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Posts Tagged ‘Indeterminismo’

Autor: Karl Popper

Fonte: Textos Escolhidos, David Miller, org. (Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2010), págs. 207-216.

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Se consideramos que uma teoria é uma proposta para solucionar um conjunto de problemas, então ela logo se presta ao debate crítico – mesmo que seja não empírica e irrefutável. Podemos fazer perguntas como: ela resolve o problema? Resolve-o melhor do que outras teorias? Será que apenas deslocou o problema? A solução é simples? É fecunda? Contradiz, talvez, outras teorias filosóficas necessárias para resolver outros problemas?

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Para evitar desde o início o risco de nos perdermos em generalidades, talvez seja melhor explicar de uma vez, com o auxílio de cinco exemplos, o que pretendo dizer com teoria filosófica ou metafísica.

Um exemplo típico é a doutrina kantiana do determinismo no mundo da experiência. Embora, no fundo, Kant fosse indeterminista, ele escreveu na Crítica da Razão Prática[1] que o conhecimento pleno de nossas condições psicológicas e fisiológicas e do ambiente tornaria possível prever nosso comportamento futuro com a mesma certeza com que sabemos prever um eclipse solar ou lunar.

Em termos mais gerais, poderíamos formular da seguinte maneira a doutrina determinista [ver também o texto 20, Indeterminismo e Liberdade Humana (1965) seção II, infra]:

O futuro do mundo empírico (ou fenomênico) é completamente predeterminado por seu estado atual, até os menores detalhes.

Outra teoria filosófica é o idealismo, a exemplo de Berkeley ou de Schopenhauer; talvez possamos expressa-lo aqui com a seguinte tese: “o mundo empírico é minha ideia” ou “o mundo é meu sonho”. [Ver também texto 17, Realismo (1970)  adiante.]

Uma terceira teoria filosófica, hoje importantíssima, é o irracionalismo epistemológico, que poderíamos explicar assim:

Como sabemos, desde Kant, que a razão humana é incapaz de apreender ou conhecer o mundo das coisas em si, devemos perder a esperança de conhecê-lo ou então tentar conhece-lo de outro modo que não seja a razão; já que não podemos nem queremos abrir mão dessa esperança, resta-nos usar meios irracionais ou suprarracionais como o instinto, a inspiração poética, os estados de espírito ou as emoções.

Segundo os irracionalistas, isso é possível porque, em última análise, nós mesmos somos coisas em si; por isso, se de algum modo conseguirmos obter conhecimento íntimo e imediato sobre nós mesmos, descobriremos como são as coisas em si.

Esse argumento simples do irracionalismo é característico da maioria dos filósofos pós-kantianos do século 19, a exemplo do engenhoso Schopenhauer. Ele descobriu que, como nós, coisas em si, somos vontade, a vontade deve ser a coisa em si. O mundo como coisa em si é vontade; como fenômeno é ideia. Estranhamente, essa filosofia obsoleta, vestida com nova roupagem, tornou-se de novo a última moda, embora – ou talvez porque – sua notável semelhança com as velhas ideias pós-kantianas tenha permanecido oculta (tanto quanto algo pode permanecer oculto sob a nova roupa do imperador). A filosofia de Schopenhauer passou a ser sugerida numa linguagem obscura e impressionante. Sua reveladora intuição de que, em última análise, o homem como coisa em si é vontade deu lugar à reveladora intuição de que o homem pode entediar-se tão completamente que esse tédio prova que a coisa em si é nada – é o Nada, o Vazio em si. Não quero negar alguma originalidade a essa variante existencialista da doutrina de Schopenhauer: sua originalidade aparece no fato de que esse filósofo nunca desvalorizou a tal sua própria capacidade de se entreter. O que ele descobriu em si foram vontade, atividade, tensão e emoção – mais ou menos o inverso do que descobriram alguns existencialistas: o tédio extremo do entediante em si entediado de si mesmo. Porém, Schopenhauer já não está em voga: a grande moda da nossa época pós-kantiana e pós-racionalista é o que Nietzsche (“assombrado por pressentimentos e suspeitas sobre seus seguidores”) chamou, com acerto, de “niilismo europeu”.[2]

Tudo isso é digressão. Temos agora, diante de nós, uma lista de cinco teorias filosóficas.

Primeira, o determinismo: o futuro está contido no presente, é plenamente determinado pelo presente.

Segunda, o idealismo: o mundo é meu sonho.

Terceira, o irracionalismo: temos experiências irracionais ou suprarracionais em que nos experimentamos como coisas em si; portanto, temos uma espécie de conhecimento das coisas em si.

Quarta, o voluntarismo: em nossas volições, conhecemos a nós mesmos como vontade; a coisa em si é vontade.

Quinta, o niilismo: em nosso tédio, conhecemos a nós mesmos como nada; a coisa em si é o nada.

Nossa lista terminou. Escolhi os exemplos de um modo que, após exame criterioso, posso dizer que cada uma dessas cinco teorias é falsa. Deixem-me enuncia-lo com mais exatidão: sou, em primeiro lugar, indeterminista, em segundo, realista, em terceiro, racionalista. No que concerne a meu quarto e quinto exemplos, admito de bom grado – com Kant e outros racionalistas críticos – que não podemos alcançar nada que se assemelhe a um conhecimento completo do mundo real, infinitamente rico e belo. Nem a física nem qualquer outra ciência pode nos ajudar nessa meta. Mas estou certo de que a fórmula voluntarista “o mundo é vontade” também não pode nos ajudar. Quanto aos niilistas e existencialistas que se entediam (e talvez entediem os outros), só posso ter piedade deles. Devem ser cegos e surdos, coitados, pois falam do mundo como um cego falaria das cores de um Perugino ou um surdo, da música de Mozart.

Por que fiz questão de selecionar teorias filosóficas que creio serem falsas? Porque, dessa maneira, espero enunciar com mais clareza o problema contido no seguinte enunciado, que é importante:

Embora eu considere falsa cada uma dessas cinco teorias, estou convencido de que todas são irrefutáveis.

Quem ouve essa afirmação pode indagar como uma teoria pode ser, ao mesmo tempo, falsa e irrefutável. Como um racionalista, como eu, pode dizer que uma teoria é falsa e irrefutável? Na condição de racionalista, não sou obrigado a refutar uma teoria depois de afirmar que ela é falsa? Inversamente, não sou obrigado a admitir que uma teoria irrefutável é verdadeira?

Com essas perguntas, finalmente cheguei ao nosso problema.

