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Posts Tagged ‘Niilismo’

Autor: Karl Popper

Fonte: Textos Escolhidos, David Miller, org. (Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2010), págs. 207-216.

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Se consideramos que uma teoria é uma proposta para solucionar um conjunto de problemas, então ela logo se presta ao debate crítico – mesmo que seja não empírica e irrefutável. Podemos fazer perguntas como: ela resolve o problema? Resolve-o melhor do que outras teorias? Será que apenas deslocou o problema? A solução é simples? É fecunda? Contradiz, talvez, outras teorias filosóficas necessárias para resolver outros problemas?

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Para evitar desde o início o risco de nos perdermos em generalidades, talvez seja melhor explicar de uma vez, com o auxílio de cinco exemplos, o que pretendo dizer com teoria filosófica ou metafísica.

Um exemplo típico é a doutrina kantiana do determinismo no mundo da experiência. Embora, no fundo, Kant fosse indeterminista, ele escreveu na Crítica da Razão Prática[1] que o conhecimento pleno de nossas condições psicológicas e fisiológicas e do ambiente tornaria possível prever nosso comportamento futuro com a mesma certeza com que sabemos prever um eclipse solar ou lunar.

Em termos mais gerais, poderíamos formular da seguinte maneira a doutrina determinista [ver também o texto 20, Indeterminismo e Liberdade Humana (1965) seção II, infra]:

O futuro do mundo empírico (ou fenomênico) é completamente predeterminado por seu estado atual, até os menores detalhes.

Outra teoria filosófica é o idealismo, a exemplo de Berkeley ou de Schopenhauer; talvez possamos expressa-lo aqui com a seguinte tese: “o mundo empírico é minha ideia” ou “o mundo é meu sonho”. [Ver também texto 17, Realismo (1970)  adiante.]

Uma terceira teoria filosófica, hoje importantíssima, é o irracionalismo epistemológico, que poderíamos explicar assim:

Como sabemos, desde Kant, que a razão humana é incapaz de apreender ou conhecer o mundo das coisas em si, devemos perder a esperança de conhecê-lo ou então tentar conhece-lo de outro modo que não seja a razão; já que não podemos nem queremos abrir mão dessa esperança, resta-nos usar meios irracionais ou suprarracionais como o instinto, a inspiração poética, os estados de espírito ou as emoções.

Segundo os irracionalistas, isso é possível porque, em última análise, nós mesmos somos coisas em si; por isso, se de algum modo conseguirmos obter conhecimento íntimo e imediato sobre nós mesmos, descobriremos como são as coisas em si.

Esse argumento simples do irracionalismo é característico da maioria dos filósofos pós-kantianos do século 19, a exemplo do engenhoso Schopenhauer. Ele descobriu que, como nós, coisas em si, somos vontade, a vontade deve ser a coisa em si. O mundo como coisa em si é vontade; como fenômeno é ideia. Estranhamente, essa filosofia obsoleta, vestida com nova roupagem, tornou-se de novo a última moda, embora – ou talvez porque – sua notável semelhança com as velhas ideias pós-kantianas tenha permanecido oculta (tanto quanto algo pode permanecer oculto sob a nova roupa do imperador). A filosofia de Schopenhauer passou a ser sugerida numa linguagem obscura e impressionante. Sua reveladora intuição de que, em última análise, o homem como coisa em si é vontade deu lugar à reveladora intuição de que o homem pode entediar-se tão completamente que esse tédio prova que a coisa em si é nada – é o Nada, o Vazio em si. Não quero negar alguma originalidade a essa variante existencialista da doutrina de Schopenhauer: sua originalidade aparece no fato de que esse filósofo nunca desvalorizou a tal sua própria capacidade de se entreter. O que ele descobriu em si foram vontade, atividade, tensão e emoção – mais ou menos o inverso do que descobriram alguns existencialistas: o tédio extremo do entediante em si entediado de si mesmo. Porém, Schopenhauer já não está em voga: a grande moda da nossa época pós-kantiana e pós-racionalista é o que Nietzsche (“assombrado por pressentimentos e suspeitas sobre seus seguidores”) chamou, com acerto, de “niilismo europeu”.[2]

Tudo isso é digressão. Temos agora, diante de nós, uma lista de cinco teorias filosóficas.

Primeira, o determinismo: o futuro está contido no presente, é plenamente determinado pelo presente.

Segunda, o idealismo: o mundo é meu sonho.

Terceira, o irracionalismo: temos experiências irracionais ou suprarracionais em que nos experimentamos como coisas em si; portanto, temos uma espécie de conhecimento das coisas em si.

Quarta, o voluntarismo: em nossas volições, conhecemos a nós mesmos como vontade; a coisa em si é vontade.

Quinta, o niilismo: em nosso tédio, conhecemos a nós mesmos como nada; a coisa em si é o nada.

Nossa lista terminou. Escolhi os exemplos de um modo que, após exame criterioso, posso dizer que cada uma dessas cinco teorias é falsa. Deixem-me enuncia-lo com mais exatidão: sou, em primeiro lugar, indeterminista, em segundo, realista, em terceiro, racionalista. No que concerne a meu quarto e quinto exemplos, admito de bom grado – com Kant e outros racionalistas críticos – que não podemos alcançar nada que se assemelhe a um conhecimento completo do mundo real, infinitamente rico e belo. Nem a física nem qualquer outra ciência pode nos ajudar nessa meta. Mas estou certo de que a fórmula voluntarista “o mundo é vontade” também não pode nos ajudar. Quanto aos niilistas e existencialistas que se entediam (e talvez entediem os outros), só posso ter piedade deles. Devem ser cegos e surdos, coitados, pois falam do mundo como um cego falaria das cores de um Perugino ou um surdo, da música de Mozart.

