diversas propriedades complexas constituindo a santidade, torna manifesto que existem seres sagrados, até mesmo um “ser supremo” sagrado, mesmo se não existir nenhum Deus ou deuses.

Sumário:

I. A Analisabilidade da Santidade

II. Santidade Religiosa

III. Santidade Moral

IV. Santidade Individualmente Relativa

V. Santidade Metafísica

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A ideia de que a santidade é uma propriedade simples e exclusiva exemplificada unicamente pela divindade (e derivativamente por seus emissários ou símbolos mundanos, como “ícones sagrados” ou um “homem santo”) é pressuposta pela maioria das filosofias da religião contemporâneas. Os filósofos na tradição analítica muitas vezes devotam um espaço considerável à análise das propriedades divinas da onisciência, da onipotência, etc., mas sentem que nada pode ser dito sobre a santidade, limitando-se meramente a listá-la entre as propriedades de Deus.[1] Max Scheler, um representante da tradição continental na filosofia da religião, é mais explícito acerca da não-analisabilidade da santidade e escreve que a modalidade do sagrado e do profano “forma uma unidade de qualidades-valores não sujeitos à definições adicionais”[2]. Em sua obra clássica sobre o sagrado, Rudolph Otto escreve que a santidade religiosa ou o numinoso “elude completamente a apreensão em termos conceituais”[3] e pode ser estudada apenas indiretamente através da descrição das emoções que evoca. A ideia subjacente a estes diversos pontos de vista é habilmente sumarizada num artigo recente de Charles Kielkopf:

Atualmente é bastante comum que cientistas sociais, estudantes da religião e até mesmo autores de livros didáticos utilizem “santo” ou “sagrado” como um termo básico ou primitivo para definir ou discutir a natureza da religião.[4] … Precisamos utilizar algum termo indefinido como “sagrado”, “santo” ou “numinoso” para caracterizar as crenças e práticas religiosas.[5]

Contrariando esta visão tradicional, acredito que a “santidade” seja analisável em dois aspectos. Em primeiro lugar, acredito que o termo “santidade” não expresse uma propriedade única, mas várias propriedades diferentes e análogas; cada uma destas propriedades análogas é expressa ou pelo menos expressável pelo termo “santidade” em diferentes ocasiões de seu uso. Chamarei este aspecto em que a “santidade” é analisável sua analogicidade; a análise analógica da “santidade” visa segregar as diferentes propriedades que ela expressa e especificar em que aspecto elas são análogas.

O segundo aspecto em que a “santidade” é analisável diz respeito à complexidade do que ela expressa em cada ocasião em que é usada. Em oposição à visão de que a “santidade” expressa uma propriedade simples, eu sustento que cada uma das propriedades análogas por ela expressadas é composta de outras propriedades. Cada uma das propriedades análogas que constituem a totalidade do que o termo “santidade” pode expressar em alguma ocasião de uso é uma propriedade completa da santidade; de qualquer item que exemplifique uma destas propriedades completas é correto dizer que “é sagrado”. As partes destas propriedades são propriedades incompletas da santidade; de um item que exemplifica alguma mas não todas as propriedades incompletas que compõem uma das propriedades completas, é incorreto dizer que “é santo”. A tarefa de analisar cada uma destas propriedades completas da santidade em seus constituintes eu chamarei de análise decomposicional da “santidade”.

O principal objetivo deste artigo é mostrar que existem quatro propriedades completas distintas, mas parcialmente análogas, da santidade; nomeadamente, santidade religiosa, santidade moral, santidade individualmente relativa e santidade metafísica. O aspecto em que elas são análogas é duplo. Antes de tudo, o portador de cada uma destas propriedades, em virtude de portar a propriedade, é supremo em sua classe. O que é religiosamente santo é supremo na classe das pessoas; o moralmente santo é supremo na classe dos fenômenos morais; o que é santo relativo a alguma pessoa individual é supremo na classe dos fenômenos valorizados por essa pessoa; o que é metafisicamente santo é supremo na classe dos existentes. “Supremacia” deve ser entendido aqui num sentido especial. O fenômeno supremo não é meramente de fato o mais elevado em sua classe, mas é também o mais possivelmente elevado em sua classe. Não poderia haver nada mais excelente nessa classe do que o fenômeno santo. É o membro perfeito ou um dos membros perfeitos da classe.

Mas a supremacia em sua classe não pode ser o único aspecto em que as quatro propriedades completas são análogas, pois vários outros itens também possuem esta propriedade, mas não são santos. Manifestamente, o item supremo na classe das velocidades, a velocidade infinita, não é santo. O segundo aspecto em que as quatro propriedades completas da santidade são análogas é que elas são supremacias da mais elevada espécie possível. A pessoa, o existente, o fenômeno moral ou o fenômeno valorizado supremos são qualitativamente superiores aos membros supremos de outras classes, e são tais que nada poderia possuir uma espécie mais elevada de supremacia do que a que eles possuem. Intuitivamente, as propriedades constitutivas da personalidade suprema (santidade religiosa) ou bondade suprema (santidade moral) constituem um tipo de perfeição superior ou mais exaltado do que o ostentado pelas propriedades constitutivas da velocidade suprema ou do calor supremo.

A análise decomposicional da “santidade” isola as propriedades constitutivas que compõem cada uma destas quatro propriedades completas. Ela especifica as propriedades que configuram unicamente a supremacia na classe das pessoas, que compõem unicamente a supremacia na classe dos fenômenos morais, e que compõem unicamente a supremacia na classe dos fenômenos valorizados e a supremacia na classe dos existentes. As quatro seções restantes desta série são dedicadas sobretudo a esta análise decomposicional. A análise decomposicional é passível de ser empreendida em grande extensão e profundidade; neste artigo eu a levarei adiante apenas até onde for necessário para oferecer uma ideia geral do tipo de complexidade envolvida em cada uma das quatro propriedades completas.

Um entendimento mais concreto da análise decomposicional e analógica da “santidade” pode ser desenvolvido em termos da noção de explicação exposta em minha obra prévia “The Felt Meanings of the World: A Metaphysics of Feeling“.[6] Um desenvolvimento completo deste entendimento não é possível aqui, mas um breve esboço mostrará como as ideias desta obra podem ser aplicadas às observações precedentes sobre a “santidade”. Neste livro eu argumento que cada fenômeno é suscetível tanto de uma explicação mimética e evocativa como de uma explicação mais precisa e teoricamente rigorosa, tal que os termos utilizados na primeira espécie de explicação referem-se vaga e evocativamente exatamente aos mesmos itens que os termos usados na segunda espécie de explicação se referem de maneira mais exata e detalhada. Uma pessoa deslumbrada em meio a uma tempestade pode dizer “A tempestade é violenta” e se referir vaga e evocativamente exatamente à mesma propriedade complexa da tempestade à qual o meteorologista se refere precisa e detalhadamente quando diz “A tempestade trouxe ventos de mais de 80 km/h, verteu mais de duas polegadas de chuva por hora, etc.”. Minha tese é que não há duas propriedades diferentes da tempestade, ser violenta e ter ventos de mais de 80 km/h e verter mais de duas polegadas de chuva por hora, etc., mas uma propriedade que é ou intuitivamente evocada (por “violenta”) ou teoricamente especificada.

Aplicando esta distinção à minha explicação da santidade, podemos dizer que “santidade” ou “sacralidade” (como usado em algumas ocasiões) é uma designação evocativa de uma propriedade intuitivamente percebida de um item, e que as análises analógica e decomposicional desta designação evocativa representam (em diferentes graus) explicações precisas do fenômeno evocado. Imagine que em alguma ocasião uma pessoa intui afetivamente alguma coisa que é religiosamente santa, e exclama “Isto é santo!” ou “Isto tem santidade!” A análise analógica de “santo” e “santidade” guarnece a propriedade que a pessoa designa evocativamente por este uso do termo com uma explicação algo mais precisa. A expressão “possui o mais elevado tipo possível de supremacia numa classe” denota a mesma propriedade complexa que é denotada mais vagamente pelo uso que ela faz de “santidade”, embora a primeira expressão não seja completamente precisa já que falha em especificar a natureza ímpar ou os constituintes desta propriedade. A análise decomposicional relevante leva a cabo esta especificação adicional, e é expressa numa forma como “possui as propriedades F, G, H, etc., que são constitutivas da supremacia na classe das pessoas”. O que estou sugerindo é que “santidade” não se refere a uma propriedade simples do item, mas (neste exemplo) à mesma propriedade complexa que é denotada mais precisa e detalhadamente por “possui as propriedades F, G, H, etc. que são constitutivas da supremacia na classe das pessoas”.

A última questão que desejo abordar nesta seção introdutória concerne ao fundamento para minha afirmação de que existem quatro propriedades completas da santidade em vez de algum número menor ou maior. De que maneira eu “provo” que todos e apenas os itens supremos nas classes das pessoas, fenômenos morais, fenômenos valorizados e existentes exemplificam a mais elevada espécie possível de supremacia? Do mesmo modo que vários outros tipos de crenças filosóficas são justificadas, apelando às nossas intuições sobre o assunto. Examinamos intuitivamente uma série de exemplos e então nos baseamos em nossas intuições sobre a santidade. É intuitivamente evidente para mim e eu acredito que será evidente para todos os que considerarem exaustivamente o assunto que ser o existente perfeito é uma espécie superior de perfeição do que ser perfeitamente liso. Naturalmente,  os filósofos eventualmente discordam quando se trata de intuições, mas isto não é uma razão para rejeitar o ‘apelo à intuição como um método’ mais do que o fato de que os filósofos eventualmente discordam sobre quais argumentos são sólidos é uma razão para rejeitar a argumentação como um método. Ambos os tipos de discordância são passíveis, ao menos em princípio, de resolução, conquanto, em virtude da falibilidade da mente humana e da complexidade dos temas investigados, resoluções definitivas e universalmente aceitas sejam improváveis. Se alguém discorda de minha explicação neste artigo, tal pessoa pode refuta-lo (i) oferecendo exemplos de itens que são intuitivamente percebidos como santos que eu não levei em consideração e (ii) oferecendo contraexemplos aos exemplos que apresento de itens alegadamente santos, contraexemplos mostrando que os itens do tipo em questão não são realmente santos. Este método intuitivo pode ser formulado mais rigorosa e detalhadamente, mas essa é uma tarefa para um artigo sobre métodos. Apresentarei a seguir minha explicação das quatro propriedades completas da santidade.

Notas.

1. Uma exceção parcial a esta tendência pode ser encontrada em Richard Swinburne, The Coherence of Theism (Oxford, 1977), p. 292-4, em que a santidade é considerada como uma propriedade complexa da divindade. Esta exceção é apenas parcial, já que Swinburne compartilha da assunção comum de que a santidade é exemplificável somente por Deus.

2. Max Scheler, Formalism in Ethics and Non-Formal Ethics of Values (Evanston, 1973), trans. Frings and Funk, p. 108.

3. Rudolph Otto, The Idea of the Holy (Oxford, 1953), trad. Harvey, p. 5. Otto reconhece alguma complexidade, entretanto, na medida em que considera o numinoso como sendo um elemento no significado de ‘santidade’ conforme o uso corrente, sendo o outro elemento a completa bondade.

4. Charles Kielkopf, ‘The Sense of the Holy and Ontological Arguments’, The New Scholasticism LVIII (1984), 24.

5. Ibid. p. 25.

6. Quentin Smith, The Felt Meanings of the World. A Metaphysics of Feeling (West Lafayette, 1986).

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por Quentin Smith

Uma objeção ao argumento da seção 3 é que ele não leva em conta a possibilidade de uma intervenção divina. Se a singularidade do Big Bang é anômica, então é possível para Deus intervir no instante da singularidade e força-la sobrenaturalmente a explodir de um modo específico, nomeadamente, explodir emitindo uma configuração de partículas maximamente produtora de vida. Deste modo, Deus pode garantir que o estado mais antigo do universo evoluirá até um estado animado.

Mas não nem um pouco é óbvio que esta objeção seja consistente com a concepção teísta clássica da natureza divina. Deus é onisciente, onipotente e perfeitamente racional e não é um indício de um ser com estes atributos criar como primeiro estado do universo alguma entidade inerentemente imprevisível que demande uma intervenção ‘corretiva’ imediata a fim de que o rumo do universo seja retificado. Se Deus almeja criar um universo que em algum momento não especificado de sua história abrigará seres vivos, não há razão para Ele começar o universo com uma singularidade completamente imprevisível. Com efeito, escolher tal começo é tanto irracional como ineficiente. É um sinal de incompetência planejar ou projetar grosseiramente como o primeiro estado natural do universo algo que requeira, ‘de cara’, uma intervenção sobrenatural que assegure que o resultado desejado seja alcançado. A coisa racional e eficiente a se fazer é criar algum estado que por sua própria natureza nômica evolua até um universo contendo vida.

O problema a que aludo não é que Deus institua leis que ele deve imediatamente violar se suas intenções devem ser realizadas. O problema refere-se à intervenção de Deus em sua criação, não à violação das leis que a regem. ‘Deus viola a lei natural L’ implica ‘Deus intervém em sua criação’ mas não há nenhuma implicação no sentido contrário, já que Deus pode intervir em eventos ou processos naturais que não são governados por leis. Como a singularidade do Big Bang não é regida por nenhuma lei, a restrição imposta por Deus para que sua singularidade emita uma configuração produtora de vida seria uma instância de intervenção que não é uma violação nomológica. Consequentemente, a objeção de que ‘Deus pode intervir na explosão da singularidade de modo a faze-la emitir uma configuração de partículas produtora de vida sem violar as leis que ele próprio determinou’ é uma ignoratio elenchi, já que, em vez disso, meu argumento é que esta intervenção implica um primeiro estado planejado com incompetência ou desleixo.

Eu também observaria que meu argumento não pressupõe que exista uma ‘maneira mais racional, competente ou eficiente de criar um universo animado’ e por conseguinte não sucumbe à um análogo da teodiceia do ‘nenhum melhor mundo possível’, tal como a desenvolvida por George Schlesinger.[17] Meu argumento pressupõe apenas que existem maneiras eficientes e ineficientes, onde uma maneira eficiente é uma através da qual estados animados evoluem previsivelmente de acordo com leis naturais e uma maneira ineficiente é uma pela qual estados animados não evoluem de acordo com leis naturais mas exigem intervenções divinas.

Notas.

17. George Schlesinger, Religion and Scientific Method (Boston: D. Reidel, 1977). Para uma crítica sólida da teodicéia de Schlesinger, veja Keith Chrzan, ‘The Irrelevance of the No Best Possible World Defence,’ Philosophia 17 (1987): 161-167.

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De todos os autores cujo trabalho já divulguei aqui até hoje, provavelmente o que me causou a mais forte impressão foi o filósofo norte-americano Quentin Smith.

Seus artigos sobressaem-se por uma combinação de clareza e precisão lapidares, exposição rigorosa dos argumentos, meticulosidade ao respalda-los e generosidade ao dialogar com seus adversários quando discute as objeções levantadas contra suas ideias, virtudes essas de certa forma coroadas por uma retórica sóbria, contida, diplomática, por assim dizer, que a meu ver contrasta fortemente com o virtuosismo inspirado que emprega ao colocar a serviço da defesa da visão de mundo naturalista os poderosos recursos da filosofia analítica.

Pois bem, dados meu cansaço com a tônica da maioria das postagens de 2012 (eu me diverti bastante, mas a brincadeira já perdeu a graça), o desejo de retomar, se não em conteúdo ao menos em forma, a linha editorial original do blog (com a possibilidade de recaídas esporádicas no neoateísmo) e a impressão positiva ainda bastante vívida do trabalho de Quentin Smith, preparei uma nova série a partir de um de seus artigos expondo e defendendo soberbamente uma interpretação ateísta da cosmologia do Big Bang.

Procurando informações biográficas e curriculares para redigir um breve perfil do referido autor, descobri, soterrada sob os escombros de inúmeros sites extintos, esta entrevista em que o autor se revela uma figura extremamente cativante e inspiradora, genuinamente devotada a um modo de vida contemplativo, ou seja, um autêntico filósofo. Apesar de um pouco longa, é impossível não se deleitar e deixar envolver com a resposta oracular a um mero cumprimento do entrevistador e com seus relatos sobre fatos e episódios curiosos de sua vida, como a previsão correta feita por seu pai sobre o que ele se tornaria, os castigos físicos na escola por se recusar a rezar o Pai Nosso, o breve período em que viveu numa comunidade hippie no final dos anos 1960, seu subsequente exílio voluntário da socieade humana (e sua posterior reconciliação), sobre sua facilidade para encontrar horários livres na agenda do vice-presidente do Citibank, ou ainda sobre o motivo que fez com que virasse assunto de fofocas logo ao ser contratado pelo Antioch College para um cargo comissionado. Ele também fala sobre suas influências literárias e filosóficas, sobre a relação entre filosofia, poesia e artes plásticas e sobre as transformações em sua atitude geral para com a vida, a morte, o universo e tudo o mais.

Bom, chega de bajulação. Com vocês, Quentin Smith, por ele mesmo.

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Quentin Smith numa praia na Carolina do sul em 1980, onde viveu por três meses num buraco que ele próprio escavou na areia, sobrevivendo apenas de castanhas e água. Esta foto foi tirada pela única pessoa que passou por ele nesta região remota da praia durante esses três meses. Smith está vestindo todas as suas roupas nesta foto, a maior parte delas consistindo de cinco casacos para noites frias. Ele passava o tempo contemplando o oceano durante o dia e contemplando a abóbada celeste à noite. Foi nesta época que formulou as ideias para a introdução de seu livro THE FELT MEANINGS OF THE WORLD (Purdue University Press, 1986). Ele não dispunha de nenhum material de escrita e trabalhou em sua mente as sentenças da Introdução, que digitou de memória quando retornou para Kentucky. Ele deixou a praia correndo enquanto um furacão vinha em seu encalço no meio da noite. Ele andou, patinhou e cambaleou no meio do furacão por aproximadamente 12 milhas até alcançar uma caixa de correio, de onde foi recolhido por um caminhão dois dias depois. Sobre o incidente, o Dr. Smith comenta: “O furacão não afetou em nada minhas ideias. As ideias vieram exclusivamente dos três meses de contemplação da importância do oceano e do firmamento ou, antes, da importância da totalidade do mundo da qual o oceano ou as estrelas visíveis e eu próprio não passamos de partes relativamente sem importância. Não tive tempo para pensar e refletir enquanto lutava contra o vento, a chuva e as rajadas de lama produzidas pelo furacão. Mas ainda assim eu gostei daquilo; fui confrontado por horas pela evidência imediata de que minha vida ou morte eram da mais completa insignificância para a totalidade do mundo. Experienciar intensamente esta evidência permitiu que eu me sentisse igualmente feliz quer estivesse vivo ou morto no próximo minuto. Eu não sentia que estava tentando salvar minha vida; em vez disso, eu desfrutava a intensidade da manifestação direta da totalidade do mundo para mim de que eu não lhe fazia a menor diferença.”

Olá, Quentin. Como vai?

Quentin Smith: Sinto-me como se fosse liliputianamente pequeno, e tivesse escolhido rastejar ao longo da borda afiada de uma espada, a única ponte sobre o fogo arcano, como minha trajetória do nascimento até a morte.

Por que você pinta além de escrever filosofia?

Quentin Smith: O processo começou quando eu tinha 16 anos. Eu passei pela experiência de me sentir chocado com o que me pareceu ser o nível de superficialidade com que as pessoas pareciam viver. Eu sentia que as pessoas ao meu redor não possuiam nenhum conhecimento real das, ou mesmo interesse nas, questões fundamentais sobre a realidade e seu sentido (como, por exemplo, o silêncio do universo quando questionado sobre o propósito da vida, ou por que não há apenas o mais puro nada). Como consequência, tornei-me alienado da sociedade humana. Decidi devotar minha vida a uma busca solitária por algum significado último, se realmente houvesse algum. A filosofia é minha tentativa de colocar em conceitos o que acredito ser o sentido da vida humana e do universo. Eu tentei fazer isso com meu primeiro livro, The Felt Meanings of the World: A Metaphysics of Feeling, sobre o qual comecei a pensar por volta dessa época. Mas aos 17 eu comecei a tomar consciência de que eu sentia ou intuía algo acerca da realidade que não poderia ser descrito apenas verbalmente. Acreditei, então, que poderia expressar isto através da arte. Minhas pinturas são sobre o inconcebível, sobre o que não pode ser expresso por quaisquer palavras. Há algo sobre a realidade que experiencio diariamente mas que só pode ser expresso pela pintura.

