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Sobre o barulho

Autor: Arthur Schopenhauer

Fonte: The Essays of Arthur Schopenhauer – Volume Three: Studies in Pessimism (Pennsylvania State University, 2005), pp. 71-75.

Kant escreveu um Tratado Sobre Os Poderes Vitais. Eu preferiria escrever um lamento por eles. A exibição superabundante de vitalidade, que assume ubiquamente a forma de batidas, marteladas e arremessos de coisas, assumiu ao longo de toda minha vida a forma de um tormento diário. Há pessoas, é verdade, – melhor dizendo, a grande maioria das pessoas – que acham graça de tais coisas, pois não são sensíveis ao barulho; mas estas são exatamente as mesmas pessoas que também não se deixam afetar por argumentos, ou são também insensíveis ao pensamento, à poesia ou à arte; numa sentença, são imunes a qualquer tipo de influência intelectual. A razão disso é que o tecido de seus cérebros é de uma qualidade muito grosseira e vulgar. Por outro lado, o barulho é uma tortura para as pessoas intelectuais. Nas biografias de quase todos os grandes autores, ou em qualquer outro lugar em que seus ditos estejam registrados, encontro queixas a respeito disso; no caso de Kant, por exemplo, e de Goethe, Lichtenberg e Jean Paul; e se porventura algum autor deixou de se manifestar sobre o assunto, terá sido apenas por falta de oportunidade.

Esta aversão ao barulho eu explicaria da seguinte maneira: se você quebrar um diamante grande em pequeninos fragmentos, ele perderá completamente o valor que possuía quando inteiro; um exército dividido em pequenos grupos de soldados perde toda a sua força. De maneira similar, um grande intelecto decai ao nível de um intelecto ordinário tão logo é interrompido e perturbado, sua atenção distraída e desviada do problema de que se ocupa; pois sua superioridade depende de seu poder de concentração – de concentrar toda sua força sobre um único assunto, do mesmo modo que um espelho côncavo converge para um mesmo ponto todos os raios de luz que incidem sobre ele. Interrupções ruidosas são um empecilho a esta concentração. É esta a razão pela qual mentes notáveis invariavelmente demonstram tamanho desgosto por qualquer forma de perturbação como algo que invade sua mente e dissipa seus pensamentos. Acima de tudo eles demonstram aversão àquela interrupção violenta causada pelo barulho. Pessoas ordinárias não se incomodam muito com nada do tipo. A mais sensível e inteligente de todas as nações europeias promulga a regra “Nunca Interrompa!” como o décimo-primeiro mandamento. O barulho é a mais impertinente de todas as formas de interrupção. Ele não é apenas uma interrupção, mas também uma destruição do pensamento. Naturalmente, onde não há nada para interromper, o barulho não será tão particularmente doloroso. Ocasionalmente acontece que algum ruído sutil mas constante me incomoda e distrai continuamente por algum tempo antes que eu me torne distintamente consciente dele. Tudo o que sinto é um aumento uniforme do esforço mental – como se eu estivesse tentando caminhar com um peso em meus pés. Por fim eu descubro o que é. De qualquer maneira, passemos agora do gênero às espécies. O mais imperdoável e abominável de todos os barulhos é o estalo dos chicotes – uma coisa verdadeiramente infernal quando é feito nas ruas estreitas e ressonantes de uma cidade pequena. Eu o denuncio como aquilo que torna impossível uma vida pacífica; ele põe termo a todo pensamento suave. Que este estalo de chicotes seja permitido parece-me uma demonstração irrefutável do quão absurda e despropositada é a natureza da humanidade. Ninguém com qualquer coisa semelhante a uma ideia em sua cabeça pode deixar de sentir uma verdadeira dor ao escutar este estalo súbito e afiado que paralisa o cérebro, rompe a trama da reflexão e mata o pensamento. Cada uma de suas ocorrências deve perturbar uma centena de pessoas envolvidas com algum tipo de trabalho mental, não importa o quão trivial; enquanto sobre o pensador seu efeito é catastrófico e desesperador, desmembrando seus pensamentos como o machado de um carrasco decepa a cabeça do condenado. Nenhum som, não importa o quão agudo, penetra de maneira tão afiada no cérebro como este maldito estalo de chicotes; você sente o aguilhão do chicote lá dentro da sua cabeça; e ele afeta o cérebro da mesma maneira que o toque afeta uma planta sensitiva, e pelo mesmo intervalo de tempo.

Com o devido respeito pela sagrada doutrina da utilidade, eu realmente não consigo ver por que razão uma pessoa conduzindo uma carroça de entulho ou esterco teria o direito de abortar os pensamentos que porventura estejam brotando em dez mil cabeças – o número de pessoas que ele perturbará uma após a outra em meia hora percorrendo a cidade. Batidas, marteladas, latidos de cães e gritos de crianças são horríveis aos ouvidos; mas o único assassino genuíno de pensamentos é o estalo de um chicote; ele existe para o único propósito de destruir todo momento agradável de reflexão silenciosa que qualquer um possa ocasionalmente desfrutar. Se o condutor não dispusesse de nenhum outro meio pelo qual acelerar a marcha de seu cavalo além do mais abominável de todos os barulhos, ele estaria desculpado; mas o caso é exatamente o contrário. Este maldito estalar do chicote é não somente desnecessário como também inútil. Seu objetivo é produzir um efeito sobre a inteligência do cavalo; mas pelo constante abuso deste recurso, o animal se habitua ao som que, incidindo sobre uma sensibilidade embotada pelo abuso, deixa de produzir absolutamente qualquer efeito. O cavalo não acelera sua marcha por causa dele. Você tem um exemplo notável disso quando observa um taxista estalar incessantemente seu chicote enquanto roda lentamente à procura de passageiros. Se ele chicoteasse seu cavalo com o mínimo de força possível obteria o mesmo efeito. De qualquer maneira, supondo que fosse absolutamente necessário estalar o chicote a fim de manter o cavalo constantemente cônscio de sua presença, um ruído cem vezes mais fraco seria o bastante. Pois é um fato bem conhecido que, em relação à visão e à audição, os animais são sensíveis até mesmo aos mais tênues estímulos; eles estão atentos a coisas que mal percebemos. Os exemplos mais surpreendentes disso são oferecidos por cães e canários treinados.

É óbvio, portanto, que aqui estamos lidando com um ato de pura crueldade; melhor dizendo, com um desafio indecente lançado aos membros da comunidade que trabalham com suas cabeças por aqueles que trabalham com suas mãos. Que tamanha infâmia seja tolerada numa cidade é uma amostra de barbaridade e iniquidade, quanto mais porque isso poderia ser facilmente remediado por uma lei decretando que todo chicote deve ter um nó em sua ponta. Não pode haver nenhum mal em chamar a atenção das massas para o fato de que  as classes que lhe são superiores trabalham com suas cabeças, pois qualquer tipo de trabalho intelectual representa uma angústia mortal para o homem comum na rua. Um indivíduo que passa pelas vielas estreitas de uma cidade levando cavalos desocupados e continua estalando seu chicote por milhas a fio com toda a sua força merece receber umas boas cinco chibatadas por isso. Nenhum dos filantropos e legisladores do mundo empenhados em decretar a completa abolição dos castigos corporais jamais me convencerão do contrário!

Há algo ainda mais abominável do que o que acabei de descrever. É bastante comum vermos um carroceiro caminhando pela rua, completamente sozinho, sem qualquer cavalo, e ainda assim estalando incessantemente seu chicote, tão habituado o infeliz se tornou em consequência da injustificável tolerância para com esta prática. O corpo de um homem e as necessidades de seu corpo são atualmente tratados com a mais terna indulgência. Seria a mente pensante, então, a única coisa a nunca obter a mais ínfima medida de consideração ou proteção, para não mencionar respeito? Carroceiros, porteiros, mensageiros – estes são os burros de carga da humanidade; jamais deixemos de lhes dispensar um tratamento justo, honesto, cordial e prudente; mas não se deve permitir que eles obstruam o caminho dos mais elevados empreendimentos da humanidade fazendo barulho gratuito e excessivo. Eu gostaria muito de saber quantos pensamentos esplêndidos e grandiosos o mundo perdeu pelo estalo de um chicote. Se estivesse em meu poder, eu produziria nas cabeças destas pessoas uma associação indissolúvel de ideias entre o estalo de um chicote e a sensação da dor causada por uma chicotada.

Esperemos que a mais inteligente e refinada entre as nações dê os primeiros passos a este respeito, e então que os alemães tomem-na como modelo e sigam seu exemplo.[1] Enquanto isso, posso citar o que Thomas Hood diz a seu respeito[2]: “Para uma nação musical, eles são os mais ruidosos que já encontrei.” Que eles sejam assim é devido não ao fato de serem eles mais propensos a fazer barulho do que outros povos – eles negariam isso se você lhes perguntasse – mas a que seus sentidos são obtusos; consequentemente, quando ouvem um barulho, não os afeta muito. Não os perturba ao ler ou pensar, simplesmente porque eles não pensam; eles apenas fumam, sendo esta atividade seu sucedâneo para o pensamento. A tolerância geral para com barulho desnecessário – batidas de porta, por exemplo, uma demonstração de rispidez e falta de educação extremas – é evidência direta de que o hábito mental dominante é a estupidez e a falta de reflexão. Na Alemanha em particular, parece que cuidados são tomados, na forma de barulho, para que ninguém jamais pense. Para mencionar apenas um exemplo, considerem a diligência com que batidas e pancadas se fazem ouvir continuamente sem propósito algum.

Finalmente, em relação à literatura sobre o assunto tratado neste ensaio, tenho apenas uma obra para recomendar, mas muito boa. Refiro-me à epístola poética em terzo rimo pelo célebre pintor Bronzino, intitulada De’Romori: a Messe Luca Martini. Esta obra contém uma descrição detalhada da tortura à qual as pessoas são submetidas pelas várias espécies de barulho de uma pequena cidade italiana. Escrita num estilo tragicômico, é uma leitura bastante divertida. A epístola pode ser encontrada em Opere burlesche del Berni, Aretino ed altri, Vol. II, p. 258; aparentemente publicada em Utrecht em 1771.