A última pergunta pode ser respondida de maneira bem simples. Houve pensadores que acreditaram que a verdade de uma teoria podia ser deduzida de sua irrefutabilidade. É um erro flagrante. É possível haver duas teorias incompatíveis mas igualmente irrefutáveis – por exemplo, o determinismo e seu oposto, o indeterminismo. Como duas teorias incompatíveis não podem ser, ambas, verdadeiras, percebemos, pelo fato de ambas serem irrefutáveis, que a irrefutabilidade não implica verdade.

É inadmissível inferir a verdade de uma teoria a partir de sua irrefutabilidade, independentemente da maneira como interpretemos irrefutabilidade. Usa-se essa palavra em dois sentidos.

O primeiro é puramente lógico: podemos usar “irrefutável” no sentido de “irrefutável por meios puramente lógicos”. Mas isso significa o mesmo que “coerente”. Ora, é óbvio que uma teoria não pode ser considerada verdadeira por ser coerente.

O segundo sentido de “irrefutável” refere-se a refutações que usam não apenas suposições lógicas (ou analíticas), mas também suposições empíricas (ou sintéticas); em outras palavras, aqui se admitem refutações empíricas. Neste segundo sentido, “irrefutável” significa o mesmo que “não empiricamente refutável” ou, em termos mais exatos, “compatível com qualquer enunciado empírico possível” ou “compatível com qualquer experiência possível”.

Ora, as irrefutabilidades lógica e empírica de um enunciado ou de uma teoria podem ser facilmente compatíveis com a falsidade delas. No caso da irrefutabilidade lógica, isso se evidencia pelo fato de que qualquer enunciado empírico e sua negação devem ser logicamente irrefutáveis. Por exemplo, os enunciados “hoje é segunda-feira” e “hoje não é segunda-feira” são logicamente irrefutáveis. Logo, existem enunciados falsos que são logicamente irrefutáveis.

A situação é um pouco diferente quando tratamos da irrefutabilidade empírica. Os exemplos mais simples de enunciados empiricamente irrefutáveis são os chamados enunciados existenciais estritos ou puros. Eis um exemplo: “Existe uma pérola que é dez vezes maior do que a segunda maior pérola”. Se restringirmos a palavra “existe” a uma região finita do espaço e do tempo, esse enunciado poderá tornar-se refutável. Por exemplo, o seguinte enunciado é obviamente passível de refutação empírica: “Neste momento e nesta caixa existem pelo menos duas pérolas, uma das quais é dez vezes maior do que a segunda maior pérola da caixa.” Mas tal enunciado já deixou de ser um enunciado existencial estrito ou puro: trata-se, antes, de um enunciado existencial restrito. O enunciado existencial estrito ou puro aplica-se ao universo inteiro. Ele é irrefutável simplesmente porque nenhum método pode refuta-lo. Mesmo que pudéssemos vasculhar o universo inteiro, o enunciado existencial estrito ou pruo não seria refutado se não encontrássemos a pérola procurada: ela poderia estar escondida num lugar que não houvéssemos examinado.

Eis alguns exemplos de enunciados existenciais empiricamente irrefutáveis que apresentam maior interesse:

“Existe um tratamento completamente eficaz para o câncer ou, mais precisamente, existe um composto químico que pode ser tomado sem efeitos nocivos e que cura o câncer.” Tal enunciado não diz que tal composto químico já é conhecido, nem que ele será descoberto em determinado prazo.

Exemplos similares são: “existe cura para qualquer doença infecciosa” e “existe uma fórmula em latim que, se pronunciada de maneira ritualmente correta, cura todas as doenças”.

Temos aí um enunciado empiricamente irrefutável que poucos de nós consideraríamos verdadeiro. Ele é irrefutável porque é impossível experimentar todas as fórmulas concebíveis em latim, combinadas com todas as maneiras concebíveis de pronuncia-las. Portanto, sempre resta a possibilidade lógica de que exista, afinal, uma fórmula mágica em latim com o poder de curar todas as doenças.

Mesmo assim temos razões para crer que esse enunciado existencial irrefutável é falso. Não podemos provar sua falsidade, mas tudo o que sabemos sobre doenças depõe contra sua veracidade. Em outras palavras: embora não possamos estabelecer sua falsidade, a conjectura de que tal fórmula mágica em latim não existe é muito mais razoável do que a conjectura de que ela existe.

Ao longo de quase 2 mil anos, homens cultos acreditaram na veracidade de um enunciado existencial muito semelhante a esse, e por isso persistiram na busca da pedra filosofal. O fato de não a terem encontrado não prova nada: as proposições existenciais são irrefutáveis.

Portanto, a irrefutabilidade lógica ou empírica de uma teoria não é razão suficiente para considera-la verdadeira. Tenho o direito de acreditar que aquelas cinco teorias filosóficas são irrefutáveis e falsas.

Cerca de vinte anos atrás propus distinguir teorias empíricas ou científicas e as não empíricas ou não científicas, justamente definindo as empíricas como refutáveis e as não empíricas como irrefutáveis. Eis as minhas razões para essa proposta. Qualquer teste sério de uma teoria é uma tentativa de refuta-la. Logo, a testabilidade é idêntica a refutabilidade ou falseabilidade. Como só devemos chamar de “empíricas” ou “científicas” as teorias que podemos submeter a testes empíricos, podemos concluir que a possibilidade de refutação empírica é o que distingue as teorias empíricas ou científicas. [Ver texto 8, O Problema da Demarcação (1974), supra.]

Quando esse “critério de refutabilidade” é aceito, logo percebemos que teorias filosóficas ou metafísicas são irrefutáveis por definição.

Agora, minha afirmação de que nossas cinco teorias filosóficas são irrefutáveis talvez pareça quase trivial. Por isso, embora eu seja racionalista, não sou obrigado a refutar essas teorias para ter o direito de considerá-las falsas. Isso nos traz ao centro doproblema:

Se todas as teorias filosóficas são irrefutáveis, como é possível distinguir entre teorias verdadeiras e falsas?

Eis o sério problema que emerge da irrefutabilidade das teorias filosóficas.

Para enunciar o problema com mais clareza, vou reformula-lo da seguinte maneira:

Podemos distinguir aqui três tipos de teoria.

Primeiro, teorias lógicas e matemáticas.

Segundo, teorias empíricas e científicas.

Terceiro, teorias filosóficas ou metafísicas.

Como é possível, em cada um desses grupos, distinguir teorias verdadeiras e falsas?

Com respeito ao primeiro grupo, a resposta é óbvia. Sempre que encontramos uma teoria matemática que não sabemos se é falsa ou verdadeira, nós a testamos, primeiro superficialmente, depois com mais rigor, tentando refuta-la. Quando não logramos êxito, tentamos prova-la ou refutar sua negação. Se falhamos de novo, é possível que tornem a surgir dúvidas sobre a veracidade da teoria. Voltamos a tentar refuta-la e assim sucessivamente, até que chegamos a uma decisão ou deixamos o problema em suspenso por considera-lo difícil demais.

Essa situação também pode ser descrita da seguinte maneira. Nossa tarefa é a testagem, o exame crítico de duas ou mais teorias rivais. Nós a executamos procurando refuta-las, até chegarmos a uma decisão. Na matemática, e somente nela, tais decisões costumam ser definitivas: são raras as provas inválidas que escapam à detecção.

Nas ciências empíricas, em geral seguimos fundamentalmente o mesmo procedimento. Também nelas testamos nossas teorias: as examinamos criticamente e tentamos refuta-las. A única diferença importante é que, agora, nosso exame crítico também pode usar argumentos empíricos. Tais argumentos, porém, exigem outras considerações críticas. O pensamento crítico continua a ser o principal instrumento. Só usamos observações quando elas se encaixam em nosso debate crítico.

Se aplicarmos tais considerações às teorias filosóficas, nosso problema pode ser reformulado da seguinte maneira:

Será possível examinar criticamente teorias filosóficas irrefutáveis? Em caso afirmativo, em que pode consistir o debate crítico de uma teoria, se não em tentativas de refuta-la? Que argumentos razoáveis podemos apresentar a favor e contra uma teoria que sabemos não ser demonstrável nem refutável?

Para ilustrar com exemplos essas diversas formulações de nosso problema, retornemos ao problema do determinismo. Kant sabia que somos incapazes de prever atos futuros de um ser humano com a exatidão com que sabemos prever um eclipse. Explicou essa diferença com a suposição de que sabemos muito menos sobre as condições atuais do homem – seus desejos e medos, seus sentimentos e motivações – do que sobre o estado atual do sistema solar. Essa suposição contém, implicitamente, a seguinte hipótese:

“Existe uma descrição verdadeira do estado atual deste homem que (juntamente com leis naturais verdadeiras) poderia permitir a previsão de seus atos futuros.”

Mais uma vez, é claro, trata-se de um enunciado puramente existencial e, por conseguinte, irrefutável. Mesmo assim, será que podemos debater de maneira racional e crítica o argumento de Kant?

Como segundo exemplo, podemos considerar a tese de que “o mundo é meu sonho”. Embora se trate de uma tese claramente irrefutável, poucos acreditarão que seja verdadeira. Podemos debate-la de modo racional e crítico? Não será sua irrefutabilidade um obstáculo instransponível para qualquer debate crítico?

Talvez se pense que o debate crítico da doutrina kantiana do determinismo possa começar da seguinte maneira: “Meu prezado Kant, não basta afirmar que existe uma descrição verdadeira suficientemente detalhada para nos habilitar a prever o futuro. Você precisa nos dizer exatamente em que consistiria essa descrição, para que possamos testar sua teoria empiricamente.” Esse discurso, contudo, equivale a supor que as teorias filosóficas – isto é, irrefutáveis – não podem ser debatidas e que um pensador responsável está fadado a substituí-las por teorias empiricamente testáveis, a fim de possibilitar um debate racional.

Espero que nosso problema tenha ficado suficientemente claro. Passarei a propor uma solução.

Minha solução é esta: se uma teoria filosófica fosse uma afirmação isolada sobre o mundo, lançada sobre cada um de nós, implicitamente, com um “pegar” ou “largar”, sem ligação com mais nada, seria impossível debatê-la. Porém, o mesmo se pode dizer de uma teoria empírica. Se alguém nos presenteasse as equações de Newton, ou mesmo suas teses, sem primeiro nos explicar quais eram os problemas que essa teoria pretende resolver, não seríamos capazes de debater racionalmente a sua veracidade – não mais do que a veracidade do livro do Apocalipse. Sem nenhum conhecimento dos resultados de Galileu e de Kepler, dos problemas que eles resolveram e do problema de Newton – explicar as soluções de Galileu e de Kepler por meio de uma teoria unificada –, consideraríamos impossível debater a teoria newtoniana, tanto quanto qualquer teoria metafísica. Em outras palavras, toda teoria racional, seja científica ou filosófica, é racional à medida que tenta solucionar determinados problemas. Uma teoria só é abrangente e sensata quando relacionada a uma dada situação problemática e só pode ser racionalmente debatida mediante o debate dessa relação.

Ora, se consideramos que uma teoria é uma proposta para solucionar um conjunto de problemas, então ela logo se presta ao debate crítico – mesmo que seja não empírica e irrefutável. Podemos fazer perguntas como: ela resolve o problema? Resolve-o melhor do que outras teorias? Será que apenas deslocou o problema? A solução é simples? É fecunda? Contradiz, talvez, outras teorias filosóficas necessárias para resolver outros problemas?

Perguntas assim mostram que o debate crítico de teorias irrefutáveis pode revelar-se viável.

Mais uma vez, permitam-me dar um exemplo: o idealismo de Berkeley ou Hume (que substituí pela fórmula simplificada “o mundo é meu sonho”). Esses autores não desejavam defender uma teoria tão extravagante, o que se percebe pela insistência reiterada de Berkeley em que suas teorias estavam de acordo com o sólido senso comum.[3] Pois bem: se tentarmos compreender a situação problemática que os induziu a propor essa teoria, veremos que Berkeley e Hume acreditavam que todo conhecimento humano é redutível a impressões sensoriais e a associações entre imagens mnêmicas. Essa suposição levou os dois filósofos a adotarem o idealismo a contragosto, particularmente no caso de Hume. Este só se tornou idealista por ter fracassado na tentativa de reduzir o realismo a impressões sensoriais.

É perfeitamente sensato criticar o idealismo de Hume, assinalando que sua teoria sensorial do conhecimento e da aprendizagem era insatisfatória. Teorias menos insatisfatórias da aprendizagem não tem consequências idealistas indesejáveis.

De modo semelhante, agora podemos debater de maneira racional e crítica o determinismo kantiano. A intenção fundamental de Kant era indeterminista: embora acreditasse que o determinismo do mundo fenomênico fosse uma consequência inevitável da teoria de Newton, ele nunca duvidou que o ser humano, como ser moral, era indeterminado. Kant jamais conseguiu solucionar o conflito entre sua filosofia teórica e sua filosofia prática de um modo que o satisfizesse completamente, e perdeu a esperança de um dia encontrar uma solução real.

