Feeds:
Posts
Comentários

Posts Tagged ‘O Fim do Cristianismo’

por Richard Carrier

Demonstrei que fatos imperativos são empiricamente detectáveis pela ciência (e são simplesmente fatos da natureza como qualquer outro, dispensando qualquer pressuposto religioso), e demonstrei que os únicos fatos morais possíveis que podem reivindicar minimamente serem verdadeiros num sentido relevante devem ser da mesma espécie que todos os outros fatos imperativos e, portanto, devem ser, também, empiricamente acessíveis por métodos científicos. Também citei diversos filósofos concordando comigo em ambos os pontos, portanto não estou sozinho. Resta apenas uma pergunta: Tais fatos morais existem?

Defini os fatos morais verdadeiros como proposições imperativas que devemos efetivamente obedecer acima de todos os outros imperativos, e até onde qualquer um foi capaz de demonstrar, isto significa que um imperativo moral é um imperativo hipotético que suplanta todos os outros imperativos. Em outras palavras, “fatos morais verdadeiros” são coisas que devemos fazer acima de tudo o mais, tal que quando confrontados por dois imperativos conflitantes, devemos satisfazer o imperativo moral em detrimento de qualquer outro imperativo.[33] Outros filósofos podem definir de modo implícito ou explícito “fatos morais”, “moral”, ou “moralidade” da maneira que melhor lhes aprouver; mas na medida em que o fazem, eles não mais estão falando sobre o que, por uma questão efetivamente factual, mais devemos fazer – a menos, é claro, que seja, caso em que eles estão definindo a moralidade exatamente como eu estou fazendo aqui (seja lá o que eles imaginem que estão fazendo). Portanto, ou é uma ou a outra. E como somente nos importamos com aquilo que, por uma questão efetivamente factual, mais devemos fazer (e não com outras coisas que não carregam razões motivadoras suficientes para que as façamos em detrimento daquilo com que nos importamos), essa é a única definição de moralidade que possui qualquer relevância para nossa conduta real.

Isto pode ser constatado na prática. Se qualquer grupo ou indivíduo S identifica x como moral, mas é demonstrado que S deve fazer y em vez de x, então observaremos o seguinte: ou S certamente concluirá que x não é, tudo considerado, realmente moral, mas antes que y é moral, defendendo assim que y é o que S mais deve fazer; ou S negará que S deve fazer y em vez de x argumentando que eles devem fazer x em vez de y, defendendo assim que x é o que S mais deve fazer. Ambas as respostas simplesmente confirmam sua aceitação implícita de minha definição de fatos morais. E mesmo se S rejeitar essa definição, eles não podem evitar os fatos por renomea-los. Se x realmente é o que eles mais devem fazer, chamar y de “moral” ainda não dá a S qualquer razão suficientemente motivadora para fazer y em vez de x (além, é claro, de uma razão que é ou irracional ou desinformada, e portanto equivocada).

Todo ser humano, por definição, sempre deseja alguma coisa acima de qualquer outra coisa. Mesmo se eles na verdade desejarem acima de tudo o mais várias coisas igualmente, essas coisas constituem, coletivamente, o que eles mais querem acima de qualquer outra coisa. E quando racionais e suficientemente informados, o que eles mais querem será, efetivamente, o que eles devem querer mais:

1. Se você assumir querer sobretudo B, então x ocorrerá; caso contrário, ~x ocorrerá.
2. Quando racional e suficientemente informado, você quererá x mais do que ~x.
3. Se quando racional e suficientemente informado você desejará x mais do que ~x (e se e somente quando você quiser sobretudo B, x ocorrerá), então você deve querer sobretudo B.
4. Portanto, você deve querer sobretudo B.

Segue necessariamente que de todas as coisas que podemos realmente alcançar, uma delas (ou um subconjunto delas) nós desejaremos acima de qualquer outra.[34]

Uma vez que qualquer coisa que desejemos acima de todas as outras implica um imperativo hipotético (em virtude de seu fim ser mais preferível do que qualquer outro fim alcançável), e um imperativo hipotético que suplanta todos os outros imperativos é por definição um imperativo moral, segue-se necessariamente que imperativos morais verdadeiros existem (e apenas aguardam por serem descobertos). Portanto, fatos morais verdadeiros existem, [35] e existem independentemente da crença ou da opinião humana – porque podemos estar enganados acerca do que mais queremos, e assim acerca do que devemos fazer acima de tudo, por ignorarmos os fatos verdadeiros ou raciocinarmos falaciosamente a partir destes fatos. Isto é demonstrado pela observação de que o que mais queremos muda tão logo nos tornamos racionais e esclarecidos.[36] Com efeito, a deliberação e a informação muitas vezes alteram nossos desejos, e isso prova que podemos estar errados sobre o que realmente desejamos.

Mesmo as alegadas exceções não o são realmente. Por exemplo, uma vez que uma pessoa se torne plenamente informada das consequências e ainda assim continua a fumar, não vemos nenhuma mudança no que tal pessoa mais deseja. Sua decisão então implica que fumar é mais desejado do que o cancelamento consequências deste hábito; mas esse desejo pode resultar somente de uma reflexão irracional (uma condição às vezes chamada de akrasia. Porque o benefício de evitar as consequências sobrepuja verdadeiramente e em larga escala os benefícios banais do hábito de fumar – tanto mais quanto esses mesmos benefícios podem ser obtidos por outros meios – e é irracional preferir o que é bem mais dispendioso quando tudo o mais permanece igual. Isto é, a menos, é claro, que preferir o que é bem mais dispendioso quando tudo o mais permanece igual seja realmente o que você mais deseja na vida. Mas se esse fosse o caso, então por definição tal pessoa efetivamente desejaria todas as terríveis consequências do hábito de fumar, e isto então não mais seria uma exceção à regra assim estabelecida (desde que o fumante nunca tenha estado enganado sobre o que ele mais quis).[37]