Por que fiz questão de selecionar teorias filosóficas que creio serem falsas? Porque, dessa maneira, espero enunciar com mais clareza o problema contido no seguinte enunciado, que é importante:

Embora eu considere falsa cada uma dessas cinco teorias, estou convencido de que todas são irrefutáveis.

Quem ouve essa afirmação pode indagar como uma teoria pode ser, ao mesmo tempo, falsa e irrefutável. Como um racionalista, como eu, pode dizer que uma teoria é falsa e irrefutável? Na condição de racionalista, não sou obrigado a refutar uma teoria depois de afirmar que ela é falsa? Inversamente, não sou obrigado a admitir que uma teoria irrefutável é verdadeira?

Com essas perguntas, finalmente cheguei ao nosso problema.

A última pergunta pode ser respondida de maneira bem simples. Houve pensadores que acreditaram que a verdade de uma teoria podia ser deduzida de sua irrefutabilidade. É um erro flagrante. É possível haver duas teorias incompatíveis mas igualmente irrefutáveis – por exemplo, o determinismo e seu oposto, o indeterminismo. Como duas teorias incompatíveis não podem ser, ambas, verdadeiras, percebemos, pelo fato de ambas serem irrefutáveis, que a irrefutabilidade não implica verdade.

É inadmissível inferir a verdade de uma teoria a partir de sua irrefutabilidade, independentemente da maneira como interpretemos irrefutabilidade. Usa-se essa palavra em dois sentidos.

O primeiro é puramente lógico: podemos usar “irrefutável” no sentido de “irrefutável por meios puramente lógicos”. Mas isso significa o mesmo que “coerente”. Ora, é óbvio que uma teoria não pode ser considerada verdadeira por ser coerente.

O segundo sentido de “irrefutável” refere-se a refutações que usam não apenas suposições lógicas (ou analíticas), mas também suposições empíricas (ou sintéticas); em outras palavras, aqui se admitem refutações empíricas. Neste segundo sentido, “irrefutável” significa o mesmo que “não empiricamente refutável” ou, em termos mais exatos, “compatível com qualquer enunciado empírico possível” ou “compatível com qualquer experiência possível”.

Ora, as irrefutabilidades lógica e empírica de um enunciado ou de uma teoria podem ser facilmente compatíveis com a falsidade delas. No caso da irrefutabilidade lógica, isso se evidencia pelo fato de que qualquer enunciado empírico e sua negação devem ser logicamente irrefutáveis. Por exemplo, os enunciados “hoje é segunda-feira” e “hoje não é segunda-feira” são logicamente irrefutáveis. Logo, existem enunciados falsos que são logicamente irrefutáveis.

A situação é um pouco diferente quando tratamos da irrefutabilidade empírica. Os exemplos mais simples de enunciados empiricamente irrefutáveis são os chamados enunciados existenciais estritos ou puros. Eis um exemplo: “Existe uma pérola que é dez vezes maior do que a segunda maior pérola”. Se restringirmos a palavra “existe” a uma região finita do espaço e do tempo, esse enunciado poderá tornar-se refutável. Por exemplo, o seguinte enunciado é obviamente passível de refutação empírica: “Neste momento e nesta caixa existem pelo menos duas pérolas, uma das quais é dez vezes maior do que a segunda maior pérola da caixa.” Mas tal enunciado já deixou de ser um enunciado existencial estrito ou puro: trata-se, antes, de um enunciado existencial restrito. O enunciado existencial estrito ou puro aplica-se ao universo inteiro. Ele é irrefutável simplesmente porque nenhum método pode refuta-lo. Mesmo que pudéssemos vasculhar o universo inteiro, o enunciado existencial estrito ou pruo não seria refutado se não encontrássemos a pérola procurada: ela poderia estar escondida num lugar que não houvéssemos examinado.

Eis alguns exemplos de enunciados existenciais empiricamente irrefutáveis que apresentam maior interesse:

“Existe um tratamento completamente eficaz para o câncer ou, mais precisamente, existe um composto químico que pode ser tomado sem efeitos nocivos e que cura o câncer.” Tal enunciado não diz que tal composto químico já é conhecido, nem que ele será descoberto em determinado prazo.

Exemplos similares são: “existe cura para qualquer doença infecciosa” e “existe uma fórmula em latim que, se pronunciada de maneira ritualmente correta, cura todas as doenças”.

Temos aí um enunciado empiricamente irrefutável que poucos de nós consideraríamos verdadeiro. Ele é irrefutável porque é impossível experimentar todas as fórmulas concebíveis em latim, combinadas com todas as maneiras concebíveis de pronuncia-las. Portanto, sempre resta a possibilidade lógica de que exista, afinal, uma fórmula mágica em latim com o poder de curar todas as doenças.

Mesmo assim temos razões para crer que esse enunciado existencial irrefutável é falso. Não podemos provar sua falsidade, mas tudo o que sabemos sobre doenças depõe contra sua veracidade. Em outras palavras: embora não possamos estabelecer sua falsidade, a conjectura de que tal fórmula mágica em latim não existe é muito mais razoável do que a conjectura de que ela existe.

Ao longo de quase 2 mil anos, homens cultos acreditaram na veracidade de um enunciado existencial muito semelhante a esse, e por isso persistiram na busca da pedra filosofal. O fato de não a terem encontrado não prova nada: as proposições existenciais são irrefutáveis.

Portanto, a irrefutabilidade lógica ou empírica de uma teoria não é razão suficiente para considera-la verdadeira. Tenho o direito de acreditar que aquelas cinco teorias filosóficas são irrefutáveis e falsas.

Cerca de vinte anos atrás propus distinguir teorias empíricas ou científicas e as não empíricas ou não científicas, justamente definindo as empíricas como refutáveis e as não empíricas como irrefutáveis. Eis as minhas razões para essa proposta. Qualquer teste sério de uma teoria é uma tentativa de refuta-la. Logo, a testabilidade é idêntica a refutabilidade ou falseabilidade. Como só devemos chamar de “empíricas” ou “científicas” as teorias que podemos submeter a testes empíricos, podemos concluir que a possibilidade de refutação empírica é o que distingue as teorias empíricas ou científicas. [Ver texto 8, O Problema da Demarcação (1974), supra.]

Quando esse “critério de refutabilidade” é aceito, logo percebemos que teorias filosóficas ou metafísicas são irrefutáveis por definição.

Agora, minha afirmação de que nossas cinco teorias filosóficas são irrefutáveis talvez pareça quase trivial. Por isso, embora eu seja racionalista, não sou obrigado a refutar essas teorias para ter o direito de considerá-las falsas. Isso nos traz ao centro doproblema:

Se todas as teorias filosóficas são irrefutáveis, como é possível distinguir entre teorias verdadeiras e falsas?

Eis o sério problema que emerge da irrefutabilidade das teorias filosóficas.

Para enunciar o problema com mais clareza, vou reformula-lo da seguinte maneira:

Podemos distinguir aqui três tipos de teoria.

Primeiro, teorias lógicas e matemáticas.

Segundo, teorias empíricas e científicas.

Terceiro, teorias filosóficas ou metafísicas.

Como é possível, em cada um desses grupos, distinguir teorias verdadeiras e falsas?

Com respeito ao primeiro grupo, a resposta é óbvia. Sempre que encontramos uma teoria matemática que não sabemos se é falsa ou verdadeira, nós a testamos, primeiro superficialmente, depois com mais rigor, tentando refuta-la. Quando não logramos êxito, tentamos prova-la ou refutar sua negação. Se falhamos de novo, é possível que tornem a surgir dúvidas sobre a veracidade da teoria. Voltamos a tentar refuta-la e assim sucessivamente, até que chegamos a uma decisão ou deixamos o problema em suspenso por considera-lo difícil demais.

Essa situação também pode ser descrita da seguinte maneira. Nossa tarefa é a testagem, o exame crítico de duas ou mais teorias rivais. Nós a executamos procurando refuta-las, até chegarmos a uma decisão. Na matemática, e somente nela, tais decisões costumam ser definitivas: são raras as provas inválidas que escapam à detecção.

Nas ciências empíricas, em geral seguimos fundamentalmente o mesmo procedimento. Também nelas testamos nossas teorias: as examinamos criticamente e tentamos refuta-las. A única diferença importante é que, agora, nosso exame crítico também pode usar argumentos empíricos. Tais argumentos, porém, exigem outras considerações críticas. O pensamento crítico continua a ser o principal instrumento. Só usamos observações quando elas se encaixam em nosso debate crítico.

Se aplicarmos tais considerações às teorias filosóficas, nosso problema pode ser reformulado da seguinte maneira:

Será possível examinar criticamente teorias filosóficas irrefutáveis? Em caso afirmativo, em que pode consistir o debate crítico de uma teoria, se não em tentativas de refuta-la? Que argumentos razoáveis podemos apresentar a favor e contra uma teoria que sabemos não ser demonstrável nem refutável?

Para ilustrar com exemplos essas diversas formulações de nosso problema, retornemos ao problema do determinismo. Kant sabia que somos incapazes de prever atos futuros de um ser humano com a exatidão com que sabemos prever um eclipse. Explicou essa diferença com a suposição de que sabemos muito menos sobre as condições atuais do homem – seus desejos e medos, seus sentimentos e motivações – do que sobre o estado atual do sistema solar. Essa suposição contém, implicitamente, a seguinte hipótese:

“Existe uma descrição verdadeira do estado atual deste homem que (juntamente com leis naturais verdadeiras) poderia permitir a previsão de seus atos futuros.”

Mais uma vez, é claro, trata-se de um enunciado puramente existencial e, por conseguinte, irrefutável. Mesmo assim, será que podemos debater de maneira racional e crítica o argumento de Kant?

Como segundo exemplo, podemos considerar a tese de que “o mundo é meu sonho”. Embora se trate de uma tese claramente irrefutável, poucos acreditarão que seja verdadeira. Podemos debate-la de modo racional e crítico? Não será sua irrefutabilidade um obstáculo instransponível para qualquer debate crítico?

Talvez se pense que o debate crítico da doutrina kantiana do determinismo possa começar da seguinte maneira: “Meu prezado Kant, não basta afirmar que existe uma descrição verdadeira suficientemente detalhada para nos habilitar a prever o futuro. Você precisa nos dizer exatamente em que consistiria essa descrição, para que possamos testar sua teoria empiricamente.” Esse discurso, contudo, equivale a supor que as teorias filosóficas – isto é, irrefutáveis – não podem ser debatidas e que um pensador responsável está fadado a substituí-las por teorias empiricamente testáveis, a fim de possibilitar um debate racional.

Espero que nosso problema tenha ficado suficientemente claro. Passarei a propor uma solução.

