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O texto a seguir é continuação de A Tragédia Da Teologia: Como A Igreja Causou E Prolongou A Idade Das Trevas – Parte 3: Fundamentos Filosóficos De Uma Visão de Mundo Pró-Científica

por Andrew Bernstein

O maior filósofo da história, o homem cujo método incorporou a racionalidade baseada na observação acima de qualquer coisa, foi Aristóteles. Apesar de seus erros, as realizações extraordinárias de Aristóteles aumentaram significativamente nosso entendimento da natureza, nossos métodos para determinar suas propriedades, e, portanto, nossa capacidade de nos engajarmos na ciência. É impossível reconhecer a falsidade criminosa da alegação de Stark de que o Catolicismo medieval, e não a cultura grega, foi o maior responsável pelo compromisso ocidental com a razão sem levarmos em consideração a obra e a influência de Aristóteles.

Para Aristóteles, a realidade era constituída fundamentalmente de matéria organizada, o que ele denominou ousiai, ou seres elementares (isto é, entidades); por conseguinte, a realidade não era nem um agregado de impressões sensoriais discretas nem uma dimensão espiritual mais elevada mas o reino da natureza. Tais entidades (e todos os outros existentes) são o que são (a Lei da Identidade), e não são o que não são (a Lei da Não-Contradição). A mudança (ou processo) natural é analisada racionalmente em termos de matéria rearranjada, de coisas se transformando no que elas sempre tiveram o potencial para se transformar. Conquanto não aplicável apropriadamente a objetos inanimados, o princípio aristotélico de coisas se esforçando para atualizar seu potencial é profundamente frutífero para a compreensão dos seres vivos. O estudo de praticamente qualquer tema, de plantas à política, começa com a observação cuidadosa de uma ampla gama de fatos relevantes. “Ele impressionara-se com o fato de que embora os fatos por si não propiciem o entendimento…eles não obstante ainda são muito mais confiáveis do que qualquer teoria.[33] Os seres humanos, ao perceberem seu potencial para o pensamento e a conduta racional, poderiam aspirar a, e alcançar, a excelência, incluindo a absolutamente indispensável esfera moral. Por conseguinte, os homens poderiam sentir-se – merecidamente – dignos, honrados e, de um modo geral, felizes ao longo do curso de sua existência.

Ao contrário dos medievais, o pensamento de Aristóteles era completamente baseado na observação, no naturalismo, na racionalidade – não em deduções racionalistas a partir de premissas arbitrárias. Se vocábulos contemporâneos podem ser aplicados aos antigos de modo não-anacrônico, sua visão de mundo era predominantemente, para efeitos práticos exclusivamente, secular. Seus interesses foram a natureza, a vida e o homem – não o sobrenatural, o pós vida e deus. Sua extraordinária energia e curiosidade intelectual levaram-no a investigar todas as áreas conhecidas pelos homens em sua época – a lógica, a ética, a estética, a física, a metafísica, a biologia, a meteorologia, e outras mais – e a inaugurar o entendimento humano em várias delas.  Através do vasto conjunto de seus escritos, seu trabalho demonstrou “a busca passional pela verdade desapaixonada.” Jonathan Barnes, um destacado especialista em Aristóteles contemporâneo, coloca nos seguintes termos: “Ele [Aristóteles] domina a Antiguidade como um colosso intelectual. Ninguém antes dele contribuíra tanto para o conhecimento. Ninguém após ele pode ambicionar rivalizar com suas realizações.[34]

Ele representa o ápice, a coroação do comprometimento grego com a ciência e estudo da natureza. Muito da filosofia grega pré-aristotélica – Tales, Anaxímenes, Heráclito, Demócrito – consistiu numa tentativa de compreender as difíceis questões inerentes à multiplicidade atordoante da natureza: os problemas relativos à mudança (por exemplo, como é possível que um bebê transforme-se num homem adulto e no entanto permaneça a mesma pessoa?) e da identidade na multiplicidade (por exemplo, como é possível que uma planta, um inseto, um peixe e um homem sejam o mesmo tipo de coisa: um organismo vivo?). Aristóteles, o lógico seminal, impingiu à sua obra tanta racionalidade fervorosa quanto qualquer de seus predecessores – mas, em seu zelo pela observação, ele descartou seu racionalismo. Em sua obra História dos Animais, por exemplo, Aristóteles oferece uma explicação do desenvolvimento de um embrião galináceo baseada em esmeradas observações. Citando Jones: “O método de Aristóteles foi um antídoto revigorante ao racionalismo excessivo de seus predecessores filosóficos…[35]

E quanto a seus sucessores filosóficos no período medieval?

Embora não seja um medievalista, este que vos escreve desconhece qualquer cientista da Idade Média anterior a Alberto Magno no século XIII – um período de mais de 600 anos – que tenha adotado a abordagem escrupulosa de Aristóteles para o estudo da natureza. Como outros pensadores medievais, Alberto citou textos anteriores, religiosos ou seculares, como autoridades inquestionáveis. Entretanto, além disso ele foi um excelente observador da natureza, tendo navegado pelo Mar do Norte para coletar amostras para pesquisa, e contribuído significativamente tanto para a revitalização dos estudos de Aristóteles como para o desenvolvimento da ciência medieval. “Alberto tanto ajudou a apresentar a filosofia da ciência de Aristóteles ao mundo medieval como desafiou as concepções da natureza prevalecentes. Em resposta à tradição agostiniana, Alberto criticou a noção de que ideias na mente de Deus… existem independentemente e dão a natureza formal dos objetos sensíveis… Consequentemente, não somos obrigados a nos apoiar confiantemente no conhecimento de Deus para um conhecimento das coisas… A própria natureza pode nos revelar sua ordem. Com Alberto, a natureza, que fora muitas vezes emudecida pelos intelectuais medievais, encontraria sua própria voz. Uma vez descoberta e subitamente tornada articulada, sua voz gradualmente libertaria a ciência (e as artes) dos grilhões da teologia.[36]

Antes de Alberto, por pelo menos 500 anos, a personalidade “científica” dominante na Europa medieval fora Isidoro de Sevilha (560-636), cuja obra Etimologias, “um amontoado desordenado…de informação e desinformação… fora a principal autoridade por toda a Alta Idade Média .[37] Isidoro, em consonância com o espírito religioso de sua época, atribuiu às afirmações sobre o domínio sobrenatural uma importância e uma segurança vastamente superiores às das afirmações sobre a natureza. Consequentemente, ele repetiu acriticamente fantasias sem fundamento sobre o mundo material, e não reconheceu nenhuma importância na observação sensorial. Não obstante, ele foi, por séculos, citado como a maior autoridade científica e, como Jones observa, “a ciência do século XII avançou pouco além de Isidoro de Sevilha.[38]

Stark sabe, é claro, mas quase não menciona que a primazia das obras de Aristóteles no Ocidente foi perdida durante a Idade das Trevas entre os séculos V e IX – e que, não acidentalmente, a Renascença Medieval dos séculos XII e XIII coincide largamente com a recuperação do corpus aristotélico nos grandes centros de ensino islâmicos na Espanha. É um truísmo histórico que os avanços intelectuais significativos promovidos por Alberto, por seu brilhante aluno Tomás de Aquino e seus pares do começo do período escolástico, ocorreram sob a influência monumental de Aristóteles.[39]

Mesmo hoje, a influência profundamente benéfica de Aristóteles não é reconhecida em toda a sua magnitude. Não foi apenas (ou mesmo principalmente) as obras de Aristóteles que foram perdidas entre o final da Idade Antiga e a Alta Idade Média; foi seu espírito, sua abordagem, sua orientação, seu caso de amor cognitivo com este mundo. Quem estuda as obras de Aristóteles – e a história de sua perda e redescoberta séculos mais tarde pelo homem ocidental – vê claramente a relação causal recíproca e imensamente positiva entre a recuperação das obras de Aristóteles e a Renascença Medieval. Após intermináveis séculos de escravização da razão pela fé – e de hibernação da ciência e da filosofia secular – os homens dos séculos XII e XIII estavam sedentos por um conhecimento maior da natureza e pelos progressos práticos que tal conhecimento traz a reboque. E quem, em toda a história da humanidade até aquela época, possuiu um conhecimento da natureza maior do que o de Aristóteles?

Nas primeiras décadas do século XII, após La Reconquista ter expulsado os muçulmanos de grandes porções do território espanhol e as devolvido ao domínio católico, o arcebispo Raimundo I de Toledo apoiou o trabalho de tradução para o latim, empreendido por eruditos cristãos, muçulmanos e judeus de obras-primas gregas anteriormente perdidas, incluindo as de Aristóteles. E o conhecimento dessas obras-primas – sobretudo as de Aristóteles – inspirou, e em alguns casos inflamou, os principais pensadores do período com uma paixão ainda maior pelas verdades da natureza.

Resumindo, os europeus ocidentais redescobriram as obras de Aristóteles quando eles estavam desesperadamente ansiosos pela sabedoria e pelos métodos cognitivos contidos nestas obras. Não é nenhum exagero afirmar que quando o método aristotélico de racionalidade baseada na observação, em sintonia com suas incontáveis intuições e teorias específicas, prevaleceu culturalmente, grandes progressos aconteceram; quando ausente ou reprimido, nada se observou além de eras miseravelmente obscuras.

Entretanto, numa inversão estarrecedora desta verdade, Stark afirma que o compromisso ocidental com a razão e a ciência foi uma função do Cristianismo medieval e de Santo Agostinho – e que Aristóteles e os gregos foram obstáculos. Por exemplo, ele escreve que “Santo Agostinho raciocinou que a astrologia é falsa porque acreditar que o destino de alguém se encontra predestinado está em contradição com o dom divino do livre-arbítrio.” Baseado em tal “raciocínio” (isto é, em tal dedução racionalista a partir de uma premissa não-observacional, baseada na fé), Stark afirma que a ciência ocupou uma posição de destaque na Europa medieval.[40]

Stark, supostamente um adepto e defensor da lógica, dá muito pouco ou nenhum crédito a Aristóteles pela revolucionária criação de praticamente todo o campo da lógica. Stark tampouco faz qualquer referência às superlativas realizações científicas de Aristóteles, Arquimedes, Hipócrates e outros semelhantes. Em vez disso, ele faz afirmações como “Os elementos anticientíficos do pensamento grego combatidos com êxito por Santo Agostinho…” e “Foi em oposição explícita a Aristóteles e outros autores clássicos que os escolásticos avançaram rumo à ciência.[41]

Stark declara que os gregos foram não-científicos (até mesmo anticientíficos), porque “seu empirismo foi completamente ateórico, e sua teorização foi não-empírica”. Ele afirma que Aristóteles não permitia que os fatos restringissem sua teorização. Em Sobre os Céus, o filósofo grego ensinou que a velocidade com que os objetos caíam em direção ao solo era diretamente proporcional a seu peso; que uma pedra de dois quilos, por exemplo, cairia duas vezes mais rápido do que uma de um. Starl observa sarcasticamente que “uma visita a qualquer penhasco nas vizinhanças lhe teria permitido falsear esta proposição.[42]

Pode-se responder com um sarcasmo similar a Stark que uma visita às bibliotecas Moody/Jones no campus da University Baylor lhe teria permitido consultar as Obras Completas de Aristóteles e encontrar dados suficientes para refutar a sua própria teoria. Uma das razões é que Sobre os Céus é provavelmente uma obra da juventude de Aristóteles, quando ele ainda se encontrava sob grande influência de Platão e, consequentemente, mais transcendente, menos empírico e menos científico em seu pensamento. Apesar dos especialistas correntes em Aristóteles em geral rejeitarem diversas afirmações de Werner Jaeger, um dos principais especialistas em Aristóteles do século XX, eles em geral conservam sua ideia de que O Filósofo evoluiu a partir de um modo de pensamento originalmente platônico, quase religioso, para o grande filósofo cientista/naturalista de sua maturidade.

Mesmo assim, em Sobre os Céus Aristóteles critica diversas vezes seus predecessores, incluindo Platão, exatamente por suas teorias racionalistas e não-empíricas – e insiste que um raciocínio teórico sempre esteja em consonância com a observação sensorial. Ele diz, por exemplo: “A razão [pela qual seus predecessores erraram] é que seus princípios últimos são assumidos erroneamente; eles tinham certas visões predeterminadas, e estavam decididos a alinhar tudo em concordância com estas visões… como se alguns princípios não exigissem ser julgados por seus resultados, e particularmente a partir de sua conclusão última. E essa conclusão… no conhecimento da natureza é o fenômeno sempre e apropriadamente dado à percepção.[43]

Mais fundamentalmente, a obra inovadora de Aristóteles na biologia é suficiente para refutar a tese geral de Stark. Pois Aristóteles foi, por um lado, um observador cuidadoso e incisivo dos fatos biológicos. Sir David Ross, o eminente estudioso anglófono de Aristóteles no séxulo XX, assinala a título de exemplificação que Aristóteles “reconheceu… a natureza mamífera dos cetáceos – um fato negligenciado por todos os outros escritores até o século XVI.[44] De maneira similar, David Lindberg, um dos principais especialistas contemporâneos em história da ciência, escreve que Aristóteles “descreveu a placenta do ‘dogfish’ (uma espécie de tubarão)… em termos que não foram confirmados até o século XIX.” Aristóteles não somente superou os filósofos anteriores em sua devoção aos fatos observáveis concernentes às espécis animais – ele também foi “o primeiro a enfrentar o problema de sua classificação.” Ele discutiu mais de 500 espécies em sua História dos Animais; “a morfologia e o comportamento de vários são descritos num grau de detalhamento considerável, muitas vezes a partir de habilidosas dissecações.”[45]

Acima de tudo, porém, Aristóteles procurou explicar as causas dos animais serem como são. Ele não se contentou em meramente observar, dissecar e descrever as partes e o funcionamento dos animais; ele se empenhou arduamente para identificar os princípios primeiros que explanavam as razões pelas quais eles são o que são. Allan Gotthelf, professor do Departamento de História e Filosofia da Ciência na Universidade de Pittsburgh, e um dos maiores especialistas contemporâneos na de Aristóteles, expressa nas seguintes palavras este ponto:

Por qualquer critério razoável que identifique um empreendimento científico – o objetivo de entender o que as coisas são e por que elas são como são, de alcançar esse entendimento pela descoberta de causas, de buscar essas causas através de um exame cuidadoso e sistemático de todo o espectro de dados relevantes, de basear as próprias conclusões somente na avaliação racional das evidências, e de organiza-las num todo sistemático, um conjunto de teorias com amplo poder explanatório remontando aos primeiros princípios… Aristóteles foi um grande cientistas, e um dos maiores.[46]

Não é sem razão que, ao cabo de dois milênios mais tarde, ninguém menos do que o biólogo Charles Darwin poderia dizer: “Lineu e Cuvier tem sido minhas duas divindades, embora de maneiras muito diferentes, mas eles não passam de colegiais quando comparados ao velho Aristóteles.[47] Numa veia similar, Ernst Mayr, um dos mais destacados biólogos do século XX, escreveu:

Ninguém antes de Darwin deu uma contribuição maior para nossa compreensão do mundo vivo do que Aristóteles… A característica mais notável de Aristóteles foi sua procura por causas. Ele não se satisfez meramente com levantar questões do tipo ‘como’, mas foi fabulosamente moderno ao levantar também questões do tipo ‘por quê’. Por que um organismo cresce a partir de um ovo fertilizado até a forma adulta perfeita?…[48]

Stark poderia ter averiguado com facilidade que, atualmente, na aurora do século XXI, Aristóteles é apropriada e universalmente reconhecido como um dos biólogos seminais da história – um pensador que, nas palavras de Lindberg, “contribuiu monumentalmente para o progresso das ciências biológicas.” Se um estudioso contemporâneo deseja difamar as realizações científicas de Aristóteles, ele deveria pelo menos se familiarizar com as fontes relevantes. Por exemplo, Stark poderia (e deveria) ler a obra prontamente acessível de Jonathan Barnes que, em meio ao debate sobre as realizações de Aristóteles na zoologia e na botânica, observou que “seus [de Aristóteles] estudos sobre os animais lançaram as bases para as ciências biológicas; e eles não foram superados por mais de dois mil anos após sua morte.[49]

De uma maneira geral, a visão de Stark de que a ciência assenta-se sobre um arcabouço teórico de Santo Agostinho e da teologia cristã, e que seu progresso foi obstruído por Aristóteles e os gregos, constitui uma fantástica barafúndia de erros. Que a ciência não é e não pode ser baseada nas deduções racionalistas baseadas na fé da religião já foi estabelecido. A natureza falaciosa da tentativa de Stