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Posts Tagged ‘Imperativos Categóricos’

por Richard Carrier

A partir de fatos solidamente estabelecidos é necessariamente o caso que cada ser humano compartilha com todos os outros seres humanos algum subconjunto de fatos verdadeiros do mundo (aspectos ambientais, mentais e corporais em comum, em virtude de partilharem a mesma biologia e habitarem o mesmo universo) e algum subconjunto de desejos inatos (decorrentes de uma biologia e de vários aspectos da experiência consciente compartilhados). Consequentemente, é possível que o que cada indivíduo mais quer (quando racional e suficientemente informado) será o mesmo que todos os outros querem – caso em que fatos morais universais necessariamente existem. Pois nessas circunstâncias todos (quando racionais e suficientemente informados) desejarão a mesma coisa acima de tudo, e como a obtenção da mesma coisa nas mesmas circunstâncias depende de fatos do universo que são universalmente os mesmos para todos nessas mesmas circunstâncias, os mesmos imperativos morais são factualmente verdadeiros para todos. Precisamos apenas descobrir quais são estes imperativos. (Nota do Tradutor: o teólogo Richard Swinburne concorda, como atestam estas páginas de seu livro The Existence of God.)

Somente se o que um indivíduo mais deseja (quando racional e suficientemente informado) diferir do que todos os demais desejam este não será o caso. Então, um conjunto diferente de fatos morais será verdadeiro para cada um deles (não obstante, ainda assim fatos morais verdadeiros continuam a existir; mais uma vez, eles apenas serão relativos a diferentes grupos ou indivíduos). Mas esse resultado é altamente improvável para membros da mesma espécie. Isto porque quando racional e suficientemente informado, qualquer indivíduo preferirá obedecer a desejos racionalmente informados em detrimento de todos os outros desejos, fato este que sempre implica a descoberta de que certos desejos são instrumentalmente necessários para a obtenção de qualquer outra coisa que alguém deseje, e em virtude de uma mesma biologia fundamental (em oposição à incidental) compartilhada e do mesmo ambiente (incluindo o ambiente social – porque, afinal, ainda temos que viver uns com os outros), todos compartilham um conjunto de desejos instrumentalmente necessários e derrogatórios que em virtude de serem necessários e derrogatórios devem ser obedecidos acima de todos os outros, e que por definição implicam um sistema moral comum.

Desejos racionalmente esclarecidos (mesmo antes de se tornarem racionalmente esclarecidos) podem vir a existir apenas de duas maneiras: a partir da biologia fundamental ou a partir de condicionamentos ambientais (o que inclui escolhas deliberadas).[39] Como consequência do escrutínio de todos os nossos desejos a fim de nos cientificarmos de todos os fatos relevantes, podemos então escolher racional e esclarecidamente obedecer a um desejo condicionado na medida em que tal desejo, em última análise, satisfaça um desejo biológico inalterável ou tenha êxito em lidar com uma condição inalterável de nosso ambiente. Isto porque qualquer coisa alterável podemos alterar em vez de obedecer, de modo que qualquer coisa que devemos obedecer sempre ultrapassará qualquer coisa que não precisamos obedecer. Consequentemente as condições inalteráveis de nossa biologia ou de nosso ambiente sempre nos compelirão a querer algo mais. Em outras palavras, sempre existe algum enunciado verdadeiro “Eu preciso de x“, e para qualquer pessoa racionalmente esclarecida, “Eu preciso de x” sempre implica querer x mais do que z sempre que duas condições são satisfeitas: x implica ~z e “Eu quero, mas não necessito de, z.” Se x não implica ~z, então não há nenhum conflito (consequentemente desejos incidentais não fazem diferença nenhuma para os fatos morais fundamentais – veja na próxma parte o exemplo das “alergias”). Mas quando há um conflito, o que é necessário sempre vem em primeiro lugar, e assim a alternativa não pode ser um imperativo moral. E como isto adicionalmente implica que necessidades podem ser suplantadas somente por outras necessidades, somente necessidades (as quais são desejos inalteráveis que são fundamentalmente ou instrumentalmente necessários) podem ser fundamentos de um sistema moral verdadeiro. E necessidades somente são implicadas por constantes inalteráveis (de nossa biologia ou de nosso ambiente); caso contrário, por serem alteráveis, elas não deixam de ser necessárias (porque ao altera-las podemos remover sua necessidade).

Por conseguinte, o que queremos acima de tudo (quando racionais e suficientemente esclarecidos) sempre será implicado por, e somente por, fatos biológicos inalteráveis ou fatos ambientais inalteráveis. Mas seres humanos, em virtude de suas origens e de sua contínua miscigenação, não exibem diferenças biológicas no que concerne a seus desejos fundamentais, inalteráveis e instrumentalmente necessários. De fato, isso seria extraordinariamente improvável (em virtude da extrema variabilidade genética que tal fato exige, a qual não pode ser alcançada por mutações aleatórias, exceto com uma raridade tão extraordinária que podemos esperar nunca encontrar uma pessoa assim em dezenas de milhões de anos). Por exemplo: todos precisamos comer, respirar, nos movimentar, pensar, e cooperar e socializar numa comunidade; geralmente as mesmas coisas são letais ou prejudiciais para todos nós (fisicamente e em alguns casos emocionalmente, tais como os efeitos cientificamente documentados da solidão e da privação afetiva); todos podemos construir uma autoconsciência deliberada quando saudáveis e despertos; todos possuímos neurônios-espelho e confiamos em teorias inatas da mente para entender outras pessoas (a menos que sejamos mentalmente incapazes, mas mesmo a maioria dos autistas, por exemplo, pode aprender uma teoria da mente e aplica-la em seu processo de tomada de decisões, e como o resto de nós eles ainda precisam ser bem-sucedidos ao transitar em seu mundo social).[40] E assim por diante.

Felicidade e alegria, portanto, dependem de uma combinação de fatos biológicos universais compartilhados por todos os seres humanos. Mesmo o que já se pensou ser uma exceção a esta regra (psicopatas) já foi demonstrado não ser: apesar de serem cognitivamente anormais, quando fazem depoimentos sinceros e são suficientemente informados das diferenças entre suas vidas e seus estados mentais e os dos não-sociopatas, eles sempre reconhecem que são profundamente insatisfeitos e admitem desejar mais do que tudo serem pessoas diferentes; todavia, são incapazes de obter o que mais desejam devido a seus defeitos cognitivos. Portanto, (quando plenamente racionais e esclarecidos) eles não “desejam acima de tudo” qualquer coisa fundamentalmente diferente do que nós desejamos, eles apenas são incapazes de alcança-la. E eles não são incapazes de alcança-la devido a um obstáculo externo a seu raciocínio, mas como consequência de um defeito em seu raciocínio.[41] Eles são, portanto, inescapavelmente irracionais, que é a razão pela qual eles são classificados como insanos. Nossa incapacidade de persuadi-los racionalmente a serem morais é exatamente a mesma incapacidade que temos de persuadir racionalmente um esquizofrênico. E o fato de que lunáticos não podem ser racionalmente persuadidos não constitui um defeito numa teoria moral.

Como nossos desejos biológicos primários (primários significando os que são fundamentais, inalteráveis ou instrumentalmente necessários) não podem diferir frequentemente, e portanto não produzem diferenças em nossos desejos mais derrogatórios, isso deixa as diferenças ambientais inalteráveis. Mas estas não fazem nenhuma diferença para uma moralidade universal. Por serem inalteráveis, elas constituem condições a que um agente é forçado a se sujeitar. Como os fatos morais dependentes de um contexto (como qualquer imperativo hipotético deve ser, isto é, as condições de verdade exigidas implicam que o fim deve ser alcançável pela ação prescrita, que sempre dependerá do contexto), quando fatos ambientais inalteráveis implicam querer alguma coisa mais do que aquelas que num ambiente diferente não serão desejáveis acima de tudo, esta conclusão já é implicada por qualquer sistema de moralidade universal. Isto é, qualquer sistema de fatos morais verdadeiros já incluirá o fato de que, se fôssemos forçados nas mesmas condições, seríamos compelidos pelos mesmos imperativos que então vigoram. Em outras palavras, que uma pessoa possa querer mais alguma outra coisa na condição C do que na condição D não implica que fatos morais diferentes vigoram, porque neste caso o imperativo difere somente em relação às condições individuais, não em relação a quaisquer desejos que ainda vigorariam na ausência daquelas condições, e todos os fatos morais são relativos às condições.

Mesmo o mais inflexível cristão conservador reconhecerá que as condições podem alterar o que é moralmente correto fazer, e em última análise até mesmo Kant seria obrigado a concordar. Seu imperativo categórico implicou que devemos “agir somente de acordo com a máxima pela qual você pode ao mesmo tempo querer que se torne uma lei universal”, e nós certamente desejamos que seja uma lei universal que sempre que uma uma exceção apareça, nosso comportamento deve adaptar-se a ela. Por exemplo, matar em autodefesa: jamais desejaríamos que fosse uma lei universal uma proibição grosseira contra matar, exatamente porque sabemos que podemos ter que matar um assassino em potencial em nossa própria defesa. Portanto, antes desejaríamos que fosse uma lei universal uma proibição contra matar apenas em certas circunstâncias, com permissão para matar em outras. Portanto, nós incorporamos diferenças nas condições, mesmo numa lei moral universal. Por conseguinte, porque desejaríamos que fosse uma lei universal que uma pessoa numa condição C deveria querer mais uma coisa, mas numa condição D deveria querer mais alguma outra coisa, exatamente porque essa pessoa não pode alterar essas condições, diferenças no desejo supremo implicadas por fatores ambientais inalteráveis não fazem a menor diferença para a existência de fatos morais universais.

Como a biologia jamais criará um conjunto diferente de fatos morais para qualquer indivíduo humano (exceto tão raramente a ponto de ser insignificante), e o ambiente não é capaz de criar um conjunto diferente de fatos morais para qualquer indivíduo humano (porque, como demonstrado, tal efeito é logicamente impossível), e estas são as únicas fontes possíveis para tal diferença (sendo as únicas fontes possíveis de uma diferença racionalmente esclarecida num desejo supremo), segue a conclusão de que fatos morais universais devem existir necessariamente (para todos ou, no mínimo, para quase todos os seres humanos).[42]

Notas.

39. Acredito que a ciência estabeleceu uma mais do que abraangente explicação da motivação humeana (Carrier, Sense and Goodness, 193-197, para a discussão e a bibliografia cientifica), e todas as objeções filosóficas a isso foram competentemente liquidadas por Neil Sinhababu, “The Humean Theory of Motivation Reformulated and Defended,” Philosophical Review 118, no. 4 (2009): 465–500 (embora ele ocasionalmente confunda a fenomenologia do desejo com a mecânica lógica do desejo, isto interfere apenas em sua habilidade para unificar o internalismo e o cognitivismo; o restante de seu argumento permanece correto mesmo utilizando minha definição de desejo exposta na nota 4). Não obstante, minha teoria moral conforme enunciada aqui é compatível tanto com explicações humeanas quanto com não-humeanas da motivação moral (por exemplo, “Quando racional e suficientemente esclarecido, você desejará x mais do que ~x” não pressupõe de onde este desejo por x se origina, somente que ele sobreviverá a um exame racional).

40. Sobre teorias da mente inatistas ou empiristas e seu papel no autismo, veja Simon Baron-Cohen, Mindblindness: An Essay on Autism and Theory of Mind (Cambridge, MA: MIT Press, 1995).

41. Veja a discussão e as fontes em Carrier, Sense and Goodness, 342–44; e em Sinnott-Armstrong, Moral Pyschology, 1:390, 3:119–296, 363–66, 381–82. Todavia, sua insanidade não significa que os psicopatas possuem uma desculpa, pois quando agem imoralmente eles geralmente ainda sabem que o que estão fazendo é errado (veja a nota 35). E mesmo quando não sabem, como os esquizofrênicos, ainda precisamos dete-los e nos proteger deles.

42. Eis a prova formal dessa afirmação:

ARGUMENTO 4: EXISTE UM SISTEMA MORAL VERDADEIRO PARA PRATICAMENTE TODOS OS SERES HUMANOS

Definições:

CH = o resultado ou conjunto de resultados possíveis que praticamente todos os membros da espécie humana desejariam acima de qualquer outro resultado possível (nas mesmas circunstâncias).

TL = o sistema moral implicado pelo resultado ou conjunto de resultados possíveis que
L deseja acima de qualquer outro resultado possível.

THo sistema moral implicado pelo resultado ou conjunto de resultados possíveis que praticamente todos os membros da espécie humana desejam acima de que qualquer outro resultado possível.

U = um sistema moral aproximadamente universal.

BDa biologia fundamental de difere da do resto da espécie humana no que diz respeito à determinação do que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado.

~BDsomente alguma outra das circunstâncias de L que não a biologia fundamental difere da do resto da espécie humana no que diz respeito à determinação do que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado, ou então nenhuma diferença.

EXCL é incrivelmente excepcional entre os humanos por possuir uma biologia que determina diferentemente o que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado.

VNB = praticamente todos os membros da espécie humana não tem uma biologia que determina diferentemente o que é maximamente desejável quando racional e suficientemente informado.

VNA = o resultado ou conjunto de resultados possível que praticamente qualquer membro da espécie humana deseja acima de que qualquer outro resultado possível.

MVNA = resultados que praticamente qualquer membro da espécie humana deseja acima de qualquer outro resultado possível.

MH = o sistema moral implicado pelo resultado ou conjunto de resultados que praticamente todos os membros da espécie humana desejam acima de qualquer outro resultado possível.

