por Roger Scruton
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Roger Scruton nasceu na Inglaterra e é escritor, filósofo e jornalista. Sua especialização concentra-se na área de estética, com atenção especial para a música e a arquitetura. Escreve frequentemente na imprensa sobre questões políticas e culturais e é atualmente pesquisador do Institute for the Psychological Sciences.
No Brasil, a editora É Realizações já publicou os livros Pensadores da Nova Esquerda, Beleza e Coração Devotado À Morte.
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À semelhança de vários outros filósofos ‘analíticos’, nutro fortes reservas quanto à fenomenologia. Mais especificamente, desconfio do método ‘cartesiano’ de Husserl, que assume que a experiência deve ser descrita do ponto de vista da primeira pessoa. Ao mesmo tempo, sou imensamente devedor de outra ideia de importância capital para a fenomenologia, e cujo reconhecimento pelos praticantes da ‘análise conceitual’ tardou a ocorrer. A ideia é mais antiga que a fenomenologia – talvez tão antiga quanto Aristóteles, certamente tão antiga quanto Kant. De acordo com esta noção, devemos distinguir o mundo da experiência humana do mundo da observação científica. No primeiro, existimos como agentes no comando de nosso destino e relacionamo-nos uns aos outros por meio de concepções estranhas à visão científica do universo. No segundo, existimos como organismos impelidos por uma causalidade arcana e relacionados uns aos outros pelas mesmas leis do movimento que governam todas as outras coisas. Kant descreveu o primeiro mundo como ‘transcendental’, o segundo como ‘empírico’, e mapeou brilhantemente duas concepções exaustivas, mutuamente incompatíveis e, para ele, igualmente impossíveis, da relação que estes mundos mantém entre si. Em uma concepção, o mundo transcendental é um domínio separado do mundo empírico, de modo que os objetos que pertencem a um não são encontrados no outro. Na outra concepção, não estamos lidando com dois mundos distintos, mas com duas maneiras separadas de olhar para o mesmo material: podemos vê-lo ou da perspectiva ‘transcendental’ do agente humano ou da perspectiva ‘empírica’ do observador científico. Acredito que devemos distinguir, não dois mundos, mas duas maneiras de compreender o mundo, e em particular dois empreendimentos conceituais separados pelos quais nosso entendimento é constituído.
O mundo não é apenas mero objeto de curiosidade científica. Ele é dócil aos nossos propósitos: por toda parte encontramos ensejo para a ação e os meios pelos quais realizá-la. O mundo também é diversificado, apresentando objetos de desejo variados e obstáculos díspares à nossa vontade. Na qualidade de seres práticos, desenvolvemos instintivamente categorias que registram e facilitam nosso comércio com as imediações, e estas categorias exibem a dupla chancela do propósito humano e da variedade material – correspondendo em parte aos nossos usos e em parte à condição natural dos objetos descritos. Algumas categorias não fazem mais do que registrar a finalidade para a qual um objeto pode ser empregado: categorias como ‘mesa’, ‘balanço’ e ‘abrigo’. Outros descrevem algum traço recorrente do meio, e talvez ao mesmo tempo postulem uma explanação de sua aparência unificada: categorias como ‘animal’, ‘vegetal’ e ‘rocha’. Outras categorias parecem encaixar-se em ambas as classes, combinando significância funcional e poder explanatório. Quando descrevemos algo como duro, situamos este objeto na trama dos propósitos humanos – trata-se de algo que resiste aos nossos esforços para transformá-lo, e talvez também nos machuque. Ao mesmo tempo, atribuímos uma característica física, uma constituição que o relaciona a uma pluralidade de substâncias aparentadas no mundo da natureza.
Nos últimos anos, os filósofos tem prestado muita atenção à existência destes tipos contrastantes de categorias, e em particular à divisão entre tipos naturais e funcionais.[8] Considerando nossa existência dual como seres ativos e contemplativos, é natural que lancemos mão dos dois tipos de conceitos e que hajam tantas noções situadas na zona cinzenta ocupada por ‘duro’ e ‘macio’. Buscamos tanto compreender o mundo como alterá-lo, e nos empenhamos em ser tão bem sucedidos quanto possível em ambas as empreitadas. Para tanto, nos municiamos com categorias permeáveis à explanação (tipos naturais) e categorias permeáveis a propósitos (tipos funcionais). Mas nossa relação com o mundo é vastamente mais complexa do que isso sugere: além de propósitos e conhecimentos, temos experiências, valores, emoções e crenças religiosas. Estes também ditam suas próprias trajetórias conceituais, suas tentativas separadas de ordenar o mundo como um objeto de nossos interesses.
