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Posts Tagged ‘moralidade’

por Sam Harris

Afirma-se com frequencia que nossa experiência do livre-arbítrio apresenta um mistério fascinante: por um lado, não podemos compreende-lo em termos científicos; por outro, sentimos que somos os autores de nossos próprios pensamentos e ações. Contudo, penso que este mistério é em si um sintoma de nossa confusão. Não é que o livre-arbítrio seja uma mera ilusão – nossa experiência não está meramente entregando uma visão distorcida da realidade. Antes, estamos equivocados sobre nossa experiência. Não somente não somos tão livres quanto pensamos que somos – não nos sentimos tão livres quanto pensamos que sentimos. Nossa sensação de nossa própria liberdade resulta de não prestarmos a devida atenção a como é ser como nós. No momento em que prestamos atenção, é possível ver que o livre-arbítrio não pode ser encontrado em nenhum lugar, e nossa experiência é perfeitamente compatível com esta verdade. Pensamentos e intenções simplesmente surgem na mente. O que mais eles poderiam fazer? A verdade sobre nós é mais estranha do que muitos imaginam: A ilusão do livre-arbítrio é em si uma ilusão.

O problema não é apenas que o livre-arbítrio não faz nenhum sentido objetivamente (isto é, quando nossos pensamentos e ações são vistos de uma perspectiva de terceira pessoa); ele também não faz sentido subjetivamente. É perfeitamente possível observar isto pela introspecção. Com efeito, realizarei agora um experimento sobre com o livre-arbítrio para que todos vejam: escreverei qualquer coisa que eu quiser no restante deste livro. Seja lá o que for que eu escrever será, é claro, alguma coisa que eu escolhi escrever. Ninguém está me obrigando a fazer isto. Ninguém me delegou um tópico específico ou exigiu que eu utilize palavras específicas. Posso violar as regras da gramática se for do meu agrado. E se eu quiser colocar um coelho nesta frase, eu sou livre para faze-lo.

Mas prestar atenção a meu fluxo de consciência revela que esta noção de liberdade não alcança muito fundo. De onde este coelho veio? Por que eu não coloquei um elefante naquela frase? Eu não sei. É claro que sou livre para mudar “coelho” por “elefante”. Mas se eu fizesse isto, como eu explicaria este ato? É-me impossível conhecer a causa de ambas as escolhas. O ato também é compatível comigo sendo forçado pelas leis da natureza ou carregado pelos ventos do acaso; mas nenhum parece, ou é sentido, como liberdade. Coelho ou elefante: sou livre para decidir que “elefante” é a melhor palavra quando não sinto que é a melhor palavra? Sou livre para mudar de ideia? É claro que não. Isto pode mudar apenas eu.

O que traz minhas deliberações sobre estes temas a um término? Este livro deve terminar uma hora – e agora quero comer algo. Sou livre para resistir a este sentimento? Bem, sim, no sentido de que não estou sob a mira de ninguém me obrigando a comer – mas estou com fome. Posso resistir a este impulso um pouco mais? Sim, é claro – e por um número indeterminado de momentos subsequentes. Mas eu não sei por que faço o esforço nestas circunstâncias e não em outros. E por que meus esforços cessam exatamente quando cessam? Agora sinto que é realmente hora de deixa-los. Estou com fome, sim, mas também me parece que cumpri a tarefa que me propus. Na verdade, não posso pensar em mais nada para dizer sobre o assunto. E onde está a liberdade nisso?

Agradecimentos

Gostaria de agradacer a minha esposa e editora, Annaka Harris, por suas contribuições para o presente livro. Como sempre é o caso, suas intuições e recomendações melhoraram muito o livro. Eu não sei como ela administra a criação de nossa filha, trabalha em seus próprios projetos e ainda tem tempo para editar meus livros – mas ela o faz. Sou extremamente sortudo e grato por te-la ao meu lado.
Jerry Coyne, Galen Strawson e minha mãe também leram um rascunho prévio do manuscrito e forneceram comentários muito úteis.

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por Richard Carrier

Qualquer tentativa racional de afirmar que o Cristianismo é necessário para a existência de fatos morais termina expondo as falhas fatais do Cristianismo como um sistema moral. Os cristãos são incapazes de estabelecer as premissas básicas necessárias para esse sistema moral: quais comportamentos ou atitudes morais resultam em quais destinos. Isto dissocia a moralidade cristã dos fatos, que é a razão pela qual os cristãos podem inventar praticamente qualquer moralidade que desejem, sendo esta, portanto a razão pela qual tem existido tantas divergências no Cristianismo sobre o que é e o que não é moral. Qualquer um pode alegar que a “moralidade x” tornará nossas vidas melhores a longo prazo. Mas essa alegação somente é racionalmente crível se pudermos comprovar sua veracidade com  evidências reais.

Somente a ciência possui os métodos e as ferramentas para descobrir qual moralidade tornará todas as nossas vidas melhores a longo prazo, na medida em que é uma questão de fato relevante: quais comportamentos tem quais consequências reais, e para quem e quando. Como numa cirurgia ou numa manutenção automotiva ou na engenharia de pontes, somente a ciência pode responder confiavelmente tais questões de causa e efeito. O Cristianismo não é capaz de faze-lo, porque não possui não possui nenhuma evidência para sustentar suas alegações de quais causas tem quais efeitos, e por si não dispõe nenhuma metodologia confiável para coletar essas evidências. Portanto, o Cristianismo deve ou promover a moralidade errada, uma moralidade que na verdade é prejudicial a todos nós a longo prazo, ou nos impedir de descobrir a verdadeira razão pela qual deveríamos todos ser morais, impedindo-nos, portanto, de descobrir as únicas evidências que podem efetivamente inspirar o progresso moral. Ou ambos.

Como a medicina vudu, prescrever o Cristianismo para curar a imoralidade não passa de outra pseudociência não-verificada. Somente a ciência genuína pode descobrir o que realmente cura a imoralidade, assim como somente a ciência pode descobrir o que realmente constitui uma doença em primeiro lugar (por exemplo, descobrir que possessão demoníaca não existe ou que a homossexualidade não é uma doença mas uma condição humana natural e saudável), bem como somente a ciência pode descobrir o que realmente constitui a imoralidade. Portanto, o Cristianismo deveria ser abandonado como fundamento de qualquer sistema moral, e a ciência deveria ser empregada em seu lugar para averiguar qual sistema moral é verdadeiramente melhor para nós.

Consequentemente, demonstrei que se existem quaisquer fatos morais verdadeiros, então a ciência pode descobri-los descobrindo o que realmente conecta qualquer comportamento particular com qualquer resultado particular, e ao descobrirmos qual resultado todos nós realmente desejamos para nós próprios uma vez que sejamos suficientemente informados e raciocinemos coerentemente. Ambos são fatos empiricamente detectáveis cuja dificuldade de averiguação é exatamente a razão pela qual a ciência é mais bem equipada para descobri-los. E não somente demonstrei que os fatos morais são empiricamente detectáveis, como além disso demonstrei que tais fatos morais devem existir necessariamente.

Como o Cristianismo fracassa em conectar suas alegações morais a quaisquer fatos verificáveis, não produz nenhuma concordância sobre quais afirmações morais são verdadeiras, não exerce nenhum efeito significativo em aprimorar moralmente as pessoas, e inibe o progresso e o desenvolvimento moral ao nos afastar de nos empenharmos em descobrir a verdade – ao passo que a ciência por si pode descobrir qualquer verdade na qual não pode haver nenhuma discordância racional – deveríamos todos estar promovendo não o Cristianismo mas a descoberta científica de fatos morais genuínos. Tão logo qualquer um realmente perceba isto, eles abandonarão o Cristianismo como improbável e irrelevante para construir uma sociedade moral. E não mais tendo desempenhando esta função, o Cristianismo será extinto.

[A versão completa da série em formato pdf, incluindo o apêndice abaixo, pode ser baixada aqui.]

Apêndice:

Apresento a seguir todas as provas dedutivas formais das conclusões defendidas nesta série, de modo que você não pode discordar racionalmente a menos que possa rejeitar racionalmente uma de suas premissas; como em caso contrário minhas conclusões necessariamente resultam das premissas, e é irracional discordar de uma conclusão que segue necessariamente de premissas que você não é capaz de rejeitar racionalmente. Chamo a atenção para isso porque meus argumentos são rejeitados por alguns ateus que conheço, mas por nenhuma razão racional que eu possa determinar. Eles fracassam consistentemente em identificar qualquer premissa que podem rejeitar racionalmente nos argumentos formais a seguir. De modo que sua rejeição das conclusõs é simplesmente irracional.

ARGUMENTO 1: SE EXISTE UM SISTEMA MORAL VERDADEIRO, É AQUELE PARA O QUAL POSSUÍMOS UMA RAZÃO SUFICIENTEMENTE MOTIVADORA PARA OBEDECERMOS ACIMA DE TODOS OS OUTROS

Definições:

m = um sistema moral

s = um sistema de imperativos que suplanta todos os outros imperativos

v = aquilo que devemos obedecer acima de todos os outros sistemas imperativos (sejam eles rotulados de morais ou não)

B = aquele que possuímos uma razão suficientemente motivadora para obedecermos acima de todos os outros sistemas imperativos

T = o sistema moral verdadeiro

M = o sistema moral que efetivamente devemos obedecer

Argumento:

1.1 Se existe m, então m é s.

1.2 Se m é s, então m é v.

1.3 v é B.

1.4 Portanto, se existe m, então m é B.

1.5 m é T se e somente se m é M.

1.6 M é B.

1.7 Portanto, m é B, e m é B se e somente se m é M; e m é M se e somente se m é T. (isto é, se 1.4, 1.5 e 1.6, então 1.7)

1.8 Portanto, T é B. (isto é, se 1.6 e 1.7, então 1.8).

1.9 Portanto, se existe m, então existe T. (isto é, se 1.4 e 1.8, então 1.9)

1.10 Portanto, se existe m, então existe T e B é T.

Conclusão: Se existe qualquer sistema moral, então aquele para o qual temos uma razão suficientemente motivadora para obedecermos sobre todos os outros sistemas imperativos é o verdadeiro sistema moral.

ARGUMENTO 2: QUE NÓS (REALMENTE) OBEDECEREMOS IMPERATIVOS HIPOTÉTICOS VERDADEIROS ACIMA DE TODOS OS OUTROS IMPERATIVOS QUANDO RACIONAIS E SUFICIENTEMENTE INFORMADOS

2.1 Por definição, para qualquer indivíduo, desejar uma coisa mais do que outra é preferir essa coisa em detrimento de outra (não importa por qual razão ou de que modo).

2.2 Portanto, para qualquer indivíduo, desejar uma coisa mais do que qualquer outra coisa (isto é, desejar essa coisa acima de tudo) é preferir essa coisa em detrimento de todas as outras coisas.

2.3 Por definição, todo indivíduo racional e suficientemente informado sempre escolherá o que preferir (quando ele de fato puder escolher).

2.4 Portanto, qualquer indivíduo racional e suficientemente informado que prefere uma coisa à outra sempre escolhe essa coisa e não a outra (se ele realmente puder escolher e não lhe for possível escolher ambas).

2.5  Portanto, qualquer indivíduo racional e suficientemente informado que prefere uma coisa a todas as outras sempre escolherá essa coisa (se ele realmente puder escolher).

2.6 Se quando racional e suficientemente informado você deseja X mais do que ~X, e você acredita que X ocorrerá somente se x é feito, então você desejará fazer x mais do que ~x.

2.7 Portanto, se quando racional e suficientemente informado você deseja fazer x mais do que ~x, então, por definição você prefere fazer x a ~x (por 2.1).

2.8 Portanto, se quando racional e suficientemente informado você prefere fazer x a ~x, por definição você sempre escolhe x (quando realmente pode escolher). [por 2.3 e 2.5]

2.9 Portanto, se quando racional e suficientemente informado você quer x (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então por definição você sempre escolherá x (quando de fato puder escolher).

2.10 Se é sempre o caso que “se quando racional e suficientemente informado você quer x (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então por definição você escolherá x“, então é sempre o caso que você obedecerá ao imperativo hipotético “se quando racional e suficientemente informado você quer X (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então você deve escolher x“.