Que tipo de coisas você expressa em suas pinturas que não consegue expressar em sua filosofia?

Quentin: Não sou capaz de colocar em palavras. Quando pinto, eu vou pintando até não ser mais capaz de conceitualizar ou verbalizar o que a pintura significa, mas sei em algum nível intuitivo visual ou emotivo o que ela significa.

As pessoas geralmente comentam que suas pinturas, assim como seus poemas, são niilistas e expressam desespero, isolamento e sofrimento de algum tipo. É isso o que você está expressando?

Quentin: Talvez em parte. Mas não é isso o que eu sinto que estou expressando quando pinto e escrevo poesia. Em minhas pinturas, eu tento capturar uma reflexão emocional da estranheza da realidade, uma realidade que está além de nossa descrição verbal. É como se eu imaginasse que há uma espécie de seres conscientes, seres que são mais inteligentes que os humanos na mesma proporção em que somos mais inteligentes do que os coelhos. Tento expressar o tipo de emoções que esses seres mais inteligentes experienciariam se percebessem a natureza da realidade que nos é inacessível. Tento transmitir um vislumbre desta natureza da realidade retratando seu reflexo em emoções demasiado profundas para serem experienciadas por seres humanos. Mas para atingir um nível em que sinto tal vislumbre, tenho que me deixar afundar no mais profundo tipo de desespero, ansiedade ou alegria que é possível, pois somente nestes níveis extremos pode-se perceber o que pode ser uma realidade mais profunda do que aquela que normalmente experienciamos como aquela em que vivemos. Mas como esta é uma escolha deliberada, não se trata de uma alegria, uma ansiedade ou um desespero psicológicos que eu experiencio, mas metafísicos, sentimentos metafísicos que são sustentado por uma vontade psicológica e um desejo de compreender toda a experiência e a realidade. O que eu quero sentir não são sentimentos agradáveis ou felizes “que eu não poderia realmente sentir a menos que estivesse feliz ou infeliz”, mas sentimentos profundos. Antes, eu sentiria uma tristeza infinitamente mais profunda do que a alegria e o bom humor cotidianos que as pessoas “devem” exibir por uma questão de convenção social. Não obstante, eu sou bem humorado quando na companhia de outras pessoas; ocorre apenas que geralmente fico sozinho. Assim, em certo sentido, eu escolho ser infeliz em vez de feliz a fim de viver com o máximo de profundidade possível.

Como isso se relacionaria com sua pintura publicada na edição de Novembro de 2003 de Art In America, chamada “The Last Human, Broken [O último humano, quebrado]”? A maioria das pessoas responderia: “O pintor é um niilista ou tem levado uma vida muito infeliz”.

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Quentin: Olhando para a pintura, pode parecer que estou expressando a visão de que a totalidade da vida humana provou ser insatisfatória, e que isso deixou em pedaços um humano hipotético que a tenha percorrido, ou percorrido toda a história. Mas, de minha perspectiva, isso não é uma experiência negativa. Em vez disso, é uma maneira de se tornar livre da, ou transcendente à, ou infinitamente desconectado da, vida humana, de modo a ser capaz de olha-la de fora, de uma esfera não-humana. Se este último humano hipotético está “quebrado”, então isso levanta as questões: o que é que deixaria uma pessoa em pedaços? Afinal, é um lugar-comum que experiências positivas e negativas ambas fazem parte da vida, que algumas vidas são felizes e outras infelizes. Mas esta pintura não é sobre o fato relativamente superficial de que algumas pessoas vivem vidas infelizes ou passam por algumas experiências negativas. Em vez disso, trata-se do fato de que todo o espectro da vida e da experiência humana, incluindo tudo o que achamos bom e ruim, é por alguma razão tão insatisfatória que deixou ‘o último humano’ arrasado. Mas o que poderia isso possivelmente ser? Que tipo de crenças estaria este humano tendo ao se sentir ‘quebraado’? Como se deveria proceder ao repensar a natureza e o sentido da vida humana de modo que o que ‘quebrou’ o último humano não estivesse lá? Se o último humano está ‘quebrado’ tanto pelos aspectos ‘bons’ e ‘ruins’ da vida humana, não se pode dizer que a resposta seja ‘meramente remover os aspectos ruins da vida humana, eliminar as guerras, fomes, doenças, relacionamentos fracassados, sofrimentos, injustiças e ignorância.’ Pois isto ainda deixa o que chamamos de ‘as partes boas’ da vida humana. Portanto, tudo considerado, há alguma outra coisa. Talvez ao olharmos para vida de um verme ou uma mariposa, podemos ver o que falta em suas vidas. Mas imagine que haja um ser hipotético cuja inteligência supera a dos humanos na mesma medida em que a nossa supera a de vermes e mariposas. O que tal ser perceberia como ausente da vida humana?

Este ser hipotético veria um sentido para a vida que os humanos não são capazes de ver? Você está sugerindo que existe um sentido para a vida humana, e a vida apenas aparenta ser sem sentido em virtude das limitações de nossas experiências e de nosso intelecto?

Quentin: Penso que Darwin descobriu o sentido da vida em 1859: o sentido da vida é sobreviver e se reproduzir. A verdadeira questão é: por que existe este sentido da vida? Este sentido da vida possui algum significado, ou é apenas um fato bruto sem nenhuma importância ou significância adicional? E se tem algum sentido, qual é?

Outras pinturas podem expressar a emoção de um ser hipotético que sabe e experiencia alguma coisa que nós aparentemente não podemos, a resposta para a questão “Por que afinal há alguma coisa, em vez de apenas nada? Por que há coisas, espaço, tempo, em vez de absolutamente nada? Nenhuma substância, nenhum tempo, nenhum espaço, nenhuma mente, nem mesmo um vácuo espacial?” A resposta pode ser incompreensível e consequentemente a reação emocional à resposta seria uma emoção demasiado profunda e estranha, além da capacidade humana de sentir.

Percebi que você pintou em 1971, quando estava com 18 anos, e então parou até 2002, quando estava com 49. O mesmo com sua poesia. Você escreveu poemas dos 16 (1969) aos 22 (primeiro semestre de 1974) anos e então parou quase completamente até 2002. Parece que houve alguma mudança interna significativa acontecendo em sua vida.

Quentin: Sim, foi em 2002. Imagino que foi o fato de que minha idade cada vez mais avançada (entrei na casa dos 50 em Agosto de 2002) tenha me deixado muito próximo da extinção total de todos os meus projetos. Eu costumava pensar, digamos por volta dos 30 anos, que minha vida e minhas maiores realizações se encontravam em meu futuro. Mas fui despertando para o fato de que isso pode não mais ser verdade. É possível, sobretudo se eu morrer inesperada e prematuramente em minhas próximas duas décadas de vida, que minha maiores realizações estejam em meu passado e que a significância ou importância de minha vida resida no passado, e agora eu esteja apenas esperando pela morte, me distraindo com projetos de longo prazo na filosofia e na física. Estes seriam apenas distrações se eu fosse subitamente arrebatado pela morte, e os projetos deixados inconclusos, e nada de valor tivesse sido alcançado. Mas com a poesia e as pinturas, é possível expressar rapidamente um sentimento resumido do significado, e por este meio pode-se driblar a morte, ao menos metaforicamente. Embora eu gaste a maior parte de meu tempo em trabalhos teóricos, eu também gasto várias horas por semana pintando e escrevendo poemas.

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“Deveríamos entender o significado da vida humana em termos de sentimentos – significados sentidos – e não em termos de raciocínio puro, que é o que Platão e Aristóteles e a maioria dos filósofos na tradição ocidental disseram.”

Por que 2002? Você não se sente mais desta maneira?

Quentin: Em 2003 eu comecei a desenvolver algumas ideias filosóficas mais originais e fundamentais do que nunca antes, e agora eu vejo um projeto de três décadas de desenvolvimento destas ideias estendendo-se diante de mim. Em 2002, eu via o futuro em termos de desenvolver as ideias com as quais eu já havia trabalhado nos anos anteriores, e qualquer pressentimento de que eu estava no caminho de descobrir alguma coisa desconcertantemente inédita estava ausente. Parecia então que o sentimento de descobrir algo novo numa paisagem teórica inédita era algo que eu não mais experimentaria. Mas agora essa experiência está de volta, de modo que eu sinto como se estivesse apenas começando a realmente pensar e encontrar indícios apontando para a verdade.

Esta mudança começou com a ideia de que não estou apenas esperando pela morte, e minha ênfase em minha morte iminente definhou. Eu percebi que não há mais razão agora para pensar que posso morrer em breve do que havia quando eu tinha 20 anos, já que as evidências relevantes, os resultados de exames clínicos e coisas afins, tem mostrado, de acordo com meu médico, que não tenho nenhuma razão para pensar que morrerei nas próximas décadas, o que talvez venha a ocorrer após eu cruzar a casa dos 90, considerando-se o histórico de longevidade de minha famiília.

Parece que você foi sobretudo infeliz nas primeiras décadas de sua vida, quando se tornou um filósofo e começou a pintar e escrever poemas. Lendo seus poemas escritos por volta de 1970, é difícil evitar a impressão de que você mantinha uma visão sombria e desesperançada da vida.

Quentin: Eu preferia os primeiros anos de minha vida quando era desconhecido, anônimo, alienado e desrespeitado pela sociedade por não ser uma “pessoa normal e bem sucedida”. Mas você está certo ao dizer que eu achava o isolamento e o desespero um estado natural. Dos 17 aos 26 anos, não mantive nenhum contato humano. Eu pensava que a raça humana vivia em ilusão, que não havia nenhum propósito obviamente aparente para a vida, e que somente trabalhando em isolamento poderia haver alguma esperança de descobrir algum sentido último para o mundo e a existência humana. Escolhi evitar os seres humanos, e geralmente saía de meu apartamento apenas uma noite por semana para comprar comida.