A classificação pode ser comparada à atividade de um açougueiro, na qual um objeto é dividido, às vezes de acordo com sua natureza, às vezes em conflito com ela. O açougueiro inglês, motivado por um zeloso desprezo pelo cadáver à sua frente, e também pelo homem que irá comê-lo, retalha barbaramente a criatura em amontoados toscos, tendo a recomendá-lo pouco mais do que uma tradição de honestidade. Uma ‘peça’ inglesa pode consistir de uma tira de músculo dorsal, um pedaço de vértebra, uma fatia de rim, alguma pele, algum tutano, alguns pelos e o sinal indelével com que a Fazenda Jones marca seus novilhos. Eventualmente, como no caso da porção de rim, a combinação resultante de sabores origina um interessante ‘tipo gustativo’. Mas isto não fazia parte da intenção. O açougueiro francês, movido por um respeito autóctone por les nourritures terrestres, empenha-se em separar cada textura e cada sabor natural de seus concorrentes, removendo do bife todos os fragmentos de ossos, gordura e vísceras, e a pele que o envolve. Ele se empenha mais do que seu colega inglês em dividir a natureza em seus pontos de articulação; mas sua lealdade à natureza resulta de interesses que não mantém nenhuma relação necessária com as leis da natureza. Ele ainda não se compara ao anatomista que, renunciando a todo e qualquer interesse pelas aparências, explora os segredos da natureza na ordem em que a natureza os concebeu. Para o anatomista, a verdadeira ordem da carcaça é aquela que explica não apenas seu sabor como também sua estrutura, seus movimentos enquanto vivia, seu vir a ser e seu perecer.
Tanto na classificação como na arte de cortar carnes, muitas vezes estamos mais interessados na relação que os objetos mantém conosco do que em sua causalidade e constituição. Pois procuramos não somente pela causa dos eventos, mas também por seu significado – mesmo quando eles não tem significado algum. Por exemplo, agrupamos as estrelas em constelações de acordo com nossas próprias ficções, e ao fazê-lo cometemos uma violência astronômica. Para o astrônomo nosso conceito de uma ‘constelação’ não exibe nada além das emoções supersticiosas daqueles que a divisaram pela primeira vez. Para o astrólogo, tal conceito comunica a mais profunda iluminação quanto ao mistério das coisas. Para o resto de nós, esta classificação é um registro de nossa familiaridade com o mundo, um tributo à face humana que o reveste. Thomas Hardy desperta em nós uma imensa tristeza quando escreve, a respeito do jovem caixeiro-viajante Hodge, morto na Guerra dos Bôeres, que ele ‘nunca conheceu…/o significado do Grande Karoo‘: morrer em imediações opacas à nossa busca por significado é morrer desconsolado. Portanto, a desolação das ‘constelações alienígenas’ que ‘põem-se/a cada aurora atrás da montanha‘.
Por ora, deixemos de lado as constelações e ocupemo-nos de uma categoria derivada de nosso interesse pela beleza que nos será de maior utilidade: a categoria do ornamental. Consideremos então a classe dos ‘mármores ornamentais’. O propósito desta classificação – de grande importância para escultores, construtores e arquitetos conscienciosos – é assimilar rochas que são objetos de uma preocupação estética singular. Um mármore ornamental pode ser polido; ele possui uma textura, uma cor, uma profundidade e uma translucidez superficial que o tornam recomendável para nossos propósitos decorativos. Sob esta classificação caem o ônix, o porfírio e o próprio mármore. Cientificamente falando, a classificação não faz o menor sentido. Pois o ônix é um óxido, o porfírio um silicato, o mármore um carbonato, ao passo que a pedra de cal – um isótopo do mármore – é terminantemente excluída desta classe. Uma ciência das pedras deve almejar substituir todas as classificações desta natureza – cuja subserviência aos propósitos humanos as priva de um poder explanatório cabal – por outras classificações mais profundas, projetadas para capturar similaridades reais entre os objetos que elas subsomem. Em outras palavras, a ciência busca descobrir tipos naturais. Pois somente uma divisão do mundo em tipos naturais pode nos suprir com os meios para penetrar por debaixo das aparências até alcançarmos as ‘leis do movimento’ subjacentes que as explicam.