2.11 Portanto, é sempre o caso que você obedecerá ao imperativo hipotético “se quando racional e suficientemente informado você quer x (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então você deve escolher x“. [por 2.9 e 2.10]

2.12 Portanto, você sempre obedecerá um imperativo hipotético em detrimento de todos os outros imperativos.

ARGUMENTO 3: QUE EXISTE UM SISTEMA MORAL VERDADEIRO PARA QUALQUER INDIVÍDUO (COMPROMETIDO EM SER RACIONAL)

Definições:

L = um indivíduo determinado

D = a condição em que o que qualquer um quer deve ser racionalmente deduzido do máximo de fatos verdadeiros razoavelmente obtíveis sobre suas preferências e sobre o resultado total de cada possível comportamento sob as mesmas circunstâncias.

W = um comportamento cujo resultado L deseja mais do que qualquer outro resultado.

B = aquilo para o que possuímos uma razão suficientemente motivadora para obedecer em detrimento de todos os outros sistemas imperativos (isto é, aquele comportamento que para o qual temos uma razão suficientemente motivadora para adotar em detrimento de todos os outros comportamentos recomendados).

C = um resultado ou conjunto de resultados alcançável que L deseja mais do que qualquer outro resultado alcançável.

Argumento:

3.1. Para qualquer L, se existe W, então se D é alcançado, então W é B.

3.2. Se D é alcançado, então existe C.

3.3. Se existe C, então existe W.

3.4. Portanto, se D é alcançado, então existe W.

3.5. Portanto, se D é alcançado, então B existe  (ou seja, se 3.1 e 3.4, então 3.5)

3.6. Se existe B, então existe T (isto é, se 1.8, então 3.6)

3.7. Portanto, para qualquer L, se D é alcançado, então existe T.

Portanto, para qualquer indivíduo, se o que ele deseja deve ser racionalmente  deduzido do máximo de fatos verdadeiros razoavelmente obtíveis sobre todas as suas preferências e sobre o resultado total de cada comportamento que lhe seja possível sob as mesmas circunstâncias, então existe um sistema moral verdadeiro para esse indivíduo.

ARGUMENTO 4: EXISTE UM SISTEMA MORAL VERDADEIRO PARA PRATICAMENTE TODOS OS SERES HUMANOS

Definições:

CH = o resultado ou conjunto de resultados possíveis que praticamente todos os membros da espécie humana desejariam acima de qualquer outro resultado possível (nas mesmas circunstâncias).

TL = o sistema moral implicado pelo resultado ou conjunto de resultados possíveis que
L deseja acima de qualquer outro resultado possível.

THo sistema moral implicado pelo resultado ou conjunto de resultados possíveis que praticamente todos os membros da espécie humana desejam acima de que qualquer outro resultado possível.

U = um sistema moral aproximadamente universal.

BDa biologia fundamental de difere da do resto da espécie humana no que diz respeito à determinação do que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado.

~BDsomente alguma outra das circunstâncias de L que não a biologia fundamental difere da do resto da espécie humana no que diz respeito à determinação do que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado, ou então nenhuma diferença.

EXCL é incrivelmente excepcional entre os humanos por possuir uma biologia que determina diferentemente o que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado.

VNB = praticamente todos os membros da espécie humana não tem uma biologia que determina diferentemente o que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado.

VNA = o resultado ou conjunto de resultados possível que praticamente qualquer membro da espécie humana deseja acima de que qualquer outro resultado possível.

MVNA = resultados que praticamente qualquer membro da espécie humana deseja acima de qualquer outro resultado possível.

MH = o sistema moral implicado pelo resultado ou conjunto de resultados que praticamente todos os membros da espécie humana desejam acima de qualquer outro resultado possível.

Argumento:

4.1 Se D vigora, então C é ou CH ou ~CH. (e a partir de 3.2, se existe D, então existe C)

4.2 Se C é CH, então TL é TH. (e a partir de 3.7, se L e D, então TL)

4.3 Se TL é TH, então existe U.

4.4 Portanto, se C é CH, então U existe.

4.5 Se C é ~CH, então ou BD ou ~BD.

4.6 Se ~BD, então se D vigora, então C é CH.

4.7 Portanto, se ~BD, então se D vigora, então U existe. (isto é, se 4.4 e 4.6, então 4.7)

4.8 Se BD, então EXC.

4.9 Se EXC, então VNB.

4.10 Se VNB, então se D vigora, então VNA é CH.

4.11 Se VNA é CH, então MVNA é MH.

4.12 Se MVNA é MH, então U existe.

4.13 Portanto, se D vigora, então se BD, então existe U. (isto é, se BD, então EXC; e se EXC, então VNB; e se VNB, então se D vigora, VNA é CH; e se VNA é CH, então MVNA é MH e se MVNA é MH, então existe U; portanto, se BD e D vigoram, então existe U)

4.14 Portanto, ou C é CH ou C é ~CH; se C é CH, então existe U, e se C é ~CH, então ou BD ou ~BD; e se ~BD e D vigoram, então U existe; e se BD e D vigoram, então U existe; portanto, se ~CH e D vigoram, então U existe; portanto, se D e C vigoram, então U existe.

4.15 Portanto, se D vigora, então U existe. (isto é, se 3.2 e 4.14, então 4.15)

Portanto, quando o que qualquer um deseja é racionalmente deduzido do máximo possível de fatos verdadeiros razoavelmente alcançáveis concernentes a todas as suas preferências e do resultado total de cada comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias, existe um sistema moral aproximadamente universal.

ARGUMENTO 5: QUE A CIÊNCIA PODE DESCOBRIR EMPIRICAMENTE O VERDADEIRO SISTEMA MORAL

5.1 Existe T se existe B e D e W (isto é, se 1.8, 3.2, 3.3 e 3.7, então 5.1)

5.2 Portanto, T é plenamente implicado para qualquer L pelos “fatos verdadeiros” acerca de “todas as suas preferências” e do “resultado total” de “cada comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias” e de qual “comportamento cujo resultado ele deseja acima de qualquer outro” até onde “ele possa razoavelmente” conhecer nestas circunstâncias.

5.3 Os “fatos verdadeiros” para qualquer L acerca de “todas as suas preferências” e o “resultado total” de “cada possível comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias” e qual “comportamento cujo resultado ele deseja acima de qualquer outro resultado” (tanto quanto “ele possa razoavelmente” conhecer nestas circunstâncias) são todos fatos empíricos.

5.4 A ciência pode descobrir quaisquer fatos empíricos para os quais ela desenvolva métodos capazes de investiga-los.

5.5 Portanto, se a ciência pode desenvolver os métodos requeridos, então a ciência pode descobrir os “fatos verdadeiros” para qualquer L no que concerne a “todas as suas preferências” e ao “resultado total” de “cada comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias” e qual o “Comportamento cujo resultado ele deseja mais do que qualquer outro resultado” tanto quanto “ele possa razoavelmente” saber nestas circunstâncias.

5.6 A ciência pode desenvolver os métodos requeridos (ao menos até certo ponto).

5.7 Portanto, a ciência pode descobrir T (o sistema moral verdadeiro) pelo menos até certo ponto.

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por Richard Carrier

Foram apresentadas duas objeções cuja análise apenas confirma a conclusão de que fatos morais universais existem. Primeiro, pode ser construído um argumento (e eu construo um em Sense and Goodness, 326-327) segundo o qual é altamente provável que todas as espécies terrestres naturalmente evoluídas que construírem civilizações compartilharão com os humanos um subconjunto de necessidades e interesses e modos e meios de satisfaze-los que implicarão pelo menos uma ordem elevada de moralidade universal. Em outras palavras, teremos duas morais verdadeiras justapondo-se (no meio estando um conjunto de fatos morais igualmente verdadeiros para ambas), ou de fato sobrepondo-se completamente (isto é, com todos os mesmos fatos morais prevalecendo para cada um de nós). Entretanto, como ainda é possível que exista uma espécie senciente que não compartilhe conosco nada que estabeleceria que mesmo uma ordem mais elevada de moralidade universal aplica-se a eles (esta espécie pode evoluir, ao menos raramente, ou ser criada através da engenharia genética ou do desenvolvimento da IA, por exemplo; veja Carrier, Sense and Goodness without God, 342-43), segue-se que a moralidade universal que demonstrei que deve existir necessariamente não é cosmicamente ou metafisicamente universal mas contingente em certos padrões de construção ou evolução (o que não obstante é altamente provável).[43] Portanto, estritamente falando, a moralidade universal que efetivamente existe ainda é um subconjunto do relativismo moral, mas apenas de um modo trivial. Fatos morais devem necessariamente ser relativos à veracidade de certos fatos acerca da natureza fundamental de um agente. Mas mesmo o Cristianismo é moralmente relativista nesse sentido (pois sua moral também mudaria se Deus alterasse suficientemente nossa natureza fundamental ou mesmo a sua própria), e indiscutivelmente toda teoria moral verossímil deve ser.[44]

Segundo, fatos morais universais devem necessariamente consistir de leis abraangentes cuja aplicação particular sempre diferirá de acordo com o indivíduo e as circunstâncias. Um indivíduo deve escolher o que ele individualmente mais deve fazer, uma escolha que será um imperativo moral para ele mas não necessariamente para qualquer outra pessoa – mesmo na mesma situação – já que as circunstâncias de controle incluem os modos e meios do agente (por exemplo, alguém que não sabe nadar não deve tentar salvar alguém se afogando; alguém que deve comer não deve consumir alimentos aos quais é alérgico; etc.). Mas todos concordarão que se fossem essa pessoa então isso seria a ação correta a ser feita. De maneira similar, todos os casos de conhecimento inacessível: “suficientemente informado” nunca pode significar “plenamente informado”, e portanto imperativos morais resultam apenas de conhecimentos disponíveis para nós no momento da tomada de decisão. Por exemplo, uma pessoa “plenamente informada” por definição saberia nadar, mas uma pessoa “suficientemente informada” sabe apenas que ela ainda não sabe nadar, portanto todos os fatos morais que lhe são imperativos devem resultar do fato real de sua ignorância, e não de informações que ela “poderia” ter, mas não tem e não pode ter na ocasião.[45] O mesmo vale para preferências moralmente aceitáveis: que você goste de um tipo de emprego mais do que de outro diferirá do que outros gostam, mas um imperativo moral para atender a sua felicidade e segurança financeira ao procurar um emprego não implicará que todos devem buscar exatamente a mesma ocupação.

Consequentemente todos estes diferentes resultados não constituem fatos morais diferentes mas regras universais adaptadas a condições particulares, assim como para as condições ambientais inalteráveis discutidas anteriormente. Por exemplo, uma lei abraangente para o exemplo da alergia seria “Você não deve comer alimentos aos quais é alérgico” (se você não tem que), o que por sua vez deriva de uma lei mais geral “Você não deve infligir danos gratuitos a si próprio” (na medida em que você possa razoavelmente saber). Estas leis são verdadeiras para todos, mesmo para pessoas sem alergias. O desejo fundamental instrumental neste caso ainda é o mesmo para todos os seres humanos. Consequentemente uma alergia não é uma diferença biológica que exerça o menor efeito sobre nossos maiores desejos fundamentais, que neste caso são “comer” e “evitar danos gratuitos”. Ser exposto a comida tóxica é simplesmente outra diferença de circunstância.

Levado a sua conclusão lógica, isto abraangeria até mesmo alienígenas com moralidades não-humanas, com quem concordaríamos, se fôssemos estes alienígenas, que devemos nos comportar como eles. Mas, é claro, não somos estes alienígenas, de modo que essa conclusão não possui consequências para nós (exceto na medida em que precisamos prever suas ações e reagir ao que eles farão). Portanto o fato de que definimos a moralidade universal de acordo com as espécies é na verdade apenas uma questão de convenção prática. Simplesmente não precisamos saber sobre outras moralidades, porque há apenas uma espécie racional com a qual estamos lidando (pelo menos até agora), e quando se trata de perguntar como nós devemos nos comportar, existe apenas uma espécie a que esta pergunta se refere (a nossa própria).[46]

Portanto as exceções na verdade provam a regra: como os seres humanos compartilham os mesmos desejos biológicos primários (que não estão limitados aos assim chamados desejos baixos por, digamos, comida e sexo, mas incluem, como a ciência tem demonstrado, desejos por amor e companhia e alegria e realização pessoal e outros mais, ordenados em hierarquias semelhantes de necessidade instrumental e irrevogabilidade), e como somente tais desejos podem sempre implicar racionalmente (conjugados com o conhecimento) uma conclusão esclarecida sobre o que nós mais queremos, segue-se que todos (quando racionais e igualmente informados) desejaremos acima de tudo exatamente as mesmas coisas (quando nas mesmas circunstâncias), o que implica logicamente que os mesmos fatos morais serão verdadeiros para todos nós. Portanto, fatos morais universais devem existir necessariamente.[47]

Notas.

