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Posts Tagged ‘argumento moral’

por Richard Carrier

Demonstrei que fatos imperativos são empiricamente detectáveis pela ciência (e são simplesmente fatos da natureza como qualquer outro, dispensando qualquer pressuposto religioso), e demonstrei que os únicos fatos morais possíveis que podem reivindicar minimamente serem verdadeiros num sentido relevante devem ser da mesma espécie que todos os outros fatos imperativos e, portanto, devem ser, também, empiricamente acessíveis por métodos científicos. Também citei diversos filósofos concordando comigo em ambos os pontos, portanto não estou sozinho. Resta apenas uma pergunta: Tais fatos morais existem?

Defini os fatos morais verdadeiros como proposições imperativas que devemos efetivamente obedecer acima de todos os outros imperativos, e até onde qualquer um foi capaz de demonstrar, isto significa que um imperativo moral é um imperativo hipotético que suplanta todos os outros imperativos. Em outras palavras, “fatos morais verdadeiros” são coisas que devemos fazer acima de tudo o mais, tal que quando confrontados por dois imperativos conflitantes, devemos satisfazer o imperativo moral em detrimento de qualquer outro imperativo.[33] Outros filósofos podem definir de modo implícito ou explícito “fatos morais”, “moral”, ou “moralidade” da maneira que melhor lhes aprouver; mas na medida em que o fazem, eles não mais estão falando sobre o que, por uma questão efetivamente factual, mais devemos fazer – a menos, é claro, que seja, caso em que eles estão definindo a moralidade exatamente como eu estou fazendo aqui (seja lá o que eles imaginem que estão fazendo). Portanto, ou é uma ou a outra. E como somente nos importamos com aquilo que, por uma questão efetivamente factual, mais devemos fazer (e não com outras coisas que não carregam razões motivadoras suficientes para que as façamos em detrimento daquilo com que nos importamos), essa é a única definição de moralidade que possui qualquer relevância para nossa conduta real.

Isto pode ser constatado na prática. Se qualquer grupo ou indivíduo S identifica x como moral, mas é demonstrado que S deve fazer y em vez de x, então observaremos o seguinte: ou S certamente concluirá que x não é, tudo considerado, realmente moral, mas antes que y é moral, defendendo assim que y é o que S mais deve fazer; ou S negará que S deve fazer y em vez de x argumentando que eles devem fazer x em vez de y, defendendo assim que x é o que S mais deve fazer. Ambas as respostas simplesmente confirmam sua aceitação implícita de minha definição de fatos morais. E mesmo se S rejeitar essa definição, eles não podem evitar os fatos por renomea-los. Se x realmente é o que eles mais devem fazer, chamar y de “moral” ainda não dá a S qualquer razão suficientemente motivadora para fazer y em vez de x (além, é claro, de uma razão que é ou irracional ou desinformada, e portanto equivocada).

Todo ser humano, por definição, sempre deseja alguma coisa acima de qualquer outra coisa. Mesmo se eles na verdade desejarem acima de tudo o mais várias coisas igualmente, essas coisas constituem, coletivamente, o que eles mais querem acima de qualquer outra coisa. E quando racionais e suficientemente informados, o que eles mais querem será, efetivamente, o que eles devem querer mais:

1. Se você assumir querer sobretudo B, então x ocorrerá; caso contrário, ~x ocorrerá.
2. Quando racional e suficientemente informado, você quererá x mais do que ~x.
3. Se quando racional e suficientemente informado você desejará x mais do que ~x (e se e somente quando você quiser sobretudo B, x ocorrerá), então você deve querer sobretudo B.
4. Portanto, você deve querer sobretudo B.

Segue necessariamente que de todas as coisas que podemos realmente alcançar, uma delas (ou um subconjunto delas) nós desejaremos acima de qualquer outra.[34]

Uma vez que qualquer coisa que desejemos acima de todas as outras implica um imperativo hipotético (em virtude de seu fim ser mais preferível do que qualquer outro fim alcançável), e um imperativo hipotético que suplanta todos os outros imperativos é por definição um imperativo moral, segue-se necessariamente que imperativos morais verdadeiros existem (e apenas aguardam por serem descobertos). Portanto, fatos morais verdadeiros existem, [35] e existem independentemente da crença ou da opinião humana – porque podemos estar enganados acerca do que mais queremos, e assim acerca do que devemos fazer acima de tudo, por ignorarmos os fatos verdadeiros ou raciocinarmos falaciosamente a partir destes fatos. Isto é demonstrado pela observação de que o que mais queremos muda tão logo nos tornamos racionais e esclarecidos.[36] Com efeito, a deliberação e a informação muitas vezes alteram nossos desejos, e isso prova que podemos estar errados sobre o que realmente desejamos.

Mesmo as alegadas exceções não o são realmente. Por exemplo, uma vez que uma pessoa se torne plenamente informada das consequências e ainda assim continua a fumar, não vemos nenhuma mudança no que tal pessoa mais deseja. Sua decisão então implica que fumar é mais desejado do que o cancelamento consequências deste hábito; mas esse desejo pode resultar somente de uma reflexão irracional (uma condição às vezes chamada de akrasia. Porque o benefício de evitar as consequências sobrepuja verdadeiramente e em larga escala os benefícios banais do hábito de fumar – tanto mais quanto esses mesmos benefícios podem ser obtidos por outros meios – e é irracional preferir o que é bem mais dispendioso quando tudo o mais permanece igual. Isto é, a menos, é claro, que preferir o que é bem mais dispendioso quando tudo o mais permanece igual seja realmente o que você mais deseja na vida. Mas se esse fosse o caso, então por definição tal pessoa efetivamente desejaria todas as terríveis consequências do hábito de fumar, e isto então não mais seria uma exceção à regra assim estabelecida (desde que o fumante nunca tenha estado enganado sobre o que ele mais quis).[37]

A situação não é diferente em casos de auto-sacrifício. Se, por exemplo, uma mãe dá sua própria vida para salvar sua filha, será alegado que ela escolheu contrariando seu maior desejo (que presumivelmente era viver, assim como continuar a buscar sua meta de felicidade pessoal), mas essa jamais pode ser uma descrição inteligível do que aconteceu. Se a mãe realmente desejasse continuar vivendo para buscar sua própria felicidade, então, por definição, isso é o que ela deveria ter feito. Que ela não o tenha feito implica que ela quis acima de tudo perder sua vida para salvar a de sua filha. Pode então ser objetado que tal decisão foi errada na ocasião, mas isso não se segue automaticamente (ela pode de fato ter sido mais feliz morrendo do que vivendo sem ter salvado sua filha), e mesmo se isso fosse verdadeiro, então isso simplesmente é verdadeiro, e a mãe não deveria ter feito isso. Ela deveria ter deixado sua filha morrer. Nossa repugnância a esse fato não o torna falso. De fato, a repugnância que sentimos em tal situação é tão errônea quanto a de alguém que abomina as liberdades concedidas às mulheres ou a libertação dos escravos. Deveríamos então em vez disso elogiar e aplaudir a recusa de uma mãe em se autossacrificar, assim como agora aplaudimos a concessão de liberdades às mulheres e a libertação dos escravos, como sendo de fato a decisão moralmente correta, cuja ampla compreensão não produzirá nenhum ressentimento, nem mesmo na filha (Ocorre-me o caso de um soldado que esperava completamente ser abandonado pelo bem de sua unidade, e julgava ser profundamente errado que sua unidade procedesse de modo contrário). De um jeito ou de outro, ainda existe algum fato moral verdadeiro sobre o assunto, e ele ainda é implicado pelo que mais queremos (quando racionais e suficientemente esclarecidos). E de posse das evidências empíricas incontestáveis desse fato, nenhum argumento racional poderia ser construído em favor de qualquer moralidade alternativa além de apelos falaciosos à emoção, à tradição, ou seja lá em que você se apóie.

A conclusão ainda segue: o certo é o que mais queremos quando racionais e esclarecidos.[38] Mas isto estabelece apenas uma versão realista do relativismo moral: deve existir necessariamente uma moralidade factualmente verdadeira no mínimo para cada indivíduo, que ainda pode diferir de indivíduo para indivíduo (ou grupo para grupo). Em tal situação, a verdade moral é relativa ao indivíduo (ou ao grupo de indivíduos dotado das mesmas propriedades relevantes). Não obstante, isto não altera o fato de que para qualquer indivíduo deve existir necessariamente um moralidade factualmente verdadeira que não é o mero produto de sua crença ou opinião (por conseguinte não é meramente subjetiva, e certamente não antirrealista), mas é produzida inteiramente por fatos naturais (seus desejos inatos e os fatos do mundo com os quais deve-se entrar em harmonia para realizar esses desejos, que são ambos fatos objetivos reais). De qualquer maneira, pode ser demonstrado que tal relativismo moral absoluto é falso, que existem fatos morais verdadeiros que vigoram independentemente de diferenças individuais ou culturais, e portanto são fatos morais universais.

Notas.

33. Naturalmente alguém pode perguntar o que fazer se existem imperativos morais conflitantes: bem, ou (a) um será o mais imperativo e portanto prevalecerá ou (b) nenhum deles será o mais imperativo, caso em que não haverá nenhuma verdade de fato em relação a qual deve ser preferido (isto é, fazer qualquer deles será exatamente tão moral quanto fazer o outro – embora ainda exclua tudo o mais). Se qualquer argumento válido e sólido contrariando (b) puder ser construído, então esse argumento necessariamente implica (a) (isto é, que um deles é mais imperativo do que o outro, e portanto (b) não é verdadeiro).

34. Objetos de desejo inalcançáveis estão, obviamente, fora de consideração precisamente porque não há nenhuma ação que podemos empreender para obte-los, e por conseguinte nenhum fato imperativo verdadeiro que nos concerna em relação a tais objetos inalcançáveis. Mas esta distinção é aplicável apenas ao absolutamente inalcançável (por exemplo, deter um disparo de arma de fogo com as mãos), não o contingentemente inalcançável (por exemplo, fracassar em encontrar um abrigo quando encontrar um abrigo era em princípio algo realizável). O livre-arbítrio, portanto, não é um problema. A distinção é entre falhas de cálculo e falhas insuperáveis por qualquer cálculo (que são estados diferentes, independentes do livre-arbítrio) porque (a) cálculos aperfeiçoados podem corrigir um mas não o outro e (b) o primeiro é um produto causal do caráter que desejamos avaliar enquanto o outro não é (veja Carrier, Sense and Goodness, 97-117).

35. Dadas as provas formais no apêndice, isto implica que os fatos morais são tais que: “S deve moralmente fazer A” significa “Se os desejos de S são racionalmente deduzidos a partir do máximo possível de fatos que S pode razoavelmente obter no momento (sobre as preferências de e os resultados das alternativas disponíveis a S nas circunstâncias em que S se encontra), então S preferiria A em detrimento de todos os cursos de ação alternativos (naquele momento e naquelas circunstâncias).” Esta definição efetivamente torna a irracionalidade voluntária imoral, mas não a irracionalidade que resulta (a) de defeitos mentais incorrigíveis (porque fins inalcançáveis jamais podem ser imperativos  para S – veja a nota 34) ou (b) informações inacessíveis (porque nestas circunstâncias S age apropriadamente a partir de todas as informações razoavelmente adquiríveis no momento – veja a nota 28). Não obstante, embora a irracionalidade em si possa ser moralmente desculpável em ambos os casos, ações irracionais ainda podem ser moralmente condenáveis mesmo para tais pessoas, na medida em que elas saibam que o que estão fazendo é errado mesmo assim, ou que elas tenham acesso razoável a fatos que as teriam informado que era (mesmo considerando-se sua irracionalidade), visto que nessas circunstâncias o fim moral (e o conhecimento disso) era alcançável e ainda assim foi negligenciado (portanto uma falha de cálculo, não de calculabilidade). Não obstante, a escusabilidade existe em princípio, portanto podemos às vezes reconhecer que as pessoas estão “agindo moralmente” embora pudessem ter agido melhor se dispusessem de melhores conhecimentos (veja a nota 28 sobre o conhecimento moral ideal). Inversamente, possuímos um grande interesse emocional e institucional em ações de outros cuja generalização ou continuidade possa nos colocar ou a pessoas com quem nos importamos em risco (e portanto nós muitas vezes exclamamos “afronta moral” diante de tais atos), mas que certas falhas morais nos sejam de grande relevância não significa que ações menos relevantes não sejam também falhas morais. Uma lógica similar torna supérfluas ações possíveis (ações que não são moralmente obrigatórias mas não obstante louváveis). Elogios e censuras portanto referem-se somente ao que nos agrada ou desagrada, não necessariamente ao que é certo e errado (conquanto ainda possa haver o certo e o errado sobre o que elogiar e o que censurar).

36. Alguém pode objetar que talvez nós devemos ser irracionais e desinformados, mas a conclusão de que quando somos racionais e informados nós desejaríamos x se seguiria. Somente se nestas circunstâncias x fosse “ser irracional e/ou ignorante nas circunstâncias z” seria verdadeiro que devemos ser irracionais e ignorantes, e mesmo assim essa conclusão somente pode ser obtida se somos racionais e informados quando chegamos a ela. Porque para que um imperativo para buscar x ser verdadeiro, seja lá o que for que mais desejemos deve efetivamente ser melhor alcançado obedecendo x, embora seja improvável que alcancemos essa conclusão sendo irracionais e ignorantes. Tal abordagem é muito improvável de esclarecer o que verdadeiramente melhor realiza nossos desejos (como se tal esclarecimento pudesse ser atingido acidentalmente). Portanto, qualquer conclusão alcançada considerando o que x é deve ser ou racional e informada ou provavelmente falsa. Ergo, para alcançar qualquer coisa que desejemos, devemos nos empenhar em sermos racionais e esclarecidos.

37. “Fraqueza da vontade” é consequentemente apenas uma preferência irracional por uma coisa em detrimento de outra (por exemplo, preferir uma gratificação instantânea ao bem-estar a longo prazo) Que a chamemos de fraqueza simplesmente expressa nosso reconhecimento de que tal preferência é irracional.

38. Eis a prova formal deste argumento:

ARGUMENTO 3: QUE EXISTE UM SISTEMA MORAL VERDADEIRO PARA QUALQUER INDIVÍDUO (COMPROMETIDO EM SER RACIONAL)

Definições:

L = um indivíduo determinado

D = a condição em que o que qualquer um quer deve ser racionalmente deduzido do máximo de fatos verdadeiros razoavelmente obtíveis sobre suas preferências e sobre o resultado total de cada possível comportamento sob as mesmas circunstâncias.

W = um comportamento cujo resultado L deseja mais do que qualquer outro resultado.

B = aquilo para o que possuímos uma razão suficientemente motivadora para obedecer em detrimento de todos os outros sistemas imperativos (isto é, aquele comportamento que para o qual temos uma razão suficientemente motivadora para adotar em detrimento de todos os outros comportamentos recomendados).

C = um resultado ou conjunto de resultados alcançável que L deseja mais do que qualquer outro resultado alcançável.