Uma ciência das rochas, portanto, classificaria igualmente o mármore e a pedra de cal como formas cristalinas diferentes do carbonato de cálcio geradas pela decomposição sob pressão de organismos biológicos mortos. Tal ciência provavelmente não encontraria uma explicação única para o fato de que a aparência e a utilidade do mármore serem tão estreitamente próximas da aparência e da utilidade do ônix e do porfírio. Logo, certamente não conteria nenhuma classificação que corresponda à nossa ideia de um mármore ornamental. Ao contrário, é provável que elimine todas estas classificações, que tendem a se dissolver à medida em escavamos por debaixo da superfície da experiência humana até alcançarmos a ordem física subjacente que a explica e sustenta.
Alguns conceitos, portanto, incluindo os conceitos das ciências naturais, possuem uma função explanatória. Tais conceitos não somente fornecem os termos nos quais as explanações são formuladas; eles são explanatórios neles mesmos, no sentido de que subsumir um objeto sob eles já é oferecer uma explanação de sua natureza empiricamente determinável.[9] Outros conceitos, incluindo diversos conceitos de senso comum e de entendimento intuitivo, não são (pelo menos não a princípio) explanatórios. Sua função é recortar o mundo de acordo com nossos interesses, assinalar possibilidades de ação, emoção e experiência que podem muito bem ser frustradas por uma atenção excessiva à ordem subjacente das coisas. Conceitos deste tipo muitas vezes tendem a colapsar sob a pressão da inovação científica. Sentimos esta pressão de várias maneiras; ela se manifesta mais imediatamente como um tipo de instabilidade em nossas descrições ordinárias. É como se mesas e cadeiras não fossem realmente como as descrevemos. Elas não são realmente coloridas, não são realmente sólidas, e assim por diante. Pois a melhor explanação destas aparências indeléveis não faz menção alguma a cores (quando muito falam da experiência da cor), e postula em lugar da mesa ‘sólida’ um aglomerado descontínuo de moléculas separadas umas das outras por uma distância maior do que seu próprio diâmetro.
Não precisamos investigar aqui o que a palavra ‘realmente’ significa nos lábios de quem diz que nenhuma mesa é realmente colorida. O que importa é o contraste entre a ‘fragilidade’ de nossas descrições ordinárias e a solidez ‘pétrea’ das explanações que parecem ameaçá-las, e que, quando muito, apenas levam a explanações melhores do que elas próprias. Ao mesmo tempo, não podemos abrir mão das descrições do pensamento e da ação ordinários. Sem elas, somos privados de um instrumento essencial para a compreensão de nosso mundo. A classificação de rochas como mármores ornamentais indica não uma similaridade estrutural entre as substâncias a que são aplicadas, mas uma similaridade parcialmente fenomênica, parcialmente funcional. E o propósito de assinalar esta similaridade é encapsular a finalidade comum a que estes objetos podem servir numa classificação.
Como nosso exemplo mostra, classificações relativas a finalidades (classificação em termos de ‘tipos funcionais’) não são o único exemplo de descrições ‘frágeis’ geradas pela vida humana diária. Há também classificações relativas a experiências sensoriais imediatas – o tipo de classificação que registra ‘qualidade secundárias’.[10] E há exemplos mais elusivos: classificações relativas a emoções (o temível, o amável, o repugnante), e classificações relativas ao interesse estético (o ornamental, o sereno, o elegante e o harmonioso). Tais classificações registram não as variedades de objetos materiais, mas as variedades da ‘intencionalidade’ humana – tomando emprestado aos fenomenólogos uma tecnicalidade útil.
Por ‘intencionalidade’ eu quero dizer a qualidade de ‘referência exterior’ que está contida na consciência humana: a qualidade de apontar e delinear um objeto de pensamento. A ‘consciência do mundo’ que jaz no coração de minha experiência, e que parece constantemente projetar meus pensamentos sobre uma realidade maior do que eu, existe em várias formas: crença, percepção, imaginação, emoção e desejo. Cada um destes estados mentais demarca um espaço, por assim dizer, diante de mim – uma lacuna na qual um objeto pode ser inserido. Meu medo é medo de algo, minha percepção, percepção de algo, e assim por diante. Às vezes eu próprio sou o objeto de meus pensamentos; entretanto, o mais comum é que o objeto seja alguma outra coisa que não eu mesmo, algo que pertence ao ‘mundo ao redor’ de minha experiência.
Descreverei este ‘mundo ao redor’ como o Lebenswelt (‘mundo da vida’), usando um termo popular entre fenomenólogos, embora não exclusivo deles.[11] O Lebenswelt não é um mundo separado do mundo da ciência natural, mas um mundo descrito de maneira diferente – descrito com os conceitos que designam os objetos intencionais da experiência humana. A intencionalidade implica que minha consciência é também uma forma de representação: minha consciência mostra-me um mundo e também me situa em relação a ele. Mas nem todas as formas de representação são transparentes. As descrições empregadas pela ciência supõem que a natureza dos objetos identificados por elas deve ser descoberta. A representação identifica um objeto: mas sua natureza deve ser determinada por meio de uma investigação. O mesmo não é verdade do Lebenswelt, cujos objetos são identificados por descrições que são, ou pretendem ser, transparentes para nossas experiências e propósitos. Os objetos do Lebenswelt são concebidos sob classificações que refletem nosso próprio interesse prático e contemplativo por eles. Estas classificações tentam dividir o mundo segundo as exigências da razão teórica e prática cotidiana.[12] As classificações que definem os ‘tipos fenomenológicos’ do Lebenswelt são apenas parcialmente responsivas ao empreendimento da predição. Elas às vezes se desintegram sob o impacto da explanação científica, não porque estejam necessariamente em conflito com a visão de mundo científica, mas porque elas não são capazes de resistir ao ponto de vista do observador curioso que olha não para os interesses das pessoas, mas para estrutura da realidade subjacente.
Ao mesmo tempo, a ciência não fornece nenhum substituto para os conceitos que organizam e orientam nossa experiência cotidiana. Um escultor munido de teorias químicas, geológicas e cristalográficas, mas que não disponha do conceito (estranho a estas ciências) de um mármore ornamental, não terá aquele senso imediato de similaridade que habilita seu colega com menos instrução formal a relacionar espontaneamente o ônix ao porfírio. Suas próprias percepções serão diferentes, pois estarão desprovidas de um conceito em cujos termos tais rochas seriam vistas de maneira diferente.
Que a penetração científica sob a superfície das coisas pode tornar a superfície ininteligível – ou pelo menos inteligível lenta e dolorosamente, e com uma hesitação que frustra as necessidades imediatas da ação humana, é uma tese controversa. Enquanto agentes, pertencemos à superfície do mundo e entramos em relação imediata com ele. Os conceitos por meio dos quais o representamos estabelecem uma conexão vital com a realidade, e sem esta conexão a ação apropriada e a resposta apropriada podem não emergir com a rapidez e a competência imprescindíveis para assegurar nossa sobrevivência e nossa felicidade. Não podemos substituir nossos conceitos ordinários mais básicos por qualquer outra coisa melhor do que eles, pois eles evoluíram exatamente sob a pressão da condição humana e em resposta às necessidades das gerações passadas. Qualquer ‘reconstrução racional’ – não importa o quão fiel à verdade que subjaz às coisas e às exigências da objetividade científica – arrisca-se a danificar a conexão vital que liga nossa resposta ao mundo, e o mundo à nossa resposta, numa cadeia de competência humana espontânea.[13]
Não obstante, vários de nossos conceitos ordinários tremulam precariamente sob o impacto do pensamento científico, – o conceito de agente humano, ou pessoa, é o mais importante deles. É o dever da filosofia, assim como a necessidade da religião, sustentar e validar tais conceitos e a intencionalidade humana à qual eles conferem a direção e o sentido. Estamos bastante familiarizados com os perigos associados à visão científica da condição humana – a visão que nos representa, talvez verdadeiramente, como organismos complexos fustigados pelas inexoráveis engrenagens de uma causalidade sobre a qual não exercemos o menor controle. Mas é importante não nos precipitarmos com os remédios, não buscarmos nem negar as verdades da ciência – refugiando-nos, por exemplo, em alguma metafísica ilusória da liberdade humana – ou correr impetuosamente para o santuário protetor da fé religiosa, a fim de prover algum respaldo dogmático para concepções que na verdade não passam de criações humanas, e cujo restauração é uma obrigação exclusivamente humana. Precisamos mostrar detalhadamente que nossas descrições espontâneas do Lebenswelt – descrições que fazem da agência humana o elemento mais importante do mundo que nos rodeia – não são desalojadas pelas verdades da ciência, que elas tem sua própria verdade que, por não competir com o empreendimento da explanação última, não é nem um pouco fragilizada pelas explanações que à primeira vista parecem estar em conflito com ela. A ciência alienou-nos do mundo ao nos fazer desconfiar dos conceitos por meio dos quais respondemos a ele. A filosofia é a arte de olhar pela segunda vez, e sobre seus ombros repousa a tarefa monumental de restituir a seu lugar de direito os conceitos que empregamos na descrição do Lebenswelt.
O conceito crucial para qualquer esforço filosófico tentar fornecer a base para o entendimento humano é o conceito de pessoa. É uma tese filosófica bastante conhecida – expressa em incontáveis idiomas e em incontáveis tons de voz – que os seres humanos podem ser descritos de duas maneiras contrastantes (e, para alguns, conflituosas): como organismos sujeitos às leis da natureza, e como pessoas que às vezes se sujeitam e às vezes se rebelam contra a lei moral. Pessoas são agentes morais; suas ações possuem não somente causas, como também razões. Elas tomam decisões quanto ao futuro, de modo que tem, além de desejos, intenções. Elas nem sempre se permitem ser levadas por seus impulsos, mas ocasionalmente resistem a eles e os subjugam. Em todas as circunstâncias o agente moral é tanto passivo como ativo, e atua como uma espécie de legislador entre suas próprias emoções. Ele também é objeto não apenas de afeição e amor (que podemos estender a toda a natureza), mas também de elogios e de censuras, de raiva e de estima. Em todas estas distinções intuitivas – entre razão e causa, intenção e desejo, ação e paixão, estima e afeição – encontramos aspectos da distinção vital que subjaz a elas e à clarificação daquilo a que Kant devotou algumas de suas mais notáveis páginas: a distinção entre pessoas e coisas. Somente uma pessoa tem direitos, deveres e obrigações; somente uma pessoa age por razões, em acréscimo às causas; somente uma pessoa merece nosso elogio, nossa crítica ou nossa raiva. E é como pessoas que percebemos e atuamos uns em relação aos outros, mediando todas as nossas respostas mútuas com o conceito obscuro, porém indispensável, de agente moral livre.
Não acredito que podemos aceitar a magnífica teoria de Kant, que atribui às pessoas um núcleo metafísico, o ‘ego transcendental’, situado além da natureza e eternamente livre de suas limitações. Não obstante, sua teoria é uma derivação convincente de iluminações sobre a agência humana que não devemos rejeitar. Defendo o que é defensável no ponto de vista de Kant, enquanto evito a intolerável metafísica que ele e, em sua esteira, Husserl, Heidegger, Patocka e vários outros, transformaram na tese central de uma teoria do homem. Ao mesmo tempo, rejeito qualquer tentativa de oferecer uma teoria do homem em termos meramente científicos: em termos da ‘melhor explanação’ do que somos. Pois somos meras aparências, e a melhor explanação de nossa natureza provavelmente não fará uso do conceito de pessoa, ainda que esse conceito defina o que somos para os outros e para nós mesmos.
Eu contrasto dois modos de entendimento: o entendimento científico, que visa explicar o mundo, e o ‘entendimento intencional’, como eu o chamo, que visa descrever, criticar e justificar o Lebenswelt. O segundo é uma tentativa para compreender o mundo em termos dos conceitos por meio dos quais o experienciamos e agimos sobre ele: estes conceitos identificam o ‘objeto intencional’ de nossos estados mentais ordinários. Por conseguinte, um entendimento intencional preenche o mundo com os significados implícitos em nossas emoções e em nossos objetivos. A ideia de tal entendimento é um conhecido donnée da sociologia kantiana, subjacente à visão de que o mundo social em que agimos deve ser compreendido de maneira diferente daquela pela qual compreendemos o mundo do observador neutro, por meio de um ato de Verstehen.[14] Não somente este ‘entendimento intencional’ nos é indispensável enquanto agentes racionais; ele também pode ser insubstituível por qualquer entendimento derivado das ciências naturais. O entendimento intencional preocupa-se não tanto em explicar o mundo como em estar ‘em casa’ nele, reconhecendo ocasiões para a ação, os objetos de simpatia e os locais de repouso.