Minha solução é esta: se uma teoria filosófica fosse uma afirmação isolada sobre o mundo, lançada sobre cada um de nós, implicitamente, com um “pegar” ou “largar”, sem ligação com mais nada, seria impossível debatê-la. Porém, o mesmo se pode dizer de uma teoria empírica. Se alguém nos presenteasse as equações de Newton, ou mesmo suas teses, sem primeiro nos explicar quais eram os problemas que essa teoria pretende resolver, não seríamos capazes de debater racionalmente a sua veracidade – não mais do que a veracidade do livro do Apocalipse. Sem nenhum conhecimento dos resultados de Galileu e de Kepler, dos problemas que eles resolveram e do problema de Newton – explicar as soluções de Galileu e de Kepler por meio de uma teoria unificada –, consideraríamos impossível debater a teoria newtoniana, tanto quanto qualquer teoria metafísica. Em outras palavras, toda teoria racional, seja científica ou filosófica, é racional à medida que tenta solucionar determinados problemas. Uma teoria só é abrangente e sensata quando relacionada a uma dada situação problemática e só pode ser racionalmente debatida mediante o debate dessa relação.

Ora, se consideramos que uma teoria é uma proposta para solucionar um conjunto de problemas, então ela logo se presta ao debate crítico – mesmo que seja não empírica e irrefutável. Podemos fazer perguntas como: ela resolve o problema? Resolve-o melhor do que outras teorias? Será que apenas deslocou o problema? A solução é simples? É fecunda? Contradiz, talvez, outras teorias filosóficas necessárias para resolver outros problemas?

Perguntas assim mostram que o debate crítico de teorias irrefutáveis pode revelar-se viável.

Mais uma vez, permitam-me dar um exemplo: o idealismo de Berkeley ou Hume (que substituí pela fórmula simplificada “o mundo é meu sonho”). Esses autores não desejavam defender uma teoria tão extravagante, o que se percebe pela insistência reiterada de Berkeley em que suas teorias estavam de acordo com o sólido senso comum.[3] Pois bem: se tentarmos compreender a situação problemática que os induziu a propor essa teoria, veremos que Berkeley e Hume acreditavam que todo conhecimento humano é redutível a impressões sensoriais e a associações entre imagens mnêmicas. Essa suposição levou os dois filósofos a adotarem o idealismo a contragosto, particularmente no caso de Hume. Este só se tornou idealista por ter fracassado na tentativa de reduzir o realismo a impressões sensoriais.

É perfeitamente sensato criticar o idealismo de Hume, assinalando que sua teoria sensorial do conhecimento e da aprendizagem era insatisfatória. Teorias menos insatisfatórias da aprendizagem não tem consequências idealistas indesejáveis.

De modo semelhante, agora podemos debater de maneira racional e crítica o determinismo kantiano. A intenção fundamental de Kant era indeterminista: embora acreditasse que o determinismo do mundo fenomênico fosse uma consequência inevitável da teoria de Newton, ele nunca duvidou que o ser humano, como ser moral, era indeterminado. Kant jamais conseguiu solucionar o conflito entre sua filosofia teórica e sua filosofia prática de um modo que o satisfizesse completamente, e perdeu a esperança de um dia encontrar uma solução real.

No contexto dessa situação problemática torna-se possível criticar o determinismo de Kant. Podemos indagar, por exemplo, se a teoria newtoniana resulta, de fato, nesse determinismo. Conjecturemos por um momento que não. [Ver texto 20, Indeterminismo e Liberdade Humana (1965), seção III, adiante.] Não duvido que uma demonstração clara da veracidade dessa conjectura convencesse Kant a renunciar à sua doutrina do determinismo – apesar de essa doutrina ser irrefutável (ele não seria logicamente obrigado a abandona-la).

Ocorre algo semelhante com o irracionalismo. Ele entrou na filosofia racional, pela primeira vez, com Hume. Quem leu Hume, aquele analista calmo, sabe que não era isso que ele pretendia. O irracionalismo foi a consequência não intencional da convicção humiana de que realmente aprendemos por indução baconiana, aliada à demonstração lógica humiana de que é impossível justificar racionalmente a indução. “Pior para a justificação racional” – eis a conclusão de Hume, diante dessa situação. Ele aceitou tal conclusão irracional com a integridade característica do verdadeiro racionalista, que não recua de uma conclusão desagradável quando lhe parece impossível evitá-la.

Nesse caso, porém, ela não era inevitável, mesmo que assim parecesse a Hume. Ao contrário do que ele acreditava, não somos máquinas baconianas de indução. No processo de aprendizagem, o hábito ou costume não desempenha o papel que Hume lhe atribuiu. Assim, o problema humiano se desfaz e, com ele, sua conclusão irracionalista.

A situação do irracionalismo pós-kantiano é um pouco parecida. Schopenhauer, em particular, opôs-se sinceramente ao irracionalismo. Escreveu com um único desejo: ser compreendido. Escreveu de maneira mais lúcida que qualquer outro filósofo alemão. Seu empenho em se fazer compreender transformou-o num dos grandes mestres da língua alemã.

Mas os problemas de Schopenhauer eram os da metafísica de Kant – o problema do determinismo no mundo fenomênico, o problema da coisa em si e o problema de estarmos em um mundo de coisas em si. Ele solucionou esses problemas – que transcendem qualquer experiência possível – à sua maneira, tipicamente racional. Mas era fatal que a solução fosse irracional. Schopenhauer era kantiano e, como tal, acreditava nos limites kantianos da razão: acreditava que os limites da razão humana coincidiam com os limites da experiência possível.

Também aí há outras soluções possíveis. Os problemas de Kant podem e devem ser revistos, e a direção que essa revisão deve tomar é indicada por sua ideia fundamental de racionalismo crítico ou autocrítico.

A descoberta de um problema filosófico pode ser algo definitivo, feito de uma vez por todas. Mas sua solução nunca é definitiva. Não pode basear-se numa demonstração final ou numa refutação final, uma decorrência da irrefutabilidade das teorias filosóficas. A solução tampouco pode basear-se nas fórmulas mágicas dos profetas filosóficos inspirados (ou entediados). Mas pode basear-se no exame consciencioso e crítico de uma situação problemática e das suposições subjacentes a ela, bem como das várias maneiras possíveis de resolvê-la.