A situação não é diferente em casos de auto-sacrifício. Se, por exemplo, uma mãe dá sua própria vida para salvar sua filha, será alegado que ela escolheu contrariando seu maior desejo (que presumivelmente era viver, assim como continuar a buscar sua meta de felicidade pessoal), mas essa jamais pode ser uma descrição inteligível do que aconteceu. Se a mãe realmente desejasse continuar vivendo para buscar sua própria felicidade, então, por definição, isso é o que ela deveria ter feito. Que ela não o tenha feito implica que ela quis acima de tudo perder sua vida para salvar a de sua filha. Pode então ser objetado que tal decisão foi errada na ocasião, mas isso não se segue automaticamente (ela pode de fato ter sido mais feliz morrendo do que vivendo sem ter salvado sua filha), e mesmo se isso fosse verdadeiro, então isso simplesmente é verdadeiro, e a mãe não deveria ter feito isso. Ela deveria ter deixado sua filha morrer. Nossa repugnância a esse fato não o torna falso. De fato, a repugnância que sentimos em tal situação é tão errônea quanto a de alguém que abomina as liberdades concedidas às mulheres ou a libertação dos escravos. Deveríamos então em vez disso elogiar e aplaudir a recusa de uma mãe em se autossacrificar, assim como agora aplaudimos a concessão de liberdades às mulheres e a libertação dos escravos, como sendo de fato a decisão moralmente correta, cuja ampla compreensão não produzirá nenhum ressentimento, nem mesmo na filha (Ocorre-me o caso de um soldado que esperava completamente ser abandonado pelo bem de sua unidade, e julgava ser profundamente errado que sua unidade procedesse de modo contrário). De um jeito ou de outro, ainda existe algum fato moral verdadeiro sobre o assunto, e ele ainda é implicado pelo que mais queremos (quando racionais e suficientemente esclarecidos). E de posse das evidências empíricas incontestáveis desse fato, nenhum argumento racional poderia ser construído em favor de qualquer moralidade alternativa além de apelos falaciosos à emoção, à tradição, ou seja lá em que você se apóie.

A conclusão ainda segue: o certo é o que mais queremos quando racionais e esclarecidos.[38] Mas isto estabelece apenas uma versão realista do relativismo moral: deve existir necessariamente uma moralidade factualmente verdadeira no mínimo para cada indivíduo, que ainda pode diferir de indivíduo para indivíduo (ou grupo para grupo). Em tal situação, a verdade moral é relativa ao indivíduo (ou ao grupo de indivíduos dotado das mesmas propriedades relevantes). Não obstante, isto não altera o fato de que para qualquer indivíduo deve existir necessariamente um moralidade factualmente verdadeira que não é o mero produto de sua crença ou opinião (por conseguinte não é meramente subjetiva, e certamente não antirrealista), mas é produzida inteiramente por fatos naturais (seus desejos inatos e os fatos do mundo com os quais deve-se entrar em harmonia para realizar esses desejos, que são ambos fatos objetivos reais). De qualquer maneira, pode ser demonstrado que tal relativismo moral absoluto é falso, que existem fatos morais verdadeiros que vigoram independentemente de diferenças individuais ou culturais, e portanto são fatos morais universais.

Notas.

33. Naturalmente alguém pode perguntar o que fazer se existem imperativos morais conflitantes: bem, ou (a) um será o mais imperativo e portanto prevalecerá ou (b) nenhum deles será o mais imperativo, caso em que não haverá nenhuma verdade de fato em relação a qual deve ser preferido (isto é, fazer qualquer deles será exatamente tão moral quanto fazer o outro – embora ainda exclua tudo o mais). Se qualquer argumento válido e sólido contrariando (b) puder ser construído, então esse argumento necessariamente implica (a) (isto é, que um deles é mais imperativo do que o outro, e portanto (b) não é verdadeiro).

34. Objetos de desejo inalcançáveis estão, obviamente, fora de consideração precisamente porque não há nenhuma ação que podemos empreender para obte-los, e por conseguinte nenhum fato imperativo verdadeiro que nos concerna em relação a tais objetos inalcançáveis. Mas esta distinção é aplicável apenas ao absolutamente inalcançável (por exemplo, deter um disparo de arma de fogo com as mãos), não o contingentemente inalcançável (por exemplo, fracassar em encontrar um abrigo quando encontrar um abrigo era em princípio algo realizável). O livre-arbítrio, portanto, não é um problema. A distinção é entre falhas de cálculo e falhas insuperáveis por qualquer cálculo (que são estados diferentes, independentes do livre-arbítrio) porque (a) cálculos aperfeiçoados podem corrigir um mas não o outro e (b) o primeiro é um produto causal do caráter que desejamos avaliar enquanto o outro não é (veja Carrier, Sense and Goodness, 97-117).

35. Dadas as provas formais no apêndice, isto implica que os fatos morais são tais que: “S deve moralmente fazer A” significa “Se os desejos de S são racionalmente deduzidos a partir do máximo possível de fatos que S pode razoavelmente obter no momento (sobre as preferências de e os resultados das alternativas disponíveis a S nas circunstâncias em que S se encontra), então S preferiria A em detrimento de todos os cursos de ação alternativos (naquele momento e naquelas circunstâncias).” Esta definição efetivamente torna a irracionalidade voluntária imoral, mas não a irracionalidade que resulta (a) de defeitos mentais incorrigíveis (porque fins inalcançáveis jamais podem ser imperativos  para S – veja a nota 34) ou (b) informações inacessíveis (porque nestas circunstâncias S age apropriadamente a partir de todas as informações razoavelmente adquiríveis no momento – veja a nota 28). Não obstante, embora a irracionalidade em si possa ser moralmente desculpável em ambos os casos, ações irracionais ainda podem ser moralmente condenáveis mesmo para tais pessoas, na medida em que elas saibam que o que estão fazendo é errado mesmo assim, ou que elas tenham acesso razoável a fatos que as teriam informado que era (mesmo considerando-se sua irracionalidade), visto que nessas circunstâncias o fim moral (e o conhecimento disso) era alcançável e ainda assim foi negligenciado (portanto uma falha de cálculo, não de calculabilidade). Não obstante, a escusabilidade existe em princípio, portanto podemos às vezes reconhecer que as pessoas estão “agindo moralmente” embora pudessem ter agido melhor se dispusessem de melhores conhecimentos (veja a nota 28 sobre o conhecimento moral ideal). Inversamente, possuímos um grande interesse emocional e institucional em ações de outros cuja generalização ou continuidade possa nos colocar ou a pessoas com quem nos importamos em risco (e portanto nós muitas vezes exclamamos “afronta moral” diante de tais atos), mas que certas falhas morais nos sejam de grande relevância não significa que ações menos relevantes não sejam também falhas morais. Uma lógica similar torna supérfluas ações possíveis (ações que não são moralmente obrigatórias mas não obstante louváveis). Elogios e censuras portanto referem-se somente ao que nos agrada ou desagrada, não necessariamente ao que é certo e errado (conquanto ainda possa haver o certo e o errado sobre o que elogiar e o que censurar).