43. Não me interprete como se eu estivesse dizendo que fatos morais consistem de estratégias evolutivas que incrementam o sucesso reprodutivo diferencial. Tais estratégias evoluíram. Mas elas não carregam nenhuma autoridade imperativa quando desejamos ainda mais alguma outra coisa. Nós (como pessoas tomando decisões morais) somos mentes, não genomas. Nós preferimos coisas como felicidade ao sucesso reprodutivo diferencial (e eu prevejo que isto será um lugar-comum entre  todas as espécies civilizadas). O último pode na melhor das hipóteses ser instrumental para o primeiro – ou seja, para nós; ao passo que para nossos genes, obviamente, foi o contrário, que é como nós chegamos a este estágio, mas agora nós estamos no comando do espetáculo, não nossos genes: veja Keith Stanovich, The Robot’s Rebellion: Finding Meaning in the Age of Darwin (Chicago: University of Chicago Press, 2004), e observações relacionadas no capítulo que Victor Stenger escreveu para o presente volume (Life After Death: Examining the Evidence).

44. Esta é uma consequência muito importante de minha análise, já que se este for o caso, precisamos ser extremamente cuidadosos em qualquer esforço para desenvolver IA de qualquer espécie, seja genética ou digital, já que seu reconhecimento dos fatos morais dependerá da natureza que lhes projetemos (ou fracassarmos em projetar). Este risco foi habilidosamente ilustrado, por exemplo, nos filmes Dark Star (1974) e 2010 (1984).

45. Aqui, não há diferença relevante entre conhecimento proposicional (“Eu sei nadar”) e conhecimento não-proposicional (realmente saber como nadar). As mesmas conclusões seguem-se de qualquer dos dois (o último consistindo meramente de informações assimiladas inconscientemente, como quando no filme Matrix [1999] a personagem Trinity recebe o “upload” da habilidade de pilotar um helicóptero).

46. Consequentemente as conclusões de Jonathan Haidt e Fredrik Bjorklund em Sinnott-Armstrong, Moral Psychology, 2:213–16 (bem como 250–54).

47. Isto possui a consequência adicional de refutar o Argumento Moral Para A Existência de Deus, por exemplo, Mark Linville, “The Moral Argument,” in The Blackwell Companion to Natural Theology, ed. W. L. Craig and J. P. Moreland (Wiley-Blackwell, 2009), 391–448. Naturalmente, se estou errado, isso ainda não implica que o argumento moral é bem-sucedido (se não existem fatos morais, então não existem fatos morais – isso não refuta o ateísmo). Mas como eu demonstrei que fatos morais devem existir necessariamente independente de se Deus existe ou da veracidade de qualquer religião, a existência de fatos morais não pode provar a existência de Deus ou a veracidade de qualquer religião. O contraargumento de Linville, de que derivar fatos morais a partir de fatos evoluídos da biologia humana comete uma falácia genética, é autoanulante se verdadeiro, já que nesse caso derivar fatos morais a partir dos atos criativos de Deus também comete uma falácia genética (pois não podemos concluir que o que Deus quer é melhor exceto apelando à natureza que Deus nos deu, o que se torna um argumento circular). De qualquer maneira, permanece a questão sobre o que devemos fazer acima de todas as outras coisas, que ainda é implicado pelo que mais queremos que aconteça. Não faz diferença como obtivemos esta configuração (embora vá fazer diferença quando nos tornarmos os criadores de seres inteligentes). Mesmo se Linville argumentasse que deseja ser diferente do modo como a evolução o moldou, ele estaria se contradizendo – já que ele não poderia ter nenhum desejo além daqueles com os quais a evolução o construiu, e se ele pode mudar para satisfazer esse desejo depende de sua natureza real, que é uma questão de fato que permanece a mesma quer tenhamos sido criados por Deus ou pela evolução; portanto, se Linville deseja ser diferente mas não pode satisfazer este desejo, então ele está objetando tanto contra a maneira como Deus o fez como contra o modo como a evolução o fez – ao passo que se ele puder satisfazer este desejo, então sua queixa carece de fundamentos, já que ele não mais precisa ser diferente daquilo que desejou ser.

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por Richard Carrier

A partir de fatos solidamente estabelecidos é necessariamente o caso que cada ser humano compartilha com todos os outros seres humanos algum subconjunto de fatos verdadeiros do mundo (aspectos ambientais, mentais e corporais em comum, em virtude de partilharem a mesma biologia e habitarem o mesmo universo) e algum subconjunto de desejos inatos (decorrentes de uma biologia e de vários aspectos da experiência consciente compartilhados). Consequentemente, é possível que o que cada indivíduo mais quer (quando racional e suficientemente informado) será o mesmo que todos os outros querem – caso em que fatos morais universais necessariamente existem. Pois nessas circunstâncias todos (quando racionais e suficientemente informados) desejarão a mesma coisa acima de tudo, e como a obtenção da mesma coisa nas mesmas circunstâncias depende de fatos do universo que são universalmente os mesmos para todos nessas mesmas circunstâncias, os mesmos imperativos morais são factualmente verdadeiros para todos. Precisamos apenas descobrir quais são estes imperativos. (Nota do Tradutor: o teólogo Richard Swinburne concorda, como atestam estas páginas de seu livro The Existence of God.)

Somente se o que um indivíduo mais deseja (quando racional e suficientemente informado) diferir do que todos os demais desejam este não será o caso. Então, um conjunto diferente de fatos morais será verdadeiro para cada um deles (não obstante, ainda assim fatos morais verdadeiros continuam a existir; mais uma vez, eles apenas serão relativos a diferentes grupos ou indivíduos). Mas esse resultado é altamente improvável para membros da mesma espécie. Isto porque quando racional e suficientemente informado, qualquer indivíduo preferirá obedecer a desejos racionalmente informados em detrimento de todos os outros desejos, fato este que sempre implica a descoberta de que certos desejos são instrumentalmente necessários para a obtenção de qualquer outra coisa que alguém deseje, e em virtude de uma mesma biologia fundamental (em oposição à incidental) compartilhada e do mesmo ambiente (incluindo o ambiente social – porque, afinal, ainda temos que viver uns com os outros), todos compartilham um conjunto de desejos instrumentalmente necessários e derrogatórios que em virtude de serem necessários e derrogatórios devem ser obedecidos acima de todos os outros, e que por definição implicam um sistema moral comum.

Desejos racionalmente esclarecidos (mesmo antes de se tornarem racionalmente esclarecidos) podem vir a existir apenas de duas maneiras: a partir da biologia fundamental ou a partir de condicionamentos ambientais (o que inclui escolhas deliberadas).[39] Como consequência do escrutínio de todos os nossos desejos a fim de nos cientificarmos de todos os fatos relevantes, podemos então escolher racional e esclarecidamente obedecer a um desejo condicionado na medida em que tal desejo, em última análise, satisfaça um desejo biológico inalterável ou tenha êxito em lidar com uma condição inalterável de nosso ambiente. Isto porque qualquer coisa alterável podemos alterar em vez de obedecer, de modo que qualquer coisa que devemos obedecer sempre ultrapassará qualquer coisa que não precisamos obedecer. Consequentemente as condições inalteráveis de nossa biologia ou de nosso ambiente sempre nos compelirão a querer algo mais. Em outras palavras, sempre existe algum enunciado verdadeiro “Eu preciso de x“, e para qualquer pessoa racionalmente esclarecida, “Eu preciso de x” sempre implica querer x mais do que z sempre que duas condições são satisfeitas: x implica ~z e “Eu quero, mas não necessito de, z.” Se x não implica ~z, então não há nenhum conflito (consequentemente desejos incidentais não fazem diferença nenhuma para os fatos morais fundamentais – veja na próxma parte o exemplo das “alergias”). Mas quando há um conflito, o que é necessário sempre vem em primeiro lugar, e assim a alternativa não pode ser um imperativo moral. E como isto adicionalmente implica que necessidades podem ser suplantadas somente por outras necessidades, somente necessidades (as quais são desejos inalteráveis que são fundamentalmente ou instrumentalmente necessários) podem ser fundamentos de um sistema moral verdadeiro. E necessidades somente são implicadas por constantes inalteráveis (de nossa biologia ou de nosso ambiente); caso contrário, por serem alteráveis, elas não deixam de ser necessárias (porque ao altera-las podemos remover sua necessidade).

Por conseguinte, o que queremos acima de tudo (quando racionais e suficientemente esclarecidos) sempre será implicado por, e somente por, fatos biológicos inalteráveis ou fatos ambientais inalteráveis. Mas seres humanos, em virtude de suas origens e de sua contínua miscigenação, não exibem diferenças biológicas no que concerne a seus desejos fundamentais, inalteráveis e instrumentalmente necessários. De fato, isso seria extraordinariamente improvável (em virtude da extrema variabilidade genética que tal fato exige, a qual não pode ser alcançada por mutações aleatórias, exceto com uma raridade tão extraordinária que podemos esperar nunca encontrar uma pessoa assim em dezenas de milhões de anos). Por exemplo: todos precisamos comer, respirar, nos movimentar, pensar, e cooperar e socializar numa comunidade; geralmente as mesmas coisas são letais ou prejudiciais para todos nós (fisicamente e em alguns casos emocionalmente, tais como os efeitos cientificamente documentados da solidão e da privação afetiva); todos podemos construir uma autoconsciência deliberada quando saudáveis e despertos; todos possuímos neurônios-espelho e confiamos em teorias inatas da mente para entender outras pessoas (a menos que sejamos mentalmente incapazes, mas mesmo a maioria dos autistas, por exemplo, pode aprender uma teoria da mente e aplica-la em seu processo de tomada de decisões, e como o resto de nós eles ainda precisam ser bem-sucedidos ao transitar em seu mundo social).[40] E assim por diante.

Felicidade e alegria, portanto, dependem de uma combinação de fatos biológicos universais compartilhados por todos os seres humanos. Mesmo o que já se pensou ser uma exceção a esta regra (psicopatas) já foi demonstrado não ser: apesar de serem cognitivamente anormais, quando fazem depoimentos sinceros e são suficientemente informados das diferenças entre suas vidas e seus estados mentais e os dos não-sociopatas, eles sempre reconhecem que são profundamente insatisfeitos e admitem desejar mais do que tudo serem pessoas diferentes; todavia, são incapazes de obter o que mais desejam devido a seus defeitos cognitivos. Portanto, (quando plenamente racionais e esclarecidos) eles não “desejam acima de tudo” qualquer coisa fundamentalmente diferente do que nós desejamos, eles apenas são incapazes de alcança-la. E eles não são incapazes de alcança-la devido a um obstáculo externo a seu raciocínio, mas como consequência de um defeito em seu raciocínio.[41] Eles são, portanto, inescapavelmente irracionais, que é a razão pela qual eles são classificados como insanos. Nossa incapacidade de persuadi-los racionalmente a serem morais é exatamente a mesma incapacidade que temos de persuadir racionalmente um esquizofrênico. E o fato de que lunáticos não podem ser racionalmente persuadidos não constitui um defeito numa teoria moral.

Como nossos desejos biológicos primários (primários significando os que são fundamentais, inalteráveis ou instrumentalmente necessários) não podem diferir frequentemente, e portanto não produzem diferenças em nossos desejos mais derrogatórios, isso deixa as diferenças ambientais inalteráveis. Mas estas não fazem nenhuma diferença para uma moralidade universal. Por serem inalteráveis, elas constituem condições a que um agente é forçado a se sujeitar. Como os fatos morais dependentes de um contexto (como qualquer imperativo hipotético deve ser, isto é, as condições de verdade exigidas implicam que o fim deve ser alcançável pela ação prescrita, que sempre dependerá do contexto), quando fatos ambientais inalteráveis implicam querer alguma coisa mais do que aquelas que num ambiente diferente não serão desejáveis acima de tudo, esta conclusão já é implicada por qualquer sistema de moralidade universal. Isto é, qualquer sistema de fatos morais verdadeiros já incluirá o fato de que, se fôssemos forçados nas mesmas condições, seríamos compelidos pelos mesmos imperativos que então vigoram. Em outras palavras, que uma pessoa possa querer mais alguma outra coisa na condição C do que na condição D não implica que fatos morais diferentes vigoram, porque neste caso o imperativo difere somente em relação às condições individuais, não em relação a quaisquer desejos que ainda vigorariam na ausência daquelas condições, e todos os fatos morais são relativos às condições.