Mas isto é apenas parte da história. Havia também alguma outra coisa à espreita. Na mesma época eu tinha experiências intensas, positivas, quase místicas, da totalidade do universo, que aparecia como uma espécie de Um indeterminado. O Um não é uma ‘nova realidade’, como o Um de Plotino, mas apenas o universo aparecendo de uma certa maneira, aparecendo sem os limites ou distinções entre suas diferentes partes. Este obscurecimento de todas as diferenças entres as partes do universo pode aparecer somente num tipo de êxtase. A maior parte do tempo eu o sentia ouvindo as sinfonias de Bruckner, sobretudo sua sinfonia nº 4. Eu não estava apenas ouvindo; era mais como se a música me alçasse a um estado extático. Era como se a música de Bruckner carregasse-me  na crista de uma onda que se espalhava  interminavelmente através de todo o universo. Mas eu descobri que isto acontecia apenas com a versão da sinfonia executada pela Orquestra Sinfônica de Chicago conduzida pelo maestro Daniel Bareinboim (não com sua versão com a Filarmônica de Berlin). Assim, com a ajuda desta música, eu oscilava entre o êxtase e o desespero.

Mas há um paradoxo aqui com os poemas de desespero, já que eu gastava meu tempo escrevendo poesia ou filosofia, e eu me sentia feliz se escrevia um poema de desespero que eu considerava um bom poema. Eu excluí a satisfação positiva e o significado de minha vida pessoal, destes poemas, ao escrever. Por quê? Poesia é uma questão de autoexpressão completa, e eu sentia uma necessidade de me expressar quando me sentia sombrio e desesperado, e eu descobria uma necessidade de expressar esse desespero em outras ocasiões em que não estava desesperado. Mas percebei que à medida em que ficava mais velho, os poemas foram se tornando mais positivos. Por exemplo, meus poemas de 1974, como “Night” e “Mysterium Tremendum“, expressam uma atitude muito profunda e positiva de admiração e reverência pelo universo. E a maioria dos poemas que escrevo agora não são desesperadores, mas sobre tentativas de experienciar o significado. Penso que no começo da década de 1970, eu pensava que a vida era em grande parte sem sentido e desesperançada, mas por volta de 1974 meu desespero foi mudando para um sentimento de assombro e reverência para com o universo. Mas aqui, mais uma vez, há um alerta. Eu também registrei os extâses que senti em relação ao universo nos começos da década de 1970, por exemplo, nos poemas  ” At One with the Night“, “The Last Hour“, “Enchanted Night“, “Reconfirmation“, “Awestruck“, “Transfigured in my Backyard“, “There In Nowhere” e e acima de todos, “Walking Home From A Movie“, que melhor captura o que a Quarta Sinfonia de Bruckner evocava em mim, embora neste poema eu tenha tido a experiência sem ouvir nada. Eu caminhava de volta para casa após uma exibição do filme do diretor sueco Ingmar Bergman “Persona”, e estava tão avassalado pelo filme que não pude me mover por duas horas; eu apenas me sentei na calçada no cinema. E então fui para casa e senti uma espécie de êxtase. “Persona”, eu ainda penso, é o melhor e mais profundo filme jamais feito. É puro niilismo, e isto evocou a resposta em mim, após o filme, de qe esto não é toda a verdade, e isso acarretou o êxtase, descrito em “Walking Home From A Movie“, escrito assim que cheguei em casa.

persona

Walking home From a Movie
The longing glow of the moon
Slid in and out of the scattering clouds,
Illuminating them with a silver-blue radiance . . .
O everything is infinite! Glorious night!
Stars speckled and so near in your distance
. . . I have risen beyond myself, beyond the world . . .
There is no more time, there is only beauty ;
Everything is the deepest
And the most fullest eternity of love . . .
There is no world, I am the infinite . . .

E sobre sua infância? O que aconteceu de significativo em sua infância?

Quentin: Nada, realmente. Mas alguns incidentes podem ser de algum interesse. Meu pai, que era professor de psicologia no Bennington College, escreveu um manuscrito do tamanho de um livro constituído de suas descrições e teorias psicanalíticas de minha personalidade desde meu nascimento até eu atingir os 10 anos ou um pouco mais. Ele usava estes manuscritos como livro-texto em seus cursos de psicologia, e os alunos eram solicitados a desenvolver suas próprias análises de mim baseadas no manuscrito.

Uma de suas previsões foi que eu me tornaria filósofo. Esta previsão foi baseada na observação de mim aos dois anos de idade, sentado imóvel diante de uma janela por três dias seguidos, olhando para a casa do vizinho. Ele me perguntou o que eu estava fazendo, e eu respondi: “Esperando a casa do Harry desabar”. Após fazer mais algumas perguntas, ele descobriu que eu tinha esta expectativa bastante notável porque três dias antes eu tinha visto uma telha caindo do telhado de nosso vizinho.

Há mais alguma coisa que você gostaria de contar sobre sua infância?

Quentin: Deixe-me ver. Algumas pessoas acham interessante o fato de eu ter sido chicoteado diariamente por um ano, quando estava com sete anos de idade. Mas não por meus pais; por minha escola. Quando eu tinha sete anos, eu recebia chicotadas em minha mão esquerda todas as manhãs, já que (não sendo cristão), eu me recusava a rezar o Pai Nosso no começo das aulas. O chicote era chamado de “tira” de couro, e a mão esquerda era chicoteada porque o castigo deixava a mão paralisada, e quem era destro precisava de sua mão direita para fazer as lições durante o dia. Minha mão esquerda ficava paralisada cerca de cinco horas após a surra, todos os dias.

Isso soa traumatizante.

Quentin: Não, não foi. Eu achava normal e não pensava que havia qualquer coisa de especial ou digno de menção ali. Parecia normal já que meus pais esperavam que eu vivesse de acordo com meus ideais individualistas em vez de pelo critério da conformidade irrefletida a seja lá qual for a cultura em que alguém tenha nascido. Eles não falavam muito sobre eu estar sendo castigado; eles tinham a mesma atitude que eu. Era como se eu estivesse vivendo pelo truísmo de que o mundo não é um lugar perfeito e portanto não se deveria esperar que a sociedade fosse completamente justa em todas as épocas e lugares.

Você falou sobre suas pinturas e seus poemas. Quando você se tornou um filósofo? E como surgiu a decisão de se tornar um filósofo?

Quentin: Isto aconteceu quando eu tinha dezesseis anos. Eu já havia começado a escrever poemas, mas não por meio de de qualquer contato com a alta cultura, à qual eu nunca havia sido exposto. Em vez disso, meus escritos poéticos eram inspirados pelas letras poéticas de canções de rock! Isso foi no final da década de 1960, e tudo o que eu sabia era que eu achava que alguma coisa estava errada com a sociedade humana. Parecia que a solução era virar hippie, o que eu fiz. Morei numa comuna hippie em Vermont por um verão. Mas acordei deste sonho bem rápido. Aconteceu quando li O Lobo da Estepe, de Herman Hesse, por sugestão de alguém. Esse livro mudou minha vida. O Lobo da Estepe, principalmente da forma como é descrito no começo do livro, parecia ser como eu (Hesse tinha Nietzsche em mente). Minha auto-identidade subitamente mudou da de um hippie para a de um membro da classe de criadores históricos, artistas, filósofos e cientistas. Esta já era minha situação quando li a segunda maior influência sobre meu pensamento, A Vontade de Poder, de Nietzsche. Em certo sentido, comecei com um discípulo de Nietzsche, pois me lembro de que meu primeiro rascunho de um livro (eu comecei a escrever um livro de filosofia assim que terminei de ler O Lobo da Estepe) seguia a linha de que o sentido da vida era o aumento do poder, e eu identifiquei o poder com diferentes graus de felicidade. A esta altura já era possível discernir a preocupação com sentimentos ou significados percebidos.

Fale-me sobre sua carreira como professor.

Quentin: Não penso que filósofos tenham carreiras. De executivos ou banqueiros pode-se dizer apropriadamente que tem carreiras, mas devotar a própria vida à busca das verdades básicas não pode ser considerado uma carreira. Eu experiencio a atividade filosófica sendo a mesma coisa que estar vivo. Por exemplo, eu não entendo a distinção entre “trabalho” e “lazer”, ou o conceito de “férias”. Como alguém pode tirar férias da atividade de refletir qual é o sentido da existência humana, ou se realmente há algum sentido? E como a atividade filosófica pode ser classificada como “horas de trabalho”? Até onde vejo, as horas em que se filosofa não são as “horas de trabalho” mas antes deveriam ser vistas como as horas de vigília, em oposição às horas de sono. Outros podem chama-las de “trabalho”, mas eu as chamaria de “fazer o que é natural para qualquer ser consciente”, tentar decifrar tudo.

Entretanto, pareceu-me quando comecei a lecionar como professor assistente em 1978 que vários professores de filosofia viam a filosofia meramente como uma carreira, semelhante a qualquer outra carreira. O significado convencional implícito da carreira era definido em termos de buscar status social, galgar uma posição respeitável na comunidade, como se mudar de uma universidade para outra supostamente mais prestigiosa fosse como ser promovido do cargo de vice-presidente junior de um banco ao cargo de vice-presidente sênior, ganhando um escritório maior num andar mais elevado do prédio, uma casa maior e um carro mais luxuoso e viver numa vizinhança de maior poder aquisitivo. “Progride-se na carreira” bajulando os que tem o poder de faze-lo progredir. A filosofia parecia ser entendida tacitamente por muitos como um meio de obter a aprovação dos pares e das mais prestigiosas autoridades da área e esta atitude parecia influenciar em larga escala aquilo sobre o que os professores filosofavam. Mas parecia-me que os valores “carreiristas” de vários professores não eram um caso de “tudo ou nada”, mas tendiam a variar em grau e a estar mesclados em vários graus com o desejo desinteressado pelo conhecimento.

Isto influenciou sua decisão de renunciar a seu cargo com possibilidades de ascensão de professor assistente quando tinha apenas 27 anos?

Quentin: Não. Já me era claro no final de minha adolescência que havia uma distinção nítida entre ser um professor de filosofia e ser um filósofo, portanto este fato não foi relevante. Eu já sabia disso antes de me tornar professor. Eu renunciei a meu cargo de professor assistente de filosofia na Universidade de Kentucky em 1980 por uma razão diferente. Eu renunciei, como minha carta de demissão dizia, ‘”a fim de fazer filosofia”. Eu tinha o que considerava uma carga de trabalho pesada, dois cursos num semestre e três cursos no semestre seguinte. e isso me deixava apenas três meses no verão como tempo para escrever. Mas sem nenhuma ideia de como me manter financeiramente, eu me demiti e comecei a escrever em tempo integral.

Qual foi seu plano para obter abrigo e alimentação?

Quentin:  Eu estava planejando me mudar para a Flórida, escrever filosofia numa biblioteca enquanto estivesse aberta, dormir do lado de fora nas noites de verão, e, com alguma sorte, obter alimento em alguma instituição de caridade ou algo assim.

Como  você sobreviveu até agora?

Quentin: Fui afortunado o bastante para receber alguns Rockefeller Awards, estipêndios da National Endowment of the Humanities, e um estipêndio do American Council of Learned Societies. Por um breve período eu morei nas regiões mais pobres de algumas cidades. Viver em cortiços não foi uma experiência das mais agradáveis, sobretudo porque ser roubado e usado como alvo tendia a tirar minha concentração da teoria em que estava trabalhando. Lembro-me que quando vivia em Louisville, eu era usado como alvo pelas crianças da vizinhança toda vez que elas me viam pela janela de meu apartamento. Consequentemente, eu tinha que rastejar no assoalho para me mover por meu minúsculo domicílio. Lembro-me que certa vez cometi o erro de ficar visível por muito tempo, e senti uma bala passando por meu cabelo e a vi cravada na parede oposta. Eu perdi temporariamente minha linha de raciocínio, mas fui capaz de recupera-la cinco minutos depois.

Como e por que você voltou para a Academia?

Quentin: Em 1991 eu recebi uma cátedra comissionada no Antioch College, a Lillian Pierson Lovelace Visiting Professor (uma cátedra comissionada com duração de três anos) que foi ideal pois eu negociei tempo para pesquisa e tinha que ministrar apenas dois cursos por ano. Mas eu estava tão acostumado a ser pobre nos últimos dez anos que lhes devolvi todo o meu salário exceto por US$ 7000. Não me pareceu nada peculiar na época, mas me disseram mais tarde que me tornei a fofoca do campus. As pessoas pensaram que eu era excêntrico, mas até onde posso dizer, são as outras pessoas que viviam excentricamente, e apenas eu vivia uma vida normal.

E como você veio para a Western Michigan University?

Quentin: Minha cátedra comissionada na Antioch College venceu, e como eu não queria que ela expirasse, eu precisava de um emprego.

Surpreendentemente, recebi diversas ofertas de emprego das assim chamadas “universidades de primeira categoria”, provavelmente porque àquela altura eu havia publicado coisas, em quantidade e qualidade, que despertaram o interesse dos filósofos. Mas eu também recebi o que eu e também os demais filósofos profissionais consideram um cargo ideal, orientado para a pesquisa, na Western Michigan University. Eu deveria ministrar um curso por semestre (dois cursos por ano) e gastar o resto de meu tempo em pesquisas. Mas as principais universidades de pesquisas possuiam cargas letivas de dois cursos por semestre e este fato intratável facilitou minha decisão de ir para a Western Michigan University. Eu também gosto dos administradores e da faculdade de filosofia daqui, de modo que também posso me considerar sortudo neste aspecto. Na verdade, eu senti de imediato que nessa faculdade não há a distinção entre “ser um filósofo” e “ser um professor de filosofia motivado pela carreira” que eu em geral senti 15 anos antes quando comecei a lecionar. A faculdade era constituída por professores de filosofia que eram filósofos genuínos. Este respeito fundamental por eles, assim como por suas habilidades patentes como filósofos, permitiu que eu “me sentisse em casa” no departamento, em vez de alienado dele. Eu também identifiquei desde o começo uma maturidade moral e uma harmonia que não está sempre presente em alguns outros departamentos de filosofia.

Outro fator que influenciou meu julgamento do departamento de filosofia daqui foram os talentos filosóficos individuais e as realizações das outras faculdades. Algumas das faculdades daqui são bem menos conhecidas do que as das “mais prestigiosas” universidades de pesquisa, mas o corpo docente das faculdades é pelo menos tão qualificado e erudito quanto. Quando visito as mais prestigiosas universidades de pesquisa para dar palestras, eu descubro que seus melhores filósofos não ultrapassam em inteligência ou erudição o corpo docente da Western Michigan University. Talvez seja por isso que a Western Michigan University figure entre os 10 mais bem colocados programas de mestrado do país; a maioria de nossos mestrandos seguem para os mais bem avaliados programas de doutorado, de modo que trabalhar com eles é como trabalhar com os melhores estudantes pré-dissertação dos melhores programas de doutorado das universidades de pesquisa. Quando dou aulas, sinto-me basicamente no mesmo nível que os estudantes de graduação, e não como algum tipo de autoridade; eu aprendo tanto deles quanto eles aprendem de mim. E em mais de uma ocasião eles refutaram alguns de meus argumentos e teorias. É para estudantes desse nível que gosto de dar aulas.

Esta sensação de “estar em casa” na Western Michigan University parece ser uma mudança fundamental em sua atitude para com a profissão filosófica e, principalmente, para com a sociedade em geral.

Quentin: Eu mudei, provavelmente durante minha terceira década de vida. Comecei a ver a irracionalidade da alienação. Comecei com o pensamento básico, “eu não me sinto alienado dos outros animais, que são mais diferentes de mim do que outros humanos, então por que eu deveria me sentir alienado da espécie humana?”. Mas esta mudança foi mais num nível psicológico do que um resultado de uma cadeia de raciocínio. Agora, em vez de me sentir alienado das outras pessoas, eu sinto uma espécie de empatia instintiva pelas pessoas. Eu não sei o quão incomum isso pode ser, mas eu não consigo deixar de gostar de todos com que venho a ter contato ou conhecer de alguma maneira ou de outra. A experiência fenomenológica diz que cada pessoa tem a característica de ” ser amável”. Isto é verdade até mesmo para meus assim chamados “adversários” filosóficos. Três de meus principais adversários teóricos na literatura filosófica são L. Nathan Oaklander, William Lane Craig e William F. Vallicella. Outros filósofos, lendo o estilo “crítico” dos artigos que escrevemos sobre cada um dos outros, assumem que nós nos “odiamos”. Na verdade, estas três pessoas são três de meus mais íntimos amigos. Nunca passou por nossas mentes que não deveríamos estimar e respeitar cada um dos outros apenas porque temos concepções diferentes sobre certos tópicos filosóficos. Nossa atitude era de que nossas críticas mútuas seriam reciprocamente úteis ao estimular reflexões adicionais sobre um tópico do interesse de ambos. Alguns filósofos que eu critico levam a coisa para o lado pessoal e, aparentemente (assim ouvi dizer) como consequência não gostam particularmente de mim. Os filósofos de Princeton Scott Soames e Saul Kripke (aposentado) expressaram publicamente seus sentimentos pessoais negativos em relação a mim. Mas isso nunca me impediu de estima-los e respeita-los, apesar do “tom crítico” envolvido em discutir ou avaliar negativamente suas visões filosóficas ou seu lugar na história da filosofia. A filosofia, ao contrário da ciência, não é um empreendimento coletivo em que há concordância sobre os fundamentos; em vez disso, a filosofia é o campo do pensamento em que os fundamentos estão em disputa, e portanto o debate e as críticas mútuas são o caminho natural para tentar estabelecer quais visões sãos as mais bem justificadas. Nunca fui capaz de compreender por que um filósofo gostaria apenas dos que concordam com ele e detestaria aqueles dos quais discorda. Por que um filósofo deveria levar “para o lado pessoal” algo que não é efetivamente “pessoal”, mas uma tentativa de fazer progredir o conhecimento filosófico?

Poderia discorrer de forma um pouco mais elaborada sobre esta mudança em sua atitude geral?

Quentin: Não conheço nenhuma pessoa de quem eu não goste. A atitude de alienação universal que eu sentia em minha adolescência e juventude converteu-se em seu oposto. Esta mudança é mais de natureza psicológica ou instintiva do que o resultado de qualquer mudança em minhas concepções filosóficas. Mas parece-me absurdo que possa haver uma razão para não gostar de alguém. Existe uma distinção clara entre gostar de uma pessoa e concordar com ou discordar do que ela acredita ou faz.

O mesmo se aplica a tudo o mais. Eu acho animais, plantas e objetos inanimados estimáveis, mesmo que eu possa não estar “de acordo” com uma serpente que queira me picar. Se esta atitude pode ser filosoficamente justificada ou não, eu não sei. Estou apenas relatando como eu experiencio as coisas atualmente.

Isto também envolve reavaliar minha atitude anterior em relação a pessoas com carreiras, como os executivos e os banqueiros. Quando conversamos com eles, descobrimos que um senso de propósito grandioso é o principal fator de motivação em suas vidas. Por exemplo, certa vez conversei com o vice-presidente do Citibank (não foi muito difícil agendar um horário com ele, já que aconteceu de ele ser meu irmão mais velho!) e era óbvio que ele via que o propósito de sua vida era melhorar a condição humana melhorando sua condição econômica. Descobre-se que este modo de experienciar a vida está presente em praticamente todas as pessoas, embora ele varie em grau de pessoa para pessoa.

Pode parecer paradoxal eu gastar a maior parte de meu tempo sozinho, se eu tenho esta atitude positiva para com os outros. Mas não é realmente paradoxal. Ocorre apenas que eu tenho um estranho desejo de fazer algo mais além de socializar, isto é, produzir novas teorias filosóficas e obras de arte.

Seu motivo para escrever filosofia ainda é o mesmo de quando tinha vinte anos?

Quentin: Não. Eu agora percebo que a filosofia de alguém não pode “mudar o mundo”, o que eu estava decidido a fazer aos 16 anos, quando comecei a escrever The Felt Meanings of the World. Em vez disso, o livro apenas estimulou a pensar aqueles que já tinham uma visão filosófica de mundo desenvolvida. E como eu admiro a originalidade de pensamento, e desencorajo as pessoas de se tornarem meus “discípulos”, por assim dizer, eu não quero que ninguém adote minha visão de mundo filosófica como a sua própria. Em vez disso, eles deveriam adotar sua própria visão de mundo, talvez com o estímulo de minhas publicações sendo útil neste processo.

Observei que atualmente você, além de escritor, também é um editor.

Quentin: Sim. Meus dois principais cargos editoriais são o de editor do Philo: A Journal of Philosophy, e o de editor de filosofia na Prometheus Books. Eu aceitei os cargos em parte porque concordo com a visão de mundo que o Philo e a Prometheus Books representam. E também pensei: todos sempre reclamam que a maioria dos artigos publicados em periódicos não são muito bons. Eu senti, bem, que neste caso há uma obrigação de fazer algo a respeito. Torne-se um editor se você pode, e pare de recusar solicitações para avaliar artigos. O mesmo vale para livros. As pessoas reclamam que vários livros de filosofia publicados não são muito bons. Eu as pergunto: quantos pedidos para avaliar e resenhar um manuscrito você declinou? Penso que o maior problema é que os filósofos mais talentosos e prolíficos acreditam que não tem tempo para avaliar obras alheias, e assim esta tarefa automaticamente recai sobre os ombros de filósofos menos talentosos ou preparados. Eu diria, portanto, que a baixa qualidade é principalmente culpa dos filósofos mais talentosos e experientes que recusam-se a avaliar artigos e manuscritos de livros.

Há uma opinião amplamente disseminada sobre seu trabalho filosófico, segundo a qual você começou como fenomenólogo e então tornou-se um filósofo analítico e filósofo da física. Isto está correto?

Quentin: Eu não aceito o fato de que há uma diferença entre a filosofia analítica e a fenomenológica (ou filosofia continental em geral). E minha filosofia não é nem fenomenológica nem analítica, embora eu possa ver a razão pela qual (usando as categorias da filosofia contemporânea) os filósofos chamariam algumas de minhas obras de “fenomenológicas” e outras de “analíticas”.

Minhas principais influências no final da adolescência e começo da vida adulta foram os fenomenologistas e existencialistas. Eu estudei o Ser e Tempo de Heidegger, O Ser e o Nada de Sartre, a Filosofia de Jaspers, vários livros de Max Scheler, e as Investigações Lógicas de Husserl. Fui influenciado sobretudo por Heidegger, embora preferisse a metodologia mais precisa e o entendimento da consciência apresentado por Husserl, Sartre e Max Scheler. Heidegger permaneceu a principal influência em meu pensamento até por volta de meus trinta anos, quando também passei a ser influenciado pelo filósofos analíticos. A mudança ocorreu quando eu li pela primeira vez The Principles of Mathematics de Russell, e ali encontrei o tipo de precisão de pensamento pela qual procurava àquela altura de meu desenvolvimento filosófico. Meu primeiro livro categorizado como “analítico” foi o Language and Time (finalizado em 1990 mas só publicado, devido aos atrasos usuais, em 1993). Eu comecei a escreve-lo em 1983, assim que terminei The Felt Meanings of the World. As duas principais influências foram The Language of Time de Richard Gale e The Nature of Necessity de Alvin Plantinga.

Mas quando li The Kalam Cosmological Argument de William Lane Craig, fiquei tão excitado com o livro (antes de Craig, nenhum filósofo escrevera um livro sobre as implicações do Big Bang que começou nosso universo) que eu o li sem parar da primeira à última página, atravessando a noite acordado. Pensei que poderia passar o resto de minha vida escrevendo sobre esse livro, e isso acabou por se tornar parcialmente verdadeiro; algumas de minhas réplicas a Craig, e suas réplicas a mim, foram publicadas em livro em 1993, Theism, Atheism and Big Bang Cosmology. Apesar do fato de que minha matemática tornou o livro ininteligível para filósofos, e a densa tecnicalidade da filosofia o tenha tornado ininteligível para os físicos, esse veio a ser meu livro mais vendido.

Tornei-me interessado em física, particularmente na cosmologia do Big Bang e na cosmologia quântica, no começo da década de 1980, após encontrar acidentalmente um recorte de jornal dizendo “físicos descobriram que o universo foi criado do nada”. Fiquei desorientado pelo título, mas lendo os artigos originais nos periódicos de física, percebi que os físicos estavam desenvolvendo teorias explicando porque nosso universo começou a existir. Isto me motivou a aprender a matemática e a física necessárias para compreender as novas teorias, e comecei a publicar nesta área em 1985.

Como você caracterizaria o sentido e as influências sobre sua poesia?

Quentin: Eu teria que escrever um poema para poder verbalizar isso para você. Mas seria consistente rotular minha poesia como parte do que é usualmente chamado “Poesia Americana Contemporânea”. Eu não fui influenciado por ela; não acho que comecei a le-la antes de já ter escrito boa parte de meus poemas dos primeiros anos da década de 1970 (Eu gostava de Kinnell e Roethke acima de todos). Mas meus poemas diferem dos da maioria dos outros poetas contemporâneos americanos em dois aspectos. Primeiro, eu tento e escrevo sobre o sentido último ou a falta de sentido da vida em cada poema, ao passo que os outros poetas escrevem poemas sobre o lado mais superficial, convencional, da vida. Após conhecer diversos destes poetas no começo dos anos 70, eu senti que a razão para esta diferença era que eles eram pessoas ordinárias, convencionais, superficiais. Naturalmente, isto exacerbou ainda mais minha desilusão com a humanidade. Minha atitude na ocasião era que eles não seriam capazes de entender meus poemas já que os poemas eram de uma profundidade que eles nunca haviam experienciado. Terei que esperar para ver a reação à publicação de uma coletânea de meus poemas mais recentes para ver se ainda tenho a mesma atitude.

Recordo que quando tinha entre 17 e 18 anos os professores de literatura tentaram sem sucesso me fazer escrever poemas mais superficiais. Talvez isto corresponda a minhas reais influências, T. S. Eliot, W. B. Yeats, Rainer Rilke, Friedrich Hölderlin e Georg Trakl, todos os quais escreveram sobre apenas um tema: seria a vida dotada de sentido e, em caso afirmativo, qual é esse sentido e como deveríamos viver? E se a vida de fato tem um sentido, como o alcançamos através do tipo de experiências descritas nos poemas? Acho que, entre os poetas americanos, apenas Roethke e Kinnell daquela época alcançaram este nível de intensidade de experiência da vida ao escrever.

Quais de seus poemas você prefere?

Quentin: Bem, primeiro deixe-me dizer o que penso da relação entre filosofia, poesia e pintura. A poesia captura um aspecto da realidade que não pode ser apreendido pela filosofia. Mas a pintura captura um aspecto da realidade que não pode ser capturado pela poesia, já que se trata de um aspecto mudo da realidade que pode ser percebido mas não descrito verbalmente ou poeticamente. Não estou dizendo que exista alguma realidade sobrenatural que não seja capturada pelas ciências e pela filosofia. Em vez disso, estou dizendo que a poesia e a pintura capturam certas modalidades fenomênicas das realidade descobertas pelas ciências e a pela filosofia, modos de aparecimento que não podem ser expressos na ciência e na filosofia. Portanto, não sou nenhum místico. Muito pelo contrário, eu apenas desfruto a realidade de perspectivas múltiplas (esta teoria é a base de meu livro The Felt Meanings of the World).

Agora, sua pergunta sobre quais de meus poemas eu mais gosto. Eu gosto sobretudo do poemas que expressa com a máxima beleza estética minha mais profunda atitude para com a vida. Este poema é “Night“, escrito em 1974.

Qual é sua obra filosófica favorita?

Quentin: Entre minhas próprias obras, você quer dizer? Seria The Felt Meanings of the World. Agora penso que a maioria das pessoas não vivem num nível existencial profundo o bastante para entende-lo ou se conectar emocionalmente com ele. Acho que isso sugere que enquanto eu o escrevia eu tinha uma visão excessivamente otimista da humanidade. Ou que pelo menos eu presumi equivocadamente que suas experiências de vida eramm mais similares à minha do que de fato eram.

Minha atitude para com a morte mudou completamente ao terminar este livro. Antes de termina-lo aos 30 anos, no começo do verão de 1983, eu tinha medo de morrer antes que pudesse terminar o livro. Eu pensava que esse livro era uma contribuição crucial que eu poderia fazer para a humanidade. Mas assim que o terminei, eu parei de me preocupar se vivia ou morria. Não fazia qualquer diferença para mim se eu acordaria na manhã seguinte ou morreria durante a noite. Eu havia cumprido o que eu concebia, desde meus 16 anos, como a tarefa de minha vida. Mas eventualmente, a medida em que novas ideias começavam a se formar em minha mente, eu senti que havia algo mais que gostaria de descobrir e comunicar, e então eu comecei a me preocupar mais com a possibilidade de estar vivo ou morto no dia seguinte.

Você perguntou qual é meu livro de filosofia favorito. Acho que isso também pode significar qual é meu livro de filosofia favorito de outro autor. Em termos de personagens históricos, eu simpatizaria sobretudo com algum tipo de combinação entre Demócrito, Spinoza, Hume e Schopenhauer. E em relação à filosofia contemporânea? Eu diria que se eu não tivesse uma visão de mundo própria, e tivesse que adotar a de alguém, eu adotaria a que John Post apresenta em seu livro The Faces of Existence. Talvez este livro seja demasiado profundo e conceitualmente sofisticado para angariar uma grande popularidade, o que pode explicar porque ele não é muito discutido na literatura. Mas este pode ser o melhor livro de filosofia escrito no século XX.

O que significa a resposta que você deu para a primeira pergunta que te fiz?

