por Sam Harris
Quando consideramos o comportamento humano, a diferença entre a ação voluntária e premeditada e a ação meramente acidental parece imensamente consequencial. Como veremos, esta distinção pode ser preservada – e com ela, nossas mais importantes preocupações morais e legais – ao mesmo tempo em que a ideia de livre-arbítrio é banida de uma vez por todas.
Certos estados de consciência parecem surgir automaticamente, além da esfera de nossas intenções. Outros parecem autogerados, deliberativos e sujeitos à nossa vontade. Quando ouço o som de um cortador de grama entrando por minha janela, ele meramente se impõe sobre minha consciência: eu não o trouxe à existência, e eu não posso interrompe-lo por vontade própria. Posso tentar colocar o som fora de minha mente concentrando-me em alguma outra coisa – no que estou escrevendo, por exemplo, e este ato de direcionar a atenção é sentido de forma diferente de meramente ouvir um som. Eu o estou fazendo. Dentro de certos limites, parece que escolho no que prestar atenção. O som do cortador de gramas é invasivo, mas posso controlar o holofote de minha atenção no momento seguinte e dirigi-lo para outro alvo. Esta diferença entre estados mentais volitivos e não-volitivos é refletida em nível cerebral – pois eles são governados por sistemas diferentes. E a diferença entre ele deve, em parte, produzir a sensação percebida de que há um self consciente dotado da propriedade do livre-arbítrio.
Isto não quer dizer que a consciência e o pensamento deliberativo não possuem nenhuma finalidade. Na verdade, muito de nosso comportamento depende deles. Eu posso inconscientemente mudar de posição, mas eu não posso inconscientemente decidir que a dor em minhas costas justifica uma visita ao fisioterapeuta. Para fazer esta última ação, devo me tornar consciente da dor e ser conscientemente motivado a fazer algo a respeito dela. Talvez seja possível construir um robô inanimado capaz destes estados – mas no nosso caso, certos comportamentos parecem exigir a presença de pensamento consciente. E sabemos que os sistemas cerebrais que nos permitem refletir sobre nossas experiência são diferentes daqueles envolvidos quando reagimos automaticamente a algum estímulo. Neste sentido, portanto, a consciência não é inconsequencial.[14] E não obstante, todo o processo de tomar consciência da dor em minhas costas, pensar sobre ela e buscar um remédio para ela resulta de processos dos quais sou completamente inconsciente. Sou eu, a pessoa consciente, quem cria minha dor? Não. Ela simplesmente aparece. Sou eu quem crio os pensamentos sobre ela que me levam a considerar a fisioterapia? Não. Também eles simplesmente aparecem. Este processo de deliberação consciente, embora diferente dos reflexos inconscientes, não oferece fundamento algum para a liberdade da vontade.
Como Dan Dennett e vários outros ressaltaram, as pessoas geralmente confundem determinismo com fatalismo. Esta confusão leva as pessoas a perguntarem “Se tudo está determinado, por que eu deveria fazer qualquer coisa? Por que não simplesmente ficar sentado de braços cruzados observando o que acontece?”. Isto é pura confusão. Assistir sentado ao que acontece é em si uma decisão que produzirá suas próprias consequências. Também é algo extremamente difícil de fazer: tente ficar deitado na cama o dia inteiro esperando que algo aconteça; você se descobrirá assaltado pelo impulso de se levantar e fazer algo, impulso cuja resistência demandará esforços cada vez mais hercúleos.
E o fato de que nossas escolhas dependem de causas anteriores não significa que elas não têm importância. Se eu tivesse decidido não escrever este livro, ele não se teria escrito por si próprio. Minha preferência por escrevê-lo foi inquestionavelmente a principal causa para que ele viesse a existir. Decisões, intenções, esforços, objetivos, força de vontade, etc. são estados causais do cérebro, que levam a comportamentos específicos, e comportamentos levam a resultados no mundo. A escolha humana, por conseguinte, é tão importante quanto os entusiastas do livre-arbítrio acreditam. Mas a próxima escolha que você fizer surgirá das brumas das causas anteriores por cuja existência você, a testemunha consciente de sua experiência, não é responsável.
Por conseguinte, embora seja verdadeiro dizer que uma pessoa teria agido de forma diferente se ela tivesse escolhido agir de forma diferente, isto não acarreta o tipo de livre-arbítrio que a maioria das pessoas parece acalentar – porque as “escolhas” de uma pessoa meramente aparecem em sua mente como se aparecessem do nada. Da perspectiva de sua consciência, você não é mais responsável pela próxima coisa em que pensar (e por conseguinte fazer) do que é pelo fato de ter nascido neste mundo.