36. Alguém pode objetar que talvez nós devemos ser irracionais e desinformados, mas a conclusão de que quando somos racionais e informados nós desejaríamos x se seguiria. Somente se nestas circunstâncias x fosse “ser irracional e/ou ignorante nas circunstâncias z” seria verdadeiro que devemos ser irracionais e ignorantes, e mesmo assim essa conclusão somente pode ser obtida se somos racionais e informados quando chegamos a ela. Porque para que um imperativo para buscar x ser verdadeiro, seja lá o que for que mais desejemos deve efetivamente ser melhor alcançado obedecendo x, embora seja improvável que alcancemos essa conclusão sendo irracionais e ignorantes. Tal abordagem é muito improvável de esclarecer o que verdadeiramente melhor realiza nossos desejos (como se tal esclarecimento pudesse ser atingido acidentalmente). Portanto, qualquer conclusão alcançada considerando o que x é deve ser ou racional e informada ou provavelmente falsa. Ergo, para alcançar qualquer coisa que desejemos, devemos nos empenhar em sermos racionais e esclarecidos.

37. “Fraqueza da vontade” é consequentemente apenas uma preferência irracional por uma coisa em detrimento de outra (por exemplo, preferir uma gratificação instantânea ao bem-estar a longo prazo) Que a chamemos de fraqueza simplesmente expressa nosso reconhecimento de que tal preferência é irracional.

38. Eis a prova formal deste argumento:

ARGUMENTO 3: QUE EXISTE UM SISTEMA MORAL VERDADEIRO PARA QUALQUER INDIVÍDUO (COMPROMETIDO EM SER RACIONAL)

Definições:

L = um indivíduo determinado

D = a condição em que o que qualquer um quer deve ser racionalmente deduzido do máximo de fatos verdadeiros razoavelmente obtíveis sobre suas preferências e sobre o resultado total de cada possível comportamento sob as mesmas circunstâncias.

W = um comportamento cujo resultado L deseja mais do que qualquer outro resultado.

B = aquilo para o que possuímos uma razão suficientemente motivadora para obedecer em detrimento de todos os outros sistemas imperativos (isto é, aquele comportamento que para o qual temos uma razão suficientemente motivadora para adotar em detrimento de todos os outros comportamentos recomendados).

C = um resultado ou conjunto de resultados alcançável que L deseja mais do que qualquer outro resultado alcançável.

Argumento:

3.1. Para qualquer L, se existe W, então se D é alcançado, então W é B.

3.2. Se D é alcançado, então existe C.

3.3. Se existe C, então existe W.

3.4. Portanto, se D é alcançado, então existe W.

3.5. Portanto, se D é alcançado, então B existe  (ou seja, se 3.1 e 3.4, então 3.5)

3.6. Se existe B, então existe T (isto é, se 1.8, então 3.6)

3.7. Portanto, para qualquer L, se D é alcançado, então existe T.

Portanto, para qualquer indivíduo, se o que ele deseja deve ser racionalmente  deduzido do máximo de fatos verdadeiros razoavelmente obtíveis sobre todas as suas preferências e sobre o resultado total de cada comportamento que lhe seja possível sob as mesmas circunstâncias, então existe um sistema moral verdadeiro para esse indivíduo.

Read Full Post »

por Richard Carrier

David Hume certa vez queixou-se de que os moralistas haviam fracassado em definir qual relação lógica a palavra deve expressa. Mas ele jamais disse que não é possível deriva-la a partir de fatos naturais (essa é uma lenda contemporânea originada da leitura descontextualizada de suas palavras).[17] Mas ele observou corretamente que a única maneira de verificar se qualquer enunciado como “você deve fazer x” é verdadeiro é primeiro explicar qual é  exatamente o suposto significado atribuído ao termo “deve”. Foi subsequentemente demonstrado que esta palavra geralmente significa uma relação hipotética entre desejos e fins: o “imperativo hipotético” discutido na primeira parte desta série.[18] Mas isto foi considerado inadequado para fundamentar a moralidade, como se implicasse que a moralidade pudesse ser somente um exercício de auto-interesse. Assim, foi feita uma outra tentativa para definir um tipo diferente de relação denotada pelo termo “deve”, comumente chamada de “imperativo categórico”.

Mas o imperativo categórico ou não possui nenhum valor de verdade motivador ou simplesmente torna-se outra variedade de imperativo hipotético. Por exemplo, Immanuel Kant defendeu que a única razão para obedecermos a seus imperativos categóricos é que proceder assim irá nos trazer um grandioso senso de valor próprio, que com efeito deveríamos “nos manter constrangidos por certas leis a fim de encontrar exclusivamente em nossa própria pessoa um valor” que nos recompensa por todas as perdas sofridas ao obedece-las, pois “não existe ninguém, nem mesmo mais empedernido patife que não deseje ser também ele um homem de semelhante espírito“, embora somente através de uma vida moral seja possível alcançar esse “grandioso valor interno à sua própria pessoa“. Assim, Kant afirmou que um forte senso de valor próprio não é possível a um indivíduo imoral, mas algo natural para o moral; contudo, todos desejam tal coisa (acima de qualquer outra coisa); por conseguinte todos possuem uma razão suficiente para serem morais.[19] Ele nunca se deu conta de que por esse expediente havia reduzido seu sistema de imperativos categóricos inteiro a um único imperativo hipotético:

K= Sistema de Imperativos Categóricos Proposto por Kant
W= Experiência máxima de valor próprio proposta por Kant

1. Se você obedecer K, W acontecerá; e se você obedecer ~K, ~W acontecerá.
2. Quando racional e suficientemente esclarecido, você sempre desejará W mais do que ~W.
3. Se quando racional e plenamente esclarecido você sempre deseja W mais do que ~W (e se e somente se K, então W) então você deve obedecer K.
4. Portanto, você deve obedecer K.

A premissa 1 corresponde à declaração de Kant de que devemos “nos manter constrangidos por certas leis a fim de encontrarmos exclusivamente em nossa própria pessoa um senso de valor próprio“, e a premissa 2 corresponde à declaração de Kant de que “não existe ninguém, nem mesmo o mais empedernido patife, que não deseje ser também ele um homem de semelhante espírito” (e isso acima de qualquer outra coisa). E a conclusão somente segue se assumirmos a premissa 3 – que é uma mera definição da relação lógica constituinte de um imperativo hipotético, o único modo conhecido de derivar validamente sua conclusão a partir daquelas premissas.