Quentin: O fogo é o mistério da natureza da realidade e se a existência humana tem ou não algum sentido último. A única maneira de viver  e estudar estas questões é rastejar ao longo de uma dolorosa cosciência de não saber a resposta, e saber que a qualquer momento pode-se morrer ao despencar da lâmina rumo ao fogo.

Quentin Smith espaço q mental

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NIGHT

 de Quentin Smith

 The night like an infinite wing

Keeps spreading towards the earth

In flowing mirrors that melt and dissolve

The air vanishes below the stars

Beyond the moon’s scarred  ice-stone

A frozen-orange hall is fading

Onto a field space is pouring

An ocean of eternal silence

Into a ghost mountain’s distant glow

A purple shadow gently crashes

On a hill a tombstone breaks

In the light of silver suns

Moonlight splashes on a statuehead

And trickles numbly on its eye-dead face

Near a vine that grows blue around an elm

Starlight rains softly on a marble pond

On an island of a darkened meadow

A rose echoes the deep universe

(Escrito em 1974)

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Publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo do dia 09 de dezembro de 2012

Autor: Hélio Schwartsman

SÃO PAULO – Bela tentativa. É o que se pode dizer do livro Onde Realmente Está o Conflito – Ciência, Religião e Naturalismo, de Alvin Plantinga, lançado no fim do ano passado nos EUA. O projeto da obra é ambicioso. Plantinga, que é, ao mesmo tempo, um filósofo analítico de renome e um protestante devoto, pretende demonstrar não apenas que as discrepâncias entre a ciência e a religião (em especial, a cristã) são superficiais como também que existe uma contradição insuperável entre a ciência e o naturalismo.

Não creio que tenha alcançado o objetivo, mas isso não implica que o livro seja desinteressante. Ao contrário, ele levanta questões instigantes. É particularmente feliz ao mostrar que naturalismo e materialismo apresentam várias dificuldades filosóficas e, como as religiões, também trazem embutidos uma ontologia e, se quisermos fazer com que Popper revire na tumba, uma metafísica.

Assim como Thomas Nagel, de quem falei algumas semanas atrás, Plantinga explora as implicações do problema mente-corpo. O naturalismo não tem como assegurar que pelo menos parte de nossas percepções e a própria razão (e, com elas, nossas teorias científicas) sejam confiáveis.

O livro falha, creio, quando tenta produzir evidências em favor do teísmo. Minha impressão é a de que aqui Plantinga abre mão do rigor com que tratou o naturalismo. Um exemplo: ele coloca a fé (o “sensus divinitatis” de Calvino) como uma fonte de formação de crenças tão válida quanto a razão ou as percepções.

O resultado é que Plantinga vai criando esconderijos para Deus, nichos filosóficos ou linguísticos onde o todo-poderoso pode abrigar-se de questionamentos contundentes. Mesmo assim, para os que se interessam pelo debate entre ciência e religião, que é um dos grandes temas da atualidade, o livro oferece uma perspectiva teísta que não se restringe a reafirmar os velhos contos da carochinha (embora eles estejam lá).

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por Jaco Gericke

Uma terceira e última concepção absurda no Antigo Testamento já foi tangenciada no capítulo anterior: a idéia de que o cosmos inteiro seja uma monarquia e que a eterna morada divina de Javé nos céus funciona como um reino (Deut. 32:8-9; 1 Sam. 8:7; Dan. 6:27; etc.). Acredita-se que a morada de Javé seja um palácio em que a divindade  em pessoa está sentada num trono (Sal. 11:4; etc.) Um dos meios de transporte preferido pelo deus são as carruagens conduzidas por cavalos (2 Reis 2:11-12; 6:17; Zac. 6:1-8; etc.) Javé também precisa de um exército cuja arma predileta é a espada (Gen. 3:22; 32:1-2; Josué 5:13-15; 2 Sam. 24:16,27; etc.) Javé é sábio mas não onisciente e recorre a conselheiros (1 Reis 22:20-23; Isa. 6:3; Jer. 23:18; Sal. 82:1; 89:5; Jó 1:6; etc.) e serviços de inteligência que espionam as pessoas a fim de assegurar-se de sua lealdade (Jó 1-2; Zac. 3; 1 Cron. 21; etc.). O chifre de carneiro foi um instrumento musical popular nos domínios de Javé (Ex. 19:16); e os habitantes do Céu alimentam-se de pão e cobrem-se com vestes de puro linho branco (Sal. 78:25; Ez. 9:2; Dan. 10:5; etc.) Javé se dedica até mesmo a escrever em rolos de papiro (veja o “livro” [da vida] em Ex. 32:32; Sal. 69:29; 139:16; Dan. 7:10; 10:21; etc.).[19]

Para avaliar a impossibilidade deste estado de coisas, o leitor deveria dedicar algum tempo para refletir sobre a natureza historicamente transitória e culturalmente relativa de objetos como rolos de papiro, carruagens conduzidas por cavalos, espadas, trajes de linho e trompetes de chifre de carneiro. São todos artefatos demasiado humanos e efêmeros. Houve uma época no passado em que eles não existiam. Antes que tais coisas fossem usadas pelos humanos, as pessoas escreviam sobre pedra e argila; lutavam com clavas, arcos e lanças; e viajavam a pé. Então os próprios humanos batizaram ou inventaram estes objetos utilizados por Javé, e então os próprios objetos evoluíram ao longo do tempo. Algumas culturas nunca utilizaram estes objetos e jamais ouviram falar deles. Finalmente, devido ao desenvolvimento e às mudanças culturais e tecnológicas, tanto a instituição política da monarquia como vários dos artefatos utilizados por Javé caíram em desuso e hoje em dia a única fonte de interesse em sua preservação é sua antiguidade. Pouquíssimas pessoas atualmente escrevem em rolos de papiro, lutam com espadas, vestem-se com trajes de linho, sopram chifres de carneiro ou viajam em carruagens conduzidas por cavalos. No entanto, se os textos do Antigo Testamento são dignos de crédito, a realidade última é o deus de Israel que utiliza eternamente artefatos da Idade do Ferro. No palácio celestial de Javé, coisas como trompas de chifre de carneiro, rolos de pergaminho e carruagens existem desde sempre e continuarão a existir para sempre.

Este estado de coisas não deveria nos surpreender. Existe uma razão pela qual presume-se que a criação de Javé seja uma monarquia em vez de um distrito administrativo ou uma democracia. O “Deus” cristão absolutamente não é o objeto de adoração desde toda a eternidade passada mas a divindade nacional “Javé” de uma religião localmente restrita e demasiado recente na história. A mais antiga evidência do Javeísmo remonta a fé nesse deus a não mais do que 3000-3500 anos atrás. Isto explica porque “Deus”, também conhecido como Javé, age, fala e se comporta como um típico deus do fim da Idade do Bronze e do começo da Idade do Ferro e não é capaz senão de desempenhar o papel deste tipo de personagem nas histórias em que figura. Ele está aprisionado à concepção da natureza divina disponível à época com que eram construídos os papéis teatrais para a divindade. Por todas as suas idiossincrasias, Javé instintivamente age como um deus de seu tempo.

Neste ponto, constrangimentos conscientes e inconscientes derivados da natureza culturalmente construída do que se reivindica ser objetiva e eternamente apenas “verdadeiro” tem levado os apologistas à única maneira óbvia de salvar sua credibilidade: a reinterpretação. Vários teólogos contemporâneos perdem as estribeiras insistindo que toda a linguagem religiosa referente ao mundo divino e sobrenatural deve ser entendida simbolica ou metaforicamente. “Deus” foi apenas se “adaptando” (Calvino). Mas a teoria de que toda linguagem lidando com o mundo divino deve ser entendida como mítica ou metafórica de modo que os humanos sejam capazes de apreende-lo torna-se uma generalização pós-bíblica quando se concebe que seja aplicável a todos os textos do Antigo Testamento. Pois, conquanto algumas referências aos artefatos humanos utilizados por Javé sejam realmente deste tipo, um literalismo ingênuo também está presente em vários casos. Somente aqueles que não são capazes de admitirem para si próprios que não mais acreditam em Javé conforme representado na Bíblia precisam recorrer a tal reinterpretação para fazer a divindade parecer menos obviamente impossível. Os que acreditam em Deus precisam recalcar o fato de que sua divindade costumava ser Javé, cuja realidade é por inteiro tão obviamente absurda que demanda contínuas revisões para ocultar o fato de que os humanos de uma época específica imaginaram que a realidade em si funcionava como a única configuração política e cultural com que eles próprios estavam familiarizados.

Esta necessidade de reinterpretação do mundo divino em nenhuma outra circunstância é mais evidente do que na compreensão do conceito bíblico de “céu”. O crente contemporâneo insistirá que ele é algum tipo de dimensão espiritual e rirá da cara das pessoas que afirmaram não terem encontrado Deus no espaço. Mas o fato é, para os antigos israelitas e para o próprio Javé, que o céu realmente era, falando sem rodeios, um palácio divino nas camadas elevadas da atmosfera. Além disso, o conceito de “espírito” não tinha nada a ver com alguma coisa transcendente, mas no idioma hebraico denota uma substância imaterial embora natural como o vento. Não havia nenhum dualismo natural/sobrenatural ou físico/espiritual no sentido moderno – que é a razão pela qual a respiração de Javé foi identificada com o vento e porque ele pode insuflar vida no barro (Gen. 2). Que sua morada estivesse localizada no que atualmente chamamos de céu é evidente no movimento de entrada e saída do céu na narrativa bíblica. Javé desce até o Sinai (literalmente, Ex. 17-19), e Elias ascende ao Céu numa carruagem (literalmente, 2 Reis 2). Javé olha do alto dos céus para os humanos, e as pessoas olham para o Céu acima ao orarem (veja Sal. 14). A razão pela qual Javé cavalga uma nuvem ligeira (Isa. 19), pela qual o trovão é literalmente a voz divina (Jó 37), é porque ele e seus adoradores acreditavam que ele estava literalmente lá em cima. Esta é a razão pela qual Jesus supostamente despediu-se numa nuvem e retornará sobre uma – porque o Céu estava literalmente lá em cima. Crentes que acreditam que a terra é redonda e aceitam uma cosmologia moderna com um céu vazio e ainda assim não ficam chocados e desorientados com sua fé quando leem o Antigo Testamento definitivamente não o compreenderam.[20]

Para entender a idéia por trás desta cosmografia, mais uma vez pense numa sociedade humana ou na planta de qualquer metrópole moderna. A morada divina era considerada simplesmente a “área nobre” do cosmos – o palácio ou fortaleza nas colinas. A divindade vive “lá em cima” apartada dos humanos porque o sistema religioso prescreve uma segregação entre deuses e humanos – quando você é um deus, você não se mistura com a patuléia com frequência e é visto entre a plebe apenas raramente. Essa é a única razão (e nenhuma outra mais) pela qual o divino aparecia e falava com os humanos tão raramente. E quando ele descia, instalações prontas já estavam à sua espera – seu hotel sete estrelas privativo, o templo, cuja designação em hebraico é a mesma para palácio e que era a casa agradável, arejada e silenciosa de Deus onde uma vasta criadagem servia-lhe vinho, gordura animal e óleos vegetais duas vezes ao dia e o cobria de presentes (o verdadeiro motivo para os sacrifícios). A idéia do “alimento” de Javé não é incomum no texto (veja Ezeq. 44:7 e Lev.)