Notas.

1. De acordo com uma notícia publicada pela Sociedade Protetora dos Animais em Munique, o uso supérfluo do chicote foi positivamente proibido em Nuremberg em dezembro de 1858.

2. Em Up the Rhine.

por Roger Scruton

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ScrutonRoger Scruton nasceu na Inglaterra e é escritor, filósofo e jornalista. Sua especialização concentra-se na área de estética, com atenção especial para a música e a arquitetura. Escreve frequentemente na imprensa sobre questões políticas e culturais e é atualmente pesquisador do Institute for the Psychological Sciences.

No Brasil, a editora É Realizações já publicou os livros Pensadores da Nova Esquerda, Beleza e Coração Devotado À Morte.

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À semelhança de vários outros filósofos ‘analíticos’, nutro fortes reservas quanto à fenomenologia. Mais especificamente, desconfio do método ‘cartesiano’ de Husserl, que assume que a experiência deve ser descrita do ponto de vista da primeira pessoa. Ao mesmo tempo, sou imensamente devedor de outra ideia de importância capital para a fenomenologia, e cujo reconhecimento pelos praticantes da ‘análise conceitual’ tardou a ocorrer. A ideia é mais antiga que a fenomenologia – talvez tão antiga quanto Aristóteles, certamente tão antiga quanto Kant. De acordo com esta noção, devemos distinguir o mundo da experiência humana do mundo da observação científica. No primeiro, existimos como agentes no comando de nosso destino e relacionamo-nos uns aos outros por meio de concepções estranhas à visão científica do universo. No segundo, existimos como organismos impelidos por uma causalidade arcana e relacionados uns aos outros pelas mesmas leis do movimento que governam todas as outras coisas. Kant descreveu o primeiro mundo como ‘transcendental’, o segundo como ‘empírico’, e mapeou brilhantemente duas concepções exaustivas, mutuamente incompatíveis e, para ele, igualmente impossíveis, da relação que estes mundos mantém entre si. Em uma concepção, o mundo transcendental é um domínio separado do mundo empírico, de modo que os objetos que pertencem a um não são encontrados no outro. Na outra concepção, não estamos lidando com dois mundos distintos, mas com duas maneiras separadas de olhar para o mesmo material: podemos vê-lo ou da perspectiva ‘transcendental’ do agente humano ou da perspectiva ‘empírica’ do observador científico. Acredito que devemos distinguir, não dois mundos, mas duas maneiras de compreender o mundo, e em particular dois empreendimentos conceituais separados pelos quais nosso entendimento é constituído.

O mundo não é apenas mero objeto de curiosidade científica. Ele é dócil aos nossos propósitos: por toda parte encontramos ensejo para a ação e os meios pelos quais realizá-la. O mundo também é diversificado, apresentando objetos de desejo variados e obstáculos díspares à nossa vontade. Na qualidade de seres práticos, desenvolvemos instintivamente categorias que registram e facilitam nosso comércio com as imediações, e estas categorias exibem a dupla chancela do propósito humano e da variedade material – correspondendo em parte aos nossos usos e em parte à condição natural dos objetos descritos. Algumas categorias não fazem mais do que registrar a finalidade para a qual um objeto pode ser empregado: categorias como ‘mesa’, ‘balanço’ e ‘abrigo’. Outros descrevem algum traço recorrente do meio, e talvez ao mesmo tempo postulem uma explanação de sua aparência unificada: categorias como ‘animal’, ‘vegetal’ e ‘rocha’. Outras categorias parecem encaixar-se em ambas as classes, combinando significância funcional e poder explanatório. Quando descrevemos algo como duro, situamos este objeto na trama dos propósitos humanos – trata-se de algo que resiste aos nossos esforços para transformá-lo, e talvez também nos machuque. Ao mesmo tempo, atribuímos uma característica física, uma constituição que o relaciona a uma pluralidade de substâncias aparentadas no mundo da natureza.

Nos últimos anos, os filósofos tem prestado muita atenção à existência destes tipos contrastantes de categorias, e em particular à divisão entre tipos naturais e funcionais.[8] Considerando nossa existência dual como seres ativos e contemplativos, é natural que lancemos mão dos dois tipos de conceitos e que hajam tantas noções situadas na zona cinzenta ocupada por ‘duro’ e ‘macio’. Buscamos tanto compreender o mundo como alterá-lo, e nos empenhamos em ser tão bem sucedidos quanto possível em ambas as empreitadas. Para tanto, nos municiamos com categorias permeáveis à explanação (tipos naturais) e categorias permeáveis a propósitos (tipos funcionais). Mas nossa relação com o mundo é vastamente mais complexa do que isso sugere: além de propósitos e conhecimentos, temos experiências, valores, emoções e crenças religiosas. Estes também ditam suas próprias trajetórias conceituais, suas tentativas separadas de ordenar o mundo como um objeto de nossos interesses.

A classificação pode ser comparada à atividade de um açougueiro, na qual um objeto é dividido, às vezes de acordo com sua natureza, às vezes em conflito com ela. O açougueiro inglês, motivado por um zeloso desprezo pelo cadáver à sua frente, e também pelo homem que irá comê-lo, retalha barbaramente a criatura em amontoados toscos, tendo a recomendá-lo pouco mais do que uma tradição de honestidade. Uma ‘peça’ inglesa pode consistir de uma tira de músculo dorsal, um pedaço de vértebra, uma fatia de rim, alguma pele, algum tutano, alguns pelos e o sinal indelével com que a Fazenda Jones marca seus novilhos. Eventualmente, como no caso da porção de rim, a combinação resultante de sabores origina um interessante ‘tipo gustativo’. Mas isto não fazia parte da intenção. O açougueiro francês, movido por um respeito autóctone por les nourritures terrestres, empenha-se em separar cada textura e cada sabor natural de seus concorrentes, removendo do bife todos os fragmentos de ossos, gordura e vísceras, e a pele que o envolve. Ele se empenha mais do que  seu colega inglês em dividir a natureza em seus pontos de articulação; mas sua lealdade à natureza resulta de interesses que não mantém nenhuma relação necessária com as leis da natureza. Ele ainda não se compara ao anatomista que, renunciando a todo e qualquer interesse pelas aparências, explora os segredos da natureza na ordem em que a natureza os concebeu. Para o anatomista, a verdadeira ordem da carcaça é aquela que explica não apenas seu sabor como também sua estrutura, seus movimentos enquanto vivia, seu vir a ser e seu perecer.

Tanto na classificação como na arte de cortar carnes, muitas vezes estamos mais interessados na relação que os objetos mantém conosco do que em sua causalidade e constituição. Pois procuramos não somente pela causa dos eventos, mas também por seu significado – mesmo quando eles não tem significado algum. Por exemplo, agrupamos as estrelas em constelações de acordo com nossas próprias ficções, e ao fazê-lo cometemos uma violência astronômica. Para o astrônomo nosso conceito de uma ‘constelação’ não exibe nada além das emoções supersticiosas daqueles que a divisaram pela primeira vez. Para o astrólogo, tal conceito comunica a mais profunda iluminação quanto ao mistério das coisas. Para o resto de nós, esta classificação é um registro de nossa familiaridade com o mundo, um tributo à face humana que o reveste. Thomas Hardy desperta em nós uma imensa tristeza quando escreve, a respeito do jovem caixeiro-viajante Hodge, morto na Guerra dos Bôeres, que ele ‘nunca conheceu…/o significado do Grande Karoo‘: morrer em imediações opacas à nossa busca por significado é morrer desconsolado. Portanto, a desolação das ‘constelações alienígenas’ que ‘põem-se/a cada aurora atrás da montanha‘.

Por ora, deixemos de lado as constelações e ocupemo-nos de uma categoria derivada de nosso interesse pela beleza que nos será de maior utilidade: a categoria do ornamental. Consideremos então a classe dos ‘mármores ornamentais’. O propósito desta classificação – de grande importância para escultores, construtores e arquitetos conscienciosos – é assimilar rochas que são objetos de uma preocupação estética singular. Um mármore ornamental pode ser polido; ele possui uma textura, uma cor, uma profundidade e uma translucidez superficial que o tornam recomendável para nossos propósitos decorativos. Sob esta classificação caem o ônix, o porfírio e o próprio mármore. Cientificamente falando, a classificação não faz o menor sentido. Pois o ônix é um óxido, o porfírio um silicato, o mármore um carbonato, ao passo que a pedra de cal – um isótopo do mármore – é terminantemente excluída desta classe. Uma ciência das pedras deve almejar substituir todas as classificações desta natureza – cuja subserviência aos propósitos humanos as priva de um poder explanatório cabal – por outras classificações mais profundas, projetadas para capturar similaridades reais entre os objetos que elas subsomem. Em outras palavras, a ciência busca descobrir tipos naturais. Pois somente uma divisão do mundo em tipos naturais pode nos suprir com os meios para penetrar por debaixo das aparências até alcançarmos as ‘leis do movimento’ subjacentes que as explicam.

Uma ciência das rochas, portanto, classificaria igualmente o mármore e a pedra de cal como formas cristalinas diferentes do carbonato de cálcio geradas pela decomposição sob pressão de organismos biológicos mortos. Tal ciência provavelmente não encontraria uma explicação única para o fato de que a aparência e a utilidade do mármore serem tão estreitamente próximas da aparência e da utilidade do ônix e do porfírio. Logo, certamente não conteria nenhuma classificação que corresponda à nossa ideia de um mármore ornamental. Ao contrário, é provável que elimine todas estas classificações, que tendem a se dissolver à medida em escavamos por debaixo da superfície da experiência humana até alcançarmos a ordem física subjacente que a explica e sustenta.

