por Eric Voegelin
[O texto a seguir é continuação de Diz o tolo em seu coração: “Não há Deus.” Mas quem, ou o quê, é um tolo?]
A verdade experiencial no plano de fundo da análise de Platão não é uma questão de enunciados simples. Sua expressão adequada teria que incluir os próprios sucessos analíticos de Platão em sua luta para jogar luz sobre os problemas iniciados por seus predecessores; precisaria incluir também os significados que permaneceram compactos na obra de Platão. Uma apresentação adequada destes problemas exigiria, portanto, bem mais do que um volume sobre a arte, a literatura e a filosofia helênicas, cobrindo desde a época de Homero e Hesíodo até o neoplatonismo. Nas presentes circunstâncias não posso fazer mais do que apontar algumas fases importantes no processo de diferenciação de experiências e simbolizações.
Um problema central é a transição diferenciante da linguagem politeísta dos deuses para a linguagem da divindade única além dos deuses. A tensão experiencial nas circunstâncias culturais de Platão é indicada pelas mudanças nas Invocações dos deuses que precedem uma análise da estrutura da realidade. No Timeu, por exemplo, durante um exercício de criação imaginativa da provável linguagem a ser empregada na simbolização da estrutura, Sócrates convida Timeu a discursar e a abrir seu discurso com uma Invocação aos deuses. Subentende-se que a análise imaginativa deve ser uma Oração. Ao responder, Timeu concorda que todos os que possuem algum juízo invocarão a “Deus” antes de dar início a qualquer empreendimento, seja ele modesto ou ambicioso. Um provável discurso acerca do Todo (to pan) terá que invocar os deuses e as deusas (a menos que sejamos completamente dementes): Ore para que tudo o que dissermos possa em primeiro lugar ser aprovado por eles, e depois por nós mesmos. Admitamos, portanto, que tenhamos invocado apropriadamente as divindades e invoquemos a nós mesmos de modo a expor com o máximo de clareza possível nossas concepções acerca do Todo. (27c) A Invocação tornou-se restrita em sua linguagem e não nomeia o “Deus” invocado. A elaboração simbólica invocando o “Deus” único é reduzida a uma invocação mental implicada no ato de começar. Os “deuses” não desapareceram e não foram completamente substituídos pelo “Deus” único.
Para sentir a tensão cultural nesta Invocação mental de “Deus” sem nomeá-lo, deve-se estar ciente do declínio na fides em vários deuses conforme manifestada, por exemplo, na Invocação paródica presente nas Tesmoforiantes de Aristófanes, com seu toque feminista: Orem aos deuses, aos olimpianos e olimpianas, aos pítios e às pítias, a todos os delianos e delianas. (330-333) O “Deus” único platônico é a divindade experienciada como presente para além dos vários deuses que, como a Invocação de Aristófanes mostra, encontram-se experiencialmente moribundos. A análise noética cria uma forma recém diferenciada de Oração que supera as antigas Invocações às musas e aos deuses. O que se diferencia na experiência noética é a Unicidade da divindade para além da pluralidades dos deuses.
Esta diferenciação noética da Unicidade da divindade exige, portanto, uma mudança da linguagem da realidade dos entes-coisas no plural para a do “Ser” único no singular. Na linguagem mais antiga de Hesíodo a realidade das coisas ainda é expressa pelo plural ta eonta, sendo os deuses coisas que caem de maneira compacta sob o mesmo termo que subsume as coisas do mundo exterior. Na linguagem de Parmênides esta revelação experiencial da Unicidade é marcada pela transição do plural ta eonta para o singular to eon. Por meio desta mudança de linguagem os “entes-coisas” começam a ser diferenciados de um “Ser” que engloba todas as coisas. Na obra de Parmênides, a transição é tão radical que os “entes-coisas” perdem algo de seu estatuto de real em relação ao ofuscante “Ser” no singular. A pressão revelatória do Ser para além dos entes-coisas aparentemente foi experienciada com tamanha intensidade que a estrutura de uma totalidade cósmica da realidade na tensão entre Ser e coisas poderia ser apenas insuficientemente simbolizada pela linguagem. Consequentemente, no Timeu Platão precisou ir além do to eon, cunhando o símbolo to pan no sentido de um Todo único que engloba (periechein) os entes-coisas. O to pan, a ordem inteligível do universo, agora é simbolizada como o Cosmos na tensão entre a ordem (taxis) imposta por um Demiurgo e a desordem (ataxia) de um chora espaço-temporal sobre o qual ela é imposta. A realidade torna-se uma Unicidade ordenada acessível à análise matemática.