Argumento:

4.1 Se D vigora, então C é ou CH ou ~CH. (e a partir de 3.2, se existe D, então existe C)

4.2 Se C é CH, então TL é TH. (e a partir de 3.7, se L e D, então TL)

4.3 Se TL é TH, então existe U.

4.4 Portanto, se C é CH, então U existe.

4.5 Se C é ~CH, então ou BD ou ~BD.

4.6 Se ~BD, então se D vigora, então C é CH.

4.7 Portanto, se ~BD, então se D vigora, então U existe. (isto é, se 4.4 e 4.6, então 4.7)

4.8 Se BD, então EXC.

4.9 Se EXC, então VNB.

4.10 Se VNB, então se D vigora, então VNA é CH.

4.11 Se VNA é CH, então MVNA é MH.

4.12 Se MVNA é MH, então U existe.

4.13 Portanto, se D vigora, então se BD, então existe U. (isto é, se BD, então EXC; e se EXC, então VNB; e se VNB, então se D vigora, VNA é CH; e se VNA é CH, então MVNA é MH e se MVNA é MH, então existe U; portanto, se BD e D vigoram, então existe U)

4.14 Portanto, ou C é CH ou C é ~CH; se C é CH, então existe U, e se C é ~CH, então ou BD ou ~BD; e se ~BD e D vigoram, então U existe; e se BD e D vigoram, então U existe; portanto, se ~CH e D vigoram, então U existe; portanto, se D e C vigoram, então U existe.

4.15 Portanto, se D vigora, então U existe. (isto é, se 3.2 e 4.14, então 4.15)

Portanto, quando o que qualquer um deseja é racionalmente deduzido do máximo possível de fatos verdadeiros razoavelmente alcançáveis concernentes a todas as suas preferências e do resultado total de cada comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias, existe um sistema moral aproximadamente universal.

Esta é a prova formal de que estes fatos morais são cientificamente acessíveis:

ARGUMENTO 5: QUE A CIÊNCIA PODE DESCOBRIR EMPIRICAMENTE O VERDADEIRO SISTEMA MORAL

5.1 Existe T se existe B e D e W (isto é, se 1.8, 3.2, 3.3 e 3.7, então 5.1)

5.2 Portanto, T é plenamente implicado para qualquer L pelos “fatos verdadeiros” acerca de “todas as suas preferências” e do “resultado total” de “cada comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias” e de qual “comportamento cujo resultado ele deseja acima de qualquer outro” até onde “ele possa razoavelmente” conhecer nestas circunstâncias.

5.3 Os “fatos verdadeiros” para qualquer L acerca de “todas as suas preferências” e o “resultado total” de “cada possível comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias” e qual “comportamento cujo resultado ele deseja acima de qualquer outro resultado” (tanto quanto “ele possa razoavelmente” conhecer nestas circunstâncias) são todos fatos empíricos.

5.4 A ciência pode descobrir quaisquer fatos empíricos para os quais ela desenvolva métodos capazes de investiga-los.

5.5 Portanto, se a ciência pode desenvolver os métodos requeridos, então a ciência pode descobrir os “fatos verdadeiros” para qualquer L no que concerne a “todas as suas preferências” e ao “resultado total” de “cada comportamento que lhe seja possível nas mesmas circunstâncias” e qual o “Comportamento cujo resultado ele deseja mais do que qualquer outro resultado” tanto quanto “ele possa razoavelmente” saber nestas circunstâncias.

5.6 A ciência pode desenvolver os métodos requeridos (ao menos até certo ponto).

5.7 Portanto, a ciência pode descobrir T (o sistema moral verdadeiro) pelo menos até certo ponto.

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por Richard Carrier

David Hume certa vez queixou-se de que os moralistas haviam fracassado em definir qual relação lógica a palavra deve expressa. Mas ele jamais disse que não é possível deriva-la a partir de fatos naturais (essa é uma lenda contemporânea originada da leitura descontextualizada de suas palavras).[17] Mas ele observou corretamente que a única maneira de verificar se qualquer enunciado como “você deve fazer x” é verdadeiro é primeiro explicar qual é  exatamente o suposto significado atribuído ao termo “deve”. Foi subsequentemente demonstrado que esta palavra geralmente significa uma relação hipotética entre desejos e fins: o “imperativo hipotético” discutido na primeira parte desta série.[18] Mas isto foi considerado inadequado para fundamentar a moralidade, como se implicasse que a moralidade pudesse ser somente um exercício de auto-interesse. Assim, foi feita uma outra tentativa para definir um tipo diferente de relação denotada pelo termo “deve”, comumente chamada de “imperativo categórico”.