As outras duas premissas são alegações factuais, e como tais são empiricamente testáveis pela ciência: podemos confirmar empiricamente se obedecer a K efetivamente causa W (e se tal não for o caso, a teoria moral de Kant, de que “devemos obedecer a K” é falsa, como até o próprio Kant reconheceu ao declarar que esta é a única razão que qualquer um teria para obedecer a K); e podemos confirmar empiricamente se W é realmente o que “ninguém, nem mesmo o patife mais empedernido, não deseja” ter, e de fato deseja a tal ponto que alcança-lo compensa até mesmo todas as perdas sofridas por obedecer a K. E se isso não for verdade, se W não é o que todos mais desejam – se as pessoas se contentam em continuar sem W se for possível obter alguma outra coisa em seu lugar, e elas continuariam a pensar assim mesmo quando plenamente cientes de todas as consequências que resultam de ambas ( de modo que a ignorância não é mais uma desculpa e assim não se pode dizer que elas estejam em erro) – então, mais uma vez, a teoria moral de Kant é falsa. Porque se não temos nenhuma razão suficiente para nos importarmos com W, então mesmo se K produzir W não temos nenhuma razão suficiente para nos importarmos com K. De fato, não teremos mais razão suficiente para obedecer a K do que a ~K ou a qualquer outro imperativo ou sistema de imperativos. A menos, é claro, que exista algum outro objetivo alcançável obedecendo a K que de fato queiramos mais do que a qualquer outra coisa. Mas não é provável que seja apenas uma “casualidade” que K seja mais eficaz para alcançar tal objetivo alternativo. Muito provavelmente algum outro sistema moral M será mais eficaz em alcança-lo (seja lá o que for que a ciência descubra empiricamente que efetivamente tenha esse resultado). E como então teremos uma razão motivadora suficiente para obedecermos a M, e nenhuma razão motivadora suficiente para obedecermos a K, não haverá nenhum sentido relevante em que “você deve obedecer a K” seja verdadeiro. Mas “você deve obedecer a M” será não somente verdadeiro, ele será empiricamente, verificavelmente verdadeiro. Com efeito, nessas circunstâncias M será o único sistema moral demonstravelmente verdadeiro.[20]

Assim como Kant, todos os filósofos morais tentam respaldar seus variados sistemas morais com afirmações factuais que são cientificamente testáveis. Ainda assim, raramente os filósofos se incomodam em testa-los – seja de modo informal, e menos ainda cientificamente. Portanto, na pior das hipóteses, eles devem concordar com um programa de pesquisas científico que teste as reais alegações factuais que eles fazem. Seria tão irracional fazer oposição a isto como seria opor-se a uma pesquisa científica sobre as causas das doenças meramente porque você prefere sua própria teoria das doenças em detrimento de qualquer outra que a ciência possa vir a descobrir ser efetivamente verdadeira. Mas devemos concluir ainda mais do que isto. Pois existem apenas dois tipos de teorias morais, seja na filosofia ou na religião: aqueles cuja conclusão (que seu sistema moral é “verdadeiro” no sentido de que é, factual e efetivamente, o que devemos fazer) validamente segue de premissas demonstravelmente verdadeiras, e aqueles cuja conclusão não segue. Todos os últimos são falsos (ou de qualquer maneira não possuem nenhuma reivindicação legítima de veracidade). Isso nos deixa com o primeiro tipo. Mas não existe nenhuma maneira conhecida para derivar validamente tal conclusão (sobre o que de fato devemos fazer) além de lançar mão de alguma premissa que estabeleça esse sistema moral como um imperativo hipotético, combinado com todas as premissas sobre motivações e consequências requeridas por esse expediente, que são todas fatos empíricos passíveis de descoberta científica.[21] O que nós realmente mais desejamos, e o que realmente será eficaz para sua obtenção, são questões de fato que não podem ser verdadeiramente respondidas dentro de um gabinete. Métodos empíricos devem ser empregados para determina-los e verifica-los. Somente a ciência dispõe das melhores ferramentas para esta tarefa.

Isto nos traz e volta à questão que num primeiro momento colocamos de lado: se imperativos morais realmente não passam de casos particulares de imperativos hipotéticos. Vários filósofos resistiram a esta conclusão e ainda o fazem. Mas ninguém jamais apresentou qualquer outra relação lógica identificável que possa sempre ser expressa por “deve” (ou qualquer outro termo ou frase semanticamente equivalente) que produza qualquer apelo à nossa obediência. Se alguém ainda quiser insistir que existe alguma outra relação que permite comprovar a veracidade relevante das proposições imperativas, deixemos que a demonstre. Mas mesmo isso não será suficiente: eles precisarão demonstrar também que pelo menos uma proposição imperativa carregando esse novo sentido é não somente capaz de ser verdadeira mas que realmente é verdadeira, e além disso, que é não somente verdadeira como ultrapassa M; isto é, que estaremos suficientemente motivados a obedecer este novo imperativo até mesmo quando ele contradiz M.[22] Caso contrário ele não apelará mais a nosso interesse do que qualquer outra coisa com a qual nos importemos menos do que com M. Sendo este o caso, tal imperativo não terá nenhuma pretensão relevante de ser a “verdadeira” moralidade – ou mesmo qualquer tipo de moralidade – em vez de apenas mais um imperativo mundano, já que um imperativo não se torna um imperativo moral apenas porque você diz que é. Se assim fosse, então toda e qualquer coisa seria moral meramente por declararmos que é. Existe apenas uma definição universalmente aceitável de “imperativo moral”, e esta definição diz que um imperativo moral é aquele que suplanta todos os outros imperativos. E esse não pode ser senão M.

Todas as tentativas de construir os assim chamados sistemas morais externalistas são por conseguinte apenas exercícios de ficção, nenhum sendo mais convincente do que qualquer outro selecionado aleatoriamente numa cartola. Somente sistemas morais “internalistas” vem com motivos suficientes para nis importamos com ele e assim preferirmos obedece-los do que a qualquer outro sistema moral concorrente (porque isso é o que distingue o internalismo do externalismo em primeiro lugar: um motivo intrínseco para obedece-lo). E somente um sistema assim pode ser verdadeiro. Porque se M alcança o que mais desejamos, então por definição não existe nenhum outro sistema que teremos razões motivadoras suficientes para preferir em detrimento de M.

Todos os outros sistemas (que não oferecem uma razão motivadora suficiente para nos importarmos com ele) são igualmente anódinos: nenhum que contradiga M possuirá qualquer apelo sobre nossa obediência que exceda o apelo de qualquer outro, e como tal eles se cancelam mutuamente, deixando M como a única coisa que realmente devemos fazer. E esta não é uma conclusão original. Bernard Williams (N.T.: considerado um dos, se não o maior, filósofo britânico das últimas décadas; autor de Shame and Necessity, um estudo da psicologia moral das tragédias gregas, entre outras coisas, baseado nas Palestras Sather que ministrou em 1989 _ perdoem-me por prolongar demais este parêntese, mas é importante dizer que um convite para ministrar estas prestigiosas palestras é o equivalente, no universo dos Estudos Clássicos, a ser laureado com um Nobel _ é considerado uma das mais importantes obras de filosofia dos últimos tempos) já provou que o externalismo deve ser ou incoerente ou apenas um retorno disfarçado do internalismo ou simplesmente falso no sentido de que não oferece nenhum motivo suficiente para sermos morais e é portanto suplantado por qualquer outro sistema que de fato fornece tal motivo.[23] Com efeito, os moralistas podem querer “chamar” seus sistemas externalistas “a verdadeira moralidade”, mas tal reivindicação é vazia porque ainda teremos uma razão melhor para fazermos outra coisa.[24]

Isto implica que a moralidade não pode ser senão um exercício de auto-interesse (e valores morais não podem realmente existir senão nas mentes das pessoas que os sustentam), mas, contrariando a preocupação popular, esse fato não constitui um fundamento inadequado para a moralidade. Pelo contrário, nenhum outro fundamento para a moralidade é sequer logicamente possível – uma vez que você defina “a verdadeira moralidade” como um sistema moral, existe uma razão suficientemente motivadora para obedece-la. E uma vez que, como uma questão de fato natural real, nunca obedeceremos a qualquer outro (a menos que sejamos irracionais ou ignorantes, mas mesmo então uma vez tornados racionais e esclarecidos não obedeceremos a nenhum outro), não existe nenhum outro tipo de “moralidade” que importe.[25] Em outras palavras, afirmar que por “moralidade” você quer dizer alguma coisa que devemos fazer mas para a qual não temos nenhuma razão suficientemente motivadora para preferirmos em detrimento de outras é simplesmente evitar a questão do que realmente devemos fazer.

Notas.

17. David Hume, “Of Morals”, em Treatise On Human Nature (1739), §3.1.1, onde ele declara apenas que os “sistemas de moralidade ordinários” fracassaram em estabelecer essa conexão, não que nenhum sistema jamais poderia; ao contrário, já na seção seguinte ele defende que pode – portanto, mesmo se você acreditar que sua teoria moral específica é incorreta, ainda é errado afirmar que ele declarou que uma redução dos valores aos fatos seja impossível.

18. Demonstrado extensivamente primeiro por Immanuel Kant em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785); subsequentemente modernizado por Philippa Foot, “Morality as a System of Hypothetical Imperatives”, reproduzido em Moral Discourse and Practice: Some Philosophical Approaches, ed. Stephen Darwall, Allan Gibbard, e Peter Railton (Oxford: Oxford University Press, 1997) 313–22; e outros. Veja Carrier, Sense and Goodness, 331–35.

19. Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes ou Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (1785) § 3.4 (paragrafação de Kant) ou § 4.454 (Royal Prussian Academy edition), 112–13 na segunda edição alemã de Kant (1786), ou 122 da tradução inglesa de H.J. Paton (New York: Harper Torchbooks, 1964); veja também Robert Wolff, The Autonomy of Reason: A Commentary on Kant’s Groundwork of the Metaphysic of Morals (New York: Harper & Row, 1973), 211 (§ 3.5). Desde então, a psicologia comprovou e revisou  consideravelmente a afirmação de Kant: veja Carrier, Sense and Goodness, 313–27.

20. Consequentemente alguém pode tentar remendar Kant propondo outras razões para obedecermos a K (por exemplo, retiradas da teoria dos jogos: que é contrário aos interesses de alguém promover, por exemplo, ações cuja universalização lhe trariam prejuízos), mas se isso for factualmente verdadeiro e suficientemente motivador, então é o mesmo que M; e na medida em que não é verdadeiro ou suficientemente motivador, então é superado por M. De qualquer maneira, somos deixados com M como o único sistema moral relevantemente verdadeiro. Similarmente, em Natural Goodness (New York: Oxford University Press, 2001), Philippa Foot revisou seu trabalho anterior propondo em seu lugar que um sistema de imperativos morais hipotéticos resulta sobretudo do desejo de sermos racionais (permitindo assim que pessoas irracionais jamais poderiam ser persuadidas), mas assim como com Kant, mesmo isso ainda é, no fundo, um imperativo hipotético (veja a nota 36).

21. Isto é efetivamente defendido por Stephen Darwall em sua própria demonstração de que os imperativos categóricos de Kant ou necessariamente reduzem-se a imperativos hipotéticos (como eu também mostrei) ou do contrário não possuem nenhum valor de verdade motivador: Stephen Darwall, “Kantian Practical Reason Defended,” Ethics 96, no. 1 (October 1985): 89–99. A partir dos princípios ali assumidos é óbvio que a mesma redução pode ser realizada sobre qualquer sistema moral. Inversamente, através de uma lei abraangente, todos os imperativos hipotéticos verdadeiros reduzem-se a um categórico: R. S. Downie, “The Hypothetical Imperative,” Mind 93 (October 1984): 481–90. Mas esse categórico também é, tautologicamente, um hipotético (que somos racionais e esclarecidos: veja a nota 36.).

22. Observe que qualquer anulador de M alternativo proposto não precisa ser empiricamente comprovado, precisa apenas ser comprovadamente verdadeiro por quaisquer meios que sejam suficientemente motivadores (portanto não estou pressupondo que somente imperativos empiricamente comprovados podem garantir nossa obediência preponderante – embora eu duvide seriamente que qualquer outra coisa possa, não é necessário presumir que não seja capaz).

23. Bernard Williams, “Internal and External Reasons,” in Moral Discourse and Practice, 363–71. Respaldado em Moral Psychology, 3:173–90 e 217–25. Na verdade, o externalismo reduz-se a uma ética descritiva, não a uma prescritiva.

24. Aqui está uma prova formal desta afirmação:

ARGUMENTO 1: SE EXISTE UM SISTEMA MORAL VERDADEIRO, É AQUELE PARA O QUAL POSSUÍMOS UMA RAZÃO SUFICIENTEMENTE MOTIVADORA PARA OBEDECERMOS ACIMA DE TODOS OS OUTROS

Definições:

m = um sistema moral

s = um sistema de imperativos que suplanta todos os outros imperativos

v = aquilo que devemos obedecer acima de todos os outros sistemas imperativos (sejam eles rotulados de morais ou não)

B = aquele que possuímos uma razão suficientemente motivadora para obedecermos acima de todos os outros sistemas imperativos

T = o sistema moral verdadeiro

M = o sistema moral que efetivamente devemos obedecer

Argumento:

1.1 Se existe m, então m é s.

1.2 Se m é s, então m é v.

1.3 v é B.