Alguns conceitos, portanto, incluindo os conceitos das ciências naturais, possuem uma função explanatória. Tais conceitos não somente  fornecem os termos nos quais as explanações são formuladas; eles são explanatórios neles mesmos, no sentido de que subsumir um objeto sob eles já é oferecer uma explanação de sua natureza empiricamente determinável.[9] Outros conceitos, incluindo diversos conceitos de senso comum e de entendimento intuitivo, não são (pelo menos não a princípio) explanatórios. Sua função é recortar o mundo de acordo com nossos interesses, assinalar possibilidades de ação, emoção e experiência que podem muito bem ser frustradas por uma atenção excessiva à ordem subjacente das coisas. Conceitos deste tipo muitas vezes tendem a colapsar sob a pressão da inovação científica. Sentimos esta pressão de várias maneiras; ela se manifesta mais imediatamente como um tipo de instabilidade em nossas descrições ordinárias. É como se mesas e cadeiras não fossem realmente como as descrevemos. Elas não são realmente coloridas, não são realmente sólidas, e assim por diante. Pois a melhor explanação destas aparências indeléveis não faz menção alguma a cores (quando muito falam da experiência da cor), e postula em lugar da mesa ‘sólida’ um aglomerado descontínuo de moléculas separadas umas das outras por uma distância maior do que seu próprio diâmetro.

Não precisamos investigar aqui o que a palavra ‘realmente’ significa nos lábios de quem diz que nenhuma mesa é realmente colorida. O que importa é o contraste entre a ‘fragilidade’ de nossas descrições ordinárias e a solidez ‘pétrea’ das explanações que parecem ameaçá-las, e que, quando muito, apenas levam a explanações melhores do que elas próprias. Ao mesmo tempo, não podemos abrir mão das descrições do pensamento e da ação ordinários. Sem elas, somos privados de um instrumento essencial para a compreensão de nosso mundo. A classificação de rochas como mármores ornamentais indica não uma similaridade estrutural entre as substâncias a que são aplicadas, mas uma similaridade parcialmente fenomênica, parcialmente funcional. E o propósito de assinalar esta similaridade é encapsular a finalidade comum a que estes objetos podem servir numa classificação.

Como nosso exemplo mostra, classificações relativas a finalidades (classificação em termos de ‘tipos funcionais’) não são o único exemplo de descrições ‘frágeis’ geradas pela vida humana diária. Há também classificações relativas a experiências sensoriais imediatas – o tipo de classificação que registra ‘qualidade secundárias’.[10] E há exemplos mais elusivos: classificações relativas a emoções (o temível, o amável, o repugnante), e classificações relativas ao interesse estético (o ornamental, o sereno, o elegante e o harmonioso). Tais classificações registram não as variedades de objetos materiais, mas as variedades da ‘intencionalidade’ humana – tomando emprestado aos fenomenólogos uma tecnicalidade útil.

Por ‘intencionalidade’ eu quero dizer a qualidade de ‘referência exterior’ que está contida na consciência humana: a qualidade de apontar e delinear um objeto de pensamento. A ‘consciência do mundo’ que jaz no coração de minha experiência, e que parece constantemente projetar meus pensamentos sobre uma realidade maior do que eu, existe em várias formas: crença, percepção, imaginação, emoção e desejo. Cada um destes estados mentais demarca um espaço, por assim dizer, diante de mim – uma lacuna na qual um objeto pode ser inserido. Meu medo é medo de algo, minha percepção, percepção de algo, e assim por diante. Às vezes eu próprio sou o objeto de meus pensamentos; entretanto, o mais comum é que o objeto seja alguma outra coisa que não eu mesmo, algo que pertence ao ‘mundo ao redor’ de minha experiência.

Descreverei este ‘mundo ao redor’ como o Lebenswelt (‘mundo da vida’), usando um termo popular entre fenomenólogos, embora não exclusivo deles.[11] O Lebenswelt não é um mundo separado do mundo da ciência natural, mas um mundo descrito de maneira diferente – descrito com os conceitos que designam os objetos intencionais da experiência humana. A intencionalidade implica que minha consciência é também uma forma de representação: minha consciência mostra-me um mundo e também me situa em relação a ele. Mas nem todas as formas de representação são transparentes. As descrições empregadas pela ciência supõem que a natureza dos objetos identificados por elas deve ser descoberta. A representação identifica um objeto: mas sua natureza deve ser determinada por meio de uma investigação. O mesmo não é verdade do Lebenswelt, cujos objetos são identificados por descrições que são, ou pretendem ser, transparentes para nossas experiências e propósitos. Os objetos do Lebenswelt são concebidos sob classificações que refletem nosso próprio interesse prático e contemplativo por eles. Estas classificações tentam dividir o mundo segundo as exigências da razão teórica e prática cotidiana.[12] As classificações que definem os ‘tipos fenomenológicos’ do Lebenswelt são apenas parcialmente responsivas ao empreendimento da predição. Elas às vezes se desintegram sob o impacto da explanação científica, não porque estejam necessariamente em conflito com a visão de mundo científica, mas porque elas não são capazes de resistir ao ponto de vista do observador curioso que olha não para os interesses das pessoas, mas para estrutura da realidade subjacente.

Ao mesmo tempo, a ciência não fornece nenhum substituto para os conceitos que organizam e orientam nossa experiência cotidiana. Um escultor munido de teorias químicas, geológicas e cristalográficas, mas que não disponha do conceito (estranho a estas ciências) de um mármore ornamental, não terá aquele senso imediato de similaridade que habilita seu colega com menos instrução formal a relacionar espontaneamente o ônix ao porfírio. Suas próprias percepções serão diferentes, pois estarão desprovidas de um conceito em cujos termos tais rochas seriam vistas de maneira diferente.

Que a penetração científica sob a superfície das coisas pode tornar a superfície ininteligível – ou pelo menos inteligível lenta e dolorosamente, e com uma hesitação que frustra as necessidades imediatas da ação humana, é uma tese controversa. Enquanto agentes, pertencemos à superfície do mundo e entramos em relação imediata com ele. Os conceitos por meio dos quais o representamos estabelecem uma conexão vital com a realidade, e sem esta conexão a ação apropriada e a resposta apropriada podem não emergir com a rapidez e a competência imprescindíveis para assegurar nossa sobrevivência e nossa felicidade. Não podemos substituir nossos conceitos ordinários mais básicos por qualquer outra coisa melhor do que eles, pois eles evoluíram exatamente sob a pressão da condição humana e em resposta às necessidades das gerações passadas. Qualquer ‘reconstrução racional’ – não importa o quão fiel à verdade que subjaz às coisas e às exigências da objetividade científica – arrisca-se a danificar a conexão vital que liga nossa resposta ao mundo, e o mundo à nossa resposta, numa cadeia de competência humana espontânea.[13]

Não obstante, vários de nossos conceitos ordinários tremulam precariamente sob o impacto do pensamento científico, – o conceito de agente humano, ou pessoa, é o mais importante deles.  É o dever da filosofia, assim como a necessidade da religião, sustentar e validar tais conceitos e a intencionalidade humana à qual eles conferem a direção e o sentido. Estamos bastante familiarizados com os perigos associados à visão científica da condição humana – a visão que nos representa, talvez verdadeiramente, como organismos complexos fustigados pelas inexoráveis engrenagens  de uma causalidade sobre a qual não exercemos o menor controle. Mas é importante não nos precipitarmos com os remédios, não buscarmos nem negar as verdades da ciência – refugiando-nos, por exemplo, em alguma metafísica ilusória da liberdade humana – ou correr impetuosamente para o santuário protetor da fé religiosa, a fim de prover algum respaldo dogmático para concepções que na verdade não passam de criações humanas, e cujo restauração é uma obrigação exclusivamente humana. Precisamos mostrar detalhadamente que  nossas descrições espontâneas do Lebenswelt – descrições que fazem da agência humana o elemento mais importante do mundo que nos rodeia – não são desalojadas pelas verdades da ciência, que elas tem sua própria verdade que, por não competir com o empreendimento da explanação última, não é nem um pouco fragilizada pelas explanações que à primeira vista parecem estar em conflito com ela. A ciência alienou-nos do mundo ao nos fazer desconfiar dos conceitos por meio dos quais respondemos a ele. A filosofia é a arte de olhar pela segunda vez, e sobre seus ombros repousa a tarefa monumental de restituir a seu lugar de direito os conceitos que empregamos na descrição do Lebenswelt.

O conceito crucial para qualquer esforço filosófico tentar fornecer a base para o entendimento humano é o conceito de pessoa. É uma tese filosófica bastante conhecida – expressa em incontáveis idiomas e em incontáveis tons de voz – que os seres humanos podem ser descritos de duas maneiras contrastantes (e, para alguns, conflituosas): como organismos sujeitos às leis da natureza, e como pessoas que às vezes se sujeitam e às vezes se rebelam contra a lei moral. Pessoas são agentes morais; suas ações possuem não somente causas, como também razões. Elas tomam decisões quanto ao futuro, de modo que tem, além de desejos, intenções. Elas nem sempre se permitem ser levadas por seus impulsos, mas ocasionalmente resistem a eles e os subjugam. Em todas as circunstâncias o agente moral é tanto passivo como ativo, e atua como uma espécie de legislador entre suas próprias emoções. Ele também é objeto não apenas de afeição e amor (que podemos estender a toda a natureza), mas também de elogios e de censuras, de raiva e de estima. Em todas estas distinções intuitivas – entre razão e causa, intenção e desejo, ação e paixão, estima e afeição – encontramos aspectos da distinção vital que subjaz a elas e à clarificação daquilo a que Kant devotou algumas de suas mais notáveis páginas: a distinção entre pessoas e coisas. Somente uma pessoa tem direitos, deveres e obrigações; somente uma pessoa age por razões, em acréscimo às causas; somente uma pessoa merece nosso elogio, nossa crítica ou nossa raiva. E é como pessoas que percebemos e atuamos uns em relação aos outros, mediando todas as nossas respostas mútuas com o conceito obscuro, porém indispensável, de agente moral livre.