Notas.

1. Ver I. Kant, Crítica da Razão Prática, trad., introdução e notas de Valério Rohden, São Paulo: Martins Fontes, 2002.

2. Ver Julius Kraft, Von Husserl zu Heidegger, 2ª ed., 1957, págs. 103s, 136s e, em especial, pág. 130, onde Kraft escreve: “Assim, é difícil compreender como o existencialismo pode ter sido considerado algo novo na filosofia, do ponto de vista epistemológico.” Ver também o instigante artigo de H. Tint, Heidegger and the ‘Irrational'”, Proceedings of the Aristotelian Society LVII, 1956-1957, pág. 253-268.

3. Isso também pode ser visto pela franca admissão de Hume de que, “seja qual for a opinião do leitor neste momento, […] daqui a uma hora estará convencido de que tanto existe um mundo externo quanto um mundo interno”, ver D. Hume, A Treatise of Human Nature, Livro I, Parte IV, Seção II; edição de L. Selby-Bigge, pág. 218. [Para um comentário, ver a nota 4 do texto 7, O Problema da Indução (1953, 1974), supra.]

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Fonte: Gray, John. Cachorros de Palha:  Reflexões sobre humanos e outros animais (Rio de Janeiro: Record, 2007), págs. 113-118.

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Na pior das circunstâncias, a vida humana não é trágica, mas desprovida de sentido. A alma é quebrada, mas a vida persiste. Ao falhar a vontade, a máscara da tragédia cai ao chão. O que permanece é apenas sofrimento. O último sofrimento não pode ser contado. Se os mortos pudessem falar, não os entenderíamos. Somos sábios por nos apegarmos a um arremedo de tragédia: a verdade desvelada apenas nos cegaria.

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Hegel escreveu que a tragédia é a colisão do certo com o certo. É verdade que existe tragédia quando é impossível reconciliar importantes obrigações em choque umas com as outras, pois então o que quer que façamos conterá algum erro. Ainda assim, a tragédia nada tem a ver com moralidade.

Como um gênero reconhecível, a tragédia começa com Homero, mas não nasceu nos cantos que lemos hoje na Ilíada. Ela veio ao mundo com as figuras mascaradas, híbridos de animais e deuses, que celebravam o ciclo da natureza em festivais arcaicos. A tragédia nasceu no coro que cantava a vida e a morte míticas de Dioniso. De acordo com Gimbutas, “um uso litúrgico de participantes mascarados, os thiasotes ou tragoi, levou, em última instância, à sua aparição no palco e ao nascimento da tragédia.”

A tragédia nasce do mito, não da moralidade. Prometeu e Ícaro são heróis trágicos. Ainda assim, nenhum dos mitos nos quais aparecem nada tem a ver com dilemas morais. Nem as maiores tragédias gregas.

Se Eurípedes é o mais trágico dos escritores do teatro grego, não é porque lida com conflitos morais, mas porque entendeu que a razão não pode guiar a vida. Eurípedes rejeitava a crença que, para Sócrates, era a base da filosofia: de que, nas palavras de Dodds, “o erro moral, tal como o intelectual, só pode surgir de um fracasso em usar a razão que possuímos, e que, quando surge, tem que ser curável pelo processo intelectual, tal como ocorre com o erro intelectual.”

Assim como Homero, Eurípedes não compartilhava a fé de que o conhecimento, a bondade e a felicidade são uma e a mesma coisa. Para ambos, a tragédia vinha do embate entre o desejo humano e o destino. Sócrates destruiu essa visão arcaica das coisas. A razão nos capacitava a evitar o desastre ou então mostrava que o desastre não importa. É isso que Nietzsche quis dizer quando escreveu que Sócrates causou “a morte da tragédia”.

A essência da tragédia não é a colisão do certo com o certo. Existe tragédia quando os humanos se recusam a se submeter a circunstâncias que nem a coragem nem a inteligência podem remediar. A tragédia cai sobre aqueles que fizeram suas apostas contrariando todas as chances. A importância de seus objetivos é irrelevante. A vida de um pequeno criminoso pode ser trágica, enquanto a de um estadista mundial pode ser trivial.

Em nosso tempo, cristãos e humanistas juntaram-se para tornar a tragédia impossível. Para os cristãos, as tragédias são apenas bênçãos disfarçadas: o mundo – como diz Dante – é uma divina comédia; existe uma vida depois da vida na qual todas as lágrimas serão secadas. Para os humanistas, podemos almejar por um tempo em que todas as pessoas terão a chance de uma vida feliz; enquanto isso, a tragédia é um lembrete edificante de como podemos crescer no infortúnio. Mas é apenas em sermões ou no palco que os seres humanos são dignificados por extremos de sofrimento.

Varlam Shalamov, que, segundo Gustaw Herling, um sobrevivente do gulag, era “um escritor diante do qual toda a intelligentsia literária do gulag, incluindo Solzhenitsyn, deve curvar a cabeça”, foi preso pela primeira vez em 1929, quando tinha apenas 22 anos e ainda era um estudante de Direito na Universidade de Moscou. Foi condenado a três anos de trabalhos forçados em Solovki, uma ilha que havia sido transformada de um monastério ortodoxo em um campo de concentração soviético. Em 1937 foi preso novamente e condenado a cinco anos em Kolyma, no nordeste da Sibéria. Segundo estimativas conservadoras, cerca de três milhões de pessoas pereceram nesses campos árticos, e um terço ou mais dos prisioneiros morria a cada ano.