A simbolização desta experiência por Platão, no entanto, não resultou num Sistema. A estrutura da divindade experienciada permanece misteriosa. Há um demiurgo que ordena a realidade desordenada, mas a ordena de acordo com um paradigma de ordem que é ele próprio um deus; além disso, o Cosmos organizado segundo o paradigma, por seu turno, é uma cópia divina do paradigma única, ou unigênita (monogenes). A ordem do paradigma é a realidade última englobando todos os entes-coisas no Cosmos único. Na experiência de Platão, a importância revelatória desta unicidade do Todo foi tal que ele cunhou o termo monosis (31b), um termo que desapareceu da terminologia filosófica posterior. O símbolo “ordem” adquiriu o significado diferenciado da unicidade que exclui uma pluralidade de universos, deixando em aberto o mistério da desordem na ordem do Todo.
Um elemento importante da luta de Platão por uma linguagem do Deus único além dos deuses – frequentemente negligenciada por completo – são as experiências da divindade que desabrocham nas Invocações da Teogonia de Hesíodo. É verdade que, para Hesíodo, a fonte da verdade sobre a realidade são figuras divinas, as Musas. Mas as Musas não são divindades olímpicas; elas são geradas por Zeus, bem longe dos olímpicos, em sua união com Mnemosine. A fonte da verdade é transolímpica, e o Zeus que gera as Musas é ele próprio um deus que nasceu, embora não morra. Além disso, o que as Musas cantam sobre a realidade que inclui os deuses é cantado primariamente não para homens, mas para os próprios deuses, e especialmente para um Zeus que parece não estar perfeitamente cônscio de sua posição e de seus poderes como força ordenadora divina na realidade. Para Hesíodo, Zeus não é nenhum deus a menos que exista uma realidade divina Além dos deuses. Nestas simbolizações hesiódicas, reconhecemos as primeiras insinuações do Além que a tudo engloba (periechon) que em última análise torna-se o epekeina de Platão.
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(Nota do editor: Se o leitor ainda não leu o Prefácio do Editor, deveria fazê-lo antes de prosseguir)
[1. O “divino” que a tudo envolve de Anaximandro e como se deve falar sobre ele segundo Aristóteles no livro 4 da Física, 203b7:]
Do apeiron não há nenhum princípio (arche)… mas este parece ser o começo de todas as outras coisas e envolver (periechein) todas as coisas e governa-las todas, como todos os que dizem não postular outras causas, como o espírito ou o amor, acima e além do apeiron. E isto é o divino (to theion); pois ele é imortal (athanaton) e indestrutível (anolethron), como diz Anaximandro… (Tradução de Kirk, Raven & Schofield, Os Filósofos Pré-Socráticos, 2ª ed., 1983, p. 115.)
[2. A Oração em Plotino V, 1, 6 invocando Deus antes de iniciar a busca pela linguagem apropriada na qual discursar sobre o Um e sobre o mistério de sua emanação, temas sobre os quais só se pode falar recorrendo a metáfora oníricas como a metáfora do perfume escolhida por Plotino (“coisas perfumadas”):]
Falemos sobre ele do seguinte modo, primeiro invocando o próprio Deus, não em palavras declamadas, mas dilatando-nos com nossa alma em oração a ele, deste modo aptos a, sozinhos, orar exclusivamente a ele.
[3. A Oração no Timeu de Platão, desta vez invocando o “theos soter” (48d) a medida em que Platão tenta encontrar a linguagem apropriada para falar sobre o polo não-objetual da tensão entre o divino em formação e o receptivo mas resistente chora (Espaço) não-formado:]
E, como antes, igualmente agora, no princípio de nosso relato devemos invocar o Deus Salvador para nos conduzir em segurança através de uma exposição inédita e incomum até uma conclusão baseada na probabilidade, e assim começar nosso relato mais uma vez.
[Mais uma vez, a linguagem deve tornar-se onírica e metafórica. (Timeu 48e-53c, esp. 51b-c).]
[4. A “Oração mental” (das mentale Gebet) de Goethe:]
A Oração Mental que engloba e exclui todas as religiões e que somente num punhado de homens favorecidos por deus permeia todo o seu estilo de vida, desenvolve-se na maioria dos homens somente como um sentimento momentâneo ardente e arrebatador; uma vez esvaecido, o homem, de volta a si, insatisfeito, ocioso, é bruscamente lançado de volta ao tédio mais interminável. (Goethe, West-Östlicher Divan, Noten und Abhandlungen, “Ältere Perser”, Leipzig, Insel-Verlag 1912, p. 142.)
[5. A manifestação dos equivalentes cristãos da experiência e da expressão do “divino”:]
[(a) O pleroma e o theotes em Colossensses 2:9:]
Pois nele habita corporalmente toda a plenitude(pleroma) da realidade divina (theotes).
[(b) O nome “tetragramático” do “divino” em Tomás, Suma Teológica I.13.11.1:]
A denominação — Aquele que é — quanto à sua origem, é mais própria de Deus, que este último nome mesmo; pois, ela se origina do ser, tanto quanto à sua significação, como quanto ao conteúdo desta, conforme já dissemos. Mas, quanto ao ser designado, o nome de Deus é mais próprio, porque é usado para significar a natureza divina; se bem que mais próprio ainda é o nome do tetragrama, imposto para significar a própria essência incomunicável, e, por assim dizer, singular, de Deus.