Não acredito que podemos aceitar a magnífica teoria de Kant, que atribui às pessoas um núcleo metafísico, o ‘ego transcendental’, situado além da natureza e eternamente livre de suas limitações. Não obstante, sua teoria é uma derivação convincente de iluminações sobre a agência humana que não devemos rejeitar. Defendo o que é defensável no ponto de vista de Kant, enquanto evito a intolerável metafísica que ele e, em sua esteira, Husserl, Heidegger, Patocka e vários outros, transformaram na tese central de uma teoria do homem. Ao mesmo tempo, rejeito qualquer tentativa de oferecer uma teoria do homem em termos meramente científicos: em termos da ‘melhor explanação’ do que somos. Pois somos meras aparências, e a melhor explanação de nossa natureza provavelmente não fará uso do conceito de pessoa, ainda que esse conceito defina o que somos para os outros e para nós mesmos.

Eu contrasto dois modos de entendimento: o entendimento científico, que visa explicar o mundo, e o ‘entendimento intencional’, como eu o chamo, que visa descrever, criticar e justificar o Lebenswelt. O segundo é uma tentativa para compreender o mundo em termos dos conceitos por meio dos quais o experienciamos e agimos sobre ele: estes conceitos identificam o ‘objeto intencional’ de nossos estados mentais ordinários. Por conseguinte, um entendimento intencional preenche o mundo com os significados implícitos em nossas emoções e em nossos objetivos. A ideia de tal entendimento é um conhecido donnée da sociologia kantiana, subjacente à visão de que o mundo social em que agimos deve ser compreendido de maneira diferente daquela pela qual compreendemos o mundo do observador neutro, por meio de um ato de Verstehen.[14] Não somente este ‘entendimento intencional’ nos é indispensável enquanto agentes racionais; ele também pode ser insubstituível por qualquer entendimento derivado das ciências naturais. O entendimento intencional preocupa-se não tanto em explicar o mundo como em estar ‘em casa’ nele, reconhecendo ocasiões para a ação, os objetos de simpatia e os locais de repouso.

Nosso entendimento intencional deve inevitavelmente conter elementos largamente explanatórios – pois você não pode ser bem sucedido ao agir sem um sistema de crenças. E possuir uma crença é estar comprometido com a busca da verdade, e consequentemente, com a construção de teorias científicas, e com a subsequente classificação do mundo em termos de tipos naturais. No entanto, não há nenhuma razão para supor que tal classificação fornecerá fundamentos suficientes para nossa conduta racional, assim como não há razão para pensar que a classificação química das rochas oferecerá fundamentos para a atividade do escultor. Mais especificamente, esta visão científica e neutra das coisas pode ser bastante apropriada para descrever os meios de realizar nossos objetivos, mas deve permanecer para sempre incapaz de descrever os fins a que aspiramos. Os fins da vida são também os significados de nossas experiências pessoais, e o mundo da ciência é um mundo desprovido de significados.[15]

Considere as relações humanas mais elementares. As pessoas individuais que encontro são membros de um tipo natural – o tipo ‘ser humano’ – e se comportam de acordo com as leis deste tipo. No entanto, eu subsumo as pessoas e suas ações sob conceitos que não figuram na formulação destas leis. Com efeito, a alucinação destas leis (pois assim elas devem ser descritas em nosso presente estado de ignorância) frequentemente parece perturbar a interação genuinamente humana entre as pessoas. Se, para mim, os fatos fundamentais sobre John são sua constituição biológica, sua essência científica, sua estrutura neurológica, então será difícil para mim responder a ele com afeição, raiva, amor, desprezo ou pesar. Assim descrito ele se torna misterioso para mim, uma vez que essas classificações não capturam o objeto intencional da emoção interpessoal.

Colocando em termos gerais: o esforço científico para penetrar nas ‘profundezas’ dos assuntos humanos é acompanhado quase que universalmente por uma perda da resposta à ‘superfície’. Não obstante, é na superfície que vivemos e agimos: é lá que somos criados, como aparências complexas sustentadas pela interação social que nós, como aparências, também criamos. O ‘mistério’ com o qual a pessoa humana é ocultada do campo de visão do neurofisiologista é exatamente o mesmo que esconde a história humana do determinista marxiano e a moralidade humana do sociobiólogo. Estas ciências fascinam por seu apelo desmistificador; mas elas terminam por mistificar mais profundamente os fenômenos que tencionam explicar, justamente ao criar condições que ensejam o esquecimento do propósito de explica-los. (Nas palavras de Wittgenstein, ‘o que está oculto não nos é de nenhum interesse.’)

No entanto, os conceitos de nosso entendimento intencional não são fáceis de analisar. Seu entranhamento indissolúvel na sensibilidade e na ação dificulta sua focalização. O mundo humano pode não ser ‘profundo’ no sentido científico do termo, mas é denso.[16] Logo, muitas vezes é mais fácil falar da intencionalidade de uma emoção como se se tratasse de uma questão de percepção, e não de pensamento: o objeto de aversão é percebido aversivamente. Compreender o conceito de pessoa pode similarmente exigir que compreendamos um tipo de percepção: entender o que é ver seres humanos como pessoas. E esta percepção, por sua vez, pode não ser fácil de desemaranhar do tecido cultural ao qual pertence, ou dos fins de conduta últimos que ela serve para realçar.

Isto não significa que nosso entendimento intencional produz ‘meras ideologias’ no sentido marxiano – um sistema de crenças sem nada que o recomende, não obstante sua capacidade de mistificar o mundo de maneira a respaldar nossos empreendimentos (‘burgueses’).[17] Os marxistas de fato estão corretos ao diferenciar crenças em termos de sua explanação, e ao assinalar o estatuto epistemológico desviante de uma crença que deve ser explicada sempre em termos de algum interesse humano que não o interesse pela verdade. No entanto, embora vários de nossos conceitos devam ser explicados em termos funcionais, não se segue que uma explanação funcional é apropriada para as crenças em que esses conceitos figuram. Assim, a existência do conceito ‘mármore ornamental’ deve ser explicada em termos de sua utilidade em orientar nossos propósitos esculturais. Não obstante, o escultor que julga alguma rocha como ornamental adquire esta crença como resultado de evidências. Tais crenças ‘frágeis’ são não-científicas, uma vez que empregam conceitos opacos ao método científico. Mas elas podem ser verdadeiras ou falsas,  razoáveis ou francamente absurdas. Pois elas são causadas, em geral, por nossa percepção de como as coisas são, não por nossas necessidades.

Geralmente, o mesmo vale para os conceitos que definem o Lebenswelt. No entanto, a funcionalidade desses conceitos não implica a funcionalidade das crenças que os empregam. A objetividade destas crenças pode ser tão segura quanto a objetividade da ciência, ainda que elas se refiram não à estrutura subjacente da realidade, mas ao Lebenswelt. Se o Lebenswelt é uma invenção burguesa, então devemos exaltar e emular o espírito burguês, que é mais bem adaptado para perceber a realidade humana do que a consciência ordenada do crítico ‘desmistificador’.

Há verdades objetivas genuínas sobre o Lebenswelt a serem esclarecidas pela análise filosófica. Por conseguinte, a filosofia pode trazer verdadeira iluminação da condição humana, exatamente por meio da ‘análise de conceitos’ que, há não muito tempo, muitas vezes aparentou debilitar nossas percepções humanas. Uma análise de conceitos é o que está envolvido no esforço para ampliar e aprofundar o domínio do ‘entendimento intencional’. Nada pode servir para iluminar a intencionalidade de nossas respostas humanas naturais a não ser a análise dos conceitos que estão envolvidos nestas respostas. Este esforço para aprofundar nosso entendimento intencional é um esforço para explorar o domínio do ‘dado’, mas não o do subjetivamente dado. Não estamos preocupados com o conhecimento da experiência em primeira pessoa, mas com as práticas compartilhadas por cujo intermédio uma linguagem pública conecta-se tanto ao mundo como à vida daqueles que o descrevem. Esta é a ideia capturada pelo bordão de Wittgenstein, ‘o que é dado são formas de vida’, e no reconhecimento do próprio Husserl de que o Lebenswelt é dado ‘intersubjetivamente’ (Husserl, no entanto, não renunciou à desastrosa ‘psicologia transcendental’ com que o sobrecarregou).[18]

O fundamento de nossa compreensão do mundo humano reside em práticas compartilhadas e publicamente acessíveis, das quais a linguagem – que define os modos de representação pelos quais percebemos o mundo – é a mais importante. Essa é a razão pela qual não faço distinções entre conclusões ‘fenomenológicas’ e conclusões ‘analíticas’. Dois idiomas estão igualmente à minha disposição, e nenhum deles precisa ser concebido como detentor do monopólio da verdade, uma vez que, tão logo aceitamos que a ideia de uma ‘linguagem privada’ não faz sentido, não pode haver nenhum conflito real entre os dois idiomas.

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[Os parágrafos acima foram traduzidos e ligeiramente adaptados do primeiro capítulo do livro Sexual Desire: A Philosophical Investigation, publicado originalmente em 1986 pela editora britânica Weidenfeld & Nicolson.]

SexualDesirecover

Notas.

8. Ver Putnam, The Meaning of “Meaning”, e Kripke, Naming and Necessity. O termo ‘tipo natural’ deriva obliquamente de J. S. Mill, A System of Logic, 10ª Ed., Londres, 1879, Livro 1, Cap. VII. Mill refere-se a Tipos que existem na natureza, e daí em diante preserva o ‘T’ maiúsculo a fim de denotar este tipo de tipo. Obviamente, a observação de que nossas classificações são frequentemente funcionais ou analógicas e, portanto, falsificam a natureza daquilo a que são aplicadas é mais antiga do que Mill, inspirando a distinção de Locke entre essências reais e nominais (Essay Concerning Human Understanding, Livro III, Cap. 3, §15), e o método de Buffon na Histoire Naturelle, em que ele rejeita explicitamente nossos hábitos ordinários de classificação, uma que tais hábitos tentam ‘dividir a natureza em pontos em que ela é indivisível’.

Sobre a distinção entre tipos naturais e funcionais, ver David Wiggins, Sameness and Substance, Oxford, 1980, pp. 171ss. A ideia de tipos funcionais talvez seja menos familiar do que a de tipos naturais; todavia, tal noção é necessária para que o ‘funcionalismo’ faça sentido enquanto teoria da mente. O funcionalismo foi exposto em detalhes por D. C. Dennett nos artigos reunidos em seu livro Brainstorms, Brighton, 1978.

9. Esta visão – de que a descrição e a explanação são partes contínuas de um único processo – foi sustentada por vários autores, incluindo W. V. Quine, Word and Object, Cambridge, Mass., 1960, e Wilfred Sellars, Science, Perception and Reality, Londres, 1963.

10. A distinção entre qualidades primárias e qualidades secundárias remonta pelo menos a Pierre Gassendi; não obstante, ela nunca deixou de ser problemática (...)

11. Husserl referiu-se ao mundo da experiência humana como o ‘mundo natural’ (Naturwelt), um termo adotado por vários discípulos seus (por exemplo, por Patočka, em seu The Natural World as a Philosophical Problem, Praga, 1933 – um livro que subsequentemente provou-se fecundo ao sugerir um papel para a filosofia na interpretação da experiência humana que seria distinto do papel da ciência). A terminologia que Husserl veio a preferir mais tarde – Umwelt (‘mundo ao redor’) e Lebenswelt – indicam um reconhecimento tardio de que é precisamente por contraste com uma certa visão da ‘natureza’ que o mundo da experiência humana deveria ser caracterizado. O termo Lebenswelt possui um ancestral mais antigo. Ele ocorre em Dilthey e nas obras de certos teóricos do Einfühlung (como Lipps); ele também ocorre nos sociólogos fenomenológicos como Alfred Schutz, e é relacionado ao vocabulário dos historiadores da arte hegelianos (por exemplo, Wölfflin). (Ver Dilthey, Collected Works, vol. VII. A expressão preferida de Dilthey, no entanto, é mais hegeliana: ‘objetificações da vida’. Ver também Alfred Schutz, The Phenomenology of the Social World, tr. G. Walsh e F. Lehnert, Portland USA 1967; Heinrich Wölfflin, Renaissance and Baroque, tr. K . Simon, London, 1964, pp. 77ss.)

12. Compare com a ideia de Heidegger de que, para mim, as ‘coisas’ são essencialmente para ‘ser usadas’: Being and Time, tr. J. Macquarrie e E. S. Robinson, New york, 1962, pp. 96ss.

13. Compare com os argumentos distintos, porém complementares, contra o ‘racionalismo’ na política apresentados por Michael Oakeshott (Rationalism in Politics, Londres, 1968) e por F. A. von Hayek (Studies in Philosophy, Politics and Economics, Londres, 1967).

14. Dilthey, Collected Works, vol. VII; Max Weber, ‘The Nature of Social Action’, in W. G. Runciman (ed.) Weber, Selections in Translation, Cambridge, 1978.

15. Retorno a este ponto no Cap. 15, onde digo mais sobre o que entendo por ‘significado’, e sua conexão com o ponto de vista do sujeito humano que, no fim, está sempre em guerra com a ‘impessoalidade’ da ciência. Para algumas interessantes especulações tchecas sobre este tema, ver V. Belohradsky, Krize Eschatologie Neosobnosti, Munique, 1982, e discurso de doutoramento de Vaclav Havel enviado para a Universidade de Toulouse, ‘Politics and Conscience’, Salisbury Review, 3 (2), 1985.

16. Veja R. A. D. Grant, resenha de S. R. Letwin, The Gentleman in Trollope, Salisbury Revuew, 1 (1) 1982, pp. 41-2.

17.  A teoria marxiana da ideologia tem suas origens em K. Marx e F. Engels, The German Ideology, 1846. O contraste entre ideologia e ciência – vital para a teoria marxiana da história e para a crítica marxiana da filosofia – encontra-se tão bem estabelecido no clima de opinião corrente que um comentador é capaz de dizer que ‘uma propriedade definidora da ideologia é ser não-científica’ (G. A. Cohen, Karl Marx’s Theory of History, A Defence, 1978, p. 46).

18. E. Husserl, Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phäenomenologie, ed. W. Biemel, The Hague, 1976, part 2.0

por Eric Voegelin

[O texto a seguir é continuação de Diz o tolo em seu coração: “Não há Deus.” Mas quem, ou o quê, é um tolo?]

A verdade experiencial no plano de fundo da análise de Platão não é uma questão de enunciados simples. Sua expressão adequada teria que incluir os próprios sucessos analíticos de Platão em sua luta para jogar luz sobre os problemas iniciados por seus predecessores; precisaria incluir também os significados que permaneceram compactos na obra de Platão. Uma apresentação adequada destes problemas exigiria, portanto, bem mais do que um volume sobre a arte, a literatura e a filosofia helênicas, cobrindo desde a época de Homero e Hesíodo até o neoplatonismo. Nas presentes circunstâncias não posso fazer mais do que apontar algumas fases importantes no processo de diferenciação de experiências e simbolizações.

Um problema central é a transição diferenciante da linguagem politeísta dos deuses para a linguagem da divindade única além dos deuses. A tensão experiencial nas circunstâncias culturais de Platão é indicada pelas mudanças nas Invocações dos deuses que precedem uma análise da estrutura da realidade. No Timeu, por exemplo, durante um exercício de criação imaginativa da provável linguagem a ser empregada na simbolização da estrutura, Sócrates convida Timeu a discursar e a abrir seu discurso com uma Invocação aos deuses. Subentende-se que a análise imaginativa deve ser uma Oração. Ao responder, Timeu concorda que todos os que possuem algum juízo invocarão a “Deus” antes de dar início a qualquer empreendimento, seja ele modesto ou ambicioso. Um provável discurso acerca do Todo (to pan) terá que invocar os deuses e as deusas (a menos que sejamos completamente dementes): Ore para que tudo o que dissermos possa em primeiro lugar ser aprovado por eles, e depois por nós mesmos. Admitamos, portanto, que tenhamos invocado apropriadamente as divindades e invoquemos a nós mesmos de modo a expor com o máximo de clareza possível nossas concepções acerca do Todo. (27c) A Invocação tornou-se restrita em sua linguagem e não nomeia o “Deus” invocado. A elaboração simbólica invocando o “Deus” único é reduzida a uma invocação mental implicada no ato de começar. Os “deuses” não desapareceram e não foram completamente substituídos pelo “Deus” único.

Para sentir a tensão cultural nesta Invocação mental de “Deus” sem nomeá-lo, deve-se estar ciente do declínio na fides em vários deuses conforme manifestada, por exemplo, na Invocação paródica presente nas Tesmoforiantes de Aristófanes, com seu toque feminista: Orem aos deuses, aos olimpianos e olimpianas, aos pítios e às pítias, a todos os delianos e delianas. (330-333) O “Deus” único platônico é a divindade experienciada como presente para além dos vários deuses que, como a Invocação de Aristófanes mostra, encontram-se experiencialmente moribundos. A análise noética cria uma forma recém diferenciada de Oração que supera as antigas Invocações às musas e aos deuses. O que se diferencia na experiência noética é a Unicidade da divindade para além da pluralidades dos deuses.

Esta diferenciação noética da Unicidade da divindade exige, portanto, uma mudança da linguagem da realidade dos entes-coisas no plural para a do “Ser” único no singular. Na linguagem mais antiga de Hesíodo a realidade das coisas ainda é expressa pelo plural  ta eonta, sendo os deuses coisas que caem de maneira compacta sob o mesmo termo que subsume as coisas do mundo exterior. Na linguagem de Parmênides esta revelação experiencial da Unicidade é marcada pela transição do plural ta eonta para o singular to eon. Por meio desta mudança de linguagem os “entes-coisas” começam a ser diferenciados de um “Ser” que engloba todas as coisas. Na obra de Parmênides, a transição é tão radical que os “entes-coisas” perdem algo de seu estatuto de real em relação ao ofuscante “Ser” no singular. A pressão revelatória do Ser para além dos entes-coisas aparentemente foi experienciada com tamanha intensidade que a estrutura de uma totalidade cósmica da realidade na tensão entre Ser e coisas poderia ser apenas insuficientemente simbolizada pela linguagem. Consequentemente, no Timeu Platão precisou ir além do to eon, cunhando o símbolo to pan no sentido de um Todo único que engloba (periechein) os entes-coisas. O to pan, a ordem inteligível do universo, agora é simbolizada como o Cosmos na tensão entre a ordem (taxis) imposta por um Demiurgo e a desordem (ataxia) de um chora espaço-temporal sobre o qual ela é imposta. A realidade torna-se uma Unicidade ordenada acessível à análise matemática.

A simbolização desta experiência por Platão, no entanto, não resultou num Sistema. A estrutura da divindade experienciada permanece misteriosa. Há um demiurgo que ordena a realidade desordenada, mas a ordena de acordo com um paradigma de ordem que é ele próprio um deus; além disso, o Cosmos organizado segundo o paradigma, por seu turno, é uma cópia divina do paradigma única, ou unigênita (monogenes). A ordem do paradigma é a realidade última englobando todos os entes-coisas no Cosmos único. Na experiência de Platão, a importância revelatória desta unicidade do Todo foi tal que ele cunhou o termo monosis (31b), um termo que desapareceu da terminologia filosófica posterior. O símbolo “ordem” adquiriu o significado diferenciado da unicidade que exclui uma pluralidade de universos, deixando em aberto o mistério da desordem na ordem do Todo.