Argumento:

3.1. Para qualquer L, se existe W, então se D é alcançado, então W é B.

3.2. Se D é alcançado, então existe C.

3.3. Se existe C, então existe W.

3.4. Portanto, se D é alcançado, então existe W.

3.5. Portanto, se D é alcançado, então B existe  (ou seja, se 3.1 e 3.4, então 3.5)

3.6. Se existe B, então existe T (isto é, se 1.8, então 3.6)

3.7. Portanto, para qualquer L, se D é alcançado, então existe T.

Portanto, para qualquer indivíduo, se o que ele deseja deve ser racionalmente  deduzido do máximo de fatos verdadeiros razoavelmente obtíveis sobre todas as suas preferências e sobre o resultado total de cada comportamento que lhe seja possível sob as mesmas circunstâncias, então existe um sistema moral verdadeiro para esse indivíduo.

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por Richard Carrier

David Hume certa vez queixou-se de que os moralistas haviam fracassado em definir qual relação lógica a palavra deve expressa. Mas ele jamais disse que não é possível deriva-la a partir de fatos naturais (essa é uma lenda contemporânea originada da leitura descontextualizada de suas palavras).[17] Mas ele observou corretamente que a única maneira de verificar se qualquer enunciado como “você deve fazer x” é verdadeiro é primeiro explicar qual é  exatamente o suposto significado atribuído ao termo “deve”. Foi subsequentemente demonstrado que esta palavra geralmente significa uma relação hipotética entre desejos e fins: o “imperativo hipotético” discutido na primeira parte desta série.[18] Mas isto foi considerado inadequado para fundamentar a moralidade, como se implicasse que a moralidade pudesse ser somente um exercício de auto-interesse. Assim, foi feita uma outra tentativa para definir um tipo diferente de relação denotada pelo termo “deve”, comumente chamada de “imperativo categórico”.

Mas o imperativo categórico ou não possui nenhum valor de verdade motivador ou simplesmente torna-se outra variedade de imperativo hipotético. Por exemplo, Immanuel Kant defendeu que a única razão para obedecermos a seus imperativos categóricos é que proceder assim irá nos trazer um grandioso senso de valor próprio, que com efeito deveríamos “nos manter constrangidos por certas leis a fim de encontrar exclusivamente em nossa própria pessoa um valor” que nos recompensa por todas as perdas sofridas ao obedece-las, pois “não existe ninguém, nem mesmo mais empedernido patife que não deseje ser também ele um homem de semelhante espírito“, embora somente através de uma vida moral seja possível alcançar esse “grandioso valor interno à sua própria pessoa“. Assim, Kant afirmou que um forte senso de valor próprio não é possível a um indivíduo imoral, mas algo natural para o moral; contudo, todos desejam tal coisa (acima de qualquer outra coisa); por conseguinte todos possuem uma razão suficiente para serem morais.[19] Ele nunca se deu conta de que por esse expediente havia reduzido seu sistema de imperativos categóricos inteiro a um único imperativo hipotético:

K= Sistema de Imperativos Categóricos Proposto por Kant
W= Experiência máxima de valor próprio proposta por Kant

1. Se você obedecer K, W acontecerá; e se você obedecer ~K, ~W acontecerá.
2. Quando racional e suficientemente esclarecido, você sempre desejará W mais do que ~W.
3. Se quando racional e plenamente esclarecido você sempre deseja W mais do que ~W (e se e somente se K, então W) então você deve obedecer K.
4. Portanto, você deve obedecer K.

A premissa 1 corresponde à declaração de Kant de que devemos “nos manter constrangidos por certas leis a fim de encontrarmos exclusivamente em nossa própria pessoa um senso de valor próprio“, e a premissa 2 corresponde à declaração de Kant de que “não existe ninguém, nem mesmo o mais empedernido patife, que não deseje ser também ele um homem de semelhante espírito” (e isso acima de qualquer outra coisa). E a conclusão somente segue se assumirmos a premissa 3 – que é uma mera definição da relação lógica constituinte de um imperativo hipotético, o único modo conhecido de derivar validamente sua conclusão a partir daquelas premissas.

As outras duas premissas são alegações factuais, e como tais são empiricamente testáveis pela ciência: podemos confirmar empiricamente se obedecer a K efetivamente causa W (e se tal não for o caso, a teoria moral de Kant, de que “devemos obedecer a K” é falsa, como até o próprio Kant reconheceu ao declarar que esta é a única razão que qualquer um teria para obedecer a K); e podemos confirmar empiricamente se W é realmente o que “ninguém, nem mesmo o patife mais empedernido, não deseja” ter, e de fato deseja a tal ponto que alcança-lo compensa até mesmo todas as perdas sofridas por obedecer a K. E se isso não for verdade, se W não é o que todos mais desejam – se as pessoas se contentam em continuar sem W se for possível obter alguma outra coisa em seu lugar, e elas continuariam a pensar assim mesmo quando plenamente cientes de todas as consequências que resultam de ambas ( de modo que a ignorância não é mais uma desculpa e assim não se pode dizer que elas estejam em erro) – então, mais uma vez, a teoria moral de Kant é falsa. Porque se não temos nenhuma razão suficiente para nos importarmos com W, então mesmo se K produzir W não temos nenhuma razão suficiente para nos importarmos com K. De fato, não teremos mais razão suficiente para obedecer a K do que a ~K ou a qualquer outro imperativo ou sistema de imperativos. A menos, é claro, que exista algum outro objetivo alcançável obedecendo a K que de fato queiramos mais do que a qualquer outra coisa. Mas não é provável que seja apenas uma “casualidade” que K seja mais eficaz para alcançar tal objetivo alternativo. Muito provavelmente algum outro sistema moral M será mais eficaz em alcança-lo (seja lá o que for que a ciência descubra empiricamente que efetivamente tenha esse resultado). E como então teremos uma razão motivadora suficiente para obedecermos a M, e nenhuma razão motivadora suficiente para obedecermos a K, não haverá nenhum sentido relevante em que “você deve obedecer a K” seja verdadeiro. Mas “você deve obedecer a M” será não somente verdadeiro, ele será empiricamente, verificavelmente verdadeiro. Com efeito, nessas circunstâncias M será o único sistema moral demonstravelmente verdadeiro.[20]

Assim como Kant, todos os filósofos morais tentam respaldar seus variados sistemas morais com afirmações factuais que são cientificamente testáveis. Ainda assim, raramente os filósofos se incomodam em testa-los – seja de modo informal, e menos ainda cientificamente. Portanto, na pior das hipóteses, eles devem concordar com um programa de pesquisas científico que teste as reais alegações factuais que eles fazem. Seria tão irracional fazer oposição a isto como seria opor-se a uma pesquisa científica sobre as causas das doenças meramente porque você prefere sua própria teoria das doenças em detrimento de qualquer outra que a ciência possa vir a descobrir ser efetivamente verdadeira. Mas devemos concluir ainda mais do que isto. Pois existem apenas dois tipos de teorias morais, seja na filosofia ou na religião: aqueles cuja conclusão (que seu sistema moral é “verdadeiro” no sentido de que é, factual e efetivamente, o que devemos fazer) validamente segue de premissas demonstravelmente verdadeiras, e aqueles cuja conclusão não segue. Todos os últimos são falsos (ou de qualquer maneira não possuem nenhuma reivindicação legítima de veracidade). Isso nos deixa com o primeiro tipo. Mas não existe nenhuma maneira conhecida para derivar validamente tal conclusão (sobre o que de fato devemos fazer) além de lançar mão de alguma premissa que estabeleça esse sistema moral como um imperativo hipotético, combinado com todas as premissas sobre motivações e consequências requeridas por esse expediente, que são todas fatos empíricos passíveis de descoberta científica.[21] O que nós realmente mais desejamos, e o que realmente será eficaz para sua obtenção, são questões de fato que não podem ser verdadeiramente respondidas dentro de um gabinete. Métodos empíricos devem ser empregados para determina-los e verifica-los. Somente a ciência dispõe das melhores ferramentas para esta tarefa.

Isto nos traz e volta à questão que num primeiro momento colocamos de lado: se imperativos morais realmente não passam de casos particulares de imperativos hipotéticos. Vários filósofos resistiram a esta conclusão e ainda o fazem. Mas ninguém jamais apresentou qualquer outra relação lógica identificável que possa sempre ser expressa por “deve” (ou qualquer outro termo ou frase semanticamente equivalente) que produza qualquer apelo à nossa obediência. Se alguém ainda quiser insistir que existe alguma outra relação que permite comprovar a veracidade relevante das proposições imperativas, deixemos que a demonstre. Mas mesmo isso não será suficiente: eles precisarão demonstrar também que pelo menos uma proposição imperativa carregando esse novo sentido é não somente capaz de ser verdadeira mas que realmente é verdadeira, e além disso, que é não somente verdadeira como ultrapassa M; isto é, que estaremos suficientemente motivados a obedecer este novo imperativo até mesmo quando ele contradiz M.[22] Caso contrário ele não apelará mais a nosso interesse do que qualquer outra coisa com a qual nos importemos menos do que com M. Sendo este o caso, tal imperativo não terá nenhuma pretensão relevante de ser a “verdadeira” moralidade – ou mesmo qualquer tipo de moralidade – em vez de apenas mais um imperativo mundano, já que um imperativo não se torna um imperativo moral apenas porque você diz que é. Se assim fosse, então toda e qualquer coisa seria moral meramente por declararmos que é. Existe apenas uma definição universalmente aceitável de “imperativo moral”, e esta definição diz que um imperativo moral é aquele que suplanta todos os outros imperativos. E esse não pode ser senão M.

Todas as tentativas de construir os assim chamados sistemas morais externalistas são por conseguinte apenas exercícios de ficção, nenhum sendo mais convincente do que qualquer outro selecionado aleatoriamente numa cartola. Somente sistemas morais “internalistas” vem com motivos suficientes para nis importamos com ele e assim preferirmos obedece-los do que a qualquer outro sistema moral concorrente (porque isso é o que distingue o internalismo do externalismo em primeiro lugar: um motivo intrínseco para obedece-lo). E somente um sistema assim pode ser verdadeiro. Porque se M alcança o que mais desejamos, então por definição não existe nenhum outro sistema que teremos razões motivadoras suficientes para preferir em detrimento de M.

Todos os outros sistemas (que não oferecem uma razão motivadora suficiente para nos importarmos com ele) são igualmente anódinos: nenhum que contradiga M possuirá qualquer apelo sobre nossa obediência que exceda o apelo de qualquer outro, e como tal eles se cancelam mutuamente, deixando M como a única coisa que realmente devemos fazer. E esta não é uma conclusão original. Bernard Williams (N.T.: considerado um dos, se não o maior, filósofo britânico das últimas décadas; autor de Shame and Necessity, um estudo da psicologia moral das tragédias gregas, entre outras coisas, baseado nas Palestras Sather que ministrou em 1989 _ perdoem-me por prolongar demais este parêntese, mas é importante dizer que um convite para ministrar estas prestigiosas palestras é o equivalente, no universo dos Estudos Clássicos, a ser laureado com um Nobel _ é considerado uma das mais importantes obras de filosofia dos últimos tempos) já provou que o externalismo deve ser ou incoerente ou apenas um retorno disfarçado do internalismo ou simplesmente falso no sentido de que não oferece nenhum motivo suficiente para sermos morais e é portanto suplantado por qualquer outro sistema que de fato fornece tal motivo.[23] Com efeito, os moralistas podem querer “chamar” seus sistemas externalistas “a verdadeira moralidade”, mas tal reivindicação é vazia porque ainda teremos uma razão melhor para fazermos outra coisa.[24]

Isto implica que a moralidade não pode ser senão um exercício de auto-interesse (e valores morais não podem realmente existir senão nas mentes das pessoas que os sustentam), mas, contrariando a preocupação popular, esse fato não constitui um fundamento inadequado para a moralidade. Pelo contrário, nenhum outro fundamento para a moralidade é sequer logicamente possível – uma vez que você defina “a verdadeira moralidade” como um sistema moral, existe uma razão suficientemente motivadora para obedece-la. E uma vez que, como uma questão de fato natural real, nunca obedeceremos a qualquer outro (a menos que sejamos irracionais ou ignorantes, mas mesmo então uma vez tornados racionais e esclarecidos não obedeceremos a nenhum outro), não existe nenhum outro tipo de “moralidade” que importe.[25] Em outras palavras, afirmar que por “moralidade” você quer dizer alguma coisa que devemos fazer mas para a qual não temos nenhuma razão suficientemente motivadora para preferirmos em detrimento de outras é simplesmente evitar a questão do que realmente devemos fazer.

Notas.

17. David Hume, “Of Morals”, em Treatise On Human Nature (1739), §3.1.1, onde ele declara apenas que os “sistemas de moralidade ordinários” fracassaram em estabelecer essa conexão, não que nenhum sistema jamais poderia; ao contrário, já na seção seguinte ele defende que pode – portanto, mesmo se você acreditar que sua teoria moral específica é incorreta, ainda é errado afirmar que ele declarou que uma redução dos valores aos fatos seja impossível.

18. Demonstrado extensivamente primeiro por Immanuel Kant em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785); subsequentemente modernizado por Philippa Foot, “Morality as a System of Hypothetical Imperatives”, reproduzido em Moral Discourse and Practice: Some Philosophical Approaches, ed. Stephen Darwall, Allan Gibbard, e Peter Railton (Oxford: Oxford University Press, 1997) 313–22; e outros. Veja Carrier, Sense and Goodness, 331–35.

19. Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes ou Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (1785) § 3.4 (paragrafação de Kant) ou § 4.454 (Royal Prussian Academy edition), 112–13 na segunda edição alemã de Kant (1786), ou 122 da tradução inglesa de H.J. Paton (New York: Harper Torchbooks, 1964); veja também Robert Wolff, The Autonomy of Reason: A Commentary on Kant’s Groundwork of the Metaphysic of Morals (New York: Harper & Row, 1973), 211 (§ 3.5). Desde então, a psicologia comprovou e revisou  consideravelmente a afirmação de Kant: veja Carrier, Sense and Goodness, 313–27.

20. Consequentemente alguém pode tentar remendar Kant propondo outras razões para obedecermos a K (por exemplo, retiradas da teoria dos jogos: que é contrário aos interesses de alguém promover, por exemplo, ações cuja universalização lhe trariam prejuízos), mas se isso for factualmente verdadeiro e suficientemente motivador, então é o mesmo que M; e na medida em que não é verdadeiro ou suficientemente motivador, então é superado por M. De qualquer maneira, somos deixados com M como o único sistema moral relevantemente verdadeiro. Similarmente, em Natural Goodness (New York: Oxford University Press, 2001), Philippa Foot revisou seu trabalho anterior propondo em seu lugar que um sistema de imperativos morais hipotéticos resulta sobretudo do desejo de sermos racionais (permitindo assim que pessoas irracionais jamais poderiam ser persuadidas), mas assim como com Kant, mesmo isso ainda é, no fundo, um imperativo hipotético (veja a nota 36).

21. Isto é efetivamente defendido por Stephen Darwall em sua própria demonstração de que os imperativos categóricos de Kant ou necessariamente reduzem-se a imperativos hipotéticos (como eu também mostrei) ou do contrário não possuem nenhum valor de verdade motivador: Stephen Darwall, “Kantian Practical Reason Defended,” Ethics 96, no. 1 (October 1985): 89–99. A partir dos princípios ali assumidos é óbvio que a mesma redução pode ser realizada sobre qualquer sistema moral. Inversamente, através de uma lei abraangente, todos os imperativos hipotéticos verdadeiros reduzem-se a um categórico: R. S. Downie, “The Hypothetical Imperative,” Mind 93 (October 1984): 481–90. Mas esse categórico também é, tautologicamente, um hipotético (que somos racionais e esclarecidos: veja a nota 36.).

22. Observe que qualquer anulador de M alternativo proposto não precisa ser empiricamente comprovado, precisa apenas ser comprovadamente verdadeiro por quaisquer meios que sejam suficientemente motivadores (portanto não estou pressupondo que somente imperativos empiricamente comprovados podem garantir nossa obediência preponderante – embora eu duvide seriamente que qualquer outra coisa possa, não é necessário presumir que não seja capaz).

23. Bernard Williams, “Internal and External Reasons,” in Moral Discourse and Practice, 363–71. Respaldado em Moral Psychology, 3:173–90 e 217–25. Na verdade, o externalismo reduz-se a uma ética descritiva, não a uma prescritiva.

24. Aqui está uma prova formal desta afirmação:

ARGUMENTO 1: SE EXISTE UM SISTEMA MORAL VERDADEIRO, É AQUELE PARA O QUAL POSSUÍMOS UMA RAZÃO SUFICIENTEMENTE MOTIVADORA PARA OBEDECERMOS ACIMA DE TODOS OS OUTROS

Definições:

m = um sistema moral

s = um sistema de imperativos que suplanta todos os outros imperativos

v = aquilo que devemos obedecer acima de todos os outros sistemas imperativos (sejam eles rotulados de morais ou não)

B = aquele que possuímos uma razão suficientemente motivadora para obedecermos acima de todos os outros sistemas imperativos

T = o sistema moral verdadeiro

M = o sistema moral que efetivamente devemos obedecer

Argumento:

1.1 Se existe m, então m é s.

1.2 Se m é s, então m é v.

1.3 v é B.

1.4 Portanto, se existe m, então m é B.

1.5 m é T se e somente se m é M.

1.6 M é B.

1.7 Portanto, m é B, e m é B se e somente se m é M; e m é M se e somente se m é T. (isto é, se 1.4, 1.5 e 1.6, então 1.7)

1.8 Portanto, T é B. (isto é, se 1.6 e 1.7, então 1.8).

1.9 Portanto, se existe m, então existe T. (isto é, se 1.4 e 1.8, então 1.9)

1.10 Portanto, se existe m, então existe T e B é T.

Conclusão: Se existe qualquer sistema moral, então aquele para o qual temos uma razão suficientemente motivadora para obedecermos sobre todos os outros sistemas imperativos é o verdadeiro sistema moral.

 25. Eis uma prova formal desta afirmação:

ARGUMENTO 2: QUE NÓS (REALMENTE) OBEDECEREMOS IMPERATIVOS HIPOTÉTICOS VERDADEIROS ACIMA DE TODOS OS OUTROS IMPERATIVOS QUANDO RACIONAIS E SUFICIENTEMENTE INFORMADOS

2.1 Por definição, para qualquer indivíduo, desejar uma coisa mais do que outra é preferir essa coisa em detrimento de outra (não importa por qual razão ou de que modo).

2.2 Portanto, para qualquer indivíduo, desejar uma coisa mais do que qualquer outra coisa (isto é, desejar essa coisa acima de tudo) é preferir essa coisa em detrimento de todas as outras coisas.

2.3 Por definição, todo indivíduo racional e suficientemente informado sempre escolherá o que preferir (quando ele de fato puder escolher).

2.4 Portanto, qualquer indivíduo racional e suficientemente informado que prefere uma coisa à outra sempre escolhe essa coisa e não a outra (se ele realmente puder escolher e não lhe for possível escolher ambas).

2.5  Portanto, qualquer indivíduo racional e suficientemente informado que prefere uma coisa a todas as outras sempre escolherá essa coisa (se ele realmente puder escolher).

2.6 Se quando racional e suficientemente informado você deseja X mais do que ~X, e você acredita que X ocorrerá somente se x é feito, então você desejará fazer x mais do que ~x.

2.7 Portanto, se quando racional e suficientemente informado você deseja fazer x mais do que ~x, então, por definição você prefere fazer x a ~x (por 2.1).

2.8 Portanto, se quando racional e suficientemente informado você prefere fazer x a ~x, por definição você sempre escolhe x (quando realmente pode escolher). [por 2.3 e 2.5]

2.9 Portanto, se quando racional e suficientemente informado você quer x (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então por definição você sempre escolherá x (quando de fato puder escolher).

2.10 Se é sempre o caso que “se quando racional e suficientemente informado você quer x (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então por definição você escolherá x“, então é sempre o caso que você obedecerá ao imperativo hipotético “se quando racional e suficientemente informado você quer X (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então você deve escolher x“.

2.11 Portanto, é sempre o caso que você obedecerá ao imperativo hipotético “se quando racional e suficientemente informado você quer x (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então você deve escolher x“. [por 2.9 e 2.10]

2.12 Portanto, você sempre obedecerá um imperativo hipotético em detrimento de todos os outros imperativos.


 

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Autor: Richard Carrier, PhD

Fonte: The End Of Christianity, págs. 333-364, (John W. Loftus, ed., Prometheus Books, 2011)

Tradução: Gilmar Pereira dos Santos

Afirma-se que se nenhuma religião for verdadeira, não há razão alguma para sermos morais. Muito pelo contrário, na verdade somente fatos empiricamente confirmáveis podem constituir uma razão válida para sermos morais, e no entanto nenhuma religião fornece um único destes fatos. Como somente fatos naturais observáveis podem fornecer alguma razão suficiente para sermos morais – a religião é ou irrelevante ou na verdade nociva para o progresso moral da sociedade ao motivar as pessoas a adotar falsas moralidades ou ao impedir que elas descubram as verdadeiras razões para serem morais. Será demonstrado aqui que existem fatos naturais mostrando que todos se beneficiarão da adoção de certas atitudes e comportamentos morais, que a ciência poderia demonstrar isto se empreendesse o programa de pesquisas adequado, e que consequentemente o Cristianismo é ou irrelevante ou um obstáculo para uma crença moral genuína.[1]

Para alcançar estas conclusões, primeiro me livrarei do problema do “é-deve”. Em seguida analisarei a lógica da moralidade cristã, mostrando como ela na verdade deriva um “deve” de um “é”, mas então provarei que ela constrói esta conexão tão precariamente que deve ser considerada uma moralidade filosoficamente deficiente. Depois, mostrarei como filósofos seculares como Kant e Hume derivam um “deve” de um “é”, revelando paralelos com a tentativa cristã que implicam uma definição universal do que todos devemos entender quando indagamos o que nós devemos fazer moralmente, que por sua vez implica que “o que devemos fazer moralmente” é algo passível de descoberta empírica. A essa altura, abordarei temores irracionais bastante comuns do que pode acontecer se permitirmos que conclusões morais sejam empiricamente refutáveis (e empiricamente confirmáveis), revelando as conexões apropriadas entre fatos científicos e fatos morais. Então demonstrarei que certos fatos morais necessariamente existem, e são necessariamente passíveis de descoberta empírica, sendo verdadeiros para qualquer indivíduo dado. Em seguida expandirei a análise para mostrar que pelo menos alguns destes fatos morais são moralmente universais, e portanto verdadeiros para todos os seres humanos. Então sumarizarei todas estas conclusões e o que elas implicam. Finalmente, um apêndice para este capítulo contém provas dedutivas formais de cada uma destas conclusões, demonstrando cabalmente que elas são necessariamente verdadeiras.

OBTENDO UM “DEVE” A PARTIR DE UM “É”

É uma declaração a priori bastante comum que “você não pode obter um ‘deve’ a partir de um ‘é'”, e que portanto é impossível que a ciência seja capaz de descobrir fatos morais. Isto às vezes é chamado de “falácia naturalista”. Mas chamar isto de falácia é em si uma falácia. Com efeito, é não apenas ilógico, como demonstravelmente falso. Obtemos um “deve” de um “é” o tempo todo. De fato, esta é absolutamente a única maneira conhecida de se obter um “deve”.

Por exemplo, “Se você deseja que seu carro funcione bem, então você deve trocar o óleo regularmente.” Isto implica um enunciado imperativo (“você deve trocar o óleo de seu carro regularmente”), que é factualmente verdadeiro independente de opiniões e crenças humanas. Isto é, independentemente do que eu acho ou sinto ou acredito, se quero que meu carro funcione direitinho, eu ainda preciso trocar seu óleo regularmente.[2]. Isto segue necessariamente dos fatos materiais do universo (tais como as leis da mecânica, da termodinâmica, do atrito e dos fatos históricos da engenharia automotiva contemporânea). Por conseguinte, isso deve ser empiricamente detectável (ou resultar necessariamente de premissas que foram descobertas empiricamente), e a ciência é capaz de fazer tais descobertas empíricas. Com efeito, a ciência tem confirmado extensivamente ser o modo mais confiável de se fazer e verificar tais descobertas (se não o único modo em alguns casos).[3]

Existem inúmeros fatos imperativos verdadeiros como este que a ciência pode descobrir e confirmar, e que a ciência muitas vezes descobriu e confirmou, desde “Se deseja salvar a vida de um paciente em quem está realizando uma cirurgia, você deve esterilizar seus instrumentos” até “Se você deseja construir uma ponte durável, você não deve empregar concreto de má qualidade”. O desejo de fazer estas coisas (dos engenheiros de construir pontes duráveis, dos médicos de salvar as vidas dos paciente submetidos a cirurgias, dos motoristas de manter seus carros em bom funcionamento) é um fato objetivo do mundo que a ciência pode descobrir e verificar empiricamente (há tempos a psicologia e a sociologia estudam rotineiramente o que é que as pessoas  realmente desejam e quando e por quê).[4] E a conexão causal entre comportamento e resultado (entre esterilizar instrumentos e salvar vidas, emprego de materiais de baixa qualidade e o desabamento de pontes, ou motores negligenciados funcionarem precariamente ou pifarem completamente) é um fato objetivo do mundo que a ciência também pode descobrir e confirmar empiricamente. E onde quer que ambos (comportamento e resultado) sejam fatos empiricamente demonstrados, o imperativo que eles implicam é um fato empiricamente demonstrado.[5] Portanto, a afirmação “você não pode obter um ‘deve’ de um ‘é’ é demonstravelmente falsa e já foi refutada vezes sem conta pela ciência. Nunca mais permitamos que ela seja pronunciada novamente.

Se os imperativos morais são suficientemente similares a estes outros tipos de imperativos (vulgarmente chamados de “imperativos hipotéticos”) é uma questão à parte (que será abordada em breve). Mas se a ciência não pode descobrir fatos morais, não pode ser porque “você não pode obter um ‘deve’ a partir de um ‘é'”. Porque a ciência obtém “deve’s” de “é’s” rotineiramente e sem qualquer dificuldade específica. Não existe argumento racional a ser levantado contra a conclusão de que proposições imperativas verdadeiras existem e são fatos do mundo tão objetivos quanto a estrutura do átomo ou a teoria microbiana das doenças. E esta proposição não é nenhuma novidade. Os filósofos já estabeleceram este ponto há muito tempo.[6]

NOTAS.

1. Este capítulo foi submetido à crítica de diversos acadêmicos de filosofia que nem sempre concordaram com minhas conclusões, mas que mesmo assim aprovaram sua publicação, incluindo Erik Wielenberg, Matt McCormick, John Shook e Evan Fales. Seus conselhos e críticas levaram a numerosos aprimoramentos, muitos infelizmente relegados a notas de rodapé. Sou muitíssimo grato por suas sugestões. Este capítulo formaliza o caso construído com maior detalhamento em Richard Carrier, Sense and Goodness Without God: A Defense of Metaphysical Naturalism (Bloomington, IN: AuthorHouse, 2005), 291-348. Observem que o estilo hipertécnico deste capítulo foi necessário para satisfazer os padrões de precisão e validade lógica da revisão por pares.

2. Doravante por “imperativos” eu não estarei me referindo a sentenças no modo gramatical imperativo mas a proposições que fazem um apelo factual à nossa obediência (de modo que deveríamos pensar nestes imperativos como “enunciados no sentido de que algo deve ser feito” e não meramente como “injunções expressas no modo imperativo”. Citado de Philippa Foot, “Morality as a System of Hypothetical Imperatives”, em Moral Discourse and Practice: Some Philosophical Approaches, ed. Stephen Darwall, Allan Gibbard, e Peter Railton (Oxford: Oxford University Press, 1997) 313; cf. nota 6 abaixo.

3. Por “ciência” eu entendo qualquer investigação empírica empregando uma metodologia logicamente válida e sólida. Portanto eu incluo nesta categoria a história e o jornalismo metodologicamente sólidos, bem como qualquer investigação pessoal conduzida cientificamente. Mas as ciências conforme sua concepção ordinária produzem as conclusões mais confiáveis e portanto ainda ostentam a maior autoridade .

4. Neste capítulo eu sempre denotarei por “desejar” e “querer” (e toda a terminologia equivalente) qualquer preferência real por uma coisa à outra (por qualquer razão e de qualquer maneira); embora em outros contextos os mesmos termos possam denotar outras coisas (como na ciência cognitiva, um estado de perturbação emocional cognitivamente e causalmente associado com um resultado aliviante específico).

5. Demonstrarei a conexão lógica entre estes dois fatos na próxima seção.

6. Uma  coletânea dos mais famosos ensaios argumentando em favor desta tese pode ser encontrada em Darwall, Allan e Railton, Moral Discourse and Practice (veja a nota 2); uma demonstração recente utilizando a teoria dos jogos moderna é fornecida em Gary Drescher, Good and Real: Demystifying Paradoxes from Physics to Ethics (Cambridge, MA: MIT Press, 2006), 273-320. Filósofos renomados que esposaram a visão de que os fatos morais são (pelo menos em princípio) empiricamente detectáveis pela ciência incluem Richard Boyd, Stephen Darwall, Allan Gibbard, Peter Railton, Philippa Foot, e vários outros, antigos e contemporâneos. Na verdade, contrariando o mito moderno, até mesmo David Hume declarou que imperativos não somente são deriváveis, mas que somente podem derivar de fatos naturais, e são por conseguinte objetos apropriados da investigação científica: David Hume, “Of Morals”, em Treatise On Human Nature (1739), § 3.1.2, explicado com maior riqueza de detalhes em An Enquiry Concerning the Principles of Morals (1751); veja a nota 17 abaixo. Cientistas contemporâneos que estudam a ética normativa estão muito próximos de um consenso sobre esta questão (e os filósofos da velha guarda apenas não viram o memorando ainda), cf., e.g. Jeff Schweitzer e Giuseppe Notarbartolo-Di-Sciara, Beyond Cosmic Dice: Moral Life in a Random Psychology, 3 vols. (Cambridge, MA: MIT Press, 2008); Owen Flanagan, The Really Hard Problem: Meaning in a Material World (Cambridge, MA: MIT Press, 2007); William Casebeer, Natural Ethical Facts: Evolution, Connectionism, and Moral Cognition (Cambridge, MA: MIT Press, 2003); e mais recentemente Sam Harris, The Moral Landscape: How Science Can Determine Human Values (New York: Free Press, 2010).