Mas o imperativo categórico ou não possui nenhum valor de verdade motivador ou simplesmente torna-se outra variedade de imperativo hipotético. Por exemplo, Immanuel Kant defendeu que a única razão para obedecermos a seus imperativos categóricos é que proceder assim irá nos trazer um grandioso senso de valor próprio, que com efeito deveríamos “nos manter constrangidos por certas leis a fim de encontrar exclusivamente em nossa própria pessoa um valor” que nos recompensa por todas as perdas sofridas ao obedece-las, pois “não existe ninguém, nem mesmo mais empedernido patife que não deseje ser também ele um homem de semelhante espírito“, embora somente através de uma vida moral seja possível alcançar esse “grandioso valor interno à sua própria pessoa“. Assim, Kant afirmou que um forte senso de valor próprio não é possível a um indivíduo imoral, mas algo natural para o moral; contudo, todos desejam tal coisa (acima de qualquer outra coisa); por conseguinte todos possuem uma razão suficiente para serem morais.[19] Ele nunca se deu conta de que por esse expediente havia reduzido seu sistema de imperativos categóricos inteiro a um único imperativo hipotético:

K= Sistema de Imperativos Categóricos Proposto por Kant
W= Experiência máxima de valor próprio proposta por Kant

1. Se você obedecer K, W acontecerá; e se você obedecer ~K, ~W acontecerá.
2. Quando racional e suficientemente esclarecido, você sempre desejará W mais do que ~W.
3. Se quando racional e plenamente esclarecido você sempre deseja W mais do que ~W (e se e somente se K, então W) então você deve obedecer K.
4. Portanto, você deve obedecer K.

A premissa 1 corresponde à declaração de Kant de que devemos “nos manter constrangidos por certas leis a fim de encontrarmos exclusivamente em nossa própria pessoa um senso de valor próprio“, e a premissa 2 corresponde à declaração de Kant de que “não existe ninguém, nem mesmo o mais empedernido patife, que não deseje ser também ele um homem de semelhante espírito” (e isso acima de qualquer outra coisa). E a conclusão somente segue se assumirmos a premissa 3 – que é uma mera definição da relação lógica constituinte de um imperativo hipotético, o único modo conhecido de derivar validamente sua conclusão a partir daquelas premissas.

As outras duas premissas são alegações factuais, e como tais são empiricamente testáveis pela ciência: podemos confirmar empiricamente se obedecer a K efetivamente causa W (e se tal não for o caso, a teoria moral de Kant, de que “devemos obedecer a K” é falsa, como até o próprio Kant reconheceu ao declarar que esta é a única razão que qualquer um teria para obedecer a K); e podemos confirmar empiricamente se W é realmente o que “ninguém, nem mesmo o patife mais empedernido, não deseja” ter, e de fato deseja a tal ponto que alcança-lo compensa até mesmo todas as perdas sofridas por obedecer a K. E se isso não for verdade, se W não é o que todos mais desejam – se as pessoas se contentam em continuar sem W se for possível obter alguma outra coisa em seu lugar, e elas continuariam a pensar assim mesmo quando plenamente cientes de todas as consequências que resultam de ambas ( de modo que a ignorância não é mais uma desculpa e assim não se pode dizer que elas estejam em erro) – então, mais uma vez, a teoria moral de Kant é falsa. Porque se não temos nenhuma razão suficiente para nos importarmos com W, então mesmo se K produzir W não temos nenhuma razão suficiente para nos importarmos com K. De fato, não teremos mais razão suficiente para obedecer a K do que a ~K ou a qualquer outro imperativo ou sistema de imperativos. A menos, é claro, que exista algum outro objetivo alcançável obedecendo a K que de fato queiramos mais do que a qualquer outra coisa. Mas não é provável que seja apenas uma “casualidade” que K seja mais eficaz para alcançar tal objetivo alternativo. Muito provavelmente algum outro sistema moral M será mais eficaz em alcança-lo (seja lá o que for que a ciência descubra empiricamente que efetivamente tenha esse resultado). E como então teremos uma razão motivadora suficiente para obedecermos a M, e nenhuma razão motivadora suficiente para obedecermos a K, não haverá nenhum sentido relevante em que “você deve obedecer a K” seja verdadeiro. Mas “você deve obedecer a M” será não somente verdadeiro, ele será empiricamente, verificavelmente verdadeiro. Com efeito, nessas circunstâncias M será o único sistema moral demonstravelmente verdadeiro.[20]