Digamos que sua vida tenha saído dos trilhos. Você costumava ser bastante motivado, inspirado por suas oportunidades e fisicamente em forma, mas agora você é preguiçoso, se desencoraja com facilidade e está acima do peso. Como você chegou a este ponto? Você pode ser capaz de contar uma história sobre como sua vida se arruinou, mas você não pode verdadeiramente prestar contas de como você deixou isto acontecer. E agora você quer escapar desta tendência decadente e mudar a si próprio através de um ato da vontade.
Você começa lendo livros de auto-ajuda. Você muda sua dieta e entra numa academia. Você decide voltar a estudar. Mas depois de seis meses de esforços, você não está mais próximo de viver a vida que gostaria do que estava antes. Os livros não tiveram o menor impacto sobre você; sua dieta e seu treino físico mostraram-se impossíveis de seguir; e você ficou entediado com a escola e a abandonou. Por que você encontrou tantos obstáculos em si mesmo? Você não faz a menor ideia. Você tentou mudar seus hábitos, mas seus hábitos parecem mais fortes do que você. A maioria de nós sabe como é fracassar desta maneira – e estas experiências não sugerem nem remotamente a existência de tal coisa como a liberdade da vontade.
Mas esta manhã você acordou se sentindo mais resoluto do que nunca. Já chega! Agora você tem uma vontade férrea. Antes de sair da cama você teve a brilhante ideia de criar um website – e a descoberta de que o domínio estava disponível por apenas 10 dólares te encheu de confiança. Você agora é um empreendedor! Você compartilha a ideia com diversas pessoas inteligentes, e elas pensam que não há dúvidas de que ela te tornará rico.
O vento está a seu favor, seus barcos estão carregados, e você está pilotando furiosamente. Você descobre que um de seus amigos é amigo íntimo de Tim Ferriss, o famoso preparador físico e guru do fitness. Ferriss oferece-lhe uma consulta para discutirem sobre a dieta e o programa de treino que você adotou. Este encontro revela-se extremamente útil – e logo depois você descobre em si mesmo uma reserva de disciplina que você não sabia que possuía. AO longo dos quatro meses seguintes você substitui 10 quilos de gordura por 10 quilos de músculos. Seu peso continua o mesmo, mas você está completamente transformado. Seus amigos mal podem acreditar no que você alcançou. Até seus desafetos começam a te pedir conselhos.
Você se sente completamente outro acerca de sua vida, e o papel desempenhado pela disciplina, pela escolha e pelo esforço em sua ressurreição não pode ser negado. Mas como você explica sua capacidade de fazer estes esforços hoje e não há um ano? De onde veio a ideia para um website? Ela simplesmente apareceu em sua mente. Foi você, na qualidade de agente consciente que você sente ser, quem a criou? (Se a resposta for afirmativa, por que não criar a próxima bem agora?) Como você explica o efeito que os conselhos de Tim Ferriss tiveram sobre você? Como você explica sua capacidade de reagir a eles?
Se você prestar atenção em sua vida interior, você verá que a emergência de escolhas, esforços e intenções é um processo fundamentalmente misterioso. Sim, você pode decidir entrar numa dieta – e sabemos bastante sobre as variáveis que te tornarão capazes de segui-la à risca – mas você não pode saber por que você finalmente foi capaz de se disciplinar quando todas as suas tentativas anteriores falharam. Você pode ter uma história para contar sobre porque as coisas foram diferentes desta vez, mas ela não seria nada além de uma descrição post hoc de eventos que você não controlou. Sim, você pode fazer o que quiser – mas você não pode explicar o fato de seus desejos serem efetivos num caso e não em outros (e você certamente não pode escolher seus desejos de antemão). Você quis perder peso por quatro anos. Então você realmente o quis. Qual é a diferença? Seja lá qual for, não é uma diferença criada por você.
Você não está no controle de sua mente – porque você, como um agente consciente, é apenas uma parte de sua mente, vivendo à mercê das outras partes.[15] Você pode fazer o que decide fazer – mas você não pode decidir o que decidirá fazer. Você pode, é claro, criar um cenário no qual certas decisões são mais prováveis do que outras – você pode, por exemplo, eliminar todos os doces de sua casa, tornando muito improvável que você coma sobremesa após o jantar – mas você não pode saber por que você foi capaz de se submeter a tal cenário hoje quando você não o foi ontem.
Assim, não é que a força de vontade não é importante ou que ela esteja destinada a ser sabotada por nossa biologia. A própria força de vontade é um fenômeno biológico. Você pode mudar sua vida, e a si mesmo, através de esforços conscientes e disciplinados – mas você tem exatamente seja lá qual for a capacidade para o esforço e a disciplina que você tem neste momento, e nem um grão a mais (ou a menos). Ou você tem sorte neste aspecto ou você não tem – e você não pode criar sua própria sorte.
Várias pessoas acreditam que a liberdade humana consiste em nossa habilidade para fazer o que, após refletir, acreditamos que deveríamos fazer – o que muitas vezes significa controlar nossos desejos de curto prazo e nos atermos a nossos objetivos de longo prazo ou ao melhor julgamento. Não há dúvida de que essa é uma habilidade que as pessoas possuem, num grau maior ou menor, e que parece faltar a outros animais, mas que não obstante é uma capacidade de nossas mentes que possui raízes inconscientes.
Você não construiu sua mente. E nos momentos em que você parece construí-la – quando você faz um esforço para mudar a si próprio, para adquirir conhecimento ou para aperfeiçoar alguma habilidade ou talento – as únicas ferramentas à sua disposição são aquelas herdadas dos momentos passados.
Escolhas, esforços, intenções e o raciocínio influenciam nosso comportamento – mas eles próprios são parte da cadeia de causas que precedem o conhecimento consciente e sobre os quais não exercemos nenhum controle último. Minhas escolhas são importantes – e há caminhos que favorecem a tomada de decisões mais sábias – mas eu não posso escolher o que escolher. E se alguma vez parece que eu o faço – por exemplo, após oscilar indeciso entre duas alternativas – eu não escolho escolher o que escolho. Há uma regressão aqui que sempre termina em obscuridade. Eu devo dar um primeiro passo, ou um último, por razões que inescapavelmente permanecerão obscuras.[16]
Várias pessoas acreditam que este problema da regressão é um falso problema. Certos compatibilistas insistem que a liberdade da vontade equivale à ideia de que se poderia ter pensado ou agido de forma diferente. Contudo, dizer que eu poderia ter agido de modo diferente não passa de pensar o pensamento “Eu poderia ter agido de outro modo” após fazer seja lá o que for que eu de fato tenha feito. Esta é uma afirmação vazia.[17] Ela confunde esperança pelo futuro com um relato honesto do passado. O que farei em seguida, e por que, permanece, no fundo, um mistério – mistério este completamente determinado pelo estado anterior do universo e pelas leis da natureza (incluindo as contribuições do acaso). Declarar minha “liberdade” equivale a dizer, “Eu não sei por que eu fiz isso, mas é o tipo de coisa que eu costumo fazer, e não me importo de continuar a fazê-lo.”
Uma das ideias mais revigorantes e originais a surgir do existencialismo (talvez a única) é que somos livres para interpretar e reinterpretar o significado de nossas vidas. Você pode considerar seu primeiro casamento, que terminou em divórcio, como um “fracasso”, ou você pode vê-lo como uma circunstância que causou seu amadurecimento de modos que foram decisivos para sua felicidade futura. Esta liberdade de interpretação requer o livre-arbítrio? Não. Ela apenas sugere que diferentes maneiras de pensar sobre as coisas possuem diferentes consequências. Alguns pensamentos são depressivos e debilitantes; outros nos inspiram. Podemos perseguir qualquer linha de pensamento que desejarmos – mas nossa escolha é o produto de eventos anteriores por cuja existência não somos responsáveis.
Reflita por um momento sobre o contexto em que sua próxima decisão ocorrerá: você não escolheu seus pais ou a época e o local em que nasceu. Você não escolheu seu sexo ou a maioria de suas experiências de vida. Você não teve controle algum sobre seu genoma ou sobre o desenvolvimento de seu cérebro. E agora seu cérebro está fazendo escolhas com base em crenças e preferências que lhe foram marteladas ao longo de sua vida – por seus genes, seu desenvolvimento físico desde o momento em que foi concebido, e as interações que você teve com outras pessoas, eventos e ideias. Onde está a liberdade nisto? Sim, você é livre para fazer o que quiser agora mesmo. Mas de onde vêm seus desejos?
Escrevendo para o The New York Times, o filósofo Eddy Nahmias criticou argumentos do tipo que estou apresentando aqui:
Vários filósofos, eu incluso, entendem o livre-arbítrio como um conjunto de habilidades para imaginar futuros cursos de ação, deliberar sobre as razões para escolhe-los, planejar as ações à luz desta deliberação e controlar as ações face aos desejos concorrentes. Agimos por nosso próprio livre-arbítrio na medida em que temos a oportunidade de exercer essas habilidades, sem pressões irracionais internas ou externas. Somos aproximadamente responsáveis por nossas ações na medida em que possuímos estas habilidades e temos oportunidades de exerce-las.[18]
Não há dúvida de que os seres humanos podem imaginar e planejar o futuro, ponderar desejos concorrentes, etc. – e que a perda destas habilidades nos diminuiria vastamente. Pressões internas e externas de vários tipos podem estar presentes ou ausentes enquanto uma pessoa imagina, planeja e age – e tais pressões determinam nossa sensação de que ela é moralmente responsável por seu comportamento. Entretanto, este fenômeno não tem nada a ver com o livre-arbítrio.