Mesmo o mais inflexível cristão conservador reconhecerá que as condições podem alterar o que é moralmente correto fazer, e em última análise até mesmo Kant seria obrigado a concordar. Seu imperativo categórico implicou que devemos “agir somente de acordo com a máxima pela qual você pode ao mesmo tempo querer que se torne uma lei universal”, e nós certamente desejamos que seja uma lei universal que sempre que uma uma exceção apareça, nosso comportamento deve adaptar-se a ela. Por exemplo, matar em autodefesa: jamais desejaríamos que fosse uma lei universal uma proibição grosseira contra matar, exatamente porque sabemos que podemos ter que matar um assassino em potencial em nossa própria defesa. Portanto, antes desejaríamos que fosse uma lei universal uma proibição contra matar apenas em certas circunstâncias, com permissão para matar em outras. Portanto, nós incorporamos diferenças nas condições, mesmo numa lei moral universal. Por conseguinte, porque desejaríamos que fosse uma lei universal que uma pessoa numa condição C deveria querer mais uma coisa, mas numa condição D deveria querer mais alguma outra coisa, exatamente porque essa pessoa não pode alterar essas condições, diferenças no desejo supremo implicadas por fatores ambientais inalteráveis não fazem a menor diferença para a existência de fatos morais universais.

Como a biologia jamais criará um conjunto diferente de fatos morais para qualquer indivíduo humano (exceto tão raramente a ponto de ser insignificante), e o ambiente não é capaz de criar um conjunto diferente de fatos morais para qualquer indivíduo humano (porque, como demonstrado, tal efeito é logicamente impossível), e estas são as únicas fontes possíveis para tal diferença (sendo as únicas fontes possíveis de uma diferença racionalmente esclarecida num desejo supremo), segue a conclusão de que fatos morais universais devem existir necessariamente (para todos ou, no mínimo, para quase todos os seres humanos).[42]

Notas.

39. Acredito que a ciência estabeleceu uma mais do que abraangente explicação da motivação humeana (Carrier, Sense and Goodness, 193-197, para a discussão e a bibliografia cientifica), e todas as objeções filosóficas a isso foram competentemente liquidadas por Neil Sinhababu, “The Humean Theory of Motivation Reformulated and Defended,” Philosophical Review 118, no. 4 (2009): 465–500 (embora ele ocasionalmente confunda a fenomenologia do desejo com a mecânica lógica do desejo, isto interfere apenas em sua habilidade para unificar o internalismo e o cognitivismo; o restante de seu argumento permanece correto mesmo utilizando minha definição de desejo exposta na nota 4). Não obstante, minha teoria moral conforme enunciada aqui é compatível tanto com explicações humeanas quanto com não-humeanas da motivação moral (por exemplo, “Quando racional e suficientemente esclarecido, você desejará x mais do que ~x” não pressupõe de onde este desejo por x se origina, somente que ele sobreviverá a um exame racional).

40. Sobre teorias da mente inatistas ou empiristas e seu papel no autismo, veja Simon Baron-Cohen, Mindblindness: An Essay on Autism and Theory of Mind (Cambridge, MA: MIT Press, 1995).

41. Veja a discussão e as fontes em Carrier, Sense and Goodness, 342–44; e em Sinnott-Armstrong, Moral Pyschology, 1:390, 3:119–296, 363–66, 381–82. Todavia, sua insanidade não significa que os psicopatas possuem uma desculpa, pois quando agem imoralmente eles geralmente ainda sabem que o que estão fazendo é errado (veja a nota 35). E mesmo quando não sabem, como os esquizofrênicos, ainda precisamos dete-los e nos proteger deles.

42. Eis a prova formal dessa afirmação:

ARGUMENTO 4: EXISTE UM SISTEMA MORAL VERDADEIRO PARA PRATICAMENTE TODOS OS SERES HUMANOS

Definições:

CH = o resultado ou conjunto de resultados possíveis que praticamente todos os membros da espécie humana desejariam acima de qualquer outro resultado possível (nas mesmas circunstâncias).

TL = o sistema moral implicado pelo resultado ou conjunto de resultados possíveis que
L deseja acima de qualquer outro resultado possível.

THo sistema moral implicado pelo resultado ou conjunto de resultados possíveis que praticamente todos os membros da espécie humana desejam acima de que qualquer outro resultado possível.

U = um sistema moral aproximadamente universal.

BDa biologia fundamental de difere da do resto da espécie humana no que diz respeito à determinação do que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado.

~BDsomente alguma outra das circunstâncias de L que não a biologia fundamental difere da do resto da espécie humana no que diz respeito à determinação do que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado, ou então nenhuma diferença.

EXCL é incrivelmente excepcional entre os humanos por possuir uma biologia que determina diferentemente o que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado.

VNB = praticamente todos os membros da espécie humana não tem uma biologia que determina diferentemente o que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado.

VNA = o resultado ou conjunto de resultados possível que praticamente qualquer membro da espécie humana deseja acima de que qualquer outro resultado possível.

MVNA = resultados que praticamente qualquer membro da espécie humana deseja acima de qualquer outro resultado possível.

MH = o sistema moral implicado pelo resultado ou conjunto de resultados que praticamente todos os membros da espécie humana desejam acima de qualquer outro resultado possível.

Argumento:

4.1 Se D vigora, então C é ou CH ou ~CH. (e a partir de 3.2, se existe D, então existe C)

4.2 Se C é CH, então TL é TH. (e a partir de 3.7, se L e D, então TL)

4.3 Se TL é TH, então existe U.

4.4 Portanto, se C é CH, então U existe.

4.5 Se C é ~CH, então ou BD ou ~BD.

4.6 Se ~BD, então se D vigora, então C é CH.

4.7 Portanto, se ~BD, então se D vigora, então U existe. (isto é, se 4.4 e 4.6, então 4.7)

4.8 Se BD, então EXC.

4.9 Se EXC, então VNB.

4.10 Se VNB, então se D vigora, então VNA é CH.

4.11 Se VNA é CH, então MVNA é MH.

4.12 Se MVNA é MH, então U existe.

4.13 Portanto, se D vigora, então se BD, então existe U. (isto é, se BD, então EXC; e se EXC, então VNB; e se VNB, então se D vigora, VNA é CH; e se VNA é CH, então MVNA é MH e se MVNA é MH, então existe U; portanto, se BD e D vigoram, então existe U)

4.14 Portanto, ou C é CH ou C é ~CH; se C é CH, então existe U, e se C é ~CH, então ou BD ou ~BD; e se ~BD e D vigoram, então U existe; e se BD e D vigoram, então U existe; portanto, se ~CH e D vigoram, então U existe; portanto, se D e C vigoram, então U existe.

4.15 Portanto, se D vigora, então U existe. (isto é, se 3.2 e 4.14, então 4.15)

Portanto, quando o que qualquer um deseja é racionalmente deduzido do máximo possível de fatos verdadeiros razoavelmente alcançáveis concernentes a todas as suas preferências e do resultado total de cada comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias, existe um sistema moral aproximadamente universal.

Esta é a prova formal de que estes fatos morais são cientificamente acessíveis:

ARGUMENTO 5: QUE A CIÊNCIA PODE DESCOBRIR EMPIRICAMENTE O VERDADEIRO SISTEMA MORAL

5.1 Existe T se existe B e D e W (isto é, se 1.8, 3.2, 3.3 e 3.7, então 5.1)

5.2 Portanto, T é plenamente implicado para qualquer L pelos “fatos verdadeiros” acerca de “todas as suas preferências” e do “resultado total” de “cada comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias” e de qual “comportamento cujo resultado ele deseja acima de qualquer outro” até onde “ele possa razoavelmente” conhecer nestas circunstâncias.

5.3 Os “fatos verdadeiros” para qualquer L acerca de “todas as suas preferências” e o “resultado total” de “cada possível comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias” e qual “comportamento cujo resultado ele deseja acima de qualquer outro resultado” (tanto quanto “ele possa razoavelmente” conhecer nestas circunstâncias) são todos fatos empíricos.

5.4 A ciência pode descobrir quaisquer fatos empíricos para os quais ela desenvolva métodos capazes de investiga-los.

5.5 Portanto, se a ciência pode desenvolver os métodos requeridos, então a ciência pode descobrir os “fatos verdadeiros” para qualquer L no que concerne a “todas as suas preferências” e ao “resultado total” de “cada comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias” e qual o “Comportamento cujo resultado ele deseja mais do que qualquer outro resultado” tanto quanto “ele possa razoavelmente” saber nestas circunstâncias.

5.6 A ciência pode desenvolver os métodos requeridos (ao menos até certo ponto).

5.7 Portanto, a ciência pode descobrir T (o sistema moral verdadeiro) pelo menos até certo ponto.

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Autor: Raymond D. Bradley

Tradução: Gilmar Pereira dos Santos

[Apresentado na University of Western Washington em 27 de maio de 1999, e — numa versão revisada — na University of Auckland em 29 de Setembro de 1999. Raymond D. Bradley é professor emérito de Filosofia na Simon Fraser University, e atualmente vive na Nova Zelândia.]

Preâmbulo para filósofos

O argumento que estou prestes a apresentar é direcionado principalmente a um público leigo, sem formação filosófica. Filósofos profissionalmente treinados podem questionar o fato de eu dizer pouco sobre o Deus da tradição filosófica e bastante sobre o Deus do púlpito e dos bancos de igreja.

Ofereço-lhes duas breves explicações.

Primeira: há um amplo precedente para o que estou fazendo. Sócrates, por exemplo, examinou as crenças religiosas de seus contemporâneos —  especialmente a crença de que devemos fazer o que os deuses nos ordenam — e demonstrou-lhes ser tanto mal fundamentada quanto conceitualmente confusa. Desejo seguir suas pegadas, mas sem compartilhar seu destino. Uma taça de vinho, não de veneno, seria a recompensa que eu escolheria.

Portanto, como Sócrates, eu me posiciono contra o Deus da crença popular, não contra o Deus da teologia natural. E como Deus, na mente da maioria dos ocidentais, é predominantemente o Deus das escrituras judaico-cristãs[1], tenho poucas opções além de citar a Bíblia livremente de maneira a confrontar diretamente as crenças teístas que são meu alvo e me antecipar às acusações de ter compreendido ou interpretado mal minhas fontes.

Segunda: o fato é que a maioria dos filósofos da religião renomados que publicam em periódicos acadêmicos como Faith and Philosophy creem no Deus da Bíblia, não somente no Deus dos filósofos. Para citar apenas alguns nomes, tenho em mente pessoas como William Alston, Peter van Inwagen e Alvin Plantinga. Todos eles são, como Plantinga coloca, “pessoas da Palavra que consideram as Escrituras um caso especial de revelação do próprio Deus[2]. Nenhum deles reluta em citar capítulo e versículo das Escrituras Sagradas — os mais palatáveis, obviamente — tanto em suas publicações quanto no púlpito.

William Alston, por exemplo, afirma: “…uma grande parcela das Escrituras consiste de registros de comunicações entre Deus e os homens“, e sustenta que Deus continua a se revelar a “cristãos sinceros” de hoje de maneiras que variam de orações respondidas a pensamentos que simplesmente pipocam na mente de alguém.[3] Peter van Inwagen confessa: “Aceito plenamente os ensinamentos de minha denominação segundo os quais ‘as Escrituras Sagradas do Velho e do Novo Testamento são a Palavra revelada de Deus’“.[4] E Alvin Plantinga sustenta que: “A Escritura é inerrante: o Senhor não comete erros; o que ele propõe para conteúdo de nossas crenças é o que devemos acreditar.[5]

Estes pontos de vista caracterizam o tipo de teísmo, a saber, o teísmo bíblico, a cuja refutação tenho me dedicado.

Agora vamos a meu argumento para o ateísmo.