Shalamov passou 17 anos em Kolyma. Seu livro Kolyma Tales é escrito num estilo preciso, tchekoviano, sem nenhum tom didático como o encontrado nos trabalhos de Solzhenitsyn. Ainda assim, em ocasionais e lacônicas digressões e nas entrelinhas, existe uma mensagem: “quem quer que pense que pode se comportar de outra forma nunca tocou o verdadeiro fundo da vida; nunca teve que dar seu último suspiro em ‘um mundo sem heróis’.”

Kolyma era um lugar no qual a moralidade havia deixado de existir. Naquilo que Shalamov secamente chamou de “contos de fada literários”, profundos vínculos humanos são forjados sob a pressão da tragédia e da necessidade, mas na verdade nenhum vínculo de amizade ou simpatia era o forte o bastante para sobreviver à vida em Kolyma: “Se a tragédia e a necessidade puseram pessoas juntas e fizeram surgir uma amizade entre elas, então a necessidade não era extrema e a tragédia não era grande”, escreveu Shalamov. Com as vidas drenadas de todo sentido, poderia parecer que os prisioneiros não tivessem nenhuma razão para prosseguir; mas a maior parte estava fraca demais para aproveitar as chances que apareciam, de tempos em tempos, de terminar suas vidas de uma maneira que tivessem escolhido: “Há tempos em que um homem tem que se apressar para não perder a vontade de morrer.” Vencidos pela fome e pelo frio, moviam-se, insensivelmente, na direção de uma morte sem sentido.

Mulheres e crianças num gulag.

Mulheres e crianças submetidas a trabalho forçado num gulag.

Shalamov escreveu: “Existe muita coisa lá que um homem não deve saber, não deve ver; e, se vir, para ele é melhor morrer.” Após seu retorno dos campos, passou o resto de sua vida recusando-se a esquecer o que havia visto. Descrevendo sua viagem de volta a Moscou, escreveu:

Estava como se tivesse acabado de acordar de um sonho que havia durado anos. E, de repente, tive medo, e sentir um suor frio em meu corpo. Estava aterrorizado pela terrível força do homem, seu desejo e sua habilidade de esquecer. Percebi que estava pronto para esquecer tudo, para apagar vinte anos de minha vida. E, quando compreendi isso, conquistei a mim mesmo; soube que não iria permitir que minha memória esquecesse tudo que eu havia visto. E recuperei a calma e caí no sono.

Na pior das circunstâncias, a vida humana não é trágica, mas desprovida de sentido. A alma é quebrada, mas a vida persiste. Ao falhar a vontade, a máscara da tragédia cai ao chão. O que permanece é apenas sofrimento. O último sofrimento não pode ser contado. Se os mortos pudessem falar, não os entenderíamos. Somos sábios por nos apegarmos a um arremedo de tragédia: a verdade desvelada apenas nos cegaria. Como Czeslaw Milosz escreveu:

Nem-Um

Impunemente dá a si mesmo os olhos de um deus

Shalamov foi libertado de Kolyma em 1951, mas proibido de deixar a área. Em 1953 teve permissão de deixar a Sibéria, mas impedido de viver numa cidade grande. Voltou a Moscou em 1956 para descobrir que a esposa o havia deixado e a filha o havia rejeitado. Em seu aniversário de 75 anos, vivendo só, numa casa para idosos, cego, quase surdo e falando com grande dificuldade, ditou para seu único amigo que ocasionalmente o visitava diversos poemas curtos que foram publicados no exterior. Como resultado, foi tirado do asilo e, resistindo o tempo todo – talvez pensando que estivesse sendo levado de volta para Kolyma –, internado num hospital psiquiátrico. Três dias mais tarde, em 17 de janeiro de 1982, morreu “num quarto pequeno, com grades nas janelas, diante de uma porta acolchoada”.

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Fonte: http://www.anus.com/zine/articles/andrew/lovecraft/

Carter não experimentou largamente essas modernas liberdades, pois sua banalidade e esqualidez repugnavam a um espírito amante apenas da beleza, enquanto sua razão se rebelava contra a frágil lógica com que seus mentores tentavam disfarçar o impulso animal com uma santidade extraída dos ídolos que haviam rejeitado. Percebeu que a maioria deles, assim como seus descartados cleros, não conseguia se furtar a ilusão de que a vida tem um significado diferente daquele que os homens para ela sonham e que não poderia por de lado a crua noção de ética e dever além das de beleza, mesmo que toda a Natureza uivasse sobre sua inconsciência e impessoal imoralidade à luz de suas descobertas científicas. Pervertidos e fanatizados por ilusões preconcebidas de justiça, liberdade e consistência, descartaram a velha sabedoria e os velhos hábitos junto com as velhas crenças, e jamais pararam para pensar que aquela sabedoria e aqueles hábitos eram os únicos formadores de seus pensamentos e juízos presentes e os únicos guias e paradigmas num universo sem sentido, sem metas fixas ou pontos estáveis de referência. Havendo perdido essas referências artificiais, sua vida ficou privada de direção e interesse dramático até que finalmente trataram de afogar seu tédio na agitação e pretensa utilidade, no barulho e na excitação, nas exibições bárbaras e nas sensações animais. Quando estas coisas perderam o ímpeto, desapontaram e se tornaram insuportavelmente nauseantes, passaram a cultivar a ironia e a amargura, e descobriram o erro na ordem social. Jamais conseguiram perceber que seus sólidos alicerces eram tão mutáveis e contraditórios quanto os deuses de seus antepassados e que a satisfação de um momento é o veneno do próximo. A beleza calma e duradoura só pode vir no sonho e este conforto o mundo descartou quando, em sua adoração do real, desfez-se dos segredos da infância e da inocência.

Howard Phillips Lovecraft, A chave de prata. In À Procura de Kadath, Editora Iluminuras, págs 144-5.

Estou disposto a sustentar que Lovecraft é um dos maiores gênios literários do século XX. Neste pequeno trecho do conto “A chave de prata”, vemos a verdadeira definição de niilismo. Superando a verdade do quão desprovida de significado a realidade é, e então vivendo para criar a beleza na vida. Em nenhum outro lugar encontrei o conceito de niilismo enunciado com mais clareza ou correção do que nas pequenas pérolas de sabedoria encontradas nos contos de horror de Lovecraft.

Os parasitas do mundo destruíram a beleza que nele havia, e agora quase todos os que nesse mundo apreciam verdadeiramente a beleza simplesmente perderam suas vidas em sonhos e fantasias, pois neste mundo não lhes é possível encontrar nenhuma satisfação. O niilismo é a filosofia que visa resgatar essa beleza; os valores tradicionalistas que foram sumariamente descartados pelos parasitas subhumanos.

É difícil acreditar que, nos dias que correm, possuímos uma chance real de retornar àquela antiga beleza que agora não passa de uma chaga nos corações de todas as pessoas razoavelmente inteligentes. O cenário provável é que a humanidade desperdice o tempo que lhe resta em tarefas repetitivas e distrações estúpidas, e enquanto isso ocorre aqueles que possivelmente poderiam ter mudado o mundo simplesmente abandonaram este lugar imundo e se refugiaram em seus esconderijos pessoais. Eu próprio não estou muito longe de desistir e permanecer em meu santuário,  evitando a pilha de lixo em que os parasitas transformaram a humanidade.

Quer alguém reconheça ou não as filosofias ocultas em seus contos, acredito que as pessoas apreciem ouvir a verdade, o que provavelmente explica como ele alcançou tamanha popularidade mesmo que suas histórias tenham sido feitas para nada além de revistinhas de ficção científica (não me entendam mal, eu admiro muito Lovecraft mesmo pelos elementos de ficção de suas histórias). Se alguém se sente satisfeito com o mundo atual, então, falando francamente, tal pessoa simplesmente pertence à mesma classe de parasitas que fizeram deste mundo o que ele é hoje, conquanto não se torne realmente um parasita até que contribua ativamente para esta pervertida ordem mundial. Não podemos culpar o populacho ou os idiotas por serem como são, mas eles devem reconhecer o que são e que são incapazes de conduzir o mundo.

Niilismo para mim significa apenas duas coisas; primeiro, aceitação da ausência de valor de quase todos os conceitos humanos subjetivos: moralidade, morte, religião. Tão logo tome consciência disso você considera retrospectivamente este conceito e retorna à vida e agora você enxerga tudo com uma perfeita clareza. Esta visão é tanto bela quanto repugnante. É bela pois você se conscientiza da grandeza e da magnificência da vida ( eu amo estar vivo, mesmo num lugar arruinado como este ). É repugnante pois você finalmente se dá conta do modo terrivelmente errado como conduzimos as coisas ao longo desta era contemporânea, e das consequências em curso nas quais vivemos.

Um elemento-chave a ser responsabilizado são as religiões monoteístas. Elas foram bem-sucedidas em apropriar-se da significância literal das religiões pagãs,  atulha-las com as mais ridículas moralidades literais causadoras de decadência  num sistema, e com conceitos simples que a patuléia (a maioria) é capaz de entender e preferir em detrimento do antigo modo de vida. Pode haver algum meio mais eficiente para o extermínio de pessoas funcionais? Obviamente existem meios mais rápidos pelos quais uma civilização pode ser destruída que eu particularmente preferiria, mas estas religiõesparecem ter se tornado um componente indissociável da mentalidade cada vez mais deteriorada das pessoas. Graças às religiões monoteístas e a todos os outros idiotas no poder que ou são egoístas e se preocupam exclusivamente com seu próprio e frívolo ganho material; ou veem-se como benfeitores da humanidade quando na verdade são demasiados estúpidos para perceber que são a principal fonte do problema.

Então qual é exatamente o propósito deste texto? Bem, há vários. Eu quis sobretudo expor minha concepção do niilismo, o gênio poético de Lovecraft ao descrever os problemas que a maioria de nós é incapaz de reconhecer, e reapresentar os problemas comuns que uma ínfima minoria reconhece e admite, na esperança de mostrar às pessoas que uma mudança é necessária. Parece haver um grupo cada vez menor de pessoas da estirpe de Lovecraft, capazes de reconhecer o estado catatônico dos que podem endireitar este mundo. Todavia, isto não pode perdurar por muito mais tempo, de maneira que esta é a nossa hora de agir antes que estes poucos refugiem-se definitivamente em seu santuário onírico, desistindo de uma vez por todas deste mundo desesperador.

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por Francis J. Beckwith

Em seu livro de 2006, The God Delusion (Deus, um delírio), Richard Dawkins lamenta a trajetória profissional de Kurt Wise, que desde 2006 ocupa os cargos de professor de ciência e teologia e diretor do Centro pela Teologia e Ciência no Southern Baptist Theological Seminary em Louisville, Kentucky. Antes disso, Wise lecionou por muitos anos no Bryan College, uma pequena universidade evangélica em Dayton, Tennessee, à qual foi dada o mesmo nome de William Jennings Bryan, candidato Democrático presidencial por três vezes e assessor jurídico no julgamento de Scopes ocorrido em 1925, popularizado pela imprensa da época como “O julgamento do macaco”.

De acordo com Dawkins, Wise foi por um tempo um jovem acadêmico promissor que havia conquistado um diploma em geologia (pela Universidade de Chicago) e diplomas avançados em geologia e paleontologia pela Universidade Harvard, onde estudou sob orientação do altamente aclamado Stephen Jay Gould. Wise é também um criacionista da terra-jovem, o que significa que ele aceita uma interpretação literal dos primeiros capítulos do Genesis e sustenta que a Terra tem menos do que dez mil anos. Não é uma posição que sustento, e por essa razão eu partilho do espanto de Dawkins com a razão pela qual Wise colocou-se o que a muitos cristãos parece uma falsa escolha entre uma interpretação problemática da Escritura (criacionismo da terra-jovem) ou o abandono definitivo do.