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Autor: Stephen Law

Heythrop College, University of London, Kensington Square, Londres, UK

Originalmente publicado em: Religious Studies vol. 46, 3ª ed. Fevereiro de 2010

Tradução: Gilmar Pereira dos Santos

Resumo: Este artigo desenvolve um desafio ao teísmo. O desafio é explicar por que a hipótese de que existe um Deus onipotente, onisciente e onibenevolente deveria ser considerada significativamente mais razoável do que a hipótese de que existe um Deus onipotente, onisciente e onimalevolente. Os teístas geralmente descartam de imediato a hipótese do Deus malévolo  devido ao problema do bem – não há dúvidas de que existem muitas coisas boas no mundo para que este seja a criação de tal ser. Mas então por que razão o problema do mal não provê razões igualmente boas para se descartar a crença num Deus bondoso? Eu desenvolvo este desafio do Deus malévolo em detalhes, antecipando diversas réplicas, e corrigindo erros cometidos em discussões prévias do problema do bem.

O desafio do Deus Malévolo

Denominemos a afirmação central clássica do monoteísmo – segundo a qual existe um criador onipotente, onisciente e supremamente benévolo – a hipótese do Deus benévolo. Geralmente, os que acreditam nesta hipótese , embora talvez insistam que esta seja uma ‘atitude de fé’, ainda assim não a consideram desarrazoada. Acreditar na existência de Deus, eles sustentam, não é como acreditar na existência do Papai Noel ou de fadas. É uma crença muito mais razoável do que estas.

Em resposta, os críticos muitas vezes assinalam que, mesmo que os argumentos mais populares para a existência de Deus forneçam evidências respaldando a hipótese de que que existe algum tipo de inteligência sobrenatural por trás do universo, estas evidências pouco ou nada dizem sobre seu caráter moral. Suponha, por exemplo, que o universo mostre evidências inequívocas de ter sido projetado. Concluir, unicamente com base nisso, que o projetista seja supremamente benévolo seria tão injustificado quanto seria concluir que ele seja, digamos, supremamente malévolo, o que claramente não seria justificado em qualquer sentido. Os críticos podem acrescentar que existe, além disso, uma vasta gama de evidências contrárias à hipótese da existência de tal ser supremamente benévolo. Mais especificamente, eles podem invocar o problema probabilístico do mal.

Versões do problema do mal

Existem pelo menos dois argumentos englobados pelo rótulo ‘problema do mal’. O problema lógico começa com a idéia de que a proposição:

(1) Existe um Deus onipotente, onisciente e maximamente bom.

é logicamente inconsistente com a proposição

(2) O mal existe.

Utilizo o termo ‘mal’ como significando tanto sofrimento como ações moralmente condenáveis. O argumento então prossegue da seguinte maneira. (2) é inegavelmente verdadeira. Portanto, (1) é falsa. Observe que a qualidade e a quantidade de mal são irrelevantes para esta versão do argumento – tudo o que ela exige é que exista uma quantidade mínima, não importa o quão irrisória. Talvez o problema lógico do mal não confronte o teísmo com um desafio realmente difícil. Para lidar com ele, bastaria mostrar que um Deus onipotente, onisciente e maximamente bom pode permitir a ocorrência de algum  mal para alcançar um bem maior.

Um segundo problema – o problema probabilístico – apóia-se não na idéia de que (2) é logicamente incompatível com (1), mas na idéia de que (2) nos municia com boas evidências contrárias a (1). A quantidade de mal agora se torna relevante. Mesmo se admitirmos que Deus pode possuir razões para permitir a ocorrência de algum mal, certamente pode não existir nenhuma boa razão para a quantidade aterradora com que nos deparamos. Podemos aperfeiçoar o problema observando que Deus presumivelmente não permitiria a existência de qualquer sofrimento gratuito. Deve haver uma boa razão para cada ínfima ocorrência dele.

Muitos afirmam que não somente existem poucas razões para supor que o Deus do monoteísmo clássico existe; a atordoante quantidade de mal existente fornece-nos evidências esmagadoras de que ele não existe. Os teístas que sustentam que a crença em Deus, embora não seja conclusiva, é pelo menos não-desarrazoada, estão equivocados. Longe de ser ser um problema que a razão não pode resolver, a afirmação de que o Deus do monoteísmo clássico existe parece ser franca e empiricamente falseada.

Teodicéias

Confrontados com esta objeção, os teístas podem oferecer várias respostas. Eles podem sugerir que possuímos boas bases para acreditar não somente que existe um criador, mas que este ser de fato possui as propriedades a ele atribuídas no monoteísmo tradicional. Retornarei a esta idéia adiante. Eles também podem sugerir que o problema do mal pode, num grau considerável, ser resolvido. Várias explanações teístas para o mal foram oferecidas, incluindo as seguintes.

A solução do livre-arbítrio simples Não somos autômatos cegos, mas agentes livres. Como consequência do livre-arbítrio que Deus nos concedeu, as vezes escolhemos agir errado. O sofrimento acontece. Entretanto, o livre-arbítrio torna possível a existência de bens importantes, como a possibilidade de ações moralmente virtuosas. Deus poderia ter criado um universo habitado por marionetes que sempre fizessem a vontade de Deus. Mas ao comportamento de tais marionetes  faltaria a dimensão de responsabilidade moral que torna nossas ações moralmente virtuosas. Ao nos emancipar e nos tornar livres, Deus inevitavelmente permitiu algum mal, mas este mal é mais do que superado pelos importantes bens que o livre-arbítrio acarreta.

A solução do aprimoramento espiritual: Este universo é, tomando emprestado a expressão de John Hick, um ‘vale onde as almas são forjadas’[1]. Sabemos que uma experiência ruim pode as vezes nos tornar mais fortes. Pessoas que padeceram de alguma doença terrível as vezes afirmam terem se beneficiado  muito dela. De maneira similar, ao nos infligir dor e sofrimento, Deus nos permite crescer e nos desenvolvermos moral e espiritualmente.  É somente através de nossa experiência do sofrimento que podemos nos tornar as nobres almas que Deus deseja que sejamos.

Bens de sgunda ordem exigem males de primeira ordem Os teístas podem nos lembrar que Deus tem inevitavelmente que incluir uma boa dose de sofrimento em Sua criação a fim de que certos bens importantes possam existir. Considere, por exemplo, a caridade. A caridade é uma grande virtude. Todavia só podemos ser caridosos se existirem pessoas necessitadas. A caridade é um dos assim chamados bens de segunda ordem que exigem males de primeira ordem como a carência e o sofrimento (ou ao menos sua simulação) para existir. O bem de segunda ordem supera os males de primeira ordem, o que justifica Deus ao permiti-los.

Quando oferecidas em resposta ao problema probabilístico do mal, tais explanações são as vezes chamadas teodicéias. É sobre o problema probabilístico do mal e sobre as teodicéias que me concentrarei aqui. Obviamente, como teodicéias, estas explicações possuem limitações óbvias. Por exemplo, mesmo que a solução do livre-arbítrio simples seja bem-sucedida em explicar o mal acarretado por nossa livre agência, ela falha em explicar os assim chamados males naturais – tais como o sofrimento acarretado pelos desastres naturais. Não há dúvidas de que as três teodicéias resumidas acima fracassam em explicar porque existe tanto sofrimento no mundo. É verdade que outras explicações mais sofisticadas foram oferecidas, como veremos. Alguns acreditam que estas teodicéias, se não individualmente, pelo menos em conjunto, enfraquecem sensivelmente o problema probabilístico do mal. O problema, eles supõem, pode não ter sido inteiramente solucionado, mas foi pelo menos reduzido a uma escala manejável.

Ainda assim, permanece o reconhecimento por parte de vários teístas de que certamente não é fácil explicar definitivamente porque um ser onipotente, onisciente e onibenevolente deflagaria tanto horror sobre os habitantes sencientes deste planeta ao longo de centenas de milhões de anos. Isto leva alguns a suplementar estas explicações com um apelo adicional – ao mistério. Deus trabalha de maneiras misteriosas. Porque Deus é infinitamente inteligente e informado, é provável que seu plano divino seja vastamente ‘além de nossa compreensão’[2]. Caso em que o fato de que a razão para muito do mal que existe se encontrar além de nossa capacidade de compreensão não é uma boa evidência para sua inexistência.

Como eu disse, as três teodicéias delineadas acima foram desafiadas. Também pretendo desafia-las, e a várias outras, mas de uma maneira incomum. Pretendo recuar um passo e questionar a natureza e a plausibilidade destas explanações em conjunto, através de uma analogia.

A hipótese do deus malévolo

Considere uma hipótese diferente. Suponha que o universo possui um criador. Suponha também que este ser é onipotente e onisciente. Mas imagine que ele não é maximamente bom. Em vez disso, imagine que ele é maximamente maligno. Sua perversidade é ilimitada. Sua crueldade não conhece fronteiras. Não existe nenhum outro deus ou deuses – apenas este ser supremamente vil. Chamemos a este cenário a hipótese do deus malévolo.

O quão razoável é a hipótese do deus malévolo? Eu já mostrei que, ao menos em suas versões mais simples, a maioria dos argumentos populares para a existência de Deus falha em oferecer qualquer pista sobre o caráter moral de nosso criador. Caso em que, na medida em que eles favorecem a hipótese do deus bondoso (ou seja, não muito, se tanto), eles também respaldam a hipótese do deus malévolo.

O problema do bem

Por outro lado, não existem evidências esmagadoras contra a hipótese do deus malévolo? Refiro-me, é claro, ao que pode ser chamado de problema probabilístico do bem. O problema é explicar porque um ser onipotente, onisciente e supremamente maligno permitiria tamanha quantidade de coisas boas no universo que criou. Por que, por exemplo, um deus malévolo:

(i) Nos daria imensa saúde, prosperidade e alegria?

(ii) Colocaria a beleza natural no mundo, uma indiscutível fonte de prazer e deleite para nós?

(iii) Permite-nos ajudar uns aos outros, de modo a reduzir o sofrimento e aumentar a quantidade de coisas que o deus malévolo despreza, como o amor?

(iv) Presentou-nos com filhos para amar e que nos retribuem com amor incondicional?

(v) Dotou-nos com corpos belos, jovens e saudáveis?

Certamente, se um ser supremamente malévolo vai introduzir seres sencientes em sua criação, irá tortura-los e infligir-lhes o mal. Certamente não permitirá o amor, o riso, os pores-do-sol, os arco-íris. Tampouco nos permitirá realizar o tipo de ações corajosas e altruístas que nos enobrecem e reduzem a dor e o sofrimento de nossos semelhantes. Portanto, sim, o mundo contém muitas coisas ruins. Mas também possui uma grande quantidade de coisas boas – na verdade, coisas de uma bondade tal que coloca em xeque a plausibilidade da hipótese de que seja a criação de tal ser desmesuradamente poderoso e maligno.

Observe agora que o problema probabilístico do mal espelha o problema probabilístico do bem. Se você acredita em um deus onipotente, onisciente e maximamente benévolo, então você defronta-se com o desafio de explicar porque existe tamanha quantidade de mal no mundo. De maneira similar, se você acredita em um deus onipotente, onisciente e maximamente malévolo, você defronta-se com o desafio de explicar porque o mundo contém tantas coisas boas.

Algumas teodicéias reversas

Obviamente, poucos, se tanto, de nós acredita na hipótese do deus maligno. Prima facie, não somente existem poucas razões para supor que tal ser existe, existem também evidências esmagadoras contra sua existência. Quando apresentados à hipótese do deus malévolo, a maioria de nós de imediato a descarta como absurda, geralmente porque consideramos o problema do bem decisivo.

Mas observe que, assim como existem estratégias desenvolvidas pelos teístas para tentar lidar com o problema do mal, também existem estratégias similares que podemos desenvolver para tentar lidar com o problema do bem. Aqui estão alguns exemplos.

A solução do livre-arbítrio simples: O deus maligno nos concedeu o livre-arbítrio. Possuir o livre-arbítrio significa que as vezes escolhemos o bem, o que desagrada ao deus malévolo. Entretanto, ele também introduz a possibilidade de más ações pelas quais os agentes podem ser responsabilizados moralmente. Um deus maligno poderia ter criado um universo habitado por marionetes que ele asseguraria que sempre se comportassem desagradavelmente. Mas ao comportamento de tais autômatos falta a dimensão de responsabilidade moral que transforma tais atos em ações de um tipo mais perverso e repugnante. Para maximizar o mal, o deus maligno deseja que realizemos atos cruéis e egoístas por nossa própria vontade.

Em resposta a esta primeira idéia, alguém pode objetar: ‘Mas porque um mundo como este, no qual possuímos livre-arbítrio, seria pior do que um mundo no qual não possuímos nenhuma liberdade e somos simplesmente obrigados a atormentar indefinidamente nossos semelhantes? Certamente este último cenário seria de longe muito mais ruim. Então por que o deus malévolo não o criou?’ Mas isto é esquecer que um mundo no qual somos obrigados a maximizar o sofrimento é um mundo no qual nenhuma ação moralmente condenável é realizada. E o mal moral é uma forma particularmente profunda e importante do mal (como os teístas geralmente reconhecem). Assim como, do ponto de vista de um deus bondoso, um mundo sem ações moralmente boas é gravemente deficiente, de maneira similar, do ponto de vista de um deus maligno, um mundo sem ações moralmente ruins também possui deficiências graves.

Em resposta, pode-se dizer: ‘Por outro lado, um mundo no qual o livre-arbítrio exista é, de longe, preferível para nós do que um mundo no qual somos obrigados a atormentarmo-nos uns aos outros indefinidamente. Este segundo tipo de existência infernal seria muitíssimo pior. E portanto preferível do ponto de vista de um deus malévolo. Então por que o deus maligno não o criou?’

Há alguma plausibilidade nesta resposta. Observe, contudo, que quase o mesmo tipo de reserva pode ser, e na verdade foi, aplicado às teodicéias do livre-arbítrio que utilizamos como modelo. O personagem de Dostoyevsky Ivan Karamazov, por exemplo, questiona se nossa liberdade não é um preço inaceitavelmente alto se seu resultado é a tortura de crianças inocentes. Certamente, Ivan e outros sugerem, diante da escolha entre criar um mundo paradisíaco no qual fomos feitos nobres e virtuosos e desfrutamos de uma existência profundamente rejubilante, e um mundo no qual, como resultado de nos ter sido dado o livre-arbítrio, a humanidade padece de guerras intermináveis, assassinatos, estupros, torturas, o Holocausto, e por aí vai, um bom deus deveria escolher o primeiro ( sem dúvidas vários de nós prefeririam muito mais habitar o primeiro mundo celestial; de fato, vários teístas esperam e oram para que eventualmente venham a habita-lo).

Assim, conquanto possa existir aqui uma dificuldade para a solução do livre-arbítrio ao problema do bem, esta não se revela nem um pouco menos plausível do que a resposta-modelo do livre-arbítrio ao problema do mal, dado que este tipo de preocupação é comum a ambas.

Aqui estão mais duas soluções.

A solução da destruição espiritual Hick estava enganado: isto é um vale, não de edificação e aprimoramento espiritual, mas de degradação, degeneração, decadência e destruição espiritual. O deus malévolo quer que soframos, façamos o mal e nos desesperemos. Por que, então, um deus malévolo criou belezas naturais? Para nos oferecer algum contraste. Para fazer o que é feio parecer ainda pior. Se tudo fosse uniformemente, maximamente feio, não teríamos nem a metade dos tormentos  proporcionados por uma feiúra salpicada com alguma beleza.

A necessidade de contraste também explica porque o deus maligno agraciou a poucos com uma vida luxuosa e bem-sucedida. Sua felicidade foi projetada para intensificar ainda mais o sofrimento do resto de nós. Quem pode sentir-se contente e satisfeito sabendo que uma minoria possui muito mais, que eles não fizeram por merecer, e que não importa o quão arduamente nos empenhemos, nunca alcançaremos seu patamar (e não se esqueça, além disso, que mesmos aqueles poucos sortudos não são realmente felizes).

Por que o deus malévolo nos permite ter filhos para amar e que nos amem incondicionalmente em troca? Porque nos preocuparemos interminavelmente com eles. Somente um pai ou uma mãe conhecem a intensidade da angústia e do sofrimento acarretados pela paternidade.

Por que um deus malévolo nos daria corpos belos, jovens e sadios? Porque sabemos que nossa saúde e vitalidade são efêmeras, que ou morreremos jovens ou então definharemos lentamente. Ao nos presentear com algo maravilhoso por um momento, e então gradualmente retira-lo de nós, um deus malévolo pode nos fazer sofrer ainda mais do que sofreríamos se essa coisa maravilhosa nunca nos tivesse pertencido.

Males de segunda ordem exigem bens de primeira ordem permitem  Alguns males são males de segunda ordem que requerem bens de primeira ordem. Considere a inveja. Eu não posso sentir inveja a menos que saiba que outros possuem algo que vale a pena invejar. O deus malévolo permite a poucos de nós possuir bens (ou características que podem ser percebidas como valiosas) de maneira que a inveja possa existir.

Chamemos tais tentativas de explicar o problema do bem de teodicéias reversas. Se estas teodicéias reversas não o persuadiram, lembre-se que, da mesma maneira que um defensor da hipótese do deus bondoso, também podemos tirar da manga a carta do ‘mistério’. Sendo infinitamente inteligente e bem informado, é provável que o plano supremamente engenhoso e diabólico do deus malévolo esteja muito além de nossa limitada capacidade de compreensão. Neste caso, o fato de não sermos capazes de compreender porque existem tantas coisas boas no mundo se ele existe não é uma boa evidência para sua inexistência.

A tese da simetria

As três teodicéias reversas apresentadas acima para lidar com o problema probabilístico do mal obviamente espelham as três teodicéias que vimos antes. Na verdade, outras teodicéias também podem ser parodiadas desta maneira (veja abaixo). Isto sugere uma maneira interessante de desafiar o teísmo.

Quão persuasivas são nossas três teodicéias reversas? Intuitivamente, não convencem nem um pouco. Em vez de serem consideradas seriamente, elas geralmente causam diversão tanto entre teístas como entre não-teístas. Mas isto levanta a questão: se as teodicéias reversas são fracas e ineficazes, por que deveríamos considerar as teodicéias convencionais mais eficazes?

Podemos também levantar uma questão mais geral. Em termos de razoabilidade, não existe uma ampla simetria entre a hipótese do deus benévolo e a hipótese do deus malévolo? Considere os argumentos que respaldam as duas hipóteses. Eu assinalei antes que vários dos argumentos populares que corroboram a hipótese do deus bondoso acabam por providenciar quase o mesmo tipo de respaldo (isto é, não muito) para a hipótese do deus malévolo. Além disso, quando se trata de lidar com as evidências contrárias às respectivas hipóteses oferecidas pelas enormes quantidades tanto de bens quanto de males encontradas no mundo, podemos construir tipos similares de explicação. Em particular, as três teodicéias oferecidas para lidar com o problema probabilístico do mal são equivalentes às teodicéias reversas esboçadas acima.

Denominarei a idéia de que, em termos de razoabilidade, realmente existe tal simetria aproximada entre as hipóteses do deus bondoso e do deus malévolo, a tese da simetria.

A analogia das balanças

Suponha que a razoabilidade das hipóteses do deus bondoso e do deus malévolo seja em cada caso indicada por um ponteiro num conjunto de balanças. Dependendo de como cada uma de nossas duas balanças seja carregada – considerações que aumentam a razoabilidade são colocadas à esquerda de cada balança; considerações subtraindo razoabilidade são colocadas à direita – o ponteiro em cada balança movimenta-se desde altamente razoável, passando por uma série de posições (relativamente razoável, não irracional, etc.) até altamente desarrazoado.

Certamente, constatamos que vários dos argumentos populares colocados por alguns teístas  do lado esquerdo da balança da hipótese do bom deus bondoso podem com eficácia (ou ineficácia) similar serem colocados do lado esquerdo da balança da hipótese do deus malévolo. Também constatamos que as três teodicéias que vimos utilizadas por teístas para tentar remover ou aliviar o peso do problema do mal na balança da hipótese do deus bondoso (talvez possamos pensa-las como grandes balões de hélio afixáveis ao problema para atenuar seu peso) são equivalentes às teodicéias reversas que podem ser utilizadas para reduzir o peso do problema do bem.

A tese da simetria afirma que, quando carregamos as balanças corretamente com todas as evidências disponíveis e outras considerações pertinentes à razoabilidade de uma crença, (a propósito, não assumo qualquer compromisso com o evidencialismo aqui)[3]as duas balanças estabilizam aproximadamente nas mesmas posições.

Agora, a maioria de nós, incluindo os teístas, consideram a hipótese do deus malévolo altamente desarrazoada. Imaginamos que existe pouco material para colocar no lado esquerdo da balança, e que, quando o monólito representado pelo problema do bem é adicionado, a balança dá uma guinada violenta para a direita, apesar dos efeitos de qualquer dos balões de hélio representados pelas teodicéias reversas que podemos lhe afixar. Mas os adeptos da hipótese do deus bondoso usualmente imaginam a balança do deus bondoso muito mais equilibrada. Acreditar num deus bondoso, eles pensam, não é como acreditar em fadas, no Papai Noel, ou, naturalmente, num deus malévolo. Quando esta balança é adequadamente carregada e a posição do ponteiro observada, eles dizem, encontramo-lo indicando ‘não desarrazoado’ ou até mesmo ‘bastante razoável‘.

Resumindo, os que adotam a hipótese do deus bondoso caracteristicamente rejeitam a tese da simetria. O desafio que estou apresentando àqueles que acreditam no deus do monoteísmo clássico, então, é explicar por que, se a crença num deus malévolo é altamente desarrazoada, deveríamos considerar a crença num deus bondoso significativamente mais razoável?

Podemos chama-lo de o desafio do deus malévolo.

O problema do bem na literatura

Não sou o primeiro a observar como o problema do bem pode ser utilizado para produzir um problema para os teístas.

A mais antiga discussão parece estar no livro de 1968 Evil and the Concept of God escrito por Edward Madden e Peter Hare[4], em que os autores dedicam três páginas ao problema do bem. Após esboçar rapidamente algumas teodicéias reversas, Madden e Hare concluem:

A esta altura já deveria estar claro que os problemas do mal e do bem são totalmente isomórficos; o que pode ser dito sobre um pode, num sentido inverso, ser dito sobre o outro. Para qualquer solução para um dos problema existe uma solução equivalente para o outro, e para cada contraargumento de um existe um contraargumento paralelo do outro.[5]

O artigo de 1976 ‘Cacodaemony’,[6] Stephen Cahn (de forma independente) extrai a mesma conclusão, afirmando que: ‘os argumentos clássicos em defesa da idéia de que todo mal existente no mundo torna possível um mundo contendo bens ainda maiores podem ser equiparados a argumentos em defesa da idéia de que todas as coisas boas existentes no mundo tornam possível um mundo contendo males ainda maiores’.[7] Em ‘God, the demon, and the status of theodicies’,[8], publicado em 1990, Edward Stein concorda com Hare, Madden e Cahn em que ‘[um] demonista pode idealizar uma demonologia que é isomórfica a qualquer teodicéia’.[9]

Christopher New (também ignorando a literatura anterior), em seu artigo de 1993, ‘Antitheism’[10], desenvolve alguns argumentos correspondentes para, e teodicéias reversas em defesa da, crença num deus malévolo. Finalmente, em ‘God, devil, good, evil’[11] publicado em 1997, Charles Daniels aventura-se a lidar com os argumentos de Hare, Madden, Cahn e Stein sugerindo a existência de uma assimetria crítica entre as hipóteses do deus bondoso e do deus malévolo – Daniels argumenta que um deus malévolo é na verdade uma impossibilidade lógica. Responderei à objeção de Daniels no fim deste artigo.

Existe uma série de diferenças importantes entre meu desafio do deus malévolo e os desafios prévios lançados por Madden e Hare, Cahn, Stein e New.

Primeiro, como ficará claro, eu rejeito a afirmação central de Hare, Madden, Cahn e Stein: que os problemas do bem e do mal e suas respectivas soluções são ‘exatamente equivalentes’ (Madden e Hare). As soluções não são exatamente equivalentes. Eu mostrarei algumas assimetrias entre os dois problemas e conjuntos de teodicéias (e também assimetrias nos argumentos que podem ser construídos para estes respectivos deuses). Entretanto, eu explicarei porque estas assimetrias locais não necessariamente, e muito provavelmente não, ameaçam a tese da simetria.

Segundo, eu vejo falhas na tentativa de New de lidar com certos argumentos para um deus bondoso aparentemente não-reversíveis, e forneço uma resposta melhor àqueles argumentos.

Terceiro, pretendo que minha hipótese do deus malévolo proporcione um desafio mais robusto, espinhoso e nuançado ao teísmo do que os lançados pelos que contribuíram anteriormente com esta discussão, não apenas reconhecendo e respondendo ao problema das assimetrias locais, mas também antecipando e enfrentando uma ampla gama de possíveis respostas teístas.

Respostas ao desafio do deus malévolo

Algumas pessoas podem pensar que o desafio do deus malévolo é facilmente refutável. Por exemplo, não omitimos vários argumentos importantes para a existência de Deus que são argumentos específicos para um deus bondoso, e que não são equiparados por nenhum argumento correspondente para um deus malévolo? Não mostram estes argumentos que a crença num deus bondoso é, afinal de contas, um pouco mais razoável do que a crença num deus malévolo?

Milagres e experiências religiosas

Considere por exemplo o argumento dos milagres. Curas milagrosas e outros fenômenos supostamente sobrenaturais são observados regularmente. Alguns são investigados oficialmente e confirmados por autoridade religiosas como a Congregação Católica para as Causas dos Santos. Não proporcionam tais eventos pelo menos algumas evidências para a existência não somente de um deus, mas de um deus bondoso disposto a realizar grandes obras benéficas em resposta às nossas orações?

Ou considere o argumento da experiência religiosa. Experiências religiosas são quase sempre interpretadas como experiências de alguma coisa imensamente positiva. Mais uma vez, não nos fornecem elas pelo menos alguma evidência de que não somente existe algum tipo de inteligência por trás do universo, mas que esta inteligência é uma força benévola, não malévola?

Mesmo que tais argumentos estejam longe de serem conclusivos quando considerados individualmente, podemos supor que eles contribuem para fazer um caso cumulativo para a existência não de um deus qualquer, mas da divindade supremamente benevolente do monoteísmo clássico. Mas se isto é verdade, então o equilíbrio da balança do deus benévolo agora se altera. Dispomos agora de algo um pouco mais convincente para colocar no lado esquerdo da balança do deus benévolo, algo para o qual não há nada correspondente que possa ser colocado no lado esquerdo da balança do deus malévolo. Possuímos agora algum motivo para rejeitar a tese da simetria?

New sobre os argumentos dos milagres e das experiências religiosas

Em ‘Antitheism’,[12], New tenta lidar com esta aparente assimetria construindo argumentos correspondentes para um deus malévolo. Ele pede que imaginemos um mundo cujos habitantes tem experiências com um deus malévolo (New as chama de ‘experiências antirreligiosas’) e que observam eventos perigosos ou desagradáveis que não podem ser explicados cientificamente (New os chama de ‘antimilagres’). Possuímos agora evidências hipóteticas para um deus malévolo que correspondem exatamente às evidências para o deus benévolo. O problema com a estratégia de New, porém, é que evidências imaginárias não são realmente evidências. Eu não posso providenciar evidências contrárias a uma teoria científica simplesmente imaginando alguma.[13] Para possuir algum valor, as evidências devem existir concretamente.

Vários teístas insistem que dispomos de evidências reais para um deus benévolo – a evidência proporcionada pelos milagres e pelas experiências religiosas. O problema com a tese da simetria, o teísta pode insistir, é que simplesmente não existe qualquer coisa similar a este tipo de evidências para experiências antirreligiosas e antimilagres. A tentativa de New de produzir argumentos correspondents aos argumentos dos milagres e das experiências religiosas é um fracasso. Entretanto, como explicarei em seguida, existe uma maneira melhor de responder aos argumentos dos milagres e das experiências religiosas.

Uma resposta melhor

Os argumentos dos milagres e das experiências religiosas fornecem evidências melhores para um deus benévolo do que para um deus malévolo?

Suponha que a hipótese do deus malévolo seja verdadeira. Este ser maligno pode não querer que saibamos de sua existência. Para maximizar o mal, na verdade pode lhe ser útil nos enganar sobre sua verdadeira natureza. Um ser onipotente e maligno não teria dificuldades em ludibriar os seres humanos e faze-los acreditar que ele é bom. Assumindo uma aparência ‘boa’, ele pode aparecer num canto do mundo, revelar-se em experiências religiosas e realizar milagres em resposta às orações, e talvez também dar instruções sobre o que seus seguidores devem acreditar. Ele pode então fazer o mesmo em outras regiões do globo, exceto pelas instruções sobre o que se deve crer, que contradizem tudo o que ele disse em outros lugares.

Nosso ser maligno então retira-se e observa inevitáveis conflitos surgirem  e assumirem proporções globais entre as comunidades para as quais ele se revelou fraudulentamente, cada uma delas totalmente convencida por seu próprio estoque de milagres e experiências religiosas de que o único deus verdadeiro está a seu lado. Temos aqui uma receita para conflitos intermináveis, violência e sofrimentos.