Introdução:

“Se Deus não existe, todas as coisas são permitidas.” Assim disse um dos personagens de Dostoievski na obra “Os irmãos Karamazov”. Ele estava afirmando que se Deus não existe, então os valores morais seriam uma questão meramente subjetiva a ser determinada por caprichos individuais ou pela contagem de cabeças no grupo social ao qual alguém pertence; ou talvez ele estivesse mesmo dizendo que valores morais seriam totalmente ilusórios e o niilismo moral prevaleceria. Resumindo — o argumento continua — se verdades morais objetivas existem, então Deus deve existir.

A título de contraste, argumento que se verdades morais objetivas existem, então Deus não existe. Apresento um argumento moral para o ateísmo.

A: Pontos de concordância com os teístas.

A respeito de quatro pontos, dois terminológicos e dois substantivos, eu concordo com meus oponentes teístas.

Primeiro: eu concordo com eles a respeito do significado do termo “Deus”, e nego que Deus exista. Não estamos falando de qualquer divindade obsoleta. Não estamos falando, por exemplo, sobre Baal (deus dos cananitas) ou Aton (deus egípcio), ou Zeus (deus grego), ou Brama (divindade hindu), ou Huitzilopochtli (deus asteca). Todos esses, junto com outros 200 ou mais, citados em obras sobre religião comparada, foram divindades supremas. Cada uma delas foi adorada e obedecida por milhões. Contudo, como H. L. Mencken colocou em seu artigo de 1922 “Serviço Memorial”, “todos estão mortos.”

Apesar de o termo “teísmo” ser frequentemente utilizado num sentido amplo de forma a abraanger a crença em qualquer tipo de deus ou deuses sobrenaturais que se revelam para os humanos, eu o utilizarei — como a maioria dos filósofos e teológos  agora fazem — num sentido um tanto mais estrito. O teísmo sobre o qual estarei falando a respeito não é somente a crença num ou noutro deus qualquer. É a crença no Deus das tradições ortodoxas judaicas, cristãs e islâmicas. É a crença num Deus que distingue-se de todos estes outros em dois aspectos principais. Primeiro, ele é santo (isto é, moralmente perfeito). Segundo, ele se revelou para nós nas Escrituras Sagradas. É em virtude de sua Santidade que ele é considerado digno de adoração e obediência. E é em virtude de ter se revelado a nós nas Escrituras que sabemos sobre sua natureza e quais ações ele nos permite ou proíbe fazer.

O Deus do Teísmo, assim compreendido, é um ser sobrenatural robusto. Ele não deve, portanto, ser identificado com o Deus metafisicamente mutilado de teólogos liberais como Paul Tillich e o bispo Robinson, para os quais Deus é algo como “nossa mais profunda inquietação” e a Bíblia é apenas uma fábula inventada pelo homem, ou na melhor das hipóteses um romance quase-histórico. Nem deveria ser o Deus dos teístas identificado com o ser incognoscível dos deístas como Voltaire e Thomas Paine para os quais Deus era uma entidade hipotética invocada meramente para explicar as origens e a natureza do universo, e a Bíblia uma fraude moral e intelectual impingida sobre os crédulos pelos profetas, papas, padres e pastores. No sentido estrito da palavra, cada um dos quatro pensadores citados é um ateu. E, no mesmo sentido, também eu sou. Mas não vejo nenhuma necessidade de um deus ou qualquer coisa do tipo. Vejo apenas obscuridades semânticas na roupagem liberal de sentimentos humanistas (que eu aplaudo) combinadas com tagarelice piedosa (que eu deploro). E eu encontro somente inferências falaciosas na suposição de que podemos explicar porque qualquer coisa existe conjeturando que alguma outra coisa existe além do explicandum; pois tal suposição segue rumo a uma regressão infinita.

Segundo: penso que os teístas concordariam comigo sobre o que queremos dizer quando falamos de moralidade objetiva. Queremos dizer um conjunto de verdades morais que permaneceriam verdadeiras não importa o que qualquer indivíduo ou grupo social pensasse ou desejasse. A noção de moralidade objetiva é antitética a todas as formas de subjetivismo moral. Ela sustenta, primeiro, que possuímos crenças morais que são ou verdadeiras ou falsas; que elas não são meras expressões de emoções e sentimentos, similares a suspiros e gemidos de prazer e dor. Ela sustenta, em segundo lugar, que a falsidade ou veracidade de nossos julgamentos morais é uma função de se os objetos de apreciação moral, os agentes e suas ações, possuem as propriedades morais que lhes imputamos, ou não; que sua veracidade ou falsidade não é uma mera função dos pensamentos, sentimentos ou atitudes de indivíduos ou de convenções sociais. E ela sustenta, em terceiro lugar, que podem existir verdades morais que ainda aguardam pela nossa descoberta, pela revelação ( sob a interpretação teísta) ou através da razão e da experiência — combinadas, talvez, com nossa biologia cambiante — (sob a minha interpretação).

Terceiro: concordarei com meus oponentes teístas em sustentar que ao menos alguns princípios morais são objetivamente verdadeiros. Admitimos que discordâncias sobre temas morais — sobre a permissibilidade do aborto ou da pena de morte, por exemplo —  frequentemente originam fortes reações emocionais. Mas isto não significa que tais desacordos sejam nada além de rompantes emocionais. Pois consideramos um fato da psicologia moral que possuímos crenças bem como emoções a respeito de tais temas controversos. E uma vez que nada conta como crença a menos que seja verdadeiro ou falso, concluímos que nossas crenças morais — à semelhança de crenças a respeito do formato do planeta e da idade do universo — são verdadeiras ou falsas. Nem, a partir do fenômeno da discordância moral, segue-se que a verdade ou falsidade de um julgamento moral é determinável por cada indivíduo ou pela contagem de cabeças. Pois consideramos que a perspectiva relativista acerca de temas morais não é mais defensável do que o relativismo a respeito de questões de fato.

Quarto: seria de se esperar que os teístas concordem comigo quando eu oferecer alguns exemplos concretos de princípios morais que eu considero serem objetivamente verdadeiros.

A exigência de objetividade para os valores morais é estritamente uma: ela implica que eles devem ser universais no sentido de não admitirem exceção — isto é, de serem válidos para todas as pessoas, lugares e épocas. Assim, em meu ponto de vista, o princípio segundo o qual é moralmente proibido matar outras pessoas não é objetivamente verdadeiro uma vez que —  como quase todos concordariam — ele admite exceções tais como matar um assassino em potencial em defesa própria ou de seus familiares. Formulado desta maneira é um princípio moral falso. Podemos ter uma obrigação prima facie de não matar outra pessoa. Mas pensadores morais sofisticados consentiriam que existem situações nas quais o princípio deveria ser colocado de lado em virtude de considerações morais compensatórias. Se formos apresentar princípios morais que sejam válidos sem necessidade de restrições, precisamos formula-los de forma a englobar adequadamente estas outras considerações.

B. Exemplos de verdades morais objetivas

Apresento agora alguns exemplos de princípios morais que considero serem paradigmas de verdades morais objetivas:

P1: É moralmente errado  assassinar deliberada e impiedosamente homens, mulheres e crianças que sejam inocentes de quaisquer transgressões graves.

Uma violação flagrante deste princípio é encontrada nas políticas genocidas da SS nazista que, seguindo as ordens de Hitler, assassinaram seis milhões de judeus, junto com incontáveis ciganos, homossexuais, e outros assim chamados “indesejáveis”. Não é desculpa, da maneira como vejo, o fato de eles acreditarem estar extirpando um câncer da sociedade, ou que eles estivessem, como Hitler explicou em 1933, apenas fazendo aos judeus o que os cristãos vinham pregando por dois milênios[6]. Outra violação mais recente deste princípio pode ser encontrada nas práticas genocidas de Milosevic e seus capangas, para os quais não é desculpa dizer que estavam apenas corrigindo injustiças passadas ou, através da limpeza étnica, lançando os fundamentos de uma sociedade mais coesa e estável.

P2: É moralmente errado guarnecer o exército de alguém com mulheres jovens feitas prisioneiras para serem utilizadas como escravas sexuais.

Este princípio, ou algum similar a este, jaz por trás de nossa repulsa moral às políticas dos altos comandos japoneses e alemães que selecionavam jovens mulheres sexualmente atraentes, especialmente virgens, para proporcionar pretensos “confortos” a seus soldados. É irrelevante, quero dizer, que, historicamente, a maioria das sociedades tenha considerado tais “confortos” como espólios de guerra aceitáveis.

P3: É moralmente errado obrigar pessoas a canibalizarem seus amigos e familiares.

Talvez possamos imaginar situações —  como a queda de um avião nos Andes — nas quais atos de canibalismo possam ser exonerados. Mas fazer as pessoas comerem os membros de sua própria família —  como várias tribos polinésias são acusadas de terem feito —  com o objetivo de puni-las, ou para horrorizar e impingir medo nos corações de seus inimigos, é inconcebível.

P4: É moralmente errado imolar seres humanos em sacrifício, queimando-os ou por outros meios.

Não há dúvidas, o sacrifício humano era largamente praticado pelas tribos contra as quais os filhos de Israel lutaram, e — do outro lado do Atlântico — pelos astecas e incas. Mas isto — espero que todos vocês concordem — não torna a prática aceitável, mesmo se fosse realizada para apaziguar os deuses nos quais eles acreditavam.

P5: É moralmente errado torturar pessoas eternamente por suas crenças.

Talvez possamos imaginar situações nas quais seria permissível torturar alguém que seja ele próprio um torturador de maneira a obter informações sobre a localização dos prisioneiros que de outra maneira morrerão como consequência das agressões que lhes estão a ser infligidas. Mas casos como o do Papa Pio V, que assistiu a Inquisição Romana queimar um acadêmico religioso dissidente por volta de 1570, ultrapassam o limite do moralmente aceitável; ele não pode ser isentado pelo fato de que pensava estar desta maneira salvando a alma do dissidente das chamas eternas do Inferno.

A respeito de todos estes exemplos, gosto de pensar, teístas e outras pessoas moralmente esclarecidas concordarão comigo. E, além disso, também me agradaria pensar que os teístas concordariam comigo em sustentar que qualquer um que cometesse, causasse, comandasse ou tolerasse atos de violação de qualquer destes princípios — os cinco aos quais me referirei de agora em  diante como “nossos” princípios” — é não somente cruel como abominável.

C: As violações de Deus de nossos princípios morais.

E agora vem o elemento decisivo de meu argumento moral contra o teísmo. Pois, como demonstrarei agora, o Deus teísta — como ele supostamente se revela nas Escrituras judaicas e cristãs — ou comete ele próprio, ou ordena que outros cometam, ou permite, atos que violam cada um de nossos cinco princípios.

Em violação de P1, por exemplo, o próprio Deus afogou toda a raça humana exceto Noé e sua família [Gen. 7:23]; ele puniu o rei Davi por realizar um censo por ele ordenado e então atendeu a solicitação de Davi de que outros fossem punidos em seu lugar através do envio de uma praga que matou 70 000 pessoas [II Sam. 24:1-15]; e ele ordenou que Josué assassinasse velhos e jovens, pequenas crianças, virgens, e mulheres (os habitantes de uns 31 reinos) enquanto prosseguia em suas práticas genocidas de limpeza étnica nas terras que judeus ortodoxos ainda consideram parte da Grande Israel (veja o cap. 10 do livro de Josué em particular). Estes são somente três de centenas de exemplos das violações de Deus de P1.

Em violação de P2, após ordenar que soldados chacinassem todos os homens, mulheres e garotos midianitas sem piedade, Deus autorizou que os soldados dispusessem sexualmente  das 32 000 virgens sobreviventes. [Num. 31:17-18].

Em violação de P3, Deus repetidamente diz ter feito, ou que fará, pessoas canibalizarem suas próprias crianças, maridos, esposas e amigos para puni-los por sua desobediência. [Lev. 26:29, Deut. 28:53-58, Jer. 19:9, Ezeq. 5:10]

Em violação de P4, Deus tolerou que Jeftá lhe ofertasse em sacrifício numa fogueira sua única filha [Juízes 11:30-39].