1.4 Portanto, se existe m, então m é B.

1.5 m é T se e somente se m é M.

1.6 M é B.

1.7 Portanto, m é B, e m é B se e somente se m é M; e m é M se e somente se m é T. (isto é, se 1.4, 1.5 e 1.6, então 1.7)

1.8 Portanto, T é B. (isto é, se 1.6 e 1.7, então 1.8).

1.9 Portanto, se existe m, então existe T. (isto é, se 1.4 e 1.8, então 1.9)

1.10 Portanto, se existe m, então existe T e B é T.

Conclusão: Se existe qualquer sistema moral, então aquele para o qual temos uma razão suficientemente motivadora para obedecermos sobre todos os outros sistemas imperativos é o verdadeiro sistema moral.

 25. Eis uma prova formal desta afirmação:

ARGUMENTO 2: QUE NÓS (REALMENTE) OBEDECEREMOS IMPERATIVOS HIPOTÉTICOS VERDADEIROS ACIMA DE TODOS OS OUTROS IMPERATIVOS QUANDO RACIONAIS E SUFICIENTEMENTE INFORMADOS

2.1 Por definição, para qualquer indivíduo, desejar uma coisa mais do que outra é preferir essa coisa em detrimento de outra (não importa por qual razão ou de que modo).

2.2 Portanto, para qualquer indivíduo, desejar uma coisa mais do que qualquer outra coisa (isto é, desejar essa coisa acima de tudo) é preferir essa coisa em detrimento de todas as outras coisas.

2.3 Por definição, todo indivíduo racional e suficientemente informado sempre escolherá o que preferir (quando ele de fato puder escolher).

2.4 Portanto, qualquer indivíduo racional e suficientemente informado que prefere uma coisa à outra sempre escolhe essa coisa e não a outra (se ele realmente puder escolher e não lhe for possível escolher ambas).

2.5  Portanto, qualquer indivíduo racional e suficientemente informado que prefere uma coisa a todas as outras sempre escolherá essa coisa (se ele realmente puder escolher).

2.6 Se quando racional e suficientemente informado você deseja X mais do que ~X, e você acredita que X ocorrerá somente se x é feito, então você desejará fazer x mais do que ~x.

2.7 Portanto, se quando racional e suficientemente informado você deseja fazer x mais do que ~x, então, por definição você prefere fazer x a ~x (por 2.1).

2.8 Portanto, se quando racional e suficientemente informado você prefere fazer x a ~x, por definição você sempre escolhe x (quando realmente pode escolher). [por 2.3 e 2.5]

2.9 Portanto, se quando racional e suficientemente informado você quer x (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então por definição você sempre escolherá x (quando de fato puder escolher).

2.10 Se é sempre o caso que “se quando racional e suficientemente informado você quer x (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então por definição você escolherá x“, então é sempre o caso que você obedecerá ao imperativo hipotético “se quando racional e suficientemente informado você quer X (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então você deve escolher x“.

2.11 Portanto, é sempre o caso que você obedecerá ao imperativo hipotético “se quando racional e suficientemente informado você quer x (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então você deve escolher x“. [por 2.9 e 2.10]

2.12 Portanto, você sempre obedecerá um imperativo hipotético em detrimento de todos os outros imperativos.


 

Read Full Post »

Sobre a Origem das Espécies Cristãs

Autor: Dr. David Eller

Fonte: The End Of Christianity, págs. 23-51, (John W. Loftus, ed., Prometheus Books, 2011)

Ateu de nascença, David Eller nunca encontrou qualquer razão para mudar sua maneira de pensar. Detentor de um Ph.D. em Antropologia Cultural, já conduziu trabalhos de campo entre os aborígenes australianos; estudou todas as principais religiões do mundo e inúmeras outras religiões tradicionais e tribais. Após uma vida de estudos, concluiu que um ateu é não alguém que sabe muito pouco sobre religião mas na verdade alguém que sabe demais. Seu livro From Culture to Ethnicity to Conflict aborda o problema dos conflitos étnicos internacionais. Outros livros de Eller são Culture and the Real World, Violence and Culture, Natural Atheism (Cranford, NJ: American Atheist, 2004); Atheism Advanced: Further Thoughts of a Freethinker (Cranford, NJ: American Atheist, 2007); um livro didático de nível colegial, Introducing Anthropology of Religion: Culture to the Ultimate (New York: Routledge, 2007); Cruel Creeds, Virtuous Violence: Religious Violence across Culture and History (Amherst, NY: Prometheus Books, 2010), e dois capítulos de The Christian Delusion: Why Faith Fails, editado por John W. Loftus (Amherst, NY: Prometheus Books, 2010).

Além disso, o Dr. Eller colabora regularmente com os principais periódicos céticos e científicos. Ele leciona Antropologia Cultural em Denver, Colorado, onde vive com sua esposa e seus três gatos.

_________________________________________________________________________________________________________________________________

_________________________________________________________________________________________________________________________________

As doutrinas soberanas do Cristianismo Ocidental, como a Trindade, a Encarnação e a Redenção, e outros detalhes dos dogmas a elas relacionados, são, em sua totalidade, criações culturais… Nos primórdios nem mesmo o nome “cristão” lhe era familiar, e ele próprio desenvolveu-se historicamente até que seus atributos, características e feições específicas assumissem uma configuração nítida, estável, refinada e reconhecível como a religião de uma cultura e uma civilização conhecida pelo mundo como Cristianismo… Portanto, o Cristianismo, em virtude de ter sido criado pelo homem, desenvolveu gradualmente seu sistema de rituais por assimilação de outras culturas e tradições, assim como introduziu suas próprias criações; e através de etapas sucessivas depurou seus credos, tais como os de Nicéia, Constantinopla e Calcedônia. Como não possuía nenhuma lei revelada, o Cristianismo precisou assimilar as leis romanas; e como não dispunha de uma visão de mundo coerente projetada pela revelação, ele precisou fazer empréstimos no pensamento greco-romano e mais tarde utiliza-lo como alicerce sobre o qual erigir uma teologia e uma metafísica sofisticadas. Gradualmente ele criou sua própria cosmologia especificamente cristã, e suas artes e ciências se desenvolveram…[1]

O fim do Cristianismo não é nenhum sonho distante, tampouco está prestes a acontecer. Na verdade, ele ocorreu dois mil anos atrás – com efeito, o Cristianismo nem sequer começou; ele foi um natimorto. De acordo com as palavras acima, não existe tal coisa como a religião do Cristianismo; na melhor das hipóteses existe uma pluralidade de tradições relacionadas mas distintas e muitas vezes bastante opostas, alterando-se e oscilando segundo os ventos das culturas locais e do curso da história. E quem é o autor destas palavras? Algum ateu furioso obcecado com a destruição da religião? Não, é Muhammad al Naquib al-Attas, um muçulmano devoto e inimigo ferrenho da secularização, que atesta firmemente que o Cristianismo é e sempre foi secularizado, mundano, alterando-se e evoluindo para se adaptar às circunstâncias sociais. E al-Attas está correto: o Cristianismo tem sido desde sempre secular, mundano, mutável e em contínua evolução para se adaptar às circunstâncias sociais – mas o mesmo vale para o Islã e qualquer outra religião fabricada pelos humanos (por que outra razão existiriam o Islã xiita e sunita, bem como numerosas escolas muçulmanas de interpretação e jurisprudência?).