Em última instância, os cristão tendem a sugerir que a idéia de sacrifício humano como alimento para os deuses é uma prática pagã primitiva e completamente repulsiva. Muitos gostam de ressaltar as diferenças entre a Bíblia e outras religiões antigas no sentido de que o Antigo Testamento proibia tal prática. Entretanto, mais uma vez os aplausos são prematuros. Certamente, vários textos do Antigo Testamento rejeitam a idéia do sacrifício de crianças. Entretanto, as próprias fontes de redação anterior nas leis do Antigo Testamento  para a consagração do primogênito mostram que houve uma época em que se acreditava que Javé aprovava essa prática (Ex. 13:2; Lev. 27:28-29).[21] Sua aceitação é implicada pela história da filha de Jeftá (Juí. 11:29-40). Também encontramos vestígios desta prática na história de Abraão e Isaque (Gen. 22) em que Javé não via problemas com a cremação do corpo mesmo que ele por fim venha interromper o ato de seu servo a fim de manter sua promessa. Possivelmente mais negligenciada, contudo, é a idéia de que o sacrifício humano seja necessário e tenha sido reabilitada no Cristianismo. Aqui encontramos a significância teológica do sangue de um homem torturado e assassinado como uma oferenda pela expiação do pecado. Que os cristãos, também, sejam capazes de tornarem-se assim líricos acerca do assassinato de um ser humano (ou de um deus) mostra a repaganização do Javeísmo (que em si nunca foi puro e não possui essência distintiva alguma) e revela a facilidade com que a lavagem cerebral pode dessensibilizar alguém. Isto é claramente evidente quando os cristãos não acham nada fora de ordem quando consomem ritualmente a carne e o sangue de seu deus. A maioria das versões de Javé não aprovaria essa prática.

Outra verdade desconcertante e uma necessidade demasiado humana na psiquê de Javé é vislumbrada em seu motivo para criar os humanos. No mundo de Javé, o propósito da vida humana é sermos escravos (eufemisticamente chamados de “servos”) da divindade. Segundo um dos mitos, os humanos foram criados a fim de governar no lugar do deus de modo que ele não precise faze-lo (Gen. 1:26-28). Em outro mito, bastante incidentalmente em Gênesis 2:5, sugere-se que o propósito da vida humana seja trabalhar arduamente a terra (Ge. 1-2). Mais uma vez Javé mostra-se averso ao labor braçal e quer servos para fazer o trabalho que lhe é indigno. Não que isso sejá lá muito lisonjeiro, mas aos humanos foi concedido pelo menos o prazer de massagear o ego divino e em retribuição obter uma recompensa mínima (alimentação, um plano de saúde, segurança, etc.).

Os crentes contemporâneos definitivamente não consideraram com a devida seriedade os absurdos na concepção do cosmos como um tipo de cidade-estado governada por um monarca no céu cujos caprichos e extravagâncias tem que ser atendidos sob pena de morte presente no Antigo Testamento. Os cristãos sofreram uma lavagem cerebral tão profunda que a idéia de que os humanos são servos de um ditador cósmico ainda afigura-se reconfortante para muitos. Eles falam de uma relação pessoal com a divindade como se ele fosse um pai afetuoso, não percebendo que qualquer pai que trate seus filhos da maneira como Javé supostamente trata os seus sem dúvidas teria que ficar sob observação psicológica e provavelmente passaria o resto de sua vida numa prisão (embora possa-se reconhecer que a tortura eterna no inferno seja uma crença do Novo Testamento; o deus do Antigo Testamento não conhece tal lugar). Os que pensam que a Bíblia afirma a dignidade humana parecem não compreender que ela é completamente alheia à qualquer noção de direitos humanos. Mas porque os cristãos tem por muito tempo lido uma Bíblia reinterpretada, eles não são mais capazes de enxergar o que realmente se encontra lá. Os estudiosos críticos da Bíblia que estão simplesmente tentanto educa-los e esclarece-los sobre qual é realmente o caso no texto estão por conseguinte ironicamente correndo o risco de serem considerados “não-bíblicos”.

Tudo o que foi exposto acima, contudo, não faz sentido algum à luz da história da vida sobre a terra. O fato é que atualmente a idade estimada da terra é de aproximadamente 4,5 bilhões de ano, e se a representássemos num calendário anual, os humanos teriam entrado em cena durante o último minuto antes da meia-noite do dia 31 de dezembro. Humanóides e práticas religiosas tem estado por aí há dezenas de milhares de anos. Contudo, ainda hoje nos dizem para acreditar no que supõe-se ser o “verdadeiro Deus” embora seu personagem da Idade do Ferro (1200-500 a.C.) e sua configuração sobrenatural tenham entrado em cena tardiamente na história da religião em algum momento durante a segunda metade do segundo milênio antes de Cristo – e apenas acidentalmente espelha a cultura desta era. Lamento, mas isso é intragável. Não é mais digno de crédito do que reivindicar que qualquer outro deus com uma história discernível de origem e reconstrução míticas acidentalmente calhou de ser a realidade última. A palavra “absurdo” ainda possui algum sentido nos círculos religiosos hoje em dia?

Não somente o Javeísmo (agora em sua versão melhorada “Deusismo”) foi um retardatário na história das religiões, como também foi um assunto bastante restrito geograficamente. Javé e seus adoradores estavam confinados num espaço sagrado ao leste do Mediterrâneo. Os povos antigos por todo o globo nunca conheceram esta divindade, e nunca, de acordo como Antigo Testamento, Javé soube de suas existências (por exemplo, os ameríndios, os khoi-san da África do Sul, ou os aborígines australianos; confira a lista de nações em Gen. 10). O escândalo da peculiaridade é agravado quando se percebe que todas as preocupações e atributos de manifestação supostamente sobre-humanos de Javé parecem totalmente dependentes da região em que ele foi adorado. De acordo com o Antigo Testamento, ele vem das estepes desérticas ao Sul (a Pensínsula Arábica, veja Juí. 5; Hab. 3; Sal. 68) como um deus-redemoinho, um fetiche tribal de uma outrora horda nômade (segundo os indícios no Antigo Testamento, existe a possibilidade de ter sido cultuado primeiro pelos midianitas ou queneus). As regiões tropicais da terra desconhecem por completo a maldição de esterilidade árida que lançou sobre a criação, enquanto regiões como os Alpes riem-se da idéia de que a Terra Prometida seja  o paradigma da beleza para paisagens naturais. O fato é que a psicologia ambiental e a antropologia ecológica dos antigos israelitas explicam tão bem a natureza e as preocupações deste deus particular que é impossível até mesmo imaginar Javé sendo adorado pelos, digamos, esquimós.

Curiosamente o conceito de eternidade divina na Bíblia Hebraica nem sempre coincide com o filosófico. Em Isaías 43:10, chegamos a encontrar implícita a idéia de que Javé tem uma vida de duração limitada:

Vós sois as minhas testemunhas, diz Javé, o meu servo a quem escolhi, para que saibais, me acrediteis, e entendais que eu sou; antes de mim não se formou nenhum deus nem haverá nenhum depois de mim.

Olhe bem de perto mais uma vez e tente levar o texto mais a sério do que nunca. Ele não diz apenas que não há outros deuses. Ele introduz uma sequência temporal que, se todos os textos desejassem enfatizar que eram afirmações de natureza monoteísta, pareceria completamente desnecessária. No entanto a maioria das pessoas é capaz de ler esta passagem e nunca se incomodar em perguntar como é possível a Javé referir-se a um tempo “anterior” e “posterior” a ele durante o qual não existem outros deuses. Este texto dá a entender claramente que (a) existe um período temporal anterior à existência de Javé quando nenhum outro deus existiu, e (b) chegará um tempo posterior à existência de Javé durante o qual nenhum outro deus tampouco existirá. Naturalmente, esta idéia blasfema não faz sentido algum no contexto do monoteísmo filosófico, mas ela está lá e é perfeitamente compreensível no contexto das teogonias do Oriente Próximo antigo. Também os deuses nascem do caos e ao caos retornam, e nem mesmo o primeiro capítulo do Gênesis diz que Deus criou as trevas/águas. Sem dúvida alguma, esta alusão é basicamente a única de seu tipo na Bíblia (embora a noção de vida divina, ou nephesh, embora atenuada em textos como Exo. 31:18, sugira a possibilidade de degeneração), mas como os estudiosos tem desejado ver o “segundo” Isaías como um aprimoramento teológico, eles ignoraram os elementos mais primitivos de sua teologia.

(…conclui a seguir.)

Notas.

19. Para mais exemplos e discussões deste tipo de projeção sociomórfica no Antigo Testamento, veja Gericke, “Yahwism and Projection,” 413–15.

20. Este ponto foi magistralmente demonstrado por Babinski em “The Cosmology of the Bible.”

21. Veja Avalos, “Yahweh Is a Moral Monster,” The End Of Christianity, 226–27.

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