Um elemento importante da luta de Platão por uma linguagem do Deus único além dos deuses – frequentemente negligenciada por completo – são as experiências da divindade que desabrocham nas Invocações da Teogonia de Hesíodo. É verdade que, para Hesíodo, a fonte da verdade sobre a realidade são figuras divinas, as Musas. Mas as Musas não são divindades olímpicas; elas são geradas por Zeus, bem longe dos olímpicos, em sua união com Mnemosine. A fonte da verdade é transolímpica, e o Zeus que gera as Musas é ele próprio um deus que nasceu, embora não morra. Além disso, o que as Musas cantam sobre a realidade que inclui os deuses é cantado primariamente não para homens, mas para os próprios deuses, e especialmente para um Zeus que parece não estar perfeitamente cônscio de sua posição e de seus poderes como força ordenadora divina na realidade. Para Hesíodo, Zeus não é nenhum deus a menos que exista uma realidade divina Além dos deuses. Nestas simbolizações hesiódicas, reconhecemos as primeiras insinuações do Além que a tudo engloba (periechon) que em última análise torna-se o epekeina de Platão.

*   *   *

(Nota do editor: Se o leitor ainda não leu o Prefácio do Editor, deveria fazê-lo antes de prosseguir)

[1. O “divino” que a tudo envolve de Anaximandro e como se deve falar sobre ele segundo Aristóteles no livro 4 da Física, 203b7:]

Do apeiron não há nenhum princípio (arche)… mas este parece ser o começo de todas as outras coisas e envolver (periechein) todas as coisas e governa-las todas, como todos os que dizem não postular outras causas, como o espírito ou o amor, acima e além do apeiron. E isto é o divino (to theion); pois ele é imortal (athanaton) e indestrutível (anolethron), como diz Anaximandro… (Tradução de Kirk, Raven & Schofield, Os Filósofos Pré-Socráticos, 2ª ed., 1983, p. 115.)

[2. A Oração em Plotino V, 1, 6 invocando Deus antes de iniciar a busca pela linguagem apropriada na qual discursar sobre o Um e sobre o mistério de sua emanação, temas sobre os quais só se pode falar recorrendo a metáfora oníricas como a metáfora do perfume escolhida por Plotino (“coisas perfumadas”):]

Falemos sobre ele do seguinte modo, primeiro invocando o próprio Deus, não em palavras declamadas, mas dilatando-nos com nossa alma em oração a ele, deste modo aptos a, sozinhos, orar exclusivamente a ele.

[3. A Oração no Timeu de Platão, desta vez invocando o “theos soter” (48d) a medida em que Platão tenta encontrar a linguagem apropriada para falar sobre o polo não-objetual da tensão entre o divino em formação e o receptivo mas resistente chora (Espaço) não-formado:]

E, como antes, igualmente agora, no princípio de nosso relato devemos invocar o Deus Salvador para nos conduzir em segurança através de uma exposição inédita e incomum até uma conclusão baseada na probabilidade, e assim começar nosso relato mais uma vez.

[Mais uma vez, a linguagem deve tornar-se onírica e metafórica. (Timeu 48e-53c, esp. 51b-c).]

[4. A “Oração mental” (das mentale Gebet) de Goethe:]

A Oração Mental que engloba e exclui todas as religiões e que somente num punhado de homens favorecidos por deus permeia todo o seu estilo de vida, desenvolve-se na maioria dos homens somente como um sentimento momentâneo ardente e arrebatador; uma vez esvaecido, o homem, de volta a si, insatisfeito, ocioso, é bruscamente lançado de volta ao tédio mais interminável. (Goethe, West-Östlicher Divan, Noten und Abhandlungen, “Ältere Perser”, Leipzig, Insel-Verlag 1912, p. 142.)

[5. A manifestação dos equivalentes cristãos da experiência e da expressão do “divino”:]

[(a) O pleroma e o theotes em Colossensses 2:9:]

Pois nele habita corporalmente toda a plenitude(pleroma) da realidade divina (theotes).

[(b) O nome “tetragramático” do “divino” em Tomás, Suma Teológica I.13.11.1:]

A denominação — Aquele que é — quanto à sua origem, é mais própria de Deus, que este último nome mesmo; pois, ela se origina do ser, tanto quanto à sua significação, como quanto ao conteúdo desta, conforme já dissemos. Mas, quanto ao ser designado, o nome de Deus é mais próprio, porque é usado para significar a natureza divina; se bem que mais próprio ainda é o nome do tetragrama, imposto para significar a própria essência incomunicável, e, por assim dizer, singular, de Deus.

por Eric Voegelin

[O texto a seguir é continuação de A Busca Pelo Fundamento Divino do Ser: Avanços, Obstáculos e Retrocessos]

Mas, afinal, em que sentido poderia Anselmo associar o termo “prova” à busca noética em resposta ao movimento do Espírito, uma busca que ele reconhece corretamente como uma Oração? A chave para a resposta encontra-se no fato de que o termo não ocorre no próprio Proslogion, mas somente na discussão com Gaunilo. Nenhuma razão justificaria seu emprego no Proslogion; pois quando um fiel explora a estrutura racional de sua fé a existência de Deus não está em questão. Em sua resposta, contudo, Anselmo deve usar o termo “prova” porque Gaunilo desempenha o papel do tolo, do insipiens, que diz que “não há Deus” e assume que quem explora sua fé está engajado numa “prova” para a afirmação de que Deus existe. A reflexão noética do espiritualista adquire o caráter de uma proposição afirmativa a respeito da existência de Deus somente quando confrontada pelo insipiens que apresenta a proposição negativa de que Deus não existe. Quando o tolo entra na discussão, o simbolismo da busca noética ameaça degenerar numa altercação sobre a prova ou ausência de prova para uma proposição. A existência de Deus pode se tornar duvidosa porque, sem sombra de dúvidas, o tolo existe.

O tolo não pode ser ignorado levianamente. A insensatez de responder ao apelo divino pela negação ou pela evasão é uma possibilidade tão humana quanto a resposta positiva. Trata-se de uma potencialidade presente em qualquer homem, incluindo o próprio fiel; e em determinadas situações históricas sua atualização pode se tornar uma força social imponente. Mas quem, ou o quê, é um tolo?

A situação filológica é clara. Quando Anselmo e Gaunilo falam do insipiens, sua linguagem deriva do Salmo 13 (14) na tradução da Vulgata:

Diz o tolo (insipiens) em seu coração: ‘Não há Deus’.

O nabal do texto hebraico é traduzido pela Vulgata como insipiens e mais tarde traduzido, tanto pela Versão Padrão como pela Bíblia de Jerusalém, como tolo (fool, em inglês). Esta última tradução talvez não seja a melhor, pois o vocábulo inglês fool deriva do latim follis, significando um fole ou sanfona; é uma solução que preserva a aura de futilidade, frivolidade, falta ou fraqueza de juízo que envolve o original latino, mas deixa escapar a corrupção fundamental da existência e o espectro dos sintomas da corrupção aos quais o nabal hebraico alude. O tolo do Salmo certamente não é um homem desprovido de destreza intelectual ou de um senso apurado para negócios mundanos. Traduções alternativas como o ímpio, o profano, o inconsequente ou o desprezível, as quais já foram todas tentadas e possuem seus méritos, mostram a dificuldade de se transmitir a riqueza de significado peculiar a um símbolo tão compacto quanto nabal. No entanto, uma vez que parece-me impossível encontrar uma tradução mais satisfatória e melhor adaptada ao uso contemporâneo, preservarei o bem estabelecido “tolo”, apenas tomando o devido cuidado para tornar claro seu sentido.

No Salmo 13 (14), o nabal expressa o fenômeno de massa de homens que fazem o mal em vez do bem porque não “buscam a Deus” e sua justiça, que “devoram meu povo como quem come pão” porque não acreditam na sanção divina pelos atos de perversidade. O desprezo pessoal por Deus manifesta-se numa conduta rude para com os mais fracos e cria na sociedade uma desordem generalizada. A situação representada pelo Salmo parece ser a mesma que a rejeição de Deus e seus profetas caracterizada por Jeremias 5:12ss e, já no século 8 a.C., por Isaías 32. Nestes contextos israelitas, a rejeição, a nebala, não necessariamente denota um fenômeno tão diferenciado quanto o ateísmo dogmático, mas antes um estado de obtusidade espiritual complacente com a ganância, a luxúria e o poder e que não teme o julgamento divino. A insensatez desdenhosa, é verdade, pode inflar-se até o radical “Não há Deus”, mas a expressão não parece ter sido experienciada como um desafio noético. O tolo posiciona-se contra o Deus revelado, não contra uma fides quaerens intellectum. Este componente adicional, característico do debate entre Anselmo e Gaunilo, deve ser buscado na tradição dos filósofos que enveredaram pela teologia cristã. É Platão quem descreve o fenômeno da insensatez existencial, bem como o desafio que ele apresenta à busca noética, no caso da insensatez sofística, a anoia, no livro III da República e no livro X das Leis.

Na sociedade grega, a potencialidade de responder ao apelo divino rejeitando-o expressou-se numa série de proposições negativas cobrindo circunspectamente todo o escopo da experiência. Tanto na República(365b-e) como nas Leis, Platão apresenta estas proposições como um conjunto triádico:

(1) Aparentemente nenhum deus existe;

(2) Ainda que existam, eles não se importam com os homens;

(3) Ainda que se importem, eles podem ser aliciados por oferendas.

Conquanto Platão não especifique a origem destas proposições, referindo-se apenas à sua ampla difusão em seu ambiente intelectual, elas muito provavelmente são um produto da escola sofística, já que compartilham a mesma estrutura do conjunto de proposições preservado no ensaio de Górgias Do Ser (sic):

(1) Nada existe;

(2) Se algo existe, então este algo é incompreensível;

(3) Se este algo é compreensível, então é incomunicável.