Vários cristãos contemporâneos vêm a “evolução” como a antítese e a nêmese a que devem opor-se e refutar. No entanto, como al-Attas e mesmo a mais rudimentar familiaridade com a história cristã ou o cristianismo globalizado moderno nitidamente demonstram, o cristianismo não somente fracassa em refutar a evolução como na verdade ilustra a evolução. Evolução é o processo pelo qual alguma entidade muda, se adapta e se desenvolve em resposta a seu ambiente. É indiscutível que as formas dos seres vivos e as formas de organização social evoluem ao longo do tempo: os humanos não somos o que éramos há milhões de anos atrás, nem uma instituição como o governo ou a linguagem ou o casamento é atualmente o que era “no começo” (na verdade, de nenhuma delas faz sentido dizer que existiram “no começo”). É igualmente incontestável que o Cristianismo evoluiu ao longo do tempo: o Cristianismo atual não é o que era 500, 1000 ou certamente, 2000 anos atrás (e não havia tal coisa como o Cristianismo há mais de 2000 anos atrás), tampouco ele será o mesmo daqui há 100 ou 200 anos. Para ser exato, ele sequer é o mesmo em cada país ou congregação do mundo nesse preciso momento.

Como qualquer outro produto da evolução, o Cristianismo é uma árvore cheia de ramos de variadas e conflituosas espécies – ou no caso de religiões, “seitas” e “denominações”. Um censo bastante confiável estimou em mais de 33 000 o total destas espécies cristãs existentes no mundo, e isso foi há uma década; indubitavelmente existem muitas mais hoje, com cada vez mais surgindo diariamente[2]. Apenas no ramo metodista existem 50 seitas, que a Associação de Bancos de Dados Religiosos organiza, literalmente, numa “árvore genealógica” metodista similar àquela em que os cientistas organizam qualquer conjunto de espécies aparentadas[3]. Isto significa que toda denominação cristã paira sobre um ramo exuberante de um arbusto caótico de igrejas cristãs, cujos pontos de semelhança e diferença denunciam sua origem e sua história evolucionária com tanta segurança quanto a de qualquer espécie biológica. Mais ainda, a evolução do Cristianismo segue exatamente os mesmos processos de evolução biológica tais como especiação, irradiação, competição, extinção, e assim por diante.

Esta série abordará três períodos históricos de especiação cristã: (1) o período primitivo, dos primeiros séculos até a Reforma; (2) o período americano, com diversas adaptações novas e exclusivamente americanas; e (3) o período global do século XXI, com novos cristianismos surgindo na África, na América Latina, Ásia e outros locais. O Cristianismo será exposto como uma denso matagal de religiões insignificantes, absorvendo influências locais e se reinventando continuamente – o que implode qualquer possível reivindicação de exclusividade ou verdade no Cristianismo.

1. A Invenção de Tradições (Como A Religião)

Toda e qualquer tradição, não importa o quão vetusta, já foi nova um dia. Pior ainda, quando uma nova tradição aparece pela primeira vez, ela obviamente não é tradicional de imediato; é uma novidade, muitas vezes até mesmo heterodoxa ou herética. Observadores honestos e perspicazes já sabem disso há muito tempo, mas os historiadores Eric Hobsbawm e Terence Ranger explicitaram este fato em seu livro A Invenção das Tradições, no qual eles explicam que as tradições buscam incutir certos valores e normas de comportamento por repetição, o que automaticamente implica a continuidade com o passado. De fato, onde é possível, novas tradições normalmente tentam estabelecer a continuidade com um passado histórico conveniente. Entretanto, na medida em que existe tal referência a um passado histórico, a peculiaridade das tradições “inventadas” é que a continuidade com este passado é largamente fictícia. Resumindo, elas são respostas a situações novas e fora do comum que assumem a forma de uma referência a antigas situações ou que estabelecem seu próprio passado por repetição quase obrigatória.[4]

Ou seja, tradições geralmente reivindicam um certo tipo de antiguidade, e muitas vezes baseiam sua autenticidade sobre esta alegada antiguidade, quando elas definitivamente não são antigas; com efeito, as novíssimas (aspirantes a) tradições possuem problemas de autenticidade colossais e por conseguinte frequentemente chegam a extremos radicais para dissimular seu caráter de novidade e para se vincularem a alguma história venerável.

Os seres humanos inventam tradições regularmente, mas dois fatos adicionais são verdadeiros. Primeiro, a maioria das tradições não é tanto inventada como na verdade fabricada (a partir de máterias primas já existentes) ou compilada ao longo do tempo; uma tradição raramente surge do nada no mundo, tampouco irrompe plenamente constituída. Uma nova tradição não pode evitar desenvolver-se a partir do ambiente social preexistente de tradições, idéias, valores e vocabulário anteriores; esta é a razão pela qual toda nova tradição inventada, não importa sua radicalidade, sempre exibe os traços de sua linhagem. Como qualquer nova espécie, ela é uma mudança incremental a partir das espécies anteriores. Também, a tradição recentemente cunhada nasce incompleta, embrionária, e continua a se desenvolver e crescer após seu nascimento de modo que a tradição dificilmente se assemelhará a sua forma original depois de transcorridos um século ou um milênio. Com efeito, ela pode se ramificar diversas vezes ao longo das eras, dando origem a novas tradições suplementares.