A certa altura de sua carreira, Wise começou a entender que sua leitura da Escritura era inconsistente com o entendimento científico dominante sobre a idade da Terra e do Cosmos. Ao invés de abandonar o que acredito ser uma escolha errada, ele continuou a sustenta-la, o que provocou-lhe uma crise de fé. Wise escreve: “Ou a Escritura era verdadeira e a evolução estava errada ou a evolução era verdadeira e era preciso jogar fora a Bíblia. . . . Foi naquela noite que aceitei a Palavra de Deus e rejeitei tudo que pudesse contraria-la, incluindo a evolução. Com aquilo, em grande tristeza, eu joguei no fogo todos os meus sonhos e esperanças na ciência.” Então Wise abandonou a possibilidade de assegurar uma cadeira em uma prestigiosa universidade ou instituto de pesquisa.

Dawkins está perturbado pelo julgamento de Wise e suas repercussões em suas óbvias perspectivas como acadêmico, pesquisador, e professor. Escreve Dawkins: “Acho terrivelmente triste . . . a história de Kurt Wise é simplesmente patética – patética e desprezível. O malogro, de sua carreira e de uma vida feliz, foi auto-infligido, tão desnecessário, tão fácil de evitar. . . . Eu sou hostil para com a religião por causa do que ela fez a Kurt Wise. E se ela fez isso com um geólogo educado em Harvard, apenas pense no que pode fazer com outros menos talentosos e mais vulneráveis intelectualmente.”

É claro, alguns cristãos podem estar tão incomodados quanto Dawkins. Então não é necessário ser um ateísta para levantar questões legítimas sobre a jornada intelectual e espiritual do professor Wise. Mas, considerando-se o ateísmo de Dawkins, há algo estranho sobre seu lamento, pois ele parece requerer que Dawkins aceite algo sobre a natureza dos seres humanos e a lei moral natural que seu ateísmo parece rejeitar.

Deixe-me explicar o que quero dizer. Dawkins  critica duramente Wise por aceitar uma crença religiosa que resulta em Wise não tratar a si mesmo e a seus talentos, inteligência e habilidades de uma maneira apropriada para seu florescimento pleno. Isto é, dada a oportunidade de apurar e desenvolver certos dons – por exemplo, habilidade intelectual – ninguém, incluindo Wise, deveria desperdiçá-los como resultado da aceitação de uma falsa crença. A pessoa que viola, ou ajuda a violar, esta norma, de acordo com Dawkins, deveria ser condenada, e nós todos deveríamos lamentar esta trágica negligência moral da parte de nosso companheiro. Mas a emissão desse julgamento sobre Wise por Dawkins faz sentido apenas sob a luz dos talentos particulares e o tipo de ser que Wise é por natureza, um ser que Dawkins parece acreditar possui certas capacidades e propósitos intrínsecos, cujo abortamento prematuro seria uma injustiça.

Então o ser humano que desperdiça seus talentos é alguém que não respeita seus dons naturais ou suas habilidades básicas, das quais o amadurecimento e o uso apropriado torna possível o florescimento de muitos bens. Em outras palavras, a noção de “função apropriada,” como coloca Alvin Platinga, combinada com a observação de que certos aperfeiçoamentos enraizados em capacidades básicas foram inadmissivelmente impedidas de amadurecerem, é assumida no próprio julgamento que Dawkins faz sobre Wise e a maneira que Wise deveria conduzir sua vida.

Mas Dawkins, na verdade, não acredita realmente que seres vivos, inclusive seres humanos, possuem propósitos intrínsecos ou são projetados para que se possa concluir que violar a função apropriada de alguém corresponde à violação do dever moral de alguém para com si próprio. Dawkins manteve por décadas que o mundo natural apenas parece ser projetado. Ele escreve em Deus, um delírio: “Darwin e seus sucessores mostraram como os seres vivos, com suas espetaculares improbabilidades estatísticas e aparências de design, evoluíram através de estágios lentos e graduais a partir de simples inícios. Nós podemos agora seguramente dizer que a ilusão de design das criaturas vivas é apenas isso – uma ilusão.”

Mas isto significa que seu lamento por Wise está mal direcionado, pois Dawkins está lamentando pelo que apenas parece ser o abandono de seu dever de nutrir e usar seus dons em maneiras que resultem em sua felicidade e na aquisição de conhecimento que contribua para o bem comum. Mas porque não existem naturezas projetadas e propósitos intrínsecos, e portanto nenhum dever natural que somos obrigados a obedecermos, as intuições que informam o julgamento de Dawkins de Wise são tão ilusórias quanto o design que ele explicitamente rejeita. Mas isso é precisamente um dos fundamentos pelo qual Dawkins sugere que os teístas são irracionais e deveriam abandonar sua crença em Deus.

Então se o teísta é irracional por acreditar em Deus baseado no que afinal é apenas um pseudo-design, Dawkins é irracional em seu julgamento de Wise e outros criacionistas a quem ele sugere censura e correção. Pois o julgamento de Dawkins se baseia numa premissa que – apesar de intransigentemente defendida através de sua carreira – apenas parece ser verdadeira.

(Francis J. Beckwith é um professor associado de Filosofia & Estudos Estado-Igreja na Universidade de Baylor. Seu mais recente livro é Defending Life: A Moral and Legal Case Against Abortion Choice. Cambridge University Press, 2007).

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