Por exemplo, durante o final de minha adolescência e o começo de minha vida adulta fui um estudante dedicado de artes marciais. Pratiquei incessantemente e dei aulas na universidade. Recentemente, comecei a treinar novamente, após um intervalo de mais de 20 anos. Tanto a interrupção quanto a retomada de meu interesse por artes marciais parece ser a pura expressão da liberdade que Nahmias me atribui. Não estive sob nenhuma “pressão irracional interna ou externa”. Fiz exatamente o que quis fazer. Eu quis parar de treinar, e parei. Eu quis começar novamente, e atualmente treino várias vezes por semana. Tudo isto foi associado a pensamentos conscientes e atos de autocontrole aparente.
Contudo, quando procuro pela causa psicológica de meu comportamento, descubro que ela é completamente misteriosa. Por que parei de treinar 20 anos atrás? Bem, certas coisas se tornaram mais importantes para mim. Mas por que elas se tornaram mais importantes para mim – e por que exatamente naquelas circunstâncias e naquele grau? E por que meu interesse em artes marciais repentinamente ressurgiu após décadas hibernando? Posso ponderar conscientemente os efeitos de certas influências – por exemplo, li recentemente o excelente livro de Rory Miller Meditations on violence. Mas por que eu li este livro? Não faço a mínima ideia. E por que eu o achei convincente? E por que ele foi suficiente para me levar a agir (se, efetivamente, ele foi a causa imediata de meu comportamento)? E por que tanta ação? Agora pratico duas artes marciais e também treino com Miller e outros especialistas em defesa pessoal. Que diabos está acontecendo aqui? Eu posso, é claro, contar uma história sobre porque estou fazendo o que faço – que seria equivalente a dizer-lhes porque eu penso que tanto treinamento é uma boa ideia, porque eu o aprecio, etc. – mas a explicação real para meu comportamento está oculta de mim mesmo. E é perfeitamente óbvio que eu, como testemunha consciente de minha experiência, não sou sua causa profunda.
Após ler os parágrafos anteriores, alguns de você pensarão, “esse livro de Miller parece interessante!” e o comprarão. Alguns não pensarão tal coisa. Dentre os que comprarem o livro, alguns o acharão extremamente útil. A outros sua mensagem pode passar despercebida ao término da leitura. Outros o colocarão na estante e se esquecerão de lê-lo. Onde está a liberdade em qualquer destas possibilidades? Você, como o agente consciente que lê estas palavras, não está em posição de determinar a qual grupo pertence. E se você decidir mudar de grupo – “Eu não ia comprar o livro, mas agora vou, só para te contrariar!” – você também não pode prestar contas desta decisão. Você fará seja lá o que for que fizer, e não faz sentido afirmar que você poderia ter agido de outra forma.
Notas.
14. Para uma discussão recente do papel da consciência na psicologia humana, veja R. F. Baumeister, E. J. Masicampo, & K. D. Vohs, 2011. Do conscious thoughts cause behavior? Annual Review of Psychology, 62: 331–361.
15. Mais uma vez, como Galen Strawson ressalta (comunicação pessoal), mesmo se admitirmos que você é a totalidade de sua mente (consciente e inconsciente), em última instância, você ainda não pode ser responsabilizado por seu caráter.
16. Einstein (acompanhando Schopenhauer) certa vez defendeu o mesmo ponto:
Honestamente, eu não consigo compreender o que as pessoas querem dizer quando falam sobre a liberdade da vontade humana. Eu tenho um sentimento, por exemplo, de que eu quero alguma coisa ou outra, mas que relação isto tem com a liberdade eu definitivamente não posso entender. Sinto que quero acender meu cachimbo e o acendo; mas como posso conectar isto com a ideia de liberdade? O que está por trás do ato de querer acender um cachimbo? Outro ato da vontade? Schopenhauer disse certa vez: Der Mensch kann was er will; er kann aber nicht wollen was er will (O homem pode fazer o que ele quer mas não pode querer o que ele quer). (M. Planck, 1932. Where is science going? New York: W. W. Norton & Company, p. 201.)
17. Jerry Coyne aponta (comunicação pessoal), esta noção de liberdade contrafactual também não é cientificamente testável. Que evidências poderiam ser apresentadas para mostrar que alguém poderia ter agido de forma diferente no passado?
18. http://opinionator.blogs.nytimes.com/2011/11/13/is-neuroscience-the-death-of-free-will/.
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