Assim como Kant, todos os filósofos morais tentam respaldar seus variados sistemas morais com afirmações factuais que são cientificamente testáveis. Ainda assim, raramente os filósofos se incomodam em testa-los – seja de modo informal, e menos ainda cientificamente. Portanto, na pior das hipóteses, eles devem concordar com um programa de pesquisas científico que teste as reais alegações factuais que eles fazem. Seria tão irracional fazer oposição a isto como seria opor-se a uma pesquisa científica sobre as causas das doenças meramente porque você prefere sua própria teoria das doenças em detrimento de qualquer outra que a ciência possa vir a descobrir ser efetivamente verdadeira. Mas devemos concluir ainda mais do que isto. Pois existem apenas dois tipos de teorias morais, seja na filosofia ou na religião: aqueles cuja conclusão (que seu sistema moral é “verdadeiro” no sentido de que é, factual e efetivamente, o que devemos fazer) validamente segue de premissas demonstravelmente verdadeiras, e aqueles cuja conclusão não segue. Todos os últimos são falsos (ou de qualquer maneira não possuem nenhuma reivindicação legítima de veracidade). Isso nos deixa com o primeiro tipo. Mas não existe nenhuma maneira conhecida para derivar validamente tal conclusão (sobre o que de fato devemos fazer) além de lançar mão de alguma premissa que estabeleça esse sistema moral como um imperativo hipotético, combinado com todas as premissas sobre motivações e consequências requeridas por esse expediente, que são todas fatos empíricos passíveis de descoberta científica.[21] O que nós realmente mais desejamos, e o que realmente será eficaz para sua obtenção, são questões de fato que não podem ser verdadeiramente respondidas dentro de um gabinete. Métodos empíricos devem ser empregados para determina-los e verifica-los. Somente a ciência dispõe das melhores ferramentas para esta tarefa.

Isto nos traz e volta à questão que num primeiro momento colocamos de lado: se imperativos morais realmente não passam de casos particulares de imperativos hipotéticos. Vários filósofos resistiram a esta conclusão e ainda o fazem. Mas ninguém jamais apresentou qualquer outra relação lógica identificável que possa sempre ser expressa por “deve” (ou qualquer outro termo ou frase semanticamente equivalente) que produza qualquer apelo à nossa obediência. Se alguém ainda quiser insistir que existe alguma outra relação que permite comprovar a veracidade relevante das proposições imperativas, deixemos que a demonstre. Mas mesmo isso não será suficiente: eles precisarão demonstrar também que pelo menos uma proposição imperativa carregando esse novo sentido é não somente capaz de ser verdadeira mas que realmente é verdadeira, e além disso, que é não somente verdadeira como ultrapassa M; isto é, que estaremos suficientemente motivados a obedecer este novo imperativo até mesmo quando ele contradiz M.[22] Caso contrário ele não apelará mais a nosso interesse do que qualquer outra coisa com a qual nos importemos menos do que com M. Sendo este o caso, tal imperativo não terá nenhuma pretensão relevante de ser a “verdadeira” moralidade – ou mesmo qualquer tipo de moralidade – em vez de apenas mais um imperativo mundano, já que um imperativo não se torna um imperativo moral apenas porque você diz que é. Se assim fosse, então toda e qualquer coisa seria moral meramente por declararmos que é. Existe apenas uma definição universalmente aceitável de “imperativo moral”, e esta definição diz que um imperativo moral é aquele que suplanta todos os outros imperativos. E esse não pode ser senão M.

Todas as tentativas de construir os assim chamados sistemas morais externalistas são por conseguinte apenas exercícios de ficção, nenhum sendo mais convincente do que qualquer outro selecionado aleatoriamente numa cartola. Somente sistemas morais “internalistas” vem com motivos suficientes para nis importamos com ele e assim preferirmos obedece-los do que a qualquer outro sistema moral concorrente (porque isso é o que distingue o internalismo do externalismo em primeiro lugar: um motivo intrínseco para obedece-lo). E somente um sistema assim pode ser verdadeiro. Porque se M alcança o que mais desejamos, então por definição não existe nenhum outro sistema que teremos razões motivadoras suficientes para preferir em detrimento de M.

Todos os outros sistemas (que não oferecem uma razão motivadora suficiente para nos importarmos com ele) são igualmente anódinos: nenhum que contradiga M possuirá qualquer apelo sobre nossa obediência que exceda o apelo de qualquer outro, e como tal eles se cancelam mutuamente, deixando M como a única coisa que realmente devemos fazer. E esta não é uma conclusão original. Bernard Williams (N.T.: considerado um dos, se não o maior, filósofo britânico das últimas décadas; autor de Shame and Necessity, um estudo da psicologia moral das tragédias gregas, entre outras coisas, baseado nas Palestras Sather que ministrou em 1989 _ perdoem-me por prolongar demais este parêntese, mas é importante dizer que um convite para ministrar estas prestigiosas palestras é o equivalente, no universo dos Estudos Clássicos, a ser laureado com um Nobel _ é considerado uma das mais importantes obras de filosofia dos últimos tempos) já provou que o externalismo deve ser ou incoerente ou apenas um retorno disfarçado do internalismo ou simplesmente falso no sentido de que não oferece nenhum motivo suficiente para sermos morais e é portanto suplantado por qualquer outro sistema que de fato fornece tal motivo.[23] Com efeito, os moralistas podem querer “chamar” seus sistemas externalistas “a verdadeira moralidade”, mas tal reivindicação é vazia porque ainda teremos uma razão melhor para fazermos outra coisa.[24]

Isto implica que a moralidade não pode ser senão um exercício de auto-interesse (e valores morais não podem realmente existir senão nas mentes das pessoas que os sustentam), mas, contrariando a preocupação popular, esse fato não constitui um fundamento inadequado para a moralidade. Pelo contrário, nenhum outro fundamento para a moralidade é sequer logicamente possível – uma vez que você defina “a verdadeira moralidade” como um sistema moral, existe uma razão suficientemente motivadora para obedece-la. E uma vez que, como uma questão de fato natural real, nunca obedeceremos a qualquer outro (a menos que sejamos irracionais ou ignorantes, mas mesmo então uma vez tornados racionais e esclarecidos não obedeceremos a nenhum outro), não existe nenhum outro tipo de “moralidade” que importe.[25] Em outras palavras, afirmar que por “moralidade” você quer dizer alguma coisa que devemos fazer mas para a qual não temos nenhuma razão suficientemente motivadora para preferirmos em detrimento de outras é simplesmente evitar a questão do que realmente devemos fazer.

Notas.

17. David Hume, “Of Morals”, em Treatise On Human Nature (1739), §3.1.1, onde ele declara apenas que os “sistemas de moralidade ordinários” fracassaram em estabelecer essa conexão, não que nenhum sistema jamais poderia; ao contrário, já na seção seguinte ele defende que pode – portanto, mesmo se você acreditar que sua teoria moral específica é incorreta, ainda é errado afirmar que ele declarou que uma redução dos valores aos fatos seja impossível.

18. Demonstrado extensivamente primeiro por Immanuel Kant em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785); subsequentemente modernizado por Philippa Foot, “Morality as a System of Hypothetical Imperatives”, reproduzido em Moral Discourse and Practice: Some Philosophical Approaches, ed. Stephen Darwall, Allan Gibbard, e Peter Railton (Oxford: Oxford University Press, 1997) 313–22; e outros. Veja Carrier, Sense and Goodness, 331–35.

19. Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes ou Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (1785) § 3.4 (paragrafação de Kant) ou § 4.454 (Royal Prussian Academy edition), 112–13 na segunda edição alemã de Kant (1786), ou 122 da tradução inglesa de H.J. Paton (New York: Harper Torchbooks, 1964); veja também Robert Wolff, The Autonomy of Reason: A Commentary on Kant’s Groundwork of the Metaphysic of Morals (New York: Harper & Row, 1973), 211 (§ 3.5). Desde então, a psicologia comprovou e revisou  consideravelmente a afirmação de Kant: veja Carrier, Sense and Goodness, 313–27.

20. Consequentemente alguém pode tentar remendar Kant propondo outras razões para obedecermos a K (por exemplo, retiradas da teoria dos jogos: que é contrário aos interesses de alguém promover, por exemplo, ações cuja universalização lhe trariam prejuízos), mas se isso for factualmente verdadeiro e suficientemente motivador, então é o mesmo que M; e na medida em que não é verdadeiro ou suficientemente motivador, então é superado por M. De qualquer maneira, somos deixados com M como o único sistema moral relevantemente verdadeiro. Similarmente, em Natural Goodness (New York: Oxford University Press, 2001), Philippa Foot revisou seu trabalho anterior propondo em seu lugar que um sistema de imperativos morais hipotéticos resulta sobretudo do desejo de sermos racionais (permitindo assim que pessoas irracionais jamais poderiam ser persuadidas), mas assim como com Kant, mesmo isso ainda é, no fundo, um imperativo hipotético (veja a nota 36).

21. Isto é efetivamente defendido por Stephen Darwall em sua própria demonstração de que os imperativos categóricos de Kant ou necessariamente reduzem-se a imperativos hipotéticos (como eu também mostrei) ou do contrário não possuem nenhum valor de verdade motivador: Stephen Darwall, “Kantian Practical Reason Defended,” Ethics 96, no. 1 (October 1985): 89–99. A partir dos princípios ali assumidos é óbvio que a mesma redução pode ser realizada sobre qualquer sistema moral. Inversamente, através de uma lei abraangente, todos os imperativos hipotéticos verdadeiros reduzem-se a um categórico: R. S. Downie, “The Hypothetical Imperative,” Mind 93 (October 1984): 481–90. Mas esse categórico também é, tautologicamente, um hipotético (que somos racionais e esclarecidos: veja a nota 36.).

22. Observe que qualquer anulador de M alternativo proposto não precisa ser empiricamente comprovado, precisa apenas ser comprovadamente verdadeiro por quaisquer meios que sejam suficientemente motivadores (portanto não estou pressupondo que somente imperativos empiricamente comprovados podem garantir nossa obediência preponderante – embora eu duvide seriamente que qualquer outra coisa possa, não é necessário presumir que não seja capaz).

23. Bernard Williams, “Internal and External Reasons,” in Moral Discourse and Practice, 363–71. Respaldado em Moral Psychology, 3:173–90 e 217–25. Na verdade, o externalismo reduz-se a uma ética descritiva, não a uma prescritiva.

24. Aqui está uma prova formal desta afirmação:

ARGUMENTO 1: SE EXISTE UM SISTEMA MORAL VERDADEIRO, É AQUELE PARA O QUAL POSSUÍMOS UMA RAZÃO SUFICIENTEMENTE MOTIVADORA PARA OBEDECERMOS ACIMA DE TODOS OS OUTROS

Definições:

m = um sistema moral

s = um sistema de imperativos que suplanta todos os outros imperativos

v = aquilo que devemos obedecer acima de todos os outros sistemas imperativos (sejam eles rotulados de morais ou não)

B = aquele que possuímos uma razão suficientemente motivadora para obedecermos acima de todos os outros sistemas imperativos

T = o sistema moral verdadeiro

M = o sistema moral que efetivamente devemos obedecer

Argumento:

1.1 Se existe m, então m é s.

1.2 Se m é s, então m é v.

1.3 v é B.

1.4 Portanto, se existe m, então m é B.

1.5 m é T se e somente se m é M.

1.6 M é B.

1.7 Portanto, m é B, e m é B se e somente se m é M; e m é M se e somente se m é T. (isto é, se 1.4, 1.5 e 1.6, então 1.7)

1.8 Portanto, T é B. (isto é, se 1.6 e 1.7, então 1.8).

1.9 Portanto, se existe m, então existe T. (isto é, se 1.4 e 1.8, então 1.9)

1.10 Portanto, se existe m, então existe T e B é T.

Conclusão: Se existe qualquer sistema moral, então aquele para o qual temos uma razão suficientemente motivadora para obedecermos sobre todos os outros sistemas imperativos é o verdadeiro sistema moral.

 25. Eis uma prova formal desta afirmação:

ARGUMENTO 2: QUE NÓS (REALMENTE) OBEDECEREMOS IMPERATIVOS HIPOTÉTICOS VERDADEIROS ACIMA DE TODOS OS OUTROS IMPERATIVOS QUANDO RACIONAIS E SUFICIENTEMENTE INFORMADOS

2.1 Por definição, para qualquer indivíduo, desejar uma coisa mais do que outra é preferir essa coisa em detrimento de outra (não importa por qual razão ou de que modo).

2.2 Portanto, para qualquer indivíduo, desejar uma coisa mais do que qualquer outra coisa (isto é, desejar essa coisa acima de tudo) é preferir essa coisa em detrimento de todas as outras coisas.

2.3 Por definição, todo indivíduo racional e suficientemente informado sempre escolherá o que preferir (quando ele de fato puder escolher).

2.4 Portanto, qualquer indivíduo racional e suficientemente informado que prefere uma coisa à outra sempre escolhe essa coisa e não a outra (se ele realmente puder escolher e não lhe for possível escolher ambas).

2.5  Portanto, qualquer indivíduo racional e suficientemente informado que prefere uma coisa a todas as outras sempre escolherá essa coisa (se ele realmente puder escolher).

2.6 Se quando racional e suficientemente informado você deseja X mais do que ~X, e você acredita que X ocorrerá somente se x é feito, então você desejará fazer x mais do que ~x.

2.7 Portanto, se quando racional e suficientemente informado você deseja fazer x mais do que ~x, então, por definição você prefere fazer x a ~x (por 2.1).

2.8 Portanto, se quando racional e suficientemente informado você prefere fazer x a ~x, por definição você sempre escolhe x (quando realmente pode escolher). [por 2.3 e 2.5]

2.9 Portanto, se quando racional e suficientemente informado você quer x (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então por definição você sempre escolherá x (quando de fato puder escolher).

2.10 Se é sempre o caso que “se quando racional e suficientemente informado você quer x (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então por definição você escolherá x“, então é sempre o caso que você obedecerá ao imperativo hipotético “se quando racional e suficientemente informado você quer X (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então você deve escolher x“.

2.11 Portanto, é sempre o caso que você obedecerá ao imperativo hipotético “se quando racional e suficientemente informado você quer x (isto é, as consequências de x) mais do que ~x (isto é, as consequências de ~x), então você deve escolher x“. [por 2.9 e 2.10]

2.12 Portanto, você sempre obedecerá um imperativo hipotético em detrimento de todos os outros imperativos.


 

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