No contexto dessa situação problemática torna-se possível criticar o determinismo de Kant. Podemos indagar, por exemplo, se a teoria newtoniana resulta, de fato, nesse determinismo. Conjecturemos por um momento que não. [Ver texto 20, Indeterminismo e Liberdade Humana (1965), seção III, adiante.] Não duvido que uma demonstração clara da veracidade dessa conjectura convencesse Kant a renunciar à sua doutrina do determinismo – apesar de essa doutrina ser irrefutável (ele não seria logicamente obrigado a abandona-la).

Ocorre algo semelhante com o irracionalismo. Ele entrou na filosofia racional, pela primeira vez, com Hume. Quem leu Hume, aquele analista calmo, sabe que não era isso que ele pretendia. O irracionalismo foi a consequência não intencional da convicção humiana de que realmente aprendemos por indução baconiana, aliada à demonstração lógica humiana de que é impossível justificar racionalmente a indução. “Pior para a justificação racional” – eis a conclusão de Hume, diante dessa situação. Ele aceitou tal conclusão irracional com a integridade característica do verdadeiro racionalista, que não recua de uma conclusão desagradável quando lhe parece impossível evitá-la.

Nesse caso, porém, ela não era inevitável, mesmo que assim parecesse a Hume. Ao contrário do que ele acreditava, não somos máquinas baconianas de indução. No processo de aprendizagem, o hábito ou costume não desempenha o papel que Hume lhe atribuiu. Assim, o problema humiano se desfaz e, com ele, sua conclusão irracionalista.

A situação do irracionalismo pós-kantiano é um pouco parecida. Schopenhauer, em particular, opôs-se sinceramente ao irracionalismo. Escreveu com um único desejo: ser compreendido. Escreveu de maneira mais lúcida que qualquer outro filósofo alemão. Seu empenho em se fazer compreender transformou-o num dos grandes mestres da língua alemã.

Mas os problemas de Schopenhauer eram os da metafísica de Kant – o problema do determinismo no mundo fenomênico, o problema da coisa em si e o problema de estarmos em um mundo de coisas em si. Ele solucionou esses problemas – que transcendem qualquer experiência possível – à sua maneira, tipicamente racional. Mas era fatal que a solução fosse irracional. Schopenhauer era kantiano e, como tal, acreditava nos limites kantianos da razão: acreditava que os limites da razão humana coincidiam com os limites da experiência possível.

Também aí há outras soluções possíveis. Os problemas de Kant podem e devem ser revistos, e a direção que essa revisão deve tomar é indicada por sua ideia fundamental de racionalismo crítico ou autocrítico.

A descoberta de um problema filosófico pode ser algo definitivo, feito de uma vez por todas. Mas sua solução nunca é definitiva. Não pode basear-se numa demonstração final ou numa refutação final, uma decorrência da irrefutabilidade das teorias filosóficas. A solução tampouco pode basear-se nas fórmulas mágicas dos profetas filosóficos inspirados (ou entediados). Mas pode basear-se no exame consciencioso e crítico de uma situação problemática e das suposições subjacentes a ela, bem como das várias maneiras possíveis de resolvê-la.

Notas.

1. Ver I. Kant, Crítica da Razão Prática, trad., introdução e notas de Valério Rohden, São Paulo: Martins Fontes, 2002.

2. Ver Julius Kraft, Von Husserl zu Heidegger, 2ª ed., 1957, págs. 103s, 136s e, em especial, pág. 130, onde Kraft escreve: “Assim, é difícil compreender como o existencialismo pode ter sido considerado algo novo na filosofia, do ponto de vista epistemológico.” Ver também o instigante artigo de H. Tint, Heidegger and the ‘Irrational'”, Proceedings of the Aristotelian Society LVII, 1956-1957, pág. 253-268.

3. Isso também pode ser visto pela franca admissão de Hume de que, “seja qual for a opinião do leitor neste momento, […] daqui a uma hora estará convencido de que tanto existe um mundo externo quanto um mundo interno”, ver D. Hume, A Treatise of Human Nature, Livro I, Parte IV, Seção II; edição de L. Selby-Bigge, pág. 218. [Para um comentário, ver a nota 4 do texto 7, O Problema da Indução (1953, 1974), supra.]

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por Sam Harris

Afirma-se com frequencia que nossa experiência do livre-arbítrio apresenta um mistério fascinante: por um lado, não podemos compreende-lo em termos científicos; por outro, sentimos que somos os autores de nossos próprios pensamentos e ações. Contudo, penso que este mistério é em si um sintoma de nossa confusão. Não é que o livre-arbítrio seja uma mera ilusão – nossa experiência não está meramente entregando uma visão distorcida da realidade. Antes, estamos equivocados sobre nossa experiência. Não somente não somos tão livres quanto pensamos que somos – não nos sentimos tão livres quanto pensamos que sentimos. Nossa sensação de nossa própria liberdade resulta de não prestarmos a devida atenção a como é ser como nós. No momento em que prestamos atenção, é possível ver que o livre-arbítrio não pode ser encontrado em nenhum lugar, e nossa experiência é perfeitamente compatível com esta verdade. Pensamentos e intenções simplesmente surgem na mente. O que mais eles poderiam fazer? A verdade sobre nós é mais estranha do que muitos imaginam: A ilusão do livre-arbítrio é em si uma ilusão.

O problema não é apenas que o livre-arbítrio não faz nenhum sentido objetivamente (isto é, quando nossos pensamentos e ações são vistos de uma perspectiva de terceira pessoa); ele também não faz sentido subjetivamente. É perfeitamente possível observar isto pela introspecção. Com efeito, realizarei agora um experimento sobre com o livre-arbítrio para que todos vejam: escreverei qualquer coisa que eu quiser no restante deste livro. Seja lá o que for que eu escrever será, é claro, alguma coisa que eu escolhi escrever. Ninguém está me obrigando a fazer isto. Ninguém me delegou um tópico específico ou exigiu que eu utilize palavras específicas. Posso violar as regras da gramática se for do meu agrado. E se eu quiser colocar um coelho nesta frase, eu sou livre para faze-lo.

Mas prestar atenção a meu fluxo de consciência revela que esta noção de liberdade não alcança muito fundo. De onde este coelho veio? Por que eu não coloquei um elefante naquela frase? Eu não sei. É claro que sou livre para mudar “coelho” por “elefante”. Mas se eu fizesse isto, como eu explicaria este ato? É-me impossível conhecer a causa de ambas as escolhas. O ato também é compatível comigo sendo forçado pelas leis da natureza ou carregado pelos ventos do acaso; mas nenhum parece, ou é sentido, como liberdade. Coelho ou elefante: sou livre para decidir que “elefante” é a melhor palavra quando não sinto que é a melhor palavra? Sou livre para mudar de ideia? É claro que não. Isto pode mudar apenas eu.

O que traz minhas deliberações sobre estes temas a um término? Este livro deve terminar uma hora – e agora quero comer algo. Sou livre para resistir a este sentimento? Bem, sim, no sentido de que não estou sob a mira de ninguém me obrigando a comer – mas estou com fome. Posso resistir a este impulso um pouco mais? Sim, é claro – e por um número indeterminado de momentos subsequentes. Mas eu não sei por que faço o esforço nestas circunstâncias e não em outros. E por que meus esforços cessam exatamente quando cessam? Agora sinto que é realmente hora de deixa-los. Estou com fome, sim, mas também me parece que cumpri a tarefa que me propus. Na verdade, não posso pensar em mais nada para dizer sobre o assunto. E onde está a liberdade nisso?

Agradecimentos

Gostaria de agradacer a minha esposa e editora, Annaka Harris, por suas contribuições para o presente livro. Como sempre é o caso, suas intuições e recomendações melhoraram muito o livro. Eu não sei como ela administra a criação de nossa filha, trabalha em seus próprios projetos e ainda tem tempo para editar meus livros – mas ela o faz. Sou extremamente sortudo e grato por te-la ao meu lado.
Jerry Coyne, Galen Strawson e minha mãe também leram um rascunho prévio do manuscrito e forneceram comentários muito úteis.

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por Sam Harris

Para o bem ou para o mal, dissipar a ilusão do livre-arbítrio terá implicações políticas – porque liberais e conservadores não estão igualmente sujeitas a ela. Os liberais são mais propensos a entender que uma pessoa pode ser sortuda ou azarada em todos os aspectos relevantes para seu sucesso. Os conservadores, por sua vez, muitas vezes transformam o individualismo num fetiche religioso. Vários podem não ter absolutamente nenhuma consciência do quão sortudo alguém precisa ser para ter sucesso em qualquer área da vida, não importa o quão arduamente essa pessoa trabalhe. Deve-se ter a sorte de ser capaz de trabalhar. Deve-se ter a sorte de ser inteligente, fisicamente saudável e não ir à falência por volta dos quarenta anos devido à doença de um cônjuge.

Considere a biografia de qualquer homem “que fez a si mesmo”, e você descobrirá que seu sucesso dependeu completamente de condições de fundo que ele não criou e das quais ele foi meramente um beneficiário. Não há uma única pessoa no planeta que escolha seu genoma, ou o país de seu nascimento, ou as condições políticas e econômicas em vigor nos momentos decisivos para seu progresso. E no entanto, vivendo na América, tem-se a distinta sensação de que se se perguntasse a certos conservadores por que eles não nasceram com os pés tortos ou foram abandonados num orfanato antes de completar cinco anos de idade, eles não hesitariam em assumir o crédito por estas “realizações”.

Mesmo se você tiver batalhado para tirar o máximo daquilo com que foi agraciado pela natureza, você ainda precisa reconhecer que sua capacidade e propensão para batalhar é parte de sua herança. Quanto crédito uma pessoa merece por não ser preguiçosa? Absolutamente nenhum. A preguiça, como a diligência, é uma condição neurológica. Naturalmente, os conservadores estão certos em pensar que devemos encorajar as pessoas a trabalhar no limite de suas habilidades e desencorajar os malandros e vadios sempre que pudermos. E é sábio considerar as pessoas responsáveis por suas ações quando proceder assim influencia seu comportamento e traz benefícios para a sociedade. Mas isto não significa que devemos nos deixar levar pela ilusão do livre-arbítrio. Precisamos apenas reconhecer que os esforços importam e que as pessoas podem mudar. Não mudamos a nós próprios, exatamente – porque temos apenas a nós próprios com os quais fazer a mudança – mas influenciamos e somos continuamente influenciados pelo mundo que nos rodeia e por nosso universo interior. Pode parecer paradoxal considerar as pessoas responsáveis pelo que acontece em seu canto do universo, mas uma vez que quebramos o encanto do livre-arbítrio, podemos fazer isto exatamente num grau que nos é útil. Naquilo que as pessoas podem mudar, podemos exigir que elas o façam. Naquilo em que a mudança é impossível, ou insensível às exigências, podemos traçar outro curso de ação. Ao nos aprimorarmos e à sociedade, trabalhamos diretamente com as forças da natureza, pois não há nada com o que trabalhar além da própria natureza.

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por Sam Harris

Muitas pessoas temem que o livre-arbítrio seja uma ilusão necessária – e que sem ele fracassaremos em viver existências criativas e satisfatórias. Esta preocupação não é completamente injustificada. Um estudo revelou que a leitura de um argumento contra a existência do livre-arbítrio tornou os participantes mais prováveis de trapacearem num exame subsequente.[19] Outra descoberta foi que tais participantes tornaram-se menos solícitos e mais agressivos.[20] Certamente é concebível que conhecer (ou enfatizar) certas verdades sobre a mente humana poderia ter consequências psicológicas e/ou culturais desastrosas. Entretanto, eu não estou especialmente precoupado com a degradação da moralidade de meus leitores ao publicar este livro.

Falando por experiência própria, penso que a perda da sensação de livre-arbítrio apenas aprimorou minha ética – aumentando meus sentimentos de compaixão e perdão, e diminuindo minha sensação de mérito próprio pelos frutos de minha própria boa sorte. Tal estado mental é sempre desejável? Provavelmente não. Se eu estivesse dando aulas de defesa pessoal para mulheres, eu consideraria bastante contraproducente enfatizar que todo comportamento humano, incluindo a reação de uma mulher a uma agressão física, é determinado por um estado anterior do universo, e que todos os estupradores são, no fundo, desafortunados – sendo eles próprios vítimas de causas anteriores que não criaram. Há verdades científicas, éticas e práticas apropriadas para cada ocasião – e um injunção como “Apenas acerte os olhos do filho da puta!” certamente tem seu lugar. Não há nenhuma contradição aqui. Nosoos interesses na vida nem sempre são servidos vendo pessoas e coisas como coleções de átomos – mas isto não nega a verdade ou a utilidade da física.

Perder a crença no livre-arbítrio não me tornou um fatalista – na verdade, isso aumentou meu sentimento de liberdade. Meus medos, esperanças e neuroses parecem menos pessoais e permanentes. Não há como dizer o quanto posso mudar no futuro. Da mesma maneira que não se poderia extrair uma conclusão segura e duradoura acerca de si próprio baseado numa indigestão passageira, também não seria necessário faze-lo baseado no modo como alguém tem pensado ou se comportado por grandes intervalos de tempo no passado. Uma mudança criativa dos dados introduzidos no sistema – o aprendizado de novas habilidades, a formação de novas relações, a adoção de novos hábitos de atenção – podem transformar radicalmente a vida de alguém.

Tornar-se consciente das causas de fundo dos pensamentos e sentimentos alheios pode – paradoxalmente – possibilitar um maior controle criativo sobre a própria vida. Uma coisa é discutir com sua esposa porque você está de mau humor; outra é perceber que seu humor e comportamento foram causados por hipoglicemia. Este entendimento revela que você é uma marionete bioquímica, é claro, mas também permite que você assuma o controle de uma de suas cordas: uma porção de alimento pode ser tudo o que sua personalidade precisa. Estarmos ligeiramente atrasados em relação a nossos sentimentos e pensamentos conscientes pode nos permitir conduzir nossas vidas por um caminho mais inteligente (mesmo sabendo, é claro, que em última instância estamos sendo conduzidos).

Notas.

19. K. D. Vohs & J. W. Schooler, 2008. The value of believing in free will: Encouraging a belief in determinism increases cheating. Psychological Science, 19(1): 49–54.

20. R. F. Baumeister, E. J. Masicampo, & C. N. DeWall, 2009. Prosocial benefits of feeling free: Disbelief in free will increases aggression and reduces helpfulness. Personality and Social Psychology Bulletin, 35: 260–268.

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por Sam Harris

Quando consideramos o comportamento humano, a diferença entre a ação voluntária e premeditada e a ação meramente acidental parece imensamente consequencial. Como veremos, esta distinção pode ser preservada – e com ela, nossas mais importantes preocupações morais e legais – ao mesmo tempo em que a ideia de livre-arbítrio é banida de uma vez por todas.

Certos estados de consciência parecem surgir automaticamente, além da esfera de nossas intenções. Outros parecem autogerados, deliberativos e sujeitos à nossa vontade. Quando ouço o som de um cortador de grama entrando por minha janela, ele meramente se impõe sobre minha consciência: eu não o trouxe à existência, e eu não posso interrompe-lo por vontade própria. Posso tentar colocar o som fora de minha mente concentrando-me em alguma outra coisa – no que estou escrevendo, por exemplo, e este ato de direcionar a atenção é sentido de forma diferente de meramente ouvir um som. Eu o estou fazendo. Dentro de certos limites, parece que escolho no que prestar atenção. O som do cortador de gramas é invasivo, mas posso controlar o holofote de minha atenção no momento seguinte e dirigi-lo para outro alvo. Esta diferença entre estados mentais volitivos e não-volitivos é refletida em nível cerebral – pois eles são governados por sistemas diferentes. E a diferença entre ele deve, em parte, produzir a sensação percebida de que há um self consciente dotado da propriedade do livre-arbítrio.

Isto não quer dizer que a consciência e o pensamento deliberativo não possuem nenhuma finalidade. Na verdade, muito de nosso comportamento depende deles. Eu posso inconscientemente mudar de posição, mas eu não posso inconscientemente decidir que a dor em minhas costas justifica uma visita ao fisioterapeuta. Para fazer esta última ação, devo me tornar consciente da dor e ser conscientemente motivado a fazer algo a respeito dela. Talvez seja possível construir um robô inanimado capaz destes estados – mas no nosso caso, certos comportamentos parecem exigir a presença de pensamento consciente. E sabemos que os sistemas cerebrais que nos permitem refletir sobre nossas experiência são diferentes daqueles envolvidos quando reagimos automaticamente a algum estímulo. Neste sentido, portanto, a consciência não é inconsequencial.[14] E não obstante, todo o processo de tomar consciência da dor em minhas costas, pensar sobre ela e buscar um remédio para ela resulta de processos dos quais sou completamente inconsciente. Sou eu, a pessoa consciente, quem cria minha dor? Não. Ela simplesmente aparece. Sou eu quem crio os pensamentos sobre ela que me levam a considerar a fisioterapia? Não. Também eles simplesmente aparecem. Este processo de deliberação consciente, embora diferente dos reflexos inconscientes, não oferece fundamento algum para a liberdade da vontade.

Como Dan Dennett e vários outros ressaltaram, as pessoas geralmente confundem determinismo com fatalismo. Esta confusão leva as pessoas a perguntarem “Se tudo está determinado, por que eu deveria fazer qualquer coisa? Por que não simplesmente ficar sentado de braços cruzados observando o que acontece?”. Isto é pura confusão. Assistir sentado ao que acontece é em si uma decisão que produzirá suas próprias consequências. Também é algo extremamente difícil de fazer: tente ficar deitado na cama o dia inteiro esperando que algo aconteça; você se descobrirá assaltado pelo impulso de se levantar e fazer algo, impulso cuja resistência demandará esforços cada vez mais hercúleos.

E o fato de que nossas escolhas dependem de causas anteriores não significa que elas não têm importância. Se eu tivesse decidido não escrever este livro, ele não se teria escrito por si próprio. Minha preferência por escrevê-lo foi inquestionavelmente a principal causa para que ele viesse a existir. Decisões, intenções, esforços, objetivos, força de vontade, etc. são estados causais do cérebro, que levam a comportamentos específicos, e comportamentos levam a resultados no mundo. A escolha humana, por conseguinte, é tão importante quanto os entusiastas do livre-arbítrio acreditam. Mas a próxima escolha que você fizer surgirá das brumas das causas anteriores por cuja existência você, a testemunha consciente de sua experiência, não é responsável.

Por conseguinte, embora seja verdadeiro dizer que uma pessoa teria agido de forma diferente se ela tivesse escolhido agir de forma diferente, isto não acarreta o tipo de livre-arbítrio que a maioria das pessoas parece acalentar – porque as “escolhas” de uma pessoa meramente aparecem em sua mente como se aparecessem do nada. Da perspectiva de sua consciência, você não é mais responsável pela próxima coisa em que pensar (e por conseguinte fazer) do que é pelo fato de ter nascido neste mundo.

Digamos que sua vida tenha saído dos trilhos. Você costumava ser bastante motivado, inspirado por suas oportunidades e fisicamente em forma, mas agora você é preguiçoso, se desencoraja com facilidade e está acima do peso. Como você chegou a este ponto? Você pode ser capaz de contar uma história sobre como sua vida se arruinou, mas você não pode verdadeiramente prestar contas de como você deixou isto acontecer. E agora você quer escapar desta tendência decadente e mudar a si próprio através de um ato da vontade.

Você começa lendo livros de auto-ajuda. Você muda sua dieta e entra numa academia. Você decide voltar a estudar. Mas depois de seis meses de esforços, você não está mais próximo de viver a vida que gostaria do que estava antes. Os livros não tiveram o menor impacto sobre você; sua dieta e seu treino físico mostraram-se impossíveis de seguir; e você ficou entediado com a escola e a abandonou. Por que você encontrou tantos obstáculos em si mesmo? Você não faz a menor ideia. Você tentou mudar seus hábitos, mas seus hábitos parecem mais fortes do que você. A maioria de nós sabe como é fracassar desta maneira – e estas experiências não sugerem nem remotamente a existência de tal coisa como a liberdade da vontade.

Mas esta manhã você acordou se sentindo mais resoluto do que nunca. Já chega! Agora você tem uma vontade férrea. Antes de sair da cama você teve a brilhante ideia de criar um website – e a descoberta de que o domínio estava disponível por apenas 10 dólares te encheu de confiança. Você agora é um empreendedor! Você compartilha a ideia com diversas pessoas inteligentes, e elas pensam que não há dúvidas de que ela te tornará rico.

O vento está a seu favor, seus barcos estão carregados, e você está pilotando furiosamente. Você descobre que um de seus amigos é amigo íntimo de Tim Ferriss, o famoso preparador físico e guru do fitness. Ferriss oferece-lhe uma consulta para discutirem sobre a dieta e o programa de treino que você adotou. Este encontro revela-se extremamente útil – e logo depois você descobre em si mesmo uma reserva de disciplina que você não sabia que possuía. AO longo dos quatro meses seguintes você substitui 10 quilos de gordura por 10 quilos de músculos. Seu peso continua o mesmo, mas você está completamente transformado. Seus amigos mal podem acreditar no que você alcançou. Até seus desafetos começam a te pedir conselhos.

Você se sente completamente outro acerca de sua vida, e o papel desempenhado pela disciplina, pela escolha e pelo esforço em sua ressurreição não pode ser negado. Mas como você explica sua capacidade de fazer estes esforços hoje e não há um ano? De onde veio a ideia para um website? Ela simplesmente apareceu em sua mente. Foi você, na qualidade de agente consciente que você sente ser, quem a criou? (Se a resposta for afirmativa, por que não criar a próxima bem agora?) Como você explica o efeito que os conselhos de Tim Ferriss tiveram sobre você? Como você explica sua capacidade de reagir a eles?

Se você prestar atenção em sua vida interior, você verá que a emergência de escolhas, esforços e intenções é um processo fundamentalmente misterioso. Sim, você pode decidir entrar numa dieta – e sabemos bastante sobre as variáveis que te tornarão capazes de segui-la à risca – mas você não pode saber por que você finalmente foi capaz de se disciplinar quando todas as suas tentativas anteriores falharam. Você pode ter uma história para contar sobre porque as coisas foram diferentes desta vez, mas ela não seria nada além de uma descrição post hoc de eventos que você não controlou. Sim, você pode fazer o que quiser – mas você não pode explicar o fato de seus desejos serem efetivos num caso e não em outros (e você certamente não pode escolher seus desejos de antemão). Você quis perder peso por quatro anos. Então você realmente o quis. Qual é a diferença? Seja lá qual for, não é uma diferença criada por você.

Você não está no controle de sua mente – porque você, como um agente consciente, é apenas uma parte de sua mente, vivendo à mercê das outras partes.[15] Você  pode fazer o que decide fazer – mas você não pode decidir o que decidirá fazer. Você pode, é claro, criar um cenário no qual certas decisões são mais prováveis do que outras – você pode, por exemplo, eliminar todos os doces de sua casa, tornando muito improvável que você coma sobremesa após o jantar – mas você não pode saber por que você foi capaz de se submeter a tal cenário hoje quando você não o foi ontem.

Assim, não é que a força de vontade não é importante ou que ela esteja destinada a ser sabotada por nossa biologia. A própria força de vontade é um fenômeno biológico. Você pode mudar sua vida, e a si mesmo, através de esforços conscientes e disciplinados – mas você tem exatamente seja lá qual for a capacidade para o esforço e a disciplina que você tem neste momento, e nem um grão a mais (ou a menos). Ou você tem sorte neste aspecto ou você não tem – e você não pode criar sua própria sorte.

Várias pessoas acreditam que a liberdade humana consiste em nossa habilidade para fazer o que, após refletir, acreditamos que deveríamos fazer – o que muitas vezes significa controlar nossos desejos de curto prazo e nos atermos a nossos objetivos de longo prazo ou ao melhor julgamento. Não há dúvida de que essa é uma habilidade que as pessoas possuem, num grau maior ou menor, e que parece faltar a outros animais, mas que não obstante é uma capacidade de nossas mentes que possui raízes inconscientes.

Você não construiu sua mente. E nos momentos em que você parece construí-la – quando você faz um esforço para mudar a si próprio, para adquirir conhecimento ou para aperfeiçoar alguma habilidade ou talento – as únicas ferramentas à sua disposição são aquelas herdadas dos momentos passados.

Escolhas, esforços, intenções e o raciocínio influenciam nosso comportamento – mas eles próprios são parte da cadeia de causas que precedem o conhecimento consciente e sobre os quais não exercemos nenhum controle último. Minhas escolhas são importantes – e há caminhos que favorecem a tomada de decisões mais sábias – mas eu não posso escolher o que escolher. E se alguma vez parece que eu o faço – por exemplo, após oscilar indeciso entre duas alternativas – eu não escolho escolher o que escolho. Há uma regressão aqui que sempre termina em obscuridade. Eu devo dar um primeiro passo, ou um último, por razões que inescapavelmente permanecerão obscuras.[16]

Várias pessoas acreditam que este problema da regressão é um falso problema. Certos compatibilistas insistem que a liberdade da vontade equivale à ideia de que se poderia ter pensado ou agido de forma diferente. Contudo, dizer que eu poderia ter agido de modo diferente não passa de pensar o pensamento “Eu poderia ter agido de outro modo” após fazer seja lá o que for que eu de fato tenha feito. Esta é uma afirmação vazia.[17] Ela confunde esperança pelo futuro com um relato honesto do passado. O que farei em seguida, e por que, permanece, no fundo, um mistério – mistério este completamente determinado pelo estado anterior do universo e pelas leis da natureza (incluindo as contribuições do acaso). Declarar minha “liberdade” equivale a dizer, “Eu não sei por que eu fiz isso, mas é o tipo de coisa que eu costumo fazer, e não me importo de continuar a fazê-lo.”

Uma das ideias mais revigorantes e originais a surgir do existencialismo (talvez a única) é que somos livres para interpretar e reinterpretar o significado de nossas vidas. Você pode considerar seu primeiro casamento, que terminou em divórcio, como um “fracasso”, ou você pode vê-lo como uma circunstância que causou seu amadurecimento de modos que foram decisivos para sua felicidade futura. Esta liberdade de interpretação requer o livre-arbítrio? Não. Ela apenas sugere que diferentes maneiras de pensar sobre as coisas possuem diferentes consequências. Alguns pensamentos são depressivos e debilitantes; outros nos inspiram. Podemos perseguir qualquer linha de pensamento que desejarmos – mas nossa escolha é o produto de eventos anteriores por cuja existência não somos responsáveis.

Reflita por um momento sobre o contexto em que sua próxima decisão ocorrerá: você não escolheu seus pais ou a época e o local em que nasceu. Você não escolheu seu sexo ou a maioria de suas experiências de vida. Você não teve controle algum sobre seu genoma ou sobre o desenvolvimento de seu cérebro. E agora seu cérebro está fazendo escolhas com base em crenças e preferências que lhe foram marteladas ao longo de sua vida – por seus genes, seu desenvolvimento físico desde o momento em que foi concebido, e as interações que você teve com outras pessoas, eventos e ideias. Onde está a liberdade nisto? Sim, você é livre para fazer o que quiser agora mesmo. Mas de onde vêm seus desejos?

Escrevendo para o The New York Times, o filósofo Eddy Nahmias criticou argumentos do tipo que estou apresentando aqui:

Vários filósofos, eu incluso, entendem o livre-arbítrio como um conjunto de habilidades para imaginar futuros cursos de ação, deliberar sobre as razões para escolhe-los, planejar as ações à luz desta deliberação e controlar as ações face aos desejos concorrentes. Agimos por nosso próprio livre-arbítrio na medida em que temos a oportunidade de exercer essas habilidades, sem pressões irracionais internas ou externas. Somos aproximadamente responsáveis por nossas ações na medida em que possuímos estas habilidades e temos oportunidades de exerce-las.[18]

Não há dúvida de que os seres humanos podem imaginar e planejar o futuro, ponderar desejos concorrentes, etc. – e que a perda destas habilidades nos diminuiria vastamente. Pressões internas e externas de vários tipos podem estar presentes ou ausentes enquanto uma pessoa imagina, planeja e age – e tais pressões determinam nossa sensação de que ela é moralmente responsável por seu comportamento. Entretanto, este fenômeno não tem nada a ver com o livre-arbítrio.

Por exemplo, durante o final de minha adolescência e o começo de minha vida adulta fui um estudante dedicado de artes marciais. Pratiquei incessantemente e dei aulas na universidade. Recentemente, comecei a treinar novamente, após um intervalo de mais de 20 anos. Tanto a interrupção quanto a retomada de meu interesse por artes marciais parece ser a pura expressão da liberdade que Nahmias me atribui. Não estive sob nenhuma “pressão irracional interna ou externa”. Fiz exatamente o que quis fazer. Eu quis parar de treinar, e parei. Eu quis começar novamente, e atualmente treino várias vezes por semana. Tudo isto foi associado a pensamentos conscientes e atos de autocontrole aparente.

Contudo, quando procuro pela causa psicológica de meu comportamento, descubro que ela é completamente misteriosa. Por que parei de treinar 20 anos atrás? Bem, certas coisas se tornaram mais importantes para mim. Mas por que elas se tornaram mais importantes para mim – e por que exatamente naquelas circunstâncias e naquele grau? E por que meu interesse em artes marciais repentinamente ressurgiu após décadas hibernando? Posso ponderar conscientemente os efeitos de certas influências – por exemplo, li recentemente o excelente livro de Rory Miller Meditations on violence. Mas por que eu li este livro? Não faço a mínima ideia. E por que eu o achei convincente? E por que ele foi suficiente para me levar a agir (se, efetivamente, ele foi a causa imediata de meu comportamento)? E por que tanta ação? Agora pratico duas artes marciais e também treino com Miller e outros especialistas em defesa pessoal. Que diabos está acontecendo aqui? Eu posso, é claro, contar uma história sobre porque estou fazendo o que faço – que seria equivalente a dizer-lhes porque eu penso que tanto treinamento é uma boa ideia, porque eu o aprecio, etc. – mas a explicação real para meu comportamento está oculta de mim mesmo. E é perfeitamente óbvio que eu, como testemunha consciente de minha experiência, não sou sua causa profunda.

Após ler os parágrafos anteriores, alguns de você pensarão, “esse livro de Miller parece interessante!” e o comprarão. Alguns não pensarão tal coisa. Dentre os que comprarem o livro, alguns o acharão extremamente útil. A outros sua mensagem pode passar despercebida ao término da leitura. Outros o colocarão na estante e se esquecerão de lê-lo. Onde está a liberdade em qualquer destas possibilidades? Você, como o agente consciente que lê estas palavras, não está em posição de determinar a qual grupo pertence. E se você decidir mudar de grupo – “Eu não ia comprar o livro, mas agora vou, só para te contrariar!” – você também não pode prestar contas desta decisão. Você fará seja lá o que for que fizer, e não faz sentido afirmar que você poderia ter agido de outra forma.

Notas.

14. Para uma discussão recente do papel da consciência na psicologia humana, veja R. F. Baumeister, E. J. Masicampo, & K. D. Vohs, 2011. Do conscious thoughts cause behavior? Annual Review of Psychology, 62: 331–361.

15. Mais uma vez, como Galen Strawson ressalta (comunicação pessoal), mesmo se admitirmos que você é a totalidade de sua mente (consciente e inconsciente), em última instância, você ainda não pode ser responsabilizado por seu caráter.

16. Einstein (acompanhando Schopenhauer) certa vez defendeu o mesmo ponto:

Honestamente, eu não consigo compreender o que as pessoas querem dizer quando falam sobre a liberdade da vontade humana. Eu tenho um sentimento, por exemplo, de que eu quero alguma coisa ou outra, mas que relação isto tem com a liberdade eu definitivamente não posso entender. Sinto que quero acender meu cachimbo e o acendo; mas como posso conectar isto com a ideia de liberdade? O que está por trás do ato de querer acender um cachimbo? Outro ato da vontade? Schopenhauer disse certa vez: Der Mensch kann was er will; er kann aber nicht wollen was er will (O homem pode fazer o que ele quer mas não pode querer o que ele quer). (M. Planck, 1932. Where is science going? New York: W. W. Norton & Company, p. 201.)

17. Jerry Coyne aponta (comunicação pessoal), esta noção de liberdade contrafactual também não é cientificamente testável. Que evidências poderiam ser apresentadas para mostrar que alguém poderia ter agido de forma diferente no passado?

18. http://opinionator.blogs.nytimes.com/2011/11/13/is-neuroscience-the-death-of-free-will/.

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