Nosso entendimento intencional deve inevitavelmente conter elementos largamente explanatórios – pois você não pode ser bem sucedido ao agir sem um sistema de crenças. E possuir uma crença é estar comprometido com a busca da verdade, e consequentemente, com a construção de teorias científicas, e com a subsequente classificação do mundo em termos de tipos naturais. No entanto, não há nenhuma razão para supor que tal classificação fornecerá fundamentos suficientes para nossa conduta racional, assim como não há razão para pensar que a classificação química das rochas oferecerá fundamentos para a atividade do escultor. Mais especificamente, esta visão científica e neutra das coisas pode ser bastante apropriada para descrever os meios de realizar nossos objetivos, mas deve permanecer para sempre incapaz de descrever os fins a que aspiramos. Os fins da vida são também os significados de nossas experiências pessoais, e o mundo da ciência é um mundo desprovido de significados.[15]
Considere as relações humanas mais elementares. As pessoas individuais que encontro são membros de um tipo natural – o tipo ‘ser humano’ – e se comportam de acordo com as leis deste tipo. No entanto, eu subsumo as pessoas e suas ações sob conceitos que não figuram na formulação destas leis. Com efeito, a alucinação destas leis (pois assim elas devem ser descritas em nosso presente estado de ignorância) frequentemente parece perturbar a interação genuinamente humana entre as pessoas. Se, para mim, os fatos fundamentais sobre John são sua constituição biológica, sua essência científica, sua estrutura neurológica, então será difícil para mim responder a ele com afeição, raiva, amor, desprezo ou pesar. Assim descrito ele se torna misterioso para mim, uma vez que essas classificações não capturam o objeto intencional da emoção interpessoal.
Colocando em termos gerais: o esforço científico para penetrar nas ‘profundezas’ dos assuntos humanos é acompanhado quase que universalmente por uma perda da resposta à ‘superfície’. Não obstante, é na superfície que vivemos e agimos: é lá que somos criados, como aparências complexas sustentadas pela interação social que nós, como aparências, também criamos. O ‘mistério’ com o qual a pessoa humana é ocultada do campo de visão do neurofisiologista é exatamente o mesmo que esconde a história humana do determinista marxiano e a moralidade humana do sociobiólogo. Estas ciências fascinam por seu apelo desmistificador; mas elas terminam por mistificar mais profundamente os fenômenos que tencionam explicar, justamente ao criar condições que ensejam o esquecimento do propósito de explica-los. (Nas palavras de Wittgenstein, ‘o que está oculto não nos é de nenhum interesse.’)
No entanto, os conceitos de nosso entendimento intencional não são fáceis de analisar. Seu entranhamento indissolúvel na sensibilidade e na ação dificulta sua focalização. O mundo humano pode não ser ‘profundo’ no sentido científico do termo, mas é denso.[16] Logo, muitas vezes é mais fácil falar da intencionalidade de uma emoção como se se tratasse de uma questão de percepção, e não de pensamento: o objeto de aversão é percebido aversivamente. Compreender o conceito de pessoa pode similarmente exigir que compreendamos um tipo de percepção: entender o que é ver seres humanos como pessoas. E esta percepção, por sua vez, pode não ser fácil de desemaranhar do tecido cultural ao qual pertence, ou dos fins de conduta últimos que ela serve para realçar.
Isto não significa que nosso entendimento intencional produz ‘meras ideologias’ no sentido marxiano – um sistema de crenças sem nada que o recomende, não obstante sua capacidade de mistificar o mundo de maneira a respaldar nossos empreendimentos (‘burgueses’).[17] Os marxistas de fato estão corretos ao diferenciar crenças em termos de sua explanação, e ao assinalar o estatuto epistemológico desviante de uma crença que deve ser explicada sempre em termos de algum interesse humano que não o interesse pela verdade. No entanto, embora vários de nossos conceitos devam ser explicados em termos funcionais, não se segue que uma explanação funcional é apropriada para as crenças em que esses conceitos figuram. Assim, a existência do conceito ‘mármore ornamental’ deve ser explicada em termos de sua utilidade em orientar nossos propósitos esculturais. Não obstante, o escultor que julga alguma rocha como ornamental adquire esta crença como resultado de evidências. Tais crenças ‘frágeis’ são não-científicas, uma vez que empregam conceitos opacos ao método científico. Mas elas podem ser verdadeiras ou falsas, razoáveis ou francamente absurdas. Pois elas são causadas, em geral, por nossa percepção de como as coisas são, não por nossas necessidades.
Geralmente, o mesmo vale para os conceitos que definem o Lebenswelt. No entanto, a funcionalidade desses conceitos não implica a funcionalidade das crenças que os empregam. A objetividade destas crenças pode ser tão segura quanto a objetividade da ciência, ainda que elas se refiram não à estrutura subjacente da realidade, mas ao Lebenswelt. Se o Lebenswelt é uma invenção burguesa, então devemos exaltar e emular o espírito burguês, que é mais bem adaptado para perceber a realidade humana do que a consciência ordenada do crítico ‘desmistificador’.
Há verdades objetivas genuínas sobre o Lebenswelt a serem esclarecidas pela análise filosófica. Por conseguinte, a filosofia pode trazer verdadeira iluminação da condição humana, exatamente por meio da ‘análise de conceitos’ que, há não muito tempo, muitas vezes aparentou debilitar nossas percepções humanas. Uma análise de conceitos é o que está envolvido no esforço para ampliar e aprofundar o domínio do ‘entendimento intencional’. Nada pode servir para iluminar a intencionalidade de nossas respostas humanas naturais a não ser a análise dos conceitos que estão envolvidos nestas respostas. Este esforço para aprofundar nosso entendimento intencional é um esforço para explorar o domínio do ‘dado’, mas não o do subjetivamente dado. Não estamos preocupados com o conhecimento da experiência em primeira pessoa, mas com as práticas compartilhadas por cujo intermédio uma linguagem pública conecta-se tanto ao mundo como à vida daqueles que o descrevem. Esta é a ideia capturada pelo bordão de Wittgenstein, ‘o que é dado são formas de vida’, e no reconhecimento do próprio Husserl de que o Lebenswelt é dado ‘intersubjetivamente’ (Husserl, no entanto, não renunciou à desastrosa ‘psicologia transcendental’ com que o sobrecarregou).[18]
O fundamento de nossa compreensão do mundo humano reside em práticas compartilhadas e publicamente acessíveis, das quais a linguagem – que define os modos de representação pelos quais percebemos o mundo – é a mais importante. Essa é a razão pela qual não faço distinções entre conclusões ‘fenomenológicas’ e conclusões ‘analíticas’. Dois idiomas estão igualmente à minha disposição, e nenhum deles precisa ser concebido como detentor do monopólio da verdade, uma vez que, tão logo aceitamos que a ideia de uma ‘linguagem privada’ não faz sentido, não pode haver nenhum conflito real entre os dois idiomas.
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[Os parágrafos acima foram traduzidos e ligeiramente adaptados do primeiro capítulo do livro Sexual Desire: A Philosophical Investigation, publicado originalmente em 1986 pela editora britânica Weidenfeld & Nicolson.]
Notas.
8. Ver Putnam, The Meaning of “Meaning”, e Kripke, Naming and Necessity. O termo ‘tipo natural’ deriva obliquamente de J. S. Mill, A System of Logic, 10ª Ed., Londres, 1879, Livro 1, Cap. VII. Mill refere-se a Tipos que existem na natureza, e daí em diante preserva o ‘T’ maiúsculo a fim de denotar este tipo de tipo. Obviamente, a observação de que nossas classificações são frequentemente funcionais ou analógicas e, portanto, falsificam a natureza daquilo a que são aplicadas é mais antiga do que Mill, inspirando a distinção de Locke entre essências reais e nominais (Essay Concerning Human Understanding, Livro III, Cap. 3, §15), e o método de Buffon na Histoire Naturelle, em que ele rejeita explicitamente nossos hábitos ordinários de classificação, uma que tais hábitos tentam ‘dividir a natureza em pontos em que ela é indivisível’.