Finalmente, em violação de P5, o cordeiro sacrificial do próprio Deus, Jesus, observará impassível enquanto Ele tortura a maior parte dos membros da raça humana eternamente, principalmente porque não acreditaram nele. O livro do Apocalipse nos diz que “cada um cujo nome não tiver sido escrito desde a fundação do mundo no livro da vida do Cordeiro que foi morto” [Apoc. 13:8] irá para o inferno, onde “serão atormentados com fogo e enxofre na presença dos anjos sagrados e na presença do Cordeiro; e a fumaça de seu tormento subirá eternamente: e eles não terão descanso dia ou noite” [Apoc. 14:10-11].

D: Um dilema lógico para os teístas: uma tétrade inconsistente

Estas —  e incontáveis outras — passagens da Bíblia significam que os teístas são confrontados com um dilema lógico que atinge o âmago de sua crença de que o Deus das Escrituras é santo. Eles não podem, sem se contradizerem, acreditar em todas as quatro afirmações a seguir:

(1) Qualquer ato que Deus realize, cause, ordene ou tolere é moralmente permissível.

(2) A Bíblia nos revela vários atos realizados, causados, ordenados ou tolerados por Deus.

(3) É moralmente inadmissível para qualquer um realizar, causar, ordenar ou tolerar atos que violem nossos princípios morais.

(4) A Bíblia nos diz que Deus de fato cometeu, causou, ordenou ou tolerou atos que violam nossos princípios morais.

O problema é que estas declarações formam uma tétrade inconsistente tal que a partir de quaisquer três delas alguém pode inferir validamente a falsidade da remanescente. Assim, alguém pode coerentemente afirmar (1), (2) e (3) somente ao custo de abrir mão de (4); afirmar (2), (3) e (4) somente ao custo de desistir de (1); e assim por diante.

O problema para um teísta é decidir qual destas quatro declarações abandonar a fim de salvaguardar o requisito mínimo de verdade e racionalidade, a saber, a consistência lógica. Afinal, se alguém mantêm crenças que se contradizem então suas crenças não podem ser todas verdadeiras. E discussão racional com pessoas que se autocontradizem é impossível; se contradições são permitidas então qualquer coisa pode acontecer.

Mas qual dos quatro enunciados irá nosso teísta negar?

Negar (1) seria admitir que Deus ocasionalmente comete, causa, ordena ou tolera atos moralmente inadmissíveis. Mas isso significaria que o próprio Deus é imoral, ou até mesmo, dependendo da magnitude de seus delitos, que ele é maligno. Isso implicaria negar que ele é santo e digno de adoração; e negaria, adicionalmente, que sua santidade é o fundamento da moralidade.

Negar (2), para o teísta, seria abandonar o principal fundamento da epistemologia religiosa e moral (maneiras de adquirir conhecimento religioso e moral). Pois se (2) fosse falsa, surgiria então a questão  de como saberíamos da existência de Deus, ou, ainda pior, como ele nos serviria como referência moral. Afinal, é uma característica distintiva do teísmo, em oposição ao deísmo, sustentar que Deus se revela para nós e, de tempos em tempos, intervém na história humana. E a Bíblia, segundo os teístas, é o principal registro de suas intervenções revelatórias. Se a Bíblia, com suas histórias sobre Moisés e Jesus, não é sua palavra revelada e presumivelmente verdadeira, então como teremos conhecimento sobre ele? Se Deus não se revela através de Moisés no Velho Testamento e de Jesus no Novo Testamento, então através de quem ou de que ele se revela? A bem da verdade, um teísta poderia afirmar que Deus também se revela por outros canais além da Bíblia: razão, tradição e experiências religiosas sendo todas exemplos em questão. Mas negar que a Bíblia seja seu principal modo de comunicação seria negar que os principais personagens do Judaísmo e do Cristianismo possam realmente ser, afinal, conhecidos. Fora dos registros escriturais, saberíamos muito pouco, se é que saberíamos qualquer coisa, acerca de Moisés ou Jesus, sendo bastante questionável se a história secular possui qualquer coisa confiável a dizer a respeito de qualquer um deles. Afora os registros escriturais não teríamos conhecimento algum dos assim chamados Dez Mandamentos que Deus supostamente entregou a Moisés, ou dos princípios éticos que Jesus supostamente proferiu em seus sermões e parábolas.

Negar (3) seria declarar que é moralmente admissível violar nossos cinco princípios morais. Seria tornar-se cúmplice de monstros morais como Ghenghis Khan, Hitler, Stalin e Pol Pot. Seria abandonar toda e qualquer pretensão a uma crença em valores morais objetivos. Mais ainda, se é permissível violar os princípios acima, então não é fácil ver que tipos de ações não seriam admissíveis. A negação de (3), então, seria equivalente a adotar o niilismo moral. E nenhum teísta que acredita nos Dez Mandamentos ou no Sermão da Montanha consentiria nisso.

Isso deixa apenas (4). Mas negar (4) seria colidir com a realidade de fatos determináveis por qualquer um que faça uma leitura cuidadosa: fatos objetivos sobre o que Bíblia realmente diz.

Adiante argumentarei que tanto (3) quanto (4) são verdadeiras; desta maneira confrontarei os teístas com a necessidade de abandonar (1) ou (2) —  os dois pilares principais da crença teísta. Meus argumentos mostrarão que se Deus existisse então ele ou não seria santo ou as Escrituras não seriam sua palavra revelada.

Devo, entretanto, lidar com os contraargumentos dos que defendem Deus e as Escrituras contra críticas como as minhas. Apologistas teístas possuem duas estratégias principais. Uma é tentar mostrar, contrariando (4), que a Bíblia ou não diz realmente o que eu afirmo que ela diz, ou que as passagens que cito não significam o que eu digo que significam. Esta tática envolve um certo tipo de maquiagem das passagens em discussão de modo a torna-las moralmente inócuas. A outra é tentar mostrar, contrariando (3), que nossos princípios morais são ou inaplicáveis às situações descritas em (4) ou que eles admitem exceções que absolveriam Deus por viola-los.

Eu me ocuparei com estas duas estratégias apológeticas a medida em que surgirem em conexão com minha defesa da veracidade de (4) e (3), nesta ordem.

E: Uma defesa de (4): O que a Bíblia de fato diz sobre as violações de nossos princípios morais por Deus.

P1 e a matança de inocentes.

Primeiro: considere a história, nos capítulos 6 e 7 do livro de Genêsis, do Grande Dilúvio e da Arca de Noé. É uma história conhecida o bastante para me dispensar de reconta-la detalhadamente. Basta dizer que por causa da perversidade que Deus viu sobre a terra, ele decidiu —  em suas próprias palavras — “Destruirei o homem que criei de sobre a face da terra, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até à ave dos céus; porque me arrependo de os haver feito” (Gen. 6:7). As únicas exceções humanas foram Noé e sua família.

Segundo: considere a estranha história sobre Deus ordenando ao Rei Davi que fizesse um censo de seu povo. É estranha por três razões. Da maneira que a história é contada em 2 Samuel, cap. 24, é-nos ditos que Deus expediu Davi com a ordem “Vá, conte Israel e Judá”; que após cumprir esta ordem, Davi chegou à estranha conclusão de que havia por esse meio “cometido um grande pecado”; que Deus então ofereceu a Davi escolher entre três castigos: sete anos de fome e escassez, três dias de peste, ou três meses sendo perseguido e importunado por seus inimigos; que nosso nobre rei escolheu a fome ou a peste para os outros em vez de expor a si próprio; e que Deus aquiesceu: “o Senhor enviou uma praga sobre Israel…”; e “setenta mil homens do povo que habitava desde Dan até Beersheba morreram.” É intrigante que um Deus justo desejaria punir Davi por obedecer suas ordens. Mais intrigante é o fato do Deus santo derramar sua fúria sobre outros matando setenta mil homens (e um número indeterminado de mulheres e crianças, que parecem não ser considerados na maioria das narrativas bíblicas). É ainda mais intrigante que quando a história é recontada em I Crônicas, cap. 21, descobrimos que foi Satanás, não Deus, que incitou Davi a empreender o censo. A inconsistência já é ruim o bastante uma vez que pelo menos uma destas histórias deve ser falsa. É ainda pior que, em ambas as versões, é Deus — não Satanás —  que assassina quem não tinha nada a ver com o suposto pecado de Davi.

Terceiro, considere o caso no qual Deus manda Josué  matar virtualmente todos os habitantes da terra de Canaã. A história começa no capítulo 6 do livro de Josué, contando como o herói e seu exército conquistou a antiga cidade de Jericó onde eles “tudo quanto havia na cidade destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem até à mulher, desde o menino até ao velho, e até ao boi e gado miúdo, e ao jumento.” Então, do capítulo 7 até o 12, somos brindados com uma crônica arrepiante sobre os 31 reinos e todas as cidades que continham, que caíram vítimas das políticas genocidas de Deus e de Josué. Vez ou outra lemos as frases “ele destruiu completamente cada pessoa que havia nela”, “não deixou sobreviventes”, e “nenhum foi deixado respirando”. E a título de explicação da razão pela qual apenas um dos povos autóctones selou a paz com os invasores, é-nos dito “Pois de Jeová veio o endurecimento dos seus corações, para saírem à guerra contra Israel, a fim de que fossem destruídos totalmente, e não achassem piedade alguma… [Josué 11:20]. A ocasião e a justificativa para matar fora forjada pelo próprio Deus.

O que é moralmente preocupante sobre cada um destes três casos é que Deus aparentemente não teve escrúpulos em ordenar a matança de pessoas que, em qualquer sentido ordinário das palavras, eram “inocentes de transgressões sérias.” Afinal, é uma questão fatual empírica explícita que crianças recém-nascidas, e menos ainda aquelas não-nascidas, não são capazes de fazer os tipos de coisas que justificam punições como afogamentos, ser morto no fio da espada, arrancado do útero de sua mãe[7], ou morrer de uma praga enviada por Deus. A Bíblia, contudo, relata despudoradamente que elas estavam dentre as incontáveis vítimas das ações ou das ordens de Deus.

P2 e a entrega de virgens capturadas para as tropas

O livro dos Números, cap. 31, começa com o Senhor dizendo a Moisés, “Vingue-se plenamente pelos filhos de Israel dos midianitas”, então dizendo como —  em obediência às ordens de Deus — doze mil guerreiros primeiro “mataram todos os homens” [vers. 7], e “aprisionaram todas as mulheres de Midian e suas crianças” [vers. 9]. Mas nós lemos, “Moisés estava furioso com os oficiais do exército …  e perguntou-lhes, Vocês pouparam todas as mulheres?… Agora, pois, mate todos os meninos dentre as crianças, e mate toda mulher que tenha conhecido intimamente um homem. Mas todas as jovens que não conheceram um homem intimamente, poupem-nas para vocês.” [vers. 15-18]

Agora, deve ser admitido que em nenhum lugar desta história de violência e escravização é-nos dito explicitamente que as tropas dos exércitos do Senhor usaram as virgens capturadas para sua própria satisfação sexual. Então não chega a surpreender que alguns apologistas amparem-se nesta omissão a fim de argumentar que P2 absolutamente não foi violado. Um apologista deste tipo afirma implicitamente que os soldados levaram as mulheres somente como “esposas ou servas”. Afinal, ele nos tranquiliza, “a lei de Deus dizia que qualquer um que mantivesse relações sexuais fora do casamento heterossexual seria condenado à morte” e que “qualquer homem que cometesse fornicação… seria forçado a casar com a mulher e nunca lhe seria permitido se divorciar dela.”[8]

Mas isso não resiste uma ánalise mais detalhada. A Bíblia narra numerosos casos de assim chamados “homens de Deus” que fornicaram e não casaram —  e as vezes até casaram — e não foram punidos seja pelos homens seja por Deus. Exemplos incluem os encontros sexuais de Abraão e sua escrava egípcia Agar; o relacionamento adúltero do rei Davi com Bathsheba; e o rei Salomão, fruto deste relacionamento, e suas trezentas concumbinas.

Alguém teria que ser extraordinariamente ingênuo para supor que, dos doze mil soldados, não houve nenhum que não tirou vantagem sexual das  trinta e duas mil virgens —  mais de duas para cada soldado —  que Deus lhes concedeu para uso próprio.

P3 e fazer com que pessoas canibalizem seus parentes.

Há ao menos cinco passagens nas quais Deus diz a seu povo que se eles não o obedecerem eles serão punidos sendo reduzidos uma penúria tão extrema que verão-se obrigados a canibalizarem uns aos outros: filhos, filhas, maridos, esposas, pais, mães, e irmãos, para nada dizer dos meros amigos[9]. O livro de Jeremias é especialmente revelador. No capítulo 19, versículo 9, o próprio Deus reivindica responsabilidade direta por estes horrores quando diz: “E eu os farei comer a carne de seus filhos e  a carne de suas filhas…”

Para estas passagens os apologistas costumam oferecer duas racionalizações principais. Uma é que Deus está meramente ameaçando seu povo escolhido com a fatalidade que lhes sucederá se eles não obedeceram a seus mandamentos. A segunda é que ele está meramente prevendo a sina que lhes sobrevirá durante os iminentes cercos a serem realizados por seus inimigos. O problema com a hipótese da ameaça é que, em cada exemplo, os Filhos de Israel na verdade desobederam seus mandamentos, apesar das graves ameaças. Assim, se Deus não faz o que ameaçou fazer, suas ameaças eram vazias e ele repetidamente falhou em manter sua palavra. E o problema com a hipótese da profecia, é que se as coisas não saíssem como Deus previu, então ele teria feito uma falsa profecia. Mas em qualquer caso nenhuma das explicações ajudaria com a passagem do livro de Jeremias, na qual Deus não está simplesmente prevendo o que os inimigos de Israel o forçarão a fazer, mas declarando o que ele próprio o obrigará a fazer. Não há contradição no fato de que se a palavra de Deus é verdadeira, então ele força os outros a violar P3.

P4 e a tolerância com o sacrifício de crianças

No capítulo 11 do livro de Juízes, somos afrontados com um conto cauteloso sobre a quebra de um juramento e suas consequencias. Jeftá, é-nos dito, foi um homem poderoso que foi usado por Deus para dar continuidade à tradição de Josué, eliminando da terra de outro povo etnicamente distinto, os filhos de Amon. Lemos que Jeftá “fez um juramento a Deus, e disse, se me entregares nas mãos os filhos de Amon, a pessoa, seja ela qual for, que sair da porta da minha casa ao meu encontro, quando eu voltar vitorioso dos filhos de Amon, será de Jeová e eu a oferecerei em holocausto.” (vers. 31-32)

O Senhor, ao que parece, achou isto perfeitamente aceitável. Ele manteve sua parte da barganha entregando os amonitas e suas vinte cidades “com uma grandiosa matança” nas mãos de Jeftá. Então foi a vez de Jeftá de cumprir sua parte no acordo. Mas, lamentavelmente, foi sua filha quem saiu-lhe ao encontro para cumprimenta-lo. Jeftá percebeu, no entanto, que devia manter a fé e a palavra dada a Deus. Assim lemos: “Passados os dois meses, tornou ela para seu pai, o qual lhe fez segundo seu juramento…” Em outras palavras, Jeftá manteve sua promessa  oferecendo sua amada filha em sacríficio numa fogueira para seu Deus implacável. Assim Jeftá angariou para si uma menção honrosa na Epístola aos Hebreus[10] onde ele é citado junto com quinze ou mais homens de “grande fé” como Noé, Abraão, Moisés, Sansão, Davi e Samuel.

A melhor interpretação que pode ser feita desta história horripilante é que ela é um tipo de fábula, um conto inventado por homens com a intenção de nos ensinar uma lição sobre a necessidade de reflexão e ponderação antes de assumir compromissos com os outros, especialmente com uma divindade. Tal exegese, entretanto, dificilmente pode ser aceitável para um teísta que creia piamente na Bíblia. Mas em qualquer caso, não deveríamos ficar realmente surpresos com a aceitação, por Deus, do sacrifício de Jeftá. Afinal, o próprio Deus — os teístas cristãos acreditam —  ofereceu seu próprio filho Jesus como um sacrifício de sangue pelos pecados da humanidade.

P5 e a tortura eterna que Deus reserva para os que não acreditam que Jesus é o Senhor e Salvador

A sorte da filha de Jeftá esmaece até a insignificância quando comparada com a que o Deus cristão reserva para ateus sinceros como eu; e não somente para os ateus, mas para todos que falham em aceitar Jesus Cristo como seu salvador pessoal. Jesus, que possui a duvidosa reputação de haver inventado a doutrina da danação nas chamas do inferno, descreve nosso destino vividamente. No Evangelho de Mateus sozinho ele o caracteriza em termos que os evangelistas adoram: “fogo inextinguível”, “inferno ardente” (duas vezes), “tormento”, “queimado com fogo” “fornalhas do inferno” (duas vezes), “choro e ranger de dentes” (cinco vezes), “fogo eterno”, e “o fogo eterno que foi preparado para o demônio e seus anjos.”

Presumindo que Jesus soube como dizer precisamente o que ele quis que fosse entendido, a sina dos descrentes é indubitável. Não é um mero arremesso honroso no esquecimento. Não é simplesmente a angústia de uma alma apartada de Deus. É o tormento e a agonia de um corpo ressurreto, tortura que difere da experimentada pelas vítimas da Inquisição somente pelo fato de que dura não somente  por minutos mas por toda a eternidade. Ao contrário de Auschwitz, o Inferno não oferece nenhuma finalidade para aqueles de nós que preencherão seus fornos. Ninguém escapará de seus horrores, e suas torturas — a serem levadas a cabo diante da platéia divina — continuará indefinidamente[11].

Fosse este destino escaldante  reservado apenas para os impenitentes genocidas e outros perpetradores do mal que tem manchado a história humana, tal violação de P5 já seria ruim o bastante. Mas Apocalipse 13:8 vaticina que este destino recairá sobre “todo aquele cujo nome não tiver sido escrito desde a fundação do mundo no livro da vida do Cordeiro…” E Apocalipse 20:15 confirma a profecia quando nos diz que “se o nome de qualquer pessoa não foi encontrado escrito no livro da vida, ele foi lançado no lago de fogo.”

Quem são os predestinados à danação eterna? São todos aqueles que — como os evangélicos gostam de colocar —  não são cristãos “renascidos”. Segundo Lucas, o pretenso autor dos Atos dos Apostólos, “E em nenhum outro há salvação, porque também debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos.” (Atos 4:12). E São Paulo torna ainda mais claro quando nos diz que “E a vós, que sois atribulados, descanso conosco, quando se manifestar o Senhor Jesus desde o céu com os anjos do seu poder, como labareda de fogo, tomando vingança dos que não conhecem a Deus e dos que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo; os quais, por castigo, padecerão eterna perdição, ante a face do Senhor e a glória do seu poder” (2 Tessalonicenses 1:7-9).

A esta altura, pode ocorrer a alguns de nós que como é uma condição necessária da crença no nome de Jesus que vocês tenham tanto ouvido o nome quanto compreendido seu significado, ninguém pode ser salvo do inferno se não tiver ouvido o evangelho. É esta, portanto, a origem da motivação dos missionários. Mas o que dizer daqueles que viveram em épocas ou lugares nos quais o nome de Jesus era desconhecido? Estão todos os que viveram antes da época de Cristo já condenados? E acerca daqueles que viveram, ou ainda vivem, ignorantes da história cristã? Estão eles — a maior parte da raça humana —  condenados pela ausência de uma crença que, por razões históricas ou geográficas, estavam impedidos de possuir?

Esta conclusão chocante é o que a Bíblia implica. Certamente, o próprio Jesus parece te-la aceitado tranquilamente: “E porque estreita é a porta, e árduo o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem.” A exclusão da maior parte dos seres humanos — não importa quão virtuosamente eles vivam — pela única razão de que eles não acreditam em Jesus como Salvador, é uma consequencia do fato de que a maioria da população que já habitou o planeta até o presente sequer ouviu falar dele. Se formos levar o próprio Jesus a sério, pouco conforto pode ser encontrado na sugestão de São Paulo de que alguns podem encontrar a salvação como resultado da assim chamada revelação geral. Como um dos mais hábeis apologistas cristãos, Wlliam Lane Craig, reconhece, tais exceções à regra da “salvação por nenhum outro nome” podem na melhor das hipóteses serem raras. É por isto que Craig não dissimula o fato de que em sua visão, e na de Jesus, mesmo os mais sinceros adeptos de outras religiões mundiais estão “perdidos e morrendo sem Cristo”[12].

Contudo, toda esta conversa sobre o numero de pessoas que serão torturadas no inferno é um aspecto secundário do assunto. Que é a questão de se os tormentos do inferno são finitos ou infinitos em duração. Se houver uma pessoa sequer sofrendo as torturas dos condenados, então o principio moral que consagramos como P5 é desse modo violado pelo próprio Deus. E em virtude de Deus viola-lo — junto com nossos outros princípios morais — sua alegada santidade está indiscutivelmente comprometida. Assim como seria incoerente dizer que Hitler foi moralmente perfeito apesar do fato de ter enviado pessoas para as câmaras de gás pelo “pecado” de não possuírem a ancestralidade correta, também seria incoerente supor que Deus é moralmente perfeito apesar do fato de que ele irá enviar pessoas para assar no inferno pelo “pecado” de não possuirem as crenças corretas. Ao contrário, qualquer um que seja culpado de tais atrocidades é, sem meias palavras, simplesmente mau, cruel, perverso, vil. Pouco surpreende, então, que Deus diga sobre si mesmo não apenas “Eu faço a paz” como também “Eu crio o mal” (Is. 45:7).[13]

Vale a pena notar que, comparado com Deus, Satanás é retratado na Bíblia como um relativo paradigma de virtude. Satanás é culpado de apenas três delitos principais.

Primeiro, segundo uma passagem que estabelece a tom moral da Bíblia, Satanás — disfarçado de serpente — tenta Eva com o fruto proibido do esclarecimento moral, fruto do que é descrito como “a arvóre do conhecimento do bem e do mal”[14]. Alguém pode ter pensado nisso como uma coisa boa pois Satanás, desta maneira, colocou-a no caminho da educação moral. Mas Deus não queria que seus olhos fossem “abertos”, como Gen 3:5 coloca; ele desejava obediência cega. E assim Deus reagiu de maneira característica. Ele não somente puniu Eva por um ato que ela só soube que era errado após realiza-lo. Ele também puniu Adão, e todos os seus descendentes, incluindo você e eu. Ele impôs a todos nós o fardo do que os teólogos chamam Pecado Original: ele assegurou que nenhum de nós pudesse começar a vida sem esta insuperável desvantagem.

A próxima aparição de Satanás é no primeiro livro de Crônicas, onde ele desempenha o mesmo papel atribuído a Deus em 2 Samuel. Então, onde foi que ele errou desta vez? Se é bom o suficiente para Deus ordenar a Davi que realizasse um censo, por que Satanás estaria sendo moralmente condenável ao faze-lo?

A terceira aparição é no Livro de Jó, onde ele torna difícil a vida do protegido de Deus. Mas isso, deve-se notar, ocorre somente porque Deus lançara-lhe um desafio.

Depois disso, Satanás não faz quase nada de natureza questionável exceto por tentar o próprio Deus, na pessoa de Jesus, durante seu retiro de quarenta dias no deserto —  um exercício fadado ao fracasso.

O que é extraordinário, à luz da subsequente difamação sofrida por Satanás, é que Satanás, ao contrário de Deus, não violou sequer um dos importantes princípios morais listados de P1 a P5.

F: Uma defesa de (3): a inadmissibilidade das violações de nossos princípios por Deus

A segunda estratégia apologética é argumentar que nossos princípios admitem exceções que, quando levadas em consideração, absolvem Deus da culpa.

O principal dentre os estratagemas apologéticos nesta categoria é o que eu devo chamar “Exceção da Soberania”. Nas palavras de um apologista, ele sustenta que “Deus é soberano sobre a vida” e pode por conseguinte fazer conosco o que desejar, “de acordo com sua vontade”.[15] Mas este argumento contém um equívoco fatal a respeito da palavra “pode”. É uma verdade trivial que se Deus é — como os teístas acreditam — soberanamente onipotente, então ele “pode” fazer seja o que for que ele desejar no sentido de possuir o poder ou a potência para faze-lo. Mas poder, refletimos, não confere o direito.

Certamente não se segue que Deus “pode” violar princípios morais no sentido de ser moralmente admissível ou correto para ele proceder assim. Se assim fosse, os monstros morais da história humana que reinaram soberanamente sobre seus impérios poderiam igualmente ser inocentes de transgressão.

Uma segunda tática é argumentar que Deus é isento das proibições de nossos princípios. Pode ser dito que conquanto estes sejam obrigatórios para seres humanos, não o são para Deus. Mas isso seria introduzir um padrão duplo e portanto comprometer a universalidade dos princípios morais. Relativizaria a moralidade a indivíduos ou épocas e a privaria da validade objetiva e absoluta com a qual os teístas estão comprometidos. Pior ainda para o caso teísta, colocaria em discussão a santidade de Deus. Pois santo é o que age de maneira santa. Isto é, se é para qualquer um ser apropriadamente descrito como moralmente perfeito, então seus atos de instrução, de comando e de autorização também devem ser moralmente perfeitos. Dizer que Deus é santo apesar da natureza perversa do que ele faz seria brincar com as palavras: seria privar a palavra “santo” de seu sentido usual e torna-la sinônimo de “mau”.

Um terceiro estratagema é afirmar que em todas as situações que consideramos Deus está agindo em concordância com o que alguns podem sustentar ser o princípio moral absoluto e primordial segundo o qual o pecado deve ser castigado. Pois a partir disso, junto com a doutrina teológica do Pecado Original — a doutrina de que todo ser humano, mesmo os fetos recentemente concebidos nos úteros de suas mães, herdam o pecado, ou ao menos a inclinação para o pecado, de Eva — segue-se que Deus tem o direito, não apenas o poder, de nos punir como lhe aprouver. Como um apologista coloca: “Como o fardo do pecado é a morte, Deus tem o direito de conceder e de tomar a vida.”[16] Coloco de lado as questionáveis pressuposições desta doutrina: que o pecado é genetica ou espiritualmente herdado; e que há justiça em nos considerar responsáveis por disposições para o pecado herdadas ou não colocadas em prática. Existe uma objeção mais importante a esta alegação apologética. Pois suponha que admitamos como verdadeira a afirmação implausível de que é em virtude da ausência universal da inocência humana que Deus deve ser desculpado por suas práticas genocidas. Então teremos que dizer que não há circunstâncias imagináveis, nem mesmo a inocência das vítimas, nas quais é moralmente errado massacrar homens, mulheres e crianças. Teríamos que abandonar P1 como uma verdade moral objetiva uma vez que seria totalmente vazia, inaplicável. E isso nos daria, como a Deus, autorização para chacinar impiedosamente qualquer um que nos aprouver. Tudo o que precisamos fazer é invocar a Exceção da Punição do Pecado Original. Afinal, a menos que adotemos o relativismo de um padrão duplo, se é bom o bastante para Deus também deve ser bom o bastante para nós.

Se uma sequer das exceções listadas acima aos nossos príncípios fosse sólida, tais princípios não seriam verdades morais mas falsidades morais. Na melhor das hipóteses, eles enunciariam meramente proibições morais prima facie, proibições que — a fim de torna-las moralmente obrigatórias — teriam que ser restringidas e modificadas de maneiras que autorizariam alguns dos comportamentos mais moralmente abomináveis dos quais qualquer pessoa poderia ser culpada. Em resumo, se reformuladas para acomodar Deus, elas igualmente acomodariam o Diabo e outras personificações do mal.

G: Consequencias para o teísmo: a falsidade de pelo menos um de seus pilares, (1) ou (2).

Retornemos agora à tétrade inconsistente que eu afirmei colocar tais problemas para a crença teísta. Eu demonstrei, primeiro, que (4) é verdadeira, isto é, que a Bíblia de fato nos diz que Deus viola nossos princípios morais; segundo, que (3) é verdadeira, isto é, que é moralmente inadmissível para qualquer um —  incluindo Deus — violar estes princípios. Mas se estou certo, então os teístas não possuem uma escapatória de seu dilema lógico que não destrua o núcleo da crença teísta.

Eles tem uma escolha. Eles devem, sob pena de contradição, abandonar ao menos um, se não ambos, entre (1), a crença de que todos os atos de Deus são moralmente permissíveis, ou (2), a crença de que a Bíblia nos revela o que vários destes atos são. Ainda, como vimos, se eles abandonarem (1), com isso também abandonarão a crença na santidade de Deus; ao passo que se abandonarem (2), também se desfazem da crença na Bíblia como sua revelação.

E aqui eu termino a exposição de meu caso contra o teísmo: meu argumento moral para o ateísmo.

H: Um corolário de meu argumento: a falsidade da teoria ética teísta

Antes de terminar, entretanto, desejo chamar a atenção para um corolário de meu argumento. Considere, mais uma vez, a tétrade inconsistente pela qual o edifício inteiro do teísmo desmorona. Mas desta vez substitua as declarações (1), (2), (3) e (4) da tétrade inconsistente original por seus respectivos corolários:

(1)* Qualquer ato que Deus nos ordene realizar é moralmente admissível.

(2)* A Bíblia nos revela vários dos atos que Deus nos ordena realizar.

(3)* É moralmente inadmissível para qualquer um cometer atos que violem o princípio P1.

(4)* A Bíblia nos diz que Deus nos ordena realizar atos que violam o princípio moral P1.

Então um dilema lógico paralelo surge para a crença do teísta de que Deus, como revelado na Bíblia, é a fonte da moralidade objetiva ou, no mínimo, é um guia confiável para o que deveríamos ou não deveríamos fazer.

Em vez de desenvolver o argumento novamente, apresentarei este indiciamento adicional da crença teísta citando a Bíblia e então endereçando uma série de questões para aqueles que, como o filósofo Alvin Plantinga, afirmam que “o que [o Senhor] tenciona que seja o conteúdo de nossas crenças é o que devemos acreditar.” Pois deveria ser evidente que, se Plantinga e outros teístas bíblicos estiverem certos, então, uma vez que as crenças que o Senhor propõe incluem aquelas sobre o que devemos fazer, se o Senhor propõe que deveríamos fazer assim e assim, então assim e assim é o que devemos fazer.

Considere 1 Samuel 15:3 onde o Senhor ordena a seu povo:

“Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos.”

Agora pergunte-se:

1. “…matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito…”  foi a palavra do próprio Deus que você adora?

2. É concebível que seu Senhor possa expedir novamente a mesma ordem em nossa época?

3. Se você acreditasse que recebeu tal ordem de seu Senhor, poderia e deveria você obedece-lo?

Se você responder “Não” à questão 1, você nega a autoridade da assim chamada palavra de Deus, a Bíblia. Se você responder “Não” à segunda pergunta — talvez porque você pense que seu Senhor possa ter corrigido e aprimorado suas maneiras —  você nega que os mandamentos de Deus possuem o tipo de aplicabilidade universal que é condição necessária para que sejam concordantes com, para não mencionar a fonte de, verdades morais. Se você responder “Não” à terceira pergunta, você deve pensar que algumas vezes é correto, ou talvez obrigatório, desobedecer a Deus. Desta maneira você admite que as verdades morais são independentes, e podem até mesmo colidir com, as ordens de Deus. Você admite que a ética é, como a maioria dos filósofos tem há muito insistido, autônoma; e que devemos, portanto, pensar moralmente por nós mesmos.

Mas se você responder “Sim” a cada questão, então eu acuso sua crença no Deus do teísmo bíblico de ser não somente equivocada mas moralmente abominável. Pois, nas palavras de meu amigo, John Patrick, que pediu demissão do ministério presbiteriano da Nova Zelândia depois de descobrir quantos de seus paroquianos também responderam “Sim” às três perguntas:

uma doutrina que afirme que as Escrituras contém a Palavra de Deus, o governante supremo da fé e do dever, tem o poder de transformar pessoas que, em outros contextos são ponderadas, gentis e amáveis, num grupo disposto a aprovar o genocídio em nome do Senhor que eles adoram.[17]

1. Para os objetivos presentes não digo nada sobre o Deus do Alcorão. Basta dizer que meu argumento, se sólido, também é aplicável contra o teísmo islâmico.

2. Alvin Plantinga, “When Faith and Reason Clash: Evolution and the Bible,” Christian Scholar’s Review, Vol. XXI, No. 1, (Setembro de 1991), p. 8.

3. William Alston, “Divine-Human Dialogue and the Nature of God,” Faith and Philosophy, (Janeiro de 1985, p.6).

4. Peter van Inwagen, “Genesis and Evolution,” in Reasoned Faith, ed. Eleonore Stump, Cornell University Press, 1993, p.97.

5. Alvin Plantinga, p.12.

6. Rod Evans and Irwin Berent, Fundamentalism: Hazards and Heartbreaks, Open Court, La Salle, Illinois, 1988, pp. 120-1. Também James A. Haught, Holy Horrors: an Illustrated History of Religious Murder and Madness, Prometheus Books, Buffalo, New York, 1990, p.163.

7. Veja Oséias 13:16: Samaria virá a ser deserta, porque se rebelou contra o seu Deus; cairão à espada, seus filhos serão despedaçados, e as suas grávidas serão fendidas pelo meio.

8. Brad Warner, “Deus, o Mal e o Professor Bradley” (manuscrito divulgado em caráter privado em resposta a meu debate com o representante da Cruzada Acadêmica por Cristo, Dr. Chamberlain, sobre o tema “Pode existir uma moralidade objetiva sem Deus?”). O debate aconteceu na Simon Fraser University em 25 de Janeiro de 1996.

[9] No Levítico, cap. 26, vers. 28-29, lemos: “Também eu para convosco andarei contrariamente em furor; e vos castigarei sete vezes mais por causa dos vossos pecados. Comereis a carne de vossos filhos, e a carne de vossas filhas.” No Deuteronômio, cap. 28, após o Senhor listar as dezenas de desastres e infortúnios que sucederão a seus povo se ele não observarem todos os seus mandamentos e estatutos, ele diz (nos vers. 53-58): “E comerás o fruto do teu ventre, a carne de teus filhos e de tuas filhas… Quanto ao homem mais mimoso e delicado no meio de ti, o seu olho será maligno para com o seu irmão, e para com a mulher do seu regaço, e para com os demais de seus filhos que ainda lhe ficarem; De sorte que não dará a nenhum deles da carne de seus filhos, que ele comer…” E mulheres refinadas e delicadas, também nos é dito, farão o mesmo. Em Jeremias, cap. 19, vers. 9, o show de horrores continua quando o Senhor diz: “E lhes farei comer a carne de seus filhos e a carne de suas filhas, e comerá cada um a carne do seu amigo, no cerco e no aperto em que os apertarão os seus inimigos, e os que buscam a vida deles.” Finalmente, em Ezequiel, cap. 5, vers. 10, a dieta divina é extendida aos pais quando Deus diz: “Portanto os pais comerão a seus filhos no meio de ti, e os filhos comerão a seus pais; e executarei em ti juízos, e tudo o que restar de ti, espalharei a todos os ventos.”

10. De autoria desconhecida apesar de erroneamente atribuída a São Paulo.

11. [Apocalipse 14:10-11] Verdade seja dita, o versículo continua identificando aqueles que sofrem essa sina com “aqueles adoram a besta e sua imagem, e qualquer pessoa que receber a marca de seu nome.” Mas eles já haviam sido identificados, no capítulo anterior, 13, vers. 8-18, como aqueles que não foram predestinados para a salvação.

12. William Lane Craig, “Nenhum outro nome: uma perspectiva do conhecimento médio sobre a exclusividade da salvação através de Cristo”, Faith and Philosophy, Abril de 1989, p. 187. Em seu ponto de vista, Deus está justificado em enviar descrentes voluntários e involuntários para o inferno porque ele sabe — antes de cria-los —  que eles não teriam acreditado em Jesus como Salvador mesmo se tivessem ouvido sobre ele.

13. O termo hebraico que é traduzido aqui como “mal” é “rah”. Os tradutores da New American Standard, entretanto, preferem traduzi-lo como “calamidade” na passagem de Isaías e como “aflição” na passagem das Lamentações. Mas tal sanitização do original não ajuda realmente. Proporciona ao crente pouco alívio ouvir que Deus é a origem e a fonte das calamidades. E “aflição” — aprendemos com o New Collegiate Dictionary do Webster —  é apenas um sinônimo de “mal”.

14. Genesis 2:9.

15. Brad Warner, p.15.

16. Brad Warner, p.14.

17. John Patrick, “Por qual autoridade?” publicado em Setembro de 1984 num boletim a seus companheiros clérigos da Igreja Presbiteriana da Nova Zelândia  explicando por que se demitiu. Minhas três perguntas são derivadas das que ele colocou a seus paroquianos.

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