O conjunto sugere que, nas escolas sofísticas, o desprezo pelos deuses evoluíra para uma perda geral de contato experiencial com a realidade cósmico-divina. Os padrões triádicos de proposições negativas parecem ter se desenvolvido como uma expressão para a contração da existência do homem resultante desta perda. O fenômeno da aceitação em massa deste padrão foi percebido por Platão como um desafio tão ultrajante à sua busca noética pelo fundamento divino que ele dedicou todo o Livro X das Leis à sua refutação. Os detalhes da refutação, resultando nas proposições positivas afirmando que os deuses existem, que eles se importam com os homens e que eles não podem ser tornados cúmplices da criminalidade humana subornando-os com uma parcela dos lucros do crime não nos dizem respeito no momento. Mas devemos examinar sua análise do desafio noético e a linguagem desenvolvida para articula-la.

O argumento sofístico em favor das tríades negativas aparentemente repousa sobre uma negação radical da realidade divina experienciada como uma presença na ordem do cosmos ou na alma do homem. Já a plausibilidade da negação na cultura helênica do quarto século a.C. assenta-se em sua expressão na forma de um contra-mito, um mito que se contrapõe à simbolização da ordem divina da realidade pelo mito cosmogônico do tipo hesiódico. Aparentemente, a forma assumida pelo argumento foi uma cosmogonia na qual o papel da realidade criativa “primordial” é retirado dos deuses do mito e transferidos para os elementos no sentido material. De qualquer maneira, Platão considera as tríades negativas invalidadas em princípio se ele puder refutar o pressuposto de que toda a realidade se origina no movimento de elementos materiais. Contra esta pressuposição ele argumenta: não há nenhuma matéria que mova a si própria; todos os movimentos materiais são causados por outros movimentos materiais; a trama ordenada de causa e efeito, por seu turno, deve ser causada por um movimento que se origina fora da trama; e a única realidade que sabemos mover a si própria é a Psiquê. Logo, numa construção genética do Ser, os elementos não podem desempenhar o papel de realidade “primordial”; somente a Psiquê divina, conforme experienciada pela psiquê humana, pode ser “primordial” no sentido do auto-movente do qual todo movimento ordenado do mundo se origina. O argumento soa bastante moderno ao lançar mão da realidade da psiquê, e de suas experiências, em oposição às construções que expressam a perda da realidade e a contração do ego – embora os construtores modernos não precisem deformar um mito hesiódico para seus propósitos, devendo antes substituir o fundamento divino do ser por um item da hierarquia do ser imanente ao mundo como o “fundamento” último de toda a realidade. Mas o argumento não é nem moderno nem antigo; na verdade, é um argumento recorrente em todas as situações em que a busca pela realidade divina precise ser retomada contra um pano de fundo  de “racionalização” da existência retraída, a existência do tolo, como um fenômeno de massa. Obviamente, o argumento não é uma “prova” no sentido de uma demonstração lógica, de uma apodeixis, mas apenas no sentido de uma epideixis, de chamar a atenção para uma área da realidade que o construtor das proposições negativas escolheu negligenciar, ou ignorar, ou recusar-se a perceber. Não se pode provar a realidade por meio de um silogismo; pode-se apenas aponta-la e convidar quem duvida a olhar. A confusão mais ou menos deliberada dos dois significados da palavra “prova” ainda é o truque padrão empregado pelos negadores nos debates ideológicos contemporâneos; e desempenhou um papel importante na gênese das “provas” para a existência de Deus desde a época de Anselmo.

Que as proposições negativas não são enunciados do filósofo acerca de uma estrutura da realidade, mas são a expressão de um “coração” deformado, é a iluminação conquistada por Platão. A tolice sofística, a anoia, não é um mero erro analítico, é um nosos, uma doença da psiquê, demandando a terapia psicológica cuja duração as Leis estabelecem em cinco anos. O livro II da República desenvolve com maior riqueza a linguagem que descreverá a doença existencial na medida em que distingue entre a falsidade em palavras e a falsidade, ou mentira (pseudos), na própria alma. A “ignorância no interior da alma” (en te psyche agnoia) é “verdadeiramente a falsidade” (alethos pseudos), enquanto a falsidade em palavras é apenas a “imagem pós-projetada” (hysteron gegonon eidolon). As palavras falsas, portanto, não são uma “falsidade não misturada”, como o é a “falsidade essencial” (to men to onti pseudos) na alma. Podemos dizer que a falsidade verbal, a “racionalização”, é a forma da verdade em que a alma doente se expressa (República 382). Como as distinções mostram, Platão está lutando para encontrar a linguagem analítica adequada ao caso sob observação, mas ele nem de longe deu cabo da tarefa de desenvolver os conceitos de uma “pneumopatologia”, como Schelling batizou esta disciplina. Ele ainda não dispunha, por exemplo, de um conceito como agnoia ptoiodes, a “ignorância aterrorizante” de Crisipo que se tornou a “angústia” dos modernos; ele tampouco dispunha  da apostrophe crisipiana, denotando a inversão da epistrophe, o movimento que leva o prisioneiro da Caverna a ascender em direção à luz. Também faltava a seu aparato conceitual a caracterização, por Cícero, da doença do espírito, a morbus animi, como uma aspernatio rationis, uma rejeição da razão. Não obstante, ele viu o ponto crucial de que as proposições negativas são a síndrome de uma doença que afeta a humanidade do homem e destroi a ordem da sociedade.

Na análise da doença e de sua síndrome, Platão criou um neologismo de consequências histórico-mundiais: ao lidar com os conjuntos proposicionais ele empregou, pela primeira vez na história da filosofia até onde sabemos, o vocábulo “teologia”. Na República, Platão fala das proposições negativas como typoi peri theologias, como tipos de teologia (379a), contrapondo-lhes as contraproposições positivas como tipos verdadeiros. Ambos os tipos, as positivas e as negativas, são teologias, porque expressam a resposta humana ao apelo divino; ambas são, na linguagem de Platão, a mimese verbal da existência do homem na verdade ou na falsidade, respectivamente. Não é a existência de Deus que está em jogo, mas a existência do homem na verdadeira ordem. O confronto não se dá entre as proposições, mas entre a resposta e a não-resposta ao apelo divino: nem as proposições negativas nem as positivas são portadoras de qualquer verdade autônoma. A verdade das proposições positivas não é nem auto-evidente nem uma questão de prova lógica; elas simplesmente seriam tão vazias quanto as negativas se não fossem amparadas pela realidade do movimento e do contra-movimento dos participantes humano e divino; pela realidade da Oração respondendo ao apelo na alma do proponente. Platão fornece esta verdade por meio de seu magnífico trabalho de análise e simbolização das experiências. De modo que a mimese verbal do tipo positivo, como não carrega nenhuma verdade que lhe seja própria, não pode ser mais do que a primeira linha de defesa ou persuasão num confronto social com a mimese verbal do tipo negativo. Mais ainda, parte essencial do significado das proposições positivas deriva do caráter destas proposições como uma defesa contra as proposições negativas. Consequentemente, juntos os dois tipos de teologia representam a mimese verbal da tensão humana entre as potencialidades de resposta ou não-resposta à presença divina na existência pessoal, social e histórica. Se o papel do tolo das proposições positivas é esquecido, há sempre o perigo de se degenerar na insensatez de acreditar que a verdade dessas proposições é última e irredutível. Mas a assunção do caráter último as tornaria, de fato, tão vazias da verdade experiencial no plano de fundo quanto o tolo as julga.

(Conclui a seguir.)

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por Eric Voegelin

[O texto a seguir é continuação de Quod Deus Dicitur.]

1. O Cenário Pós-Cartesiano:

A análise tomista diz respeito à estrutura paradoxal da tensão entre os símbolos compactos da fé e a operação do intelecto noético. Contudo, sua clara formulação é impedida pela compactação dos símbolos reflexivos de que Tomás dispõe em seu contexto histórico. Trata-se dos símbolos de uma verdade de revelação na tradição da fé judaico-cristã, e dos símbolos filosóficos derivados do contexto culturalmente distinto da civilização helênica. A fim de clarificar algumas destas complicações, será útil mencionarmos brevemente os avanços da análise nos empreendimentos cartesianos e pós-cartesianos.

Considere-se, por exemplo, a formulação dada por Leibniz ao problema em sua obra Principes de la nature et de la grâce. A análise “metafísica” de Leibniz assume o princípio de razão suficiente (raison suffisante) como a explanação para tudo o que acontece na realidade. A busca pela razão suficiente culmina nas duas questões: (a) Por que existe algo, em vez de nada?, e (b) Por que as coisas são como são? Neste nível de simbolização, Leibniz chega a formulações estreitamente semelhantes às de Tomás. A experiência da realidade contingente implica uma razão não-contingente para o que é experienciado como contingente. “Et cette dernière raison des choses est appelée Dieu“.

Embora a formulação de Leibniz assemelhe-se à de Tomás, deve-se estar ciente de sua aura pós-cartesiana. O que está em primeiro plano agora é a inerência da resposta ao evento da questão. Essa característica imaginativa que ultrapassa a mera assunção de um símbolo revelatório deve-se à intuição cartesiana da resposta como algo contido nos atos de duvidar e de desejar. A transição experienciada de um cogito ergo sum aparentemente certo para um ego que duvida e deseja de forma imaginativa é a fonte meditativa da compreensão de que não há nenhum ego sem uma realidade abrangente para ser simbolizada como a perfeição em cuja direção o ego imaginativo arduamente caminha. Um ego que duvida e deseja ir além de si mesmo não é o criador de si mesmo, mas demanda um criador e mantenedor de sua existência dubitativa, e essa causa é o “Deus” que aparece na análise da Terceira Meditação e dos Princípios. Não há nenhuma contingência dubitativa sem a tensão direcionada para a necessidade que evidencia a dúvida como tal.

Este avanço na estrutura imaginativa da questão noética, contudo, ainda é dificultado por outro elemento compacto da análise tomista, isto é, pela construção de uma análise meditativa como uma prova silogística. Mesmo Descartes e Leibniz ainda querem compreender a análise como uma prova da existência do Deus da Revelação, uma assunção que Kant mostrou ser insustentável na Crítica da Razão Pura. No entanto, uma vez que a análise positiva da questão imaginativa por Kant foi insuficiente, coube a Hegel reconhecer, contrariando a crítica de Kant, “as assim chamadas provas da existência de Deus como descrições e análises do processo do próprio Geist… A elevação do pensamento além do sensual, o pensamento transcendendo o finito e o infinito, o salto feito ao  romper com a série do sensual em favor do suprasensual, tudo isto é o próprio pensamento, a transição é somente o próprio pensamento.” (Enzyklopaedie 1830 §50)

Nesta passagem de Hegel pode-se discernir as camadas históricas da análise. Elas são (a) o argumento tomista (baseado, em última análise, em Aristóteles), (b) o progresso cartesiano para o argumento como um evento imaginativo, (c) a crítica kantiana de sua estrutura silogística, e (d) uma nova clareza sobre o processo de análise noética. Contudo, o que torna a iluminação hegeliana ainda insatisfatória é a tendência a alçar a estrutura paradoxal conforme revelada na dimensão reflexiva da consciência ao posto de solução final do problema da divindade. Esta hipóstase da consciência reflexiva obscurece o fato de que o próprio movimento noético, o encontro entre o humano e o divino, ainda é um processo ativo em tensão dirigida para os símbolos da fé. A hipóstase dos símbolos reflexivos leva à construção deformadora do processo de pensamento no pensamento acabado de um Sistema de ciência conceitual.

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2. Condições de Possibilidade da Negação da Divindade:

As dificuldades com que se deparam os pensadores contemporâneos em suas análises positivas inadequadas da consciência da realidade brotam da distinção inadequada  entre o processo de análise noética e os símbolos reflexivos descrevendo o processo histórico de análise. O ponto experiencial da confusão é formulado por Tomás (ibidem I.2) como a diferença entre Deus in se e o Deus duoad nos. Na fé, vivemos na tensão entre a contingência e a necessidade divina. Nos símbolos reflexivos, contudo, o polo contingente e o polo necessário da tensão são reflexivamente hipostasiados em entidades imanentes e transcendentes. Que a necessidade divina não é uma coisa conhecida por suas propriedades é claramente visto por Tomás como a fonte das dificuldades, mas ele não determina com igual clareza a dificuldade, já avistada por Platão no Fedro e no Timeu, que emerge da estrutura intencionalista da linguagem: nossa propensão para pensar em proposições objetuais, isto é, proposições a respeito de objetos que nos são dados em experiências sensoriais, sobre experiências que não são experiências sensoriais. A estrutura primária do encontro entre o humano e o divino deve ser distinguida da simbolização reflexiva dos polos do encontro tensional na forma de entidades objetuais. O progresso de Tomás detêm-se na distinção entre o a priori da necessidade divina e o a posteriori de sua prova a partir do efeito nas experiências contingentes, deixando escapar certas qualidades da análise alcançadas por Anselmo da Cantuária, bem como pelos filósofos helênicos. Portanto, será apropriado enunciar o problema reflexivo da construção silogística em seus pontos principais.

A “prova ontológica” rejeitada por Tomás ainda não existia em sua época nesta forma simbólica. A palavra ontologia aparece no século dezessete no Elementa philosophiae sive Ontosophiae (1647) de Clauberg (ou talvez no Lexicon Philosophicum de Goclenius, de 1613), e encontra aceitação entre os filósofos através de seu emprego por Leibniz, Wolff e Kant no século dezoito. As Meditações de Descartes ainda não estavam oneradas pelo termo e essa é a provável razão pela qual elas ainda podiam estar próximas da busca mais antiga de Anselmo (que Descartes pode não ter conhecido) porque a dinâmica de seu movimento de busca ainda depende da tensão entre a perfeição e a imperfeição. Na Crítica da Razão Pura, Kant aplica o símbolo “prova ontológica” às Meditações cartesianas já como um termo de ampla utilização.

Os dados que acabei de fornecer apontam para uma área do discurso que se movimenta preferencialmente na fronteira da análise experiencial exata; eles sugerem a tentativa de estabelecer o termo “ontologia” como um sinônimo mais preciso para “metafísica” e, por esse meio, de estabelecer a metafísica como alternativa controversa à teologia. O termo próprio “metafísica” foi introduzido por Tomás na filosofia ocidental em seu comentário à Metafísica aristotélica influenciado pelo desenvolvimento do termo pelos filósofos árabes. Estamos tocando o problema da deformação reflexiva da realidade experiencial através de simbolismos reflexivos condicionados por situações históricas concretas.

Isto não significa que não haja um problema experiencial real por trás da deformação, nem que este problema não foi visto e formulado pelo próprio Tomás. A distinção entre a “priora simpliciter” da fé e a “posteriora” de sua realidade obtida a partir de seus efeitos torna possível negar a priora que não permite que suas propriedades sejam conhecidas como se fossem propriedades de um objeto. E como as propriedades objetuais não são conhecidas a não ser pelos seus efeitos, a priora da fé pode ser negada quanto à sua realidade. A base experiencial desta consequência é apresentada por Tomás no simbolismo escritural “Dixit insipiens in corde suo: Non est Deus”. A confusão deformadora no “coração” do insipiens (na tradução para o português: do tolo, do néscio, do insensato) é a fonte experiencial que chama atenção para a estrutura não-objetual dos símbolos divinos. É o cor suum do homem que é o sítio experiencial de uma posição hipostasiante ou de negação da divindade.

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3. O êxito da busca de Anselmo da Cantuária:

A análise de Hegel, apesar da construção reflexiva deformadora, chegou perto da compreensão do processo noético como foi experienciado por Anselmo da Cantuária no começo do escolasticismo. No Proslogion, a análise de Anselmo é explícita acerca dos limites da busca noética. Na segunda parte de sua obra, no Proslogion XIV, ele reconhece que o Deus encontrado pela verdade da razão ainda não é o Deus cuja presença foi experienciada por quem O busca na formação e na re-formação de sua existência. Ele ora a Deus:

Dize à minha alma, que anela por ti, o que tu és, caso não sejas aquilo que ela viu, a fim de que possa enxergar, claramente, aquilo que deseja com tanto ardor.

E no Proslogion XV ele formula a questão estrutural com uma exatidão clássica:

Oh! Senhor, Tu não és apenas aquilo de que não é possível pensar nada maior, mas és, também, tão grande que superas a nossa possibilidade de pensar-te.

Este é o limite da análise conceitual noética desconsiderada por Hegel. Seja observado que na seção sobre Anselmo da Cantuária de sua Geschichte der Philosophie, Hegel lida extensiva e competentemente com a “prova ontológica”, mas não menciona a segunda parte do Proslogion, com sua exploração analógica da luz divina além da razão humana. A busca noética de Anselmo assume então a forma de uma oração por uma compreensão dos símbolos da fé pelo intelecto humano. Por trás da busca, e por trás da fides que a busca supostamente compreende, torna-se agora visível a verdadeira fonte do esforço anselmiano no desejo vivo da alma de mover-se rumo à luz divina. A realidade divina deixa a luz de sua perfeição derramar-se sobre a alma; a iluminação da alma desperta no homem a consciência de sua existência como um estado de imperfeição; e esta consciência provoca o movimento humano em resposta ao apelo divino. A iluminação, como Santo Agostinho designa a experiência, tem para Anselmo o caráter de um apelo, até mesmo de um conselho e de uma promessa. Pois, a fim de expressar a experiência de iluminação ele cita João 6:24:

Pedi e recebereis, que vossa alegria seja completa.

As palavras joaninas do Cristo, e do Espírito que aconselha em seu nome, palavras cujo sentido requer o contexto em que foram proferidas, expressam o movimento divino ao qual Anselmo responde com o contra-movimento jubiloso de sua busca (XXVI). Consequentemente, a última parte do Proslogion consistentemente louva a luz divina na linguagem analógica da perfeição. A Oração de Anselmo é, de acordo com sua formulação da natureza da busca na primeira seção do Monologium, uma meditatio de ratione fidei. A busca orante responde ao apelo da razão na fides; o Proslogion é a fides em ação, em busca de sua própria razão. Devemos, portanto, concluir que Santo Anselmo compreendeu claramente que a estrutura cognitiva é interna ao Metaxo, o Intermédio anímico no sentido platônico.

O significado do Metaxo neste contexto talvez possa ser mais claramente compreendido no Mito do Fedro. Neste Mito, Platão agrupa os deuses olímpicos junto com seus seguidores humanos como os seres no interior do cosmos que são dotados de almas e, portanto, preocupados com sua imortalidade. Os olímpicos, que já desfrutam da condição de imortais, precisam apenas preservá-la pela ação apropriada; ao passo que as almas humanas que desejam a imortalidade ainda precisam alçar-se até esta condição mediante um esforço que é, em diversos graus, dificultado por seus corpos mortais cujas paixões arrastam-nos para baixo. Nem as ações conservativas dos deuses, contudo, nem os esforços sinceros de seus devotos humanos podem alcançar seu objetivo por meio de processos no interior do cosmos. Pois a fonte da imortalidade é a realidade divina extracósmica para além firmamento (exo tou ouranou) que envolve o cosmos, e os seres intracósmicos dotados de almas devem elevar-se até esta fonte por meio das “asas” noéticas que os habilita a ascender à verdade do Além. Esta ascensão das almas não é uma atividade prosaica. Ordinariamente, assim Platão deixa que o Mito nos diga, os deuses e seus devotos tomarão parte de seus negócios intracósmicos, e somente em ocasiões festivas eles elevar-se-ão até à região supracelestial (hyperouranios topos). E lá, do topo do cosmos, eles contemplarão a ousia ontos ousa que é visível somente para o nous, o guia da alma.

(Continua…)

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