Sobre a distinção entre tipos naturais e funcionais, ver David Wiggins, Sameness and Substance, Oxford, 1980, pp. 171ss. A ideia de tipos funcionais talvez seja menos familiar do que a de tipos naturais; todavia, tal noção é necessária para que o ‘funcionalismo’ faça sentido enquanto teoria da mente. O funcionalismo foi exposto em detalhes por D. C. Dennett nos artigos reunidos em seu livro Brainstorms, Brighton, 1978.
9. Esta visão – de que a descrição e a explanação são partes contínuas de um único processo – foi sustentada por vários autores, incluindo W. V. Quine, Word and Object, Cambridge, Mass., 1960, e Wilfred Sellars, Science, Perception and Reality, Londres, 1963.
10. A distinção entre qualidades primárias e qualidades secundárias remonta pelo menos a Pierre Gassendi; não obstante, ela nunca deixou de ser problemática (...)
11. Husserl referiu-se ao mundo da experiência humana como o ‘mundo natural’ (Naturwelt), um termo adotado por vários discípulos seus (por exemplo, por Patočka, em seu The Natural World as a Philosophical Problem, Praga, 1933 – um livro que subsequentemente provou-se fecundo ao sugerir um papel para a filosofia na interpretação da experiência humana que seria distinto do papel da ciência). A terminologia que Husserl veio a preferir mais tarde – Umwelt (‘mundo ao redor’) e Lebenswelt – indicam um reconhecimento tardio de que é precisamente por contraste com uma certa visão da ‘natureza’ que o mundo da experiência humana deveria ser caracterizado. O termo Lebenswelt possui um ancestral mais antigo. Ele ocorre em Dilthey e nas obras de certos teóricos do Einfühlung (como Lipps); ele também ocorre nos sociólogos fenomenológicos como Alfred Schutz, e é relacionado ao vocabulário dos historiadores da arte hegelianos (por exemplo, Wölfflin). (Ver Dilthey, Collected Works, vol. VII. A expressão preferida de Dilthey, no entanto, é mais hegeliana: ‘objetificações da vida’. Ver também Alfred Schutz, The Phenomenology of the Social World, tr. G. Walsh e F. Lehnert, Portland USA 1967; Heinrich Wölfflin, Renaissance and Baroque, tr. K . Simon, London, 1964, pp. 77ss.)
12. Compare com a ideia de Heidegger de que, para mim, as ‘coisas’ são essencialmente para ‘ser usadas’: Being and Time, tr. J. Macquarrie e E. S. Robinson, New york, 1962, pp. 96ss.
13. Compare com os argumentos distintos, porém complementares, contra o ‘racionalismo’ na política apresentados por Michael Oakeshott (Rationalism in Politics, Londres, 1968) e por F. A. von Hayek (Studies in Philosophy, Politics and Economics, Londres, 1967).
14. Dilthey, Collected Works, vol. VII; Max Weber, ‘The Nature of Social Action’, in W. G. Runciman (ed.) Weber, Selections in Translation, Cambridge, 1978.
15. Retorno a este ponto no Cap. 15, onde digo mais sobre o que entendo por ‘significado’, e sua conexão com o ponto de vista do sujeito humano que, no fim, está sempre em guerra com a ‘impessoalidade’ da ciência. Para algumas interessantes especulações tchecas sobre este tema, ver V. Belohradsky, Krize Eschatologie Neosobnosti, Munique, 1982, e discurso de doutoramento de Vaclav Havel enviado para a Universidade de Toulouse, ‘Politics and Conscience’, Salisbury Review, 3 (2), 1985.
16. Veja R. A. D. Grant, resenha de S. R. Letwin, The Gentleman in Trollope, Salisbury Revuew, 1 (1) 1982, pp. 41-2.
17. A teoria marxiana da ideologia tem suas origens em K. Marx e F. Engels, The German Ideology, 1846. O contraste entre ideologia e ciência – vital para a teoria marxiana da história e para a crítica marxiana da filosofia – encontra-se tão bem estabelecido no clima de opinião corrente que um comentador é capaz de dizer que ‘uma propriedade definidora da ideologia é ser não-científica’ (G. A. Cohen, Karl Marx’s Theory of History, A Defence, 1978, p. 46).
18. E. Husserl, Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phäenomenologie, ed. W. Biemel, The Hague, 1976, part 2.0