Quando observamos como as experiências religiosas e os milagres estão realmente distribuídos, este é aproximadamente o padrão que encontramos. Portanto, mesmo que eles sejam genuinamente sobrenaturais, será que estes fenômenos miraculosos constituem melhor evidência para um deus benévolo do que para um malévolo? Conquanto um deus benévolo possa criar milagres e experiências religiosas, é difícil ver por que ele os produziria desta maneira, considerando-se as previsíveis e terríveis consequências. Talvez os milagres e as experiências religiosas de fato indiquem a atividade de agentes sobrenaturais, mas é discutível que sua configuração real corrobore melhor a hipótese do deus benévolo que a do deus malévolo. Não deveríamos, a esta altura, descartar a possibilidade de que, se existe uma assimetria entre as duas hipóteses, esta deva-se na verdade à maior razoabilidade da hipótese do deus malévolo do que a do deus benévolo.[14]

Em resposta à esta defesa da hipótese do deus malévolo, pode-se perguntar: ‘Mas por que uma deus malévolo se importaria em nos enganar sobre seu verdadeiro caráter, considerando-se que o pleno conhecimento deste carrasco cruel e todo-poderoso seria na verdade bem mais terrível?’

A resposta, é claro, é que um deus malévolo desejaria permitir a realização de atos moralmente condenáveis dentro de sua criação. Como já observado, um mundo sem agentes morais capazes de realizar ações de uma natureza profundamente perversa é um mundo seriamente deficiente deste ponto de vista. Portanto não somente o deus malévolo criou um mundo no qual nós somos agentes morais livres, como também arquitetou o tipo de circunstâncias nas quais somos, então, prováveis de escolher livremente o mal. Conflitos motivados pela religião claramente foram, e continuam a ser, uma das principais fontes de mal moral no mundo. Através deste engano, um deus malévolo é capaz de criar um ambiente no qual é provável que o mal moral floresça.

Uma última objeção ainda pode ser levantada: ‘Mas certamente nada poderia ser pior do que o inferno segundo sua concepção tradicional. Por que um deus malévolo simplesmente não nos envia direto para o inferno?’ Entretanto, como já observado, um enigma correspondente desafia os que acreditam num deus benévolo. Considerando-se que um cenário paradisíaco seria profundamente mais jubiloso do que este, por que um bom deus não nos envia direto para o Céu? Por que permite-se que tantos de nós atravessem sofrimentos tão terríveis aqui?

Considerando-se que ambas as hipóteses enfrentam este tipo de objeção, como está ela não representa nenhuma ameaça à tese da simetria. Além disso, podemos, em ambos os casos, tentar lidar com a objeção recorrendo a um pós-vida. Somos enviados a este mundo primeiro, onde nos é dada a oportunidade de realizar ações morais profundamente boas e más (isto é importante para ambos os deuses). Nós então passamos para um pós-vida: uma eternidade no Céu ou (sob a hipótese do deus malévolo) no Inferno, onde a felicidade ou (sob a hipótese do deus malévolo) a dor e o sofrimento são maximizados e quaisquer sofrimentos ou (sob a hipótese do deus malévolo) alegrias na primeira etapa de nossa existência são compensados. Eu examinarei brevemente os exemplos de tais teodicéias do pós-vida.

Evidências históricas

A propósito, as respostas acima podem ser ampliadas para lidar com argumentos para um deus benévolo baseados em evidências históricas, como as evidências fornecidas pelas escrituras (as quais nem todas são baseadas em experiências religiosas e milagres). Alguns insinuarão que existe um volume considerável de evidências históricas e textuais que podem ser apresentadas e combinadas para respaldar a crença numa divindade benévola, mas nenhuma evidência correspondente para respaldar a crença numa divindade malévola – e isto constitui uma assimetria significativa entre nossas duas hipóteses.

Em resposta, podemos perguntar mais uma vez – estas evidências históricas realmente corroboram melhor a hipótese do deus benévolo do que a do deus malévolo? Não se nossos deus malévolo deseja criar a ilusão de que é bom, a fim de fomentar a fraude delineada acima. Pode muito bem ser de seu interesse fabricar evidências enganosas sobre seu próprio caráter.

Quando consideramos a distribuição das evidências proporcionadas pelos milagres, experiências religiosas e também as evidências históricas associadas com as inúmeras fés diferentes, é no mínimo razoável que o padrão encontrado corrobore melhor a hipótese do deus malévolo do que a do benévolo. Pois, reiterando, por que diabos um deus benévolo produziria estes fenômenos de maneira a assegurar a existência de conflitos religiosos intermináveis? Sem dúvidas, é um pouco mais provável que a desastrosa distribuição real seja obra de um ser maligno.

Um argumento moral

Outra estratégia disponível para o teísta a fim de estabelecer uma assimetria significativa entre as duas hipóteses seria sustentar que existem argumentos morais para a existência de um deus benévolo que não podem ser equiparados por argumentos correspondentes para um deus malévolo. Por exemplo, eles podem defender que nossos senso moral poderia possuir unica e exclusivamente uma origem sobrenatural, e que somente um deus benévolo estaria interessado em que o possuíssemos. De maneira que o fato de possuirmos um senso do certo e do errado é uma poderosa evidência favorecendo a hipótese do deus benévolo sobre a hipótese do deus malévolo.

Contudo, este argumento particular fracassa. Conquanto possa ser verdadeiro que apenas um ser sobrenatural seja capaz de nos equipar com um senso moral, o fato é que um deus malévolo poderia muito bem ter interesse em nos fornecer tal senso. Pois ao nos dotar tanto de livre-arbítrio como de conhecimento do bem e do mal, um deus malévolo pode permitir o extraordinário mal de nossas más ações livremente realizadas com plena consciência de que elas são verdadeiramente más.

Por que, então, seria o fato de que possuímos um senso do certo e do errado uma evidência favorecendo a hipótese do deus benévolo em detrimento da do malévolo?

Um segundo argumento moral

Um tipo diferente de argumento moral especificamente para a existência de um deus benévolo concentra-se não sobre nossa consciência dos valores morais objetivos, mas em sua existência. Alguns insistirão que os fatos morais são tanto objetivos como não-naturais, e que um deus benévolo é por conseguinte exigido para sustenta-los (ou ao menos fornecer-lhes a melhor explicação.)

É no mínimo controverso se um argumento cogente ao longo destas linhas pode ser construído. Notoriamente, tais argumentos são desafiados pelo dilema de Eutífron. Imagine que afirmamos que Deus, como legislador divino, decreta que certas coisas, como o roubo e o assassinato, são erradas. Deus as decreta porque reconhece que roubar e matar são, independentemente, erradas, ou elas são erradas somente porque ele assim decretou? A primeira resposta torna Deus redundante na medida em que refere-se ao estabelecimento de um padrão de certo e errado – o assassinato seria errado de qualquer maneira, Deus existindo ou não, ou, na verdade, aconteça ou não de ser o próprio Deus bom ou mau. Mas então a natureza proibitiva objetiva, não-natural, do assassinato, seria obtida de qualquer forma, mesmo se existisse um deus malévolo. Sob a primeira resposta, podem ambos existir: um padrão de certo e errado objetivo, não-natural, e um deus malévolo.

A segunda resposta, notoriamente, parece tornar a condenabilidade moral do assassinato arbitrária e relativa. Observe que isto é um problema não importa qual de nossas duas hipóteses seja favorecida. Resumindo, sob a primeira resposta não há nenhum problema para a hipótese do deus malévolo; sob a segunda, existe, prima facie, um problema que afeta igualmente ambas as hipóteses.  O dilema de Eutífron constitui assim o principal obstáculo para a construção de um argumento moral para a existência de um deus especificamente benévolo, em vez de malévolo.

É claro, permanece possível que um argumento moral cogente ao longo das linhas acima ainda possa vir a ser formulado. Eu suspeito que, para os que rejeitam a tese da simetria, esta é a mais promissora linha de ataque. Contudo, mesmo entre os teístas, até hoje permanece a controvérsia sobre a existência de qualquer argumento do tipo.

Outras teodicéias reversas

Retornemos agora às teodicéias convencionais e suas versões adaptadas. Talvez tenhamos subestimado o alcance e a eficácia das teodicéias convencionais disponíveis. Existe alguma que não seja reversível? Com certeza existem muitas que ainda não discutimos. Contudo, em vários casos, se não todos, as teodicéias reversas insinuam-se prontamente. Para ilustrar, esboçarei mais três exemplos: (1) uma teodicéia reversa das leis da natureza, (2) uma teodicéia reversa do pós-vida, e (3) uma teodicéia reversa semântica.

Teodicéia das leis da natureza Ações intencionais efetivas exigem que o mundo se comporte de maneira regular (por exemplo, sou capaz de acender deliberadamente este fogo riscando meus fósforos somente porque existem leis que determinam que, sob tais circunstâncias, meu ato resultará em fogo). A existência de leis da natureza é um pre-requisito para nossa capacidade tanto de agir sobre nosso ambiente natural como para interagir com os outros dentro dele. Estas habilidades permitem a existência de bens grandiosos. Elas nos dão a oportunidade para agir de um modo moralmente virtuoso, por exemplo.

Entretanto, tal mundo regido por leis inevitavelmente produz alguns males. Por exemplo, o tipo de leis e condições iniciais que produzem massas de solo estáveis nas quais podemos sobreviver e evoluir também produzem movimentos tectônicos que resultam em terremotos e tsunamis. Não obstante, o mal causado pelos terremotos e tsunamis é mais do que soprepujado pelos bens que aquelas leis permitem. Podemos pensar que somos capazes de conceber mundos possíveis que, como resultado de serem regidos por diferentes leis e/ou condições iniciais, contém uma porcentagem muito maior de bem do que de mal (que contém massas de solo estáveis mas nenhum terremoto,por exemplo), mas em virtude das consequências que fracassamos em antecipar (talvez a ausência de terremotos só seja possível ao custo de algum tipo muito pior de catástrofe global), tais mundos podem, na realidade, sempre serem piores do que o mundo real.

Uma teodicéia das leis da natureza reversa pode ser construída da seguinte forma.

Teodicéia reversa das leis da natureza Ações intencionais efetivas exigem que o mundo se comporte de maneira regular. A existência de leis da natureza é um pre-requisito para que sejamos dotados com a capacidade tanto de agir sobre nosso ambiente natural como de interagir com os outros dentro dele. Estas habilidades permitem grandes males. Por exemplo, elas nos dão a oportunidade de agir de maneiras moralmente perversas – assassinando e torturando outras pessoas, por exemplo. Ao nos conceder estas capacidades, o deus malévolo também consentiu que experimentássemos certas formas importantes de sofrimento psicológico como a frustração – não poderíamos tentar, e nos frustrarmos após repetidos fracassos, a menos que primeiro nos fosse dada a oportunidade de agir.

É verdade, tal mundo regido por leis inevitavelmente produz algumas coisas boas. Por exemplo, ao nos conceder a habilidade de agir dentro de um ambiente físico, o deus malévolo nos deu a habilidade para evitar o que nos faz sofrer e para buscar o que nos dá prazer. Não obstante, tais coisas boas são mais do que sobrepujadas pelos males que estas leis permitem. Podemos pensar que somos capazes de conceber mundos possíveis que, como resultado de serem regidos por diferentes leis da natureza ou condições iniciais, contém um porcentagemo muito maior de mal do que de bem (que contém ainda mais dor física e bem menos prazer, por exemplo), mas, em virtude das consequências que fracassamos em antecipar (talvez o sofrimento maior resultaria em sermos significativamente mais compreensivos, caridosos e bons de uma maneira geral para com os outros), tais mundos na verdade sempre seriam melhores do que o mundo real.

A isto, alguém pode objetar: ‘Muito bem, um deus malévolo decreta leis da natureza que nos conferem o poder de fazer o mal – mas certamente ele também irá ocasionalmente suspender tais leis a fim de nos confundir e frustrar e para produzir males para os quais as leis da natureza nada mais seriam do que um empecilho.”

Observe, entretanto, que ambas as teodicéias defrontam-se com este tipo de objeção. Uma reserva similar pode ser aplicada à teodicéia convencional das leis da natureza. Sim, um deus benévolo produzirá um universo regular de maneira que sejamos capazes de fazer o bem, mas certamente ele estaria disposto a suspender aquelas leis e intervir a fim de, digamos, impedir algum evento particularmente vil de um ponto de vista moral (por exemplo, a ascensão de Hitler ao poder) ou para impedir algum desastre natural particularmente terrível, ou para nos ajudar a alcançar algum bem grandioso (talvez providenciando algum golpe de sorte num laboratório científico que leve à cura do câncer). Um deus benévolo simplesmente não contemplaria impassível centenas de crianças serem enterradas vivas num terremoto mesmo se o terremoto fosse o resultado de leis naturais que são amplamente benéficas de outras maneiras.

As teodicéias do pós-vida também são populares. Considere a seguinte versão apresentada por T. J. Mawson em seu livro Belief in God.[15]

Teodicéia do pós-vida compensatório A dor e o sofrimento que experimentamos neste mundo são mais do que compensadas no pós-vida – onde experimentaremos uma felicidade ilimitada. A razão pela qual um deus benévolo simplesmente não nos enviaria direto para o Céu é que apenas dentro de um mundo regido por leis no qual possuímos livre-arbítrio (algo que, de acordo com alguns teístas, como Mawson[16], nos falta no Céu) podemos desfrutar bens importantes, incluindo a grandiosa alegria que é fazer o bem por nossa própria vontade. Como consequência de habitarmos este mundo por um curto período, nós sofremos, mas este sofrimento é mais do que compensado por uma eternidade em comunhão com Deus no Céu.

A teodicéia do pós-vida de Mawson também pode ser emulada.

Teodicéia reversa do pós-vida compensatório A alegria e a felicidade que experimentamos neste mundo são mais do que compensadas no pós-vida – onde experimentamos um  mal ilimitado. A razão pela qual um deus malévolo simplesmente não nos envia direto para este mundo interminavelmente cruel é que somente dentro de um mundo regido por leis no qual possuímos livre-arbítrio podemos experimentar males importantes, incluindo o grandioso pecado de fazermos o mal por nossa própria vontade. Como consequência de habitarmos este mundo por um breve período, nós experimentamos algumas coisas boas, mas estas são mais do que compensadas pelo que lhe segue: uma eternidade de sofrimento na companhia de um ser supremamente maligno.

Teodicéia semântica Também é possível parodiar as respostas semânticas convencionais para o problema do mal. Considere este exemplo. Quando descrevemos Deus como sendo ‘bom’, o termo possui um significado diferente daquele aplicável a meros humanos. Esta diferença no significado pelo menos explica parcialmente porque um deus benévolo faria coisas que não chamaríamos de ‘boas’ se feitas por nós.

Podemos reverter esta teodicéia assim.

Teodicéia semântica reversa Quando descrevemos deus como sendo ‘mal’, o termo possui um significado diferente daquele aplicável a meros humanos. Esta diferença no significado explica ao menos parcialmente porque um deus malévolo faria coisas que não chamaríamos de ‘más’ se feitas por nós.

Com um pouco de engenhosidade, teodicéias reversas podem ser formuladas também para várias outras teodicéias convencionais. Entretanto, como explicarei agora, provavelmente deveríamos reconhecer que – ao contrário das afirmações feitas por Madden, Hare, Cahn e Stein – em alguns casos, nenhuma teodicéia ‘exatamente correspondente’ pode ser formulada.

Assimetrias

Considere, por exemplo as teodicéias baseadas numa história cristã em particular sobre a Queda e a Redenção. Quando examinamos a explicação de Santo Agostinho para os males naturais e morais – que ambos deitam raízes no pecado original de Adão e Eva – nenhuma narrativa correspondente surge espontaneamente. Uma tentativa de construir uma história invertida sobre um Adão e Eva invertidos cuja desobediência a seu criador malévolo acarretou uma Queda invertida depara-se com obstáculos insuperáveis.

Por exemplo, conquanto um deus benévolo possa ter alguma razão para permitir que os males naturais acarretados pelo pecado original continuem a existir (pois estas consequências ruins, recaindo sobre nós próprios, são merecidas, e além disso ainda resta a oferta de redenção feita por Deus), por que um deus malévolo permitiria a existência contínua dos bens naturais acarretados pela desobediência do casal Adão e Eva invertido? Pode ser que, com alguma criatividade, uma narrativa completamente diferente envolvendo um deus malévolo possa ser elaborada para explicar os bens naturais, mas é difícil ver como ela poderia corresponder à história cristã da Queda em detalhes suficientes para qualifica-la como uma teodicéia reversa. Pace Madden, Hare, Cahn e Stein, parece que nem toda teodicéia possui realmente uma versão equivalente, muito menos uma versão exatamente equivalente.

Mesmo nos casos em que uma teodicéia correspondente pode ser elaborada, ainda podem existir assimetrias. Por exemplo, se supormos que o livre-arbítrio em si é um bem intrínseco, então a teodicéia do livre-arbítrio reversa envolve um deus malévolo dotando-nos com o bem do livre-arbítrio. Conquanto um deus malévolo possa, não obstante, ser capaz de maximizar o mal concedendo-nos o livre-arbítrio, ainda ssim ele paga um preço (introduzir esse bem intrínseco) – um preço para o qual não há paralelo na teodicéia do livre-arbítrio convencional. Sem dúvidas, isto torna a teodicéia do livre-arbítrio convencional muito mais efetiva do que sua versão invertida. O teísta pode insistir que porque o livre-arbítrio é não somente um bem intrínseco, mas um bem grandioso, então quantidades colossais de males adicionais são exigidas para sobrepuja-lo – tão grandes, na verdade, que tornam a teodicéia reversa do livre-arbítrio significativamente menos plausível do que a teodicéia convencional.

De modo que parece que existem algumas assimetrias entre os dois conjuntos de teodicéias. Entretanto, o efeito destas assimetrias parece ser comparativamente menor, exercendo pouco efeito sobre o equilíbrio total da razoabilidade. Por exemplo, considerando-se o status mítico de Adão, Eva e a Queda, a teodicéia de Santo Agostinho fracassa.

Mas então a ausência de uma teodicéia correspondente nã afeta muito a comparação de razoabilidades ( e em todo caso, podemos ser capazes de elaborar um tipo diferente de narrativa para acompanhar a hipótese do deus malévolo que explique os bens naturais de outro modo).

E sobre a assimetria entre as teodicéias do livre-arbítrio convencional e reversa? Stein tenta defender a tese de que para cada teodicéia existe um ‘correspondente exato’ argumentando que o livre-arbítrio não é, verdadeiramente, um bem intrínseco. Contudo, suponha que concedamos a título de argumentação que o livre-arbítrio seja um bem intrínseco. Isso demanda que abandonemos a tese de Madden-Hare-Cahn-Stein de que para cada teodicéia existe uma teodicéia reversa que é sua ‘correspondente exata’. Mas isto realmente exige que abandonemos minha tese da simetria – a tese de que quando carregamos corretamente as balanças do deus benévolo e do deus malévolo com todas as evidências disponíveis e outras considerações pertinentes à razoabilidade de uma crença, as duas balanças acusarão valores aproximadamente semelhantes?

Acredito que não por pelo menos três razões.

Primeiro, esta assimetria entre as duas teodicéias pode muito bem ser neutralizada por outra. A fim de dispormos de uma gama completa de escolhas livres entre o bem e o mal, Deus, seja ele bom ou mal, deve introduzir a dor, o sofrimento e a morte não somente como possibilidades mas como realidades. Não somente deve Ele fazer-nos vulneráveis a dor, ao sofrimento e à morte (para nos dar a opção de torturar ou assassinar os outros), Ele deve realmente inflingir a dor e a morte de maneira que sejamos capazes de escolher livremente ajudar a alivia-los ou preveni-los. Agora se é prima facie plausível que o livre-arbítrio é um bem intrínseco, não é menos plausível que a dor, o sofrimento e a morte são males intrínsecos. Caso em que ambas as teodicéias do livre-arbítrio requerem a introdução de bens intrínsecos e males intrínsecos. Enquanto os bens intrínsecos demandam explicações adicionais da hipótese do deus malévolo, por sua vez os males intrínsecos também demandam explicações adicionais da hipótese do deus benévolo. Caso em que aparentemente as duas assimetrias se equivalem.

Segundo, mesmo se fosse verdade que a teodicéia do livre-arbítrio é significativamente mais efetiva do que a teodicéia reversa, isso pode não afetar a balança da razoabilidade entre as hipóteses do deus benévolo e do deus malévolo. Suponha, a título de argumentação, que a teodicéia do livre-arbítrio convencional seja inteiramente efetiva em explicar os males morais, e que a teodicéia reversa seja  totalmente ineficaz em explicar os bens morais (isto sendo uma assimetria bem mais dramática do que a proposta). Assim, deixamos todo o peso do bem moral na balança do deus malévolo, mas removemos inteiramente o peso do mal moral da balança da balança do deus benévolo. Esta mudança no equilíbrio das duas balanças realmente resulta nos dois ponteiros indicando níveis de razoabilidade muito diferentes?

Obviamente não. Pois, ceteris paribus, ainda existe uma quantidade monstruosa de mal na balança do deus bnévolo (tal como as extraordinárias quantidades de sofrimento infligido sobre criaturas sencientes ao longo dos milhões de anos anteriores ao aparecimento dos agentes morais sobre a Terra). Pode-se argumentar (penso que com alguma plausibilidade) que quando os males explicados pela teodicéia do livre-arbítrio são removidos, ainda permanece  um volume de mal mais do que suficiente para manter o ponteiro firmemente fixado na posição ‘altamente desarrazoado’. O ponteiro não indica agora ‘não desarrazoado’ ou ‘bastante razoável’ – ele continua resolutamente acusando ‘altamente desarrazoado’ no fim da escala. A balança moveu-se um pouquinho, talvez, mas não muito. Se assim for, (o que considero pelo menos plausível), então a tese da simetria permanece verdadeira.

Terceiro, lembremo-nos de que mesmo se a teodicéia do livre-arbítrio convencional for um pouco mais efetiva do que a teodicéia reversa, esta ssimetria pode em todo caso ser contrabalançada ou sobrepujada por outras assimetrias que favoreçam a hipótese do deus malévolo sobre a hipótese do deus benévolo. Na verdade, um exemplo já foi descoberto: prima facie, a evidência relativa aos milagres e experiências religiosas parece respaldar a hipótese do deus malévolo um pouco melhor do que a hipótese do deus benévolo.

Concluindo, então, parece que – pace Madden, Hare, Cahn e Stein – os dois conjuntos de teodicéias não se equivalem mutuamente. Existem assimetrias. Entretanto, encontramos poucas razões para supor que estas assimetrias exerçam algum efeito significativo sobre o nível geral de razoabilidade de nossas respectivas hipóteses. Ainda não encontramos boas razões para pensar que nossas duas balanças não estabilizam em posições aproximadamente semelhantes.

Outras estratégias

Para encerrar, antecipo agora cinco respostas que o desafio do deus malévolo pode provocar, e delineio resumidamente algumas das dificuldades que elas enfrentam.

Significativamente mais coisas boas do que ruins Podemos tentar refutar o desafio mostrando que existe uma quantidade significativamente maior de bem do que de mal no mundo. Isto, entretanto, será algo difícil de estabelecer, no mínimo porque bem e mal são difíceis de quantificar e mensurar. Alguns teístas consideram simplesmente óbvio que o mundo contém mais coias boas do que ruins, mas então vários (incluindo alguns teístas) são atordoados pela idéia exatamente oposta. Apelos a estimativas subjetivas possuem pouco força probatória.

Argumentos ontológicos Podem os argumentos ontológicos providenciarem fundamentos a priori para supor não somente que existe um deus, mas que ele é bom? A dificuldade mais óbvia aqui é que é discutível, para dizer o mínimo, se é possível formular qualquer argumento ontológico cogente. A cogência dos argumentos que foram apresentados continua não reconhecida não somente por não-teístas, mas também por vários teístas – talvez a maioria dos teístas filósofos. Eles sem dúvida não recorrerão ao argumento ontológico a fim de demonstrar por que a tese da simetria fracassa.

New chama a atenção para o fato de que alguns argumentos ontológicos são, em todo caso, reversíveis[17]. Considere este exemplo (meu próprio – baseado em New e Anselmo):

Posso conceber um deus malévolo – um ser pior que o qual nenhum outro pode ser concebido. Mas este ser seria ainda pior se existisse na realidade do que apenas na imaginação. Portanto, o ser que concebi deve existir na realidade.

Argumentos da impossibilidade Poderíamos refutar o desafio do deus malévolo demonstrando que um deus malévolo é na verdade uma impossibilidade, pois a própria noção de um deus malévolo contém uma contradição? Eis dois exemplos de tal argumento.

No artigo ‘God, demon, good, evil’[18], Daniels sugere que as ferramentas para lidar com o desafio do deus malévolo podem ser encontradas no diálogo platônico Górgias. Daniels acredita que Platão demonstrou que um deus malévolo é uma impossibilidade. Sua ‘refutação platônica’ da hipótese de um deus malévolo é a seguinte. Primeiro, Daniels afirma que nós sempre fazemos o que julgamos ser bom. Mesmo quando fumo, apesar de acreditar que fumar seja ruim, eu o faço porque julgo que seria bom fumar este cigarro aqui e agora. Disso resulta, Daniels diz, que ninguém faz coisas ruins intencionalmente. Mas então segue-se que se um ser for onisciente, ele não fará nada ruim. Não é possível a existência de um ser onisciente porém maligno. A noção de um ser onisciente mas maligno envolve uma contradição.

Acredito que o argumento de Daniels incorre numa falácia de ambiguidade acerca do uso da palavra ‘bom’. É verdade, sempre que faço alguma coisa deliberadamente, eu julgo, em certo sentido, que o que eu faço é ‘bom’. Mas ‘bom’ aqui não precisa significar mais do que ‘aquilo que pretendo alcançar’. Ainda não nos foi dada qualquer razão para pensar que não posso julgar ser ‘bom’, neste sentido, o que eu também acredito ser perverso, porque eu desejo o mal. Sim, um deus malévolo julgará ‘boa’ a realização do mal, mas apenas no sentido trivial de que o mal é o que ele deseja. Pace Daniels, não existe nenhuma contradição envolvida quando um ser onisciente julga que o mal seja, neste sentido, ‘bom’.

Um argumento bem diferente seria: ‘Mas ao realizar o mal, seu deus malévolo intenta satisfazer seu próprio desejo pelo mal; e a satisfação de um desejo é um bem intrínseco. De maneira que a idéia de um deus maximamente malévolo visando produzir um bem intrínseco envolve uma contradição.’

Este argumento também fracassa. Mesmo se admitíssemos a questionável hipótese de que a satisfação de qualquer desejo – mesmo um desejo ruim – é um bem intrínseco, o máximo que descobriríamos aqui seria outra assimetria local – que, visando maximizar o mal, o deus malévolo teria também pretendido realizar pelo menos um bem intrínseco (isto é, a satisfação deste desejo de maximizar o mal). O que estabelecemos, talvez, é que existem certos limites lógicos sobre a perversidade de Deus (da mesma maneira que também existem certos limites lógicos sobre Seu poder: Ele não pode fazer uma pedra tão pesada que não seja capaz de ergue-la). O Deus malévolo ainda pode ser maximamente perverso – tão perverso quanto lhe é logicamente possível ser. Ainda não foi estabelecida uma contradição na noção de um ser maximamente malévolo.

Em todo caso, existe uma questão mais geral a ser levantada sobre os argumentos tentanto mostrar que um deus malévolo é uma impossibilidade e que portanto o desafio do deus malévolo está refutado. A questão é esta: mesmo supondo que um deus malévolo seja, por alguma razão X, uma impossibilidade, ainda podemos fazer a pergunta hipotética: colocando de lado o fato de que isso-e-aquilo estabelecem que um deus malévolo é uma impossibilidade, quão razoável seria, se ele não fosse impossível, supor que tal ser malévolo exista? Se a resposta for ‘altamente desarrazoada’, isto é, por causa do problema do bem, então o desafio do deus malévolo ainda pode ser aplicado. Ainda podemos perguntar aos teístas por que, se a hipótese do deus malévolo fosse possível, eles a rejeitariam como altamente desarrazoada, mas não pensam o mesmo sobre a hipótese do deus benévolo?

Argumentos da simplicidade  E sobre a hipótese do deus benévolo ser significativamente mais simples do que a hipótse do deus malévolo?

Por exemplo, podemos sugerir que um deus benévolo pode ser definido de um jeito simples, por exemplo, como dotado de todos os atributos positivos. Como a bondade é um atributo positivo, segue-se que este deus é benévolo. O conceito de um deus malévolo, ao contrário, é mais complexo, pois ele possui tanto atributos positivos (onisciência e onipotência) como negativos (malevolência). O princípio de parcimônia exige, portanto, que favoreçamos a hipótese do deus benévolo sobre a do deus malévolo.

Reconheço que podem realmente existir assimetrias entre as hipóteses em termos de simplicidade e economia. Entretanto, observe que o fato de uma teoria ser bem mais econômica do que outra confere-lhe pouca credibilidade adicional se as evidências disponíveis favorecem esmagadoramente a idéia de que ambas as teorias são falsas.

Considere, por exemplo, estas duas hipóteses: (i) Swindom é habitada por 1000 elfos, e (ii) Swindom é habitada por 1000 elfos cada um dos quais possui uma fada sentada em sua cabeça. A primeira hipótese é mais econômica, já que postula metade das entidades da segunda. Mas isto torna a primeira hipótese significativamente mais razoável do que a segunda? Não. Pois não somente existem poucas razões para supor que qualquer delas seja verdadeira, como existe evidências esmagadoras de que ambas são falsas.

De maneira similar, se a razoabilidade de ambas as hipóteses, a do deus benévolo e a do deus malévolo, for muito baixa, assinalar que uma hipótese é um pouco mais econômica do que a outra faz pouco para aumentar a probabilidade de uma hipótese em relação a outra. A idéia de que as duas hipóteses são mais ou menos igualmente desarrazoadas permanece incólume.

Conclusão

O foco principal deste artigo foi o desafio do deus malévolo: o desafio de explicar por que a hipótese do deus benévolo deveria ser considerada significativamente mais razoável do que a hipótese do deus malévolo. Examinamos diversos dos mais populares argumentos para a existência de um deus benévolo e descobrimos que eles aparentemente conferem pouca ou nenhuma força probatória adicional à hipótese do deus benévolo do que à hipótese do deus malévolo. Também vimos que várias das teodicéias oferecidas pelos teístas para lidar com o problema do bem são emuladas por teodicéias reversas que podem ser aplicadas ao problema do bem. Prima facie, nossos dois conjuntos de balanças parecem encontrar pontos de equilíbrio bastante similares.

Agora, eu não afirmo que a tese da simetria seja verdadeira, e que o desafio do deus malévolo não possa ser refutado. Mas me parece que é um desafio que merece ser considerado com seriedade. O problema defrontando os defensores do monoteísmo clássico é este: até que eles sejam capazes de dar boas razões para supormos que a tese da simetria seja falsa, eles carecem de boas razões para supor que a hipótese do deus benévolo seja mais razoável do que a hipótese do deus malévolo – sendo a última hipótese algo que mesmo eles certamente admitirão que é de fato bastante desarrazoada.

Embora reconheça a possibilidade de refutação do desafio do deus malévolo, eu próprio não sou capaz de divisar a maneira como isso possa ser feito. Talvez existam razões para imaginar que o universo foi criado por um ser inteligente. Mas, a esta altura, a sugestão de que este ser seja onisciente, onipotente e maximamente bom parece-me pouco mais razoável do que a idéia de que ele seja onipotente, onisciente e maximamente perverso.

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Leia também:

Notas

1. Veja John Hick (ed.) Classical and Contemporary Readings in the Philosophy of Religion, 2ª ed. Englewood Cliffs NJ : Prentice-Hall, 1970), 515.

2. Veja e.g. Stephen Wykstra ‘The Humean obstacle to evidential arguments from suffering: on avoiding the evils of ‘‘appearance’’ ’, International Journal for Philosophy of Religion 16 (1984), 73–93, no qual Wykstra escreve  ‘Estive pensando cuidadosamente sobre o tipo de ser que o teísmo propõe que acreditemos, é inteiramente de se esperar – considerando-se o que sabemos sobre nossos limites cognitivos – que os bens em virtude dos quais este Ser permite o sofrimento de que estamos conscientes seriam muitas vezes além de nossa compreensão.’

3. Permito que consideraçõs pertinentes à razoabilidade possam incluir o fato de que uma crença seja, na terminologia da epistemologia reformada, ‘apropriadamente básica’.

4. Edward Madden e Peter Hare, Evil and the Concept of God (Springfield IL: C. Thomas, 1968).

5. Ibid., 34.

6. Stephen Cahn ‘Cacodaemony’, Analysis, 37 (1976), 69–73.

7. Ibid., 72.

8. Edward Stein ‘God, the demon, and the status of theodicies ’, American Philosophical Quarterly, 27 (1990), 163–167.

9. Ibid., 163.

10. Christopher New ‘Antitheism’, Ratio, 6 (1993), 36–43.

11. Charles Daniels ‘God, demon, good, evil ’, Journal of Value Inquiry, 31 (1997), 177–181.

12. Ibid.

13. With the exception, of course, of a few scientific thought-experiments – such as Galileo’s experiment
involving chained falling balls, designed to show that two balls of different weights must fall at the
same speed.

14. Entre a aprovação e a publicação deste artigo eu descobri uma excelente discussão anterior da hipótese do deus malévolo: ‘The devil’s advocate’, de Peter Millican, publicada na Cogito, 3 (1989), 193–207. Millican adota uma estratégia similar a que desenvolvo aqui, e também oferece um tratamento parecido do primeiro argumento moral abaixo.

15. T. J. Mawson Belief in God (Oxford: Oxford University Press, 2005), ch. 12.

16. Ibid., ch. 12.

17. See New ‘Antitheism’, 37.

18. Daniels ‘God, demon, good, evil’.

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Os leitores fiéis, se algum houver, deste ambicioso e até agora malsucedido blog talvez estejam apreensivos quanto ao conteúdo deste post. Richard Swinburne, o mais distinto teológo britânico, traduzido e divulgado num espaço até então reservado apenas ao primeiro escalão da ateologia?  Terá o  autoproclamado rebelde que mantém o blog tão precocemente “se resignado à mentira” e sucumbido, “como um asno”, ao sabor das “rosas da ilusão”? Dissipem suas apreensões, estimados leitores. Embora minhas faculdades mentais já apresentem um leve comprometimento _ se duvidam, saibam que escrevo esta introdução ouvindo Jennifer Lopez _ ainda preservo sua funcionalidade em grau suficiente para recusar qualquer trégua mínima no embate com o absurdo.

Este post na verdade pretende ser uma irônica resposta a uma sugestão dos editores do Teísmo.net. Eles convidaram seus leitores a se engajarem na “guerra cultural” através, entre outras atividades, da tradução de trabalhos e textos filosóficos que defendam a “superioridade filosófica” do “pluralismo metafísico teísta”, independentemente da crença ou descrença do autor. Pois bem. À época do debate de William Lane Craig contra Sam Harris, encontrei esta dica inestimável no já recomendado por aqui Debunking Christianity, do apóstata John W. Loftus. Num post bem curto, Loftus apresentou o parecer de Swinburne sobre o argumento moral. Para não estragar a surpresa, deixarei que vocês acompanhem o teólogo na formulação de seu caso. Os parágrafos a seguir foram traduzidos do capítulo do livro The existence of God dedicados aos argumentos da consciência e da moralidade, e lançam sérias dúvidas sobre a alegada “superioridade filosófica” da teoria moral teísta. Leiam e tirem suas próprias conclusões.*

O Argumento da Verdade Moral

A consciência moral está confinada aos mesmos seres conscientes que a consciência metafísica. Vários teístas tem sustentado que através da moralidade Deus dá-se a conhecer aos seres humanos intimamente, pois a voz da consciência é a voz de Deus. Encontramos um argumento clássico para a existência de Deus a partir da existência da moralidade em Kant _ ainda que ele tenha veementemente negado que estivesse apresentando qualquer coisa que pudesse ser adequadamente chamada de argumento[4]; e também em escritores do fim do século 19 e começo do século 20 que, quando os argumentos teleológicos se tornaram obsoletos e antiquados, adotaram-no como seu argumento favorito.

É crucial distinguir dois argumentos diferentes a partir da existência da moralidade. Primeiro há o argumento a partir do fato de que existem verdades morais, e depois há o argumento a partir da consciência humana das verdades morais. Começarei pelo primeiro. Uma de suas premissas dá por garantido o objetivismo moral _ segundo o qual juízos morais possuem valor de verdade. Se não existem verdades morais, então não há fato acerca do mundo a partir do qual construir este argumento. Surge então a questão, considerando-se que juízos morais são proposições com valor de verdade, de se proposições morais verdadeiras são logicamente necessárias ou logicamente contingentes. Um argumento que afirme que a melhor explicação para a existência da moralidade é a ação de Deus que a criou deve afirmar que várias verdades morais são logicamente contingentes. Pois a existência de fenômenos descritos como verdades logicamente necessárias não precisam de explicação. Não é necessário  explicar que todos os solteiros são não-casados, ou que, se você somar dois e dois obterá quatro. Estes são fatos inevitáveis e necessários, quer Deus exista ou não. Agora, é óbvio que, se existem verdades morais, um número considerável destas verdades é contingente. Que a ação _ qualquer que tenha sido _ realizada por Hitler às 10 horas da manhã de 3 de dezembro de 1940 foi moralmente condenável é, se verdadeira, totalmente contingente, pois não há contradição em supor que Hitler tenha executado uma boa ação àquela hora. E, se é verdade que dar 10 reais para algum mendigo é bom, é claramente uma verdade contingente, cuja verdade depende do uso que ele fará do dinheiro – se ele o gastará em drogas que o matarão ou em alimentos que impedirão que ele morra de fome. E, plausivelmente, se é ou não errado matar um ser humano específico pode depender de circunstâncias contingentes, tais como se ele está tentando te matar ou se é um transeunte inocente. Em geral, ações podem ser reconhecidas por suas coordenadas espaço-temporais ou por uma descrição que deixa em aberto seu status moral. Até aqui, ações não podem ser obrigatórias ou certas ou erradas. Elas devem ser obrigatórias ou certas ou erradas em virtude de possuírem certas propriedades naturais (isto é, propriedades reconhecíveis por alguém sem conceitos morais). E, uma vez que alguem tenha descrito uma ação em termos de todas as propriedades naturais que ela possui (em termos de todas as suas circunstâncias e efeitos), então – se for uma ação errada – será necessariamente errada; e – se for uma boa ação – será necessariamente boa. Pois, se uma determinada ação é correta, e outra hipotética é errada, deve haver alguma característica natural que a primeira ação possua, e que falte à segunda, que torne a segunda ação errada. Não é coerente afirmar que “a” é errada, e que “b” é indistinguível de “a” por suas propriedades naturais mas que, ao contrário de “a”, “b” é correta. Não poderia existir um mundo que fosse diferente de nosso mundo somente porque o assassinato é errado aqui, mas correto lá. Deveriam haver algumas características naturais do outro mundo que tornariam o assassinato correto lá –  por exemplo, que lá as pessoas assassinadas rapidamente ressuscitariam. Segue-se, dado o objetivismo moral, que afirmações contingentes de que algumas ações são corretas (ou erradas) se sustentam em virtude de verdades contingentes a respeito de propriedades naturais características das ações que tornam verdades necessárias afirmações sobre o seu valor morals. Princípios morais fundamentais devem ser (logicamente) necessários[5].

Agora, se princípios morais básicos são necessários, a existência do que eles descrevem não pode providenciar um argumento para a existência de Deus. Um argumento poderia ser desenvolvido somente a partir da verdade de algumas ou de todas as verdades morais contingentes (por exemplo, a partir do fato de que é errado jogar bombas atômicas no Japão, em vez de a partir do fato de que é errado tirar a vida de pessoas que certamente não ressuscitarão). Agora o fato de que certas verdades morais se sustentam pode confirmar, tornar mais provável, a existência de Deus somente se for mais provável que tais verdades morais se sustentem se Deus existir do que se não existir. As verdades contingentes de que as ações “a”,”b”,”c” e “d” são obrigatórias (certas ou erradas, conforme o caso) dependem de “a”,”b”,”c” e “d” possuírem certas propriedades naturais, Q, R, S, e T, que por necessidade lógica as tornem obrigatórias (ou seja lá o que forem). Então, se acontecer de existir um argumento para a existência de Deus a partir da obrigatoriedade indissociável de certas ações, ele possuirá uma estrutura similar à seguinte: as ações “a”,”b”,”c” e “d” são obrigatórias; elas não seriam obrigatórias a menos que fossem Q, R, S e T. É mais provável que elas sejam Q, R,S, e T se Deus existir do que se não existir; portanto a obrigatoriedade de “a”, “b”, “c” e “d” confirma a existência de Deus[6].

Agora as candidatas mais plausíveis a ações que não seriam obrigatórias a menos que Deus existisse são ações como cumprir promessas e dizer a verdade, para cuja obrigatoriedade não existe uma justificação utilitarista óbvia. Começando a partir da obrigatoriedade de tais ações, poderíamos construir um argumento kantiano ao longo das seguintes linhas. (Apesar deste argumento ser muito no espírito da Crítica da Razão Prática, o próprio Kant nega estar apresentando um argumento para a existência de Deus). ‘O cumprimento de promessas é sempre obrigatório. Mas uma ação é obrigatória se e somente se conduz à perfeição do Universo – aquilo que Kant chama de summum bonum. É mais provável que o cumprimento de promessas conduzirá ao summum bonum se Deus existir do que se não existir. (Isto, pode-se insistir, se dá porque não haveria sentido em cumprir promessas feitas em segredo a pessoas moribundas se não existir vida após a morte, na qual a pessoa a quem a promessa foi feita pode saber que foi cumprida; e é mais provável que haja vida após a morte se Deus existir do que se não existir. Consequentemente a obrigatoriedade do cumprimento de promessas confirma a existência de Deus.’ Este argumento é válido, mas sua primeira e sua terceira premissas são altamente questionáveis. Alguém negará a primeira premissa – de que cumprir promessas é sempre obrigatório. Outros negarão a terceira premissa – de que é mais provável que o cumprimento de promessas conduzirá ao summum bonum se Deus existir do que se não existir. Poderão dizer que o mero ato de cumprir uma promessa, em si, contribui para o summun bonum, e quaisquer consequencias adicionais são irrelevantes. Um moralista de perspectiva teleológica tenderá a negar a primeira premissa, e outras a ela similares; e um moralista de perspectiva deontológica tenderá a negar a terceira premissa e outras a ela similares. O que ocorre com este argumento específico que esbocei é suscetível de acontecer com argumentos similares (por exemplo, um que apele em sua primeira premissa para a incorreção invariável da mentira). Agora, é claro, ambas a primeira e a terceira premissas poderiam ser verdadeiras ainda que muitas pessoas possuam uma inclinação inicial para negar uma ou outra. Mas para obter um argumento moral bem fundamentado você precisaria  de argumentos demonstrando que a primeira e a terceira premissas são verdadeiras. Do jeito que está, o argumento não é um bom argumento (porque as premissas não são aceitas pelas partes em disputa). Sou bastante pessimista a respeito das perspectivas de dispender mais tempo tentando suplementar o argumento através da produção de bons argumentos que sustentem suas premissas. Uma razão para isto é que não posso ver como alguém que sustente ou a primeira ou a terceira premissa (mas não ambas simultaneamente) será persuadido por um processo de argumentação racional a aceitar a outra, a não ser que esta pessoa esteja previamente persuadida por algum outro argumento de que Deus existe. Por esta razão eu não posso ver qualquer força num argumento para a existência de Deus a partir da existência da moralidade.

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*Por uma questão de honestidade, devo dizer que, embora cético em relação à eficácia de um argumento para a existência de Deus a partir da mera existência de verdades morais, Swinburne defende um argumento teísta a partir de nosso conhecimento destas verdades que não examinei e que talvez tenha lá alguma força. Talvez no futuro, eu atualize este post com algum comentário sobre este outro argumento, se eu vier a estuda-lo.

4. Veja I. Kant, Crítica da Razão Prática, livro 2, especialmente cap. 2, seção 5. Kant afirma que a existência de Deus é um “postulado da razão prática pura – isto é, que a existência de Deus implica que o summum bonum, a perfeição do universo que a lei moral nos compele a buscar, é atingível; e que em nenhum outro caso o seria. Consequentemente, ele afirma, a obrigação imperiosa para manter a lei moral pode de qualquer maneira ser formulada como uma verdade teórica. Simplesmente nos encontramos sentindo a força da lei moral, e tentamos dar sentido ao fato de estarmos sob esta lei. Mas eu não consigo ver como pode ser racional para nós nos conformarmos à lei moral (como Kant acreditava que é), a menos que acreditemos que o que a lei moral declara é verdadeiro – por exemplo, que assassinato é errado, e o cumprimento de promessas obrigatório. Portanto, de fato, Kant, ao que parece, está apresentando um argumento a partir do fato de que existem verdades morais inescapáveis.

5. Para argumentação adicional a este respeito, veja The coherence of theism (Clarendon Press, 1993), capítulo 11.

6. O argumento pode ser variado de diversas maneiras como tornando a premissa de que “a”, “b”, “c” e “d” são obrigatórias por serem Q, R, S e T meramente probabilística, e construindo em seguida uma etapa dedutiva.

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