Segundo, alguns contextos sociais tendem a ser mais férteis e propícios do que outros para a produção de novas tradições. Em particular, períodos de crises sociais são terrenos férteis para novas tradições, que consideraríamos movimentos sociais ou o que o antropólogo Anthony Wallace denominou “movimentos de revitalização”, definidos como “um esforço deliberado, organizado e consciente dos membros de uma sociedade para construir uma cultura mais satisfatória.”[5] As condições prévias para o movimento geralmente envolvem algumas circunstâncias que perturbam ou mesmo arruínam a cultura satisfatória anterior, incluindo desastres naturais, contato com outras culturas, guerras e conquistas, e assim por diante. De início apenas um pequeno grupo de indivíduos, aqueles mais familizarizados com os problemas, sentem os efeitos, mas ao longo do tempo a situação pode levar a uma “distorção cultural” na qual o entendimento que as pessoas tem de seu mundo e de suas tradições existentes deixa de funcionar.

O que pode ocorrer em seguida é tanto demasiado comum como altamente previsível. Do caos de modos de conhecimento fracassados e fortunas arruinadas emerge um homem ou mulher com uma idéia; esta pessoa é o “profeta”. Geralmente este futuro líder teve uma vida tumultuada, tendo experimentado desapontamentos pessoais e profissionais, saúde precária, e/ou predisposições para estados de consciência alterados (sonhos, visões, alucinações, possessões e similares). Com efeito, a resposta trazida pelo “profeta” supostamente não é de sua autoria, mas recebida de um poder mais antigo e elevado. O inovador começa então a comunicar a mensagem, proclamando-a em todas as oportunidades, bem como a realizar feitos espantosos e a experimentar transes místicos. Por fim, ele ou ela atrai uma audiência ou um grupo de seguidores e, com alguma sorte, o movimento começa a crescer. À medida em que cresce, ele deve necessariamente se organizar, sendo a primeira e mais primitiva forma de organização uma relação pessoal direta e individualizada entre o mestre e cada um de seus discípulos baseada no carisma do mestre. Entretanto, mesmo durante a vida do mestre podem surgir adaptações – mudanças da mensagem original em virtude da expansão da comunidade, resistência de não-convertidos, alteração nas circunstâncias, ou interpretações divergentes. Aqui o movimento se adapta às necessidades e capacidades cognitivas dos membros e aos desafios e pressões impostas pelo contexto social mais amplo; uma adaptação frequente é a militarização e a violência. E quando o fundador morre, o movimento experimenta uma crise sucessória: quem guiará os discípulos agora? Esta é muitas vezes uma oportunidade para a institucionalização, para o estabelecimento de regras e estruturas para o grupo, incluindo qualificações para a adesão e um cânone de crenças e condutas aceitáveis, obrigatórias ou proibidas. Se o movimento é bem sucedido, seu efeito pode ser sentido pela sociedade inteira e até mesmo alcançar outras sociedades. Por fim, uma “transformação cultural” ocorre, e o movimento se torna um componente, talvez o componente definidor, da cultura; a inovação se torna uma tradição. Tendo presumivelmente resolvido o problema que o originou em primeiro lugar, o movimento assume seu papel como a nova norma e se torna “rotina”.

Wallace continua descrevendo a variedade finita dos movimentos de revitalização. Qualquer movimento específico pode enfatizar elementos novos, antigos ou estrangeiros. Ele pode inicialmente tentar ou professar reviver algo da ou toda a cultura anterior à crise sobre a premissa de que a vida era boa então e o que precisamos agora é ser mais tradicionais, renovar e fortalecer o compromisso com nossos valores e costumes há muito em vigor; Wallace denomina estes movimentos de revivalistas ou nativistas. Outros esforços podem importar alguns ou todos os elementos de uma cultura estrangeira, geralmente porque essa cultura é vista como superior; tais movimentos Wallace chama de vitalistas, ou nós podemos chama-los “modernizadores”. Um terceiro tipo de movimento introduz conteúdos originais da mente do profeta. Na realidade, qualquer movimento em curso combina aspectos de qualquer ou de todos estes estilos, incluindo o modelo milenarista, que antecipa (e geralmente saúda) um término imediato e apocalíptico para este estado de coisas e a chegada de um estado de coisas melhor no futuro. Wallace também acrescenta que os movimentos variam na medida em que lançam mão de expedientes seculares versus expedientes religiosos. Expedientes seculares referem-se a modos de estruturar as relações humanas como a política, ao passo que expedientes religiosos envolvem relações entre seres humanos e entidades sobrenaturais. “Nenhum movimento de revitalização pode, por definição, ser verdadeiramente não-secular, mas alguns podem ser relativamente menos religiosos do que outros”[6]. Em outras palavras, se um movimento social vai, de alguma forma, produzir alguma mudança no mundo, ele deve incluir algumas alterações seculares no sistema econômico, familiar ou político; estas transformações muitas vezes são feitas pela sugestão de, com o auxílio de, e sob a autoridade de, seres espirituais. Aqui, como em todo e qualquer lugar, o sobrenatural e o secular não podem ser rigidamente separados.

O resultado é o processo-chave chamado sincretismo, pelo qual elementos culturais podem ser adicionados, retirados ou rearranjados de infinitos modos que, não obstante, traem sua descendência histórica. Assim como um gene pode sofrer uma mutação numa espécie existente enquanto outros genes permanecem inalterados, ou um gene estranho pode ser introduzido no pool genético de uma espécie, é igualmente possível que elementos culturais fragmentem-se, dividam-se, fluam e combinem-se com facilidade em configurações novas mas não excepcionalmente irreconhecíveis. O resultado é um tipo de “especiação”, o processo pelo qual uma nova categoria emerge de uma antiga – não completamente distinta da espécie ancestral mas tampouco perfeitamente idêntica. Às vezes o resultado são duas espécies onde antes havia apenas uma; elas podem seguir rumos evolutivos diferentes, coexistindo ou competindo. Eventualmente a primeira espécie pode se extinguir completamente, ou pode se especiar novamente no futuro, assim como as novas espécies também podem sofrer especiação posterior. Isto é o que confere aos seres vivos e às instituições e idéias sociais seu aspecto de “emaranhado denso”.

(Continua…)

Notas.

1. Muhammad al Naquib al-Attas, Islam and Secularism (Delhi, India: New Crescent Publishing, 2002), 32–35.

2. David B. Barrett, George T. Kurian, and Todd M. Johnson, World Christian Encyclopedia: A Comparative Survey of Churches and Religions in the Modern World, 2nd ed. (New York: Oxford University Press, 2001).

3.Methodist Family,” Association of Religion Data Archives, accessado em 16 de Junho de 2012.

4. Eric Hobsbawm and Terence Ranger, eds., The Invention of Tradition (Cambridge: Cambridge University Press, 1983), 1–2.

5. Anthony F. C. Wallace, “Revitalization Movements,” American Anthropologist 58 (1956): 265.

6. Ibid., 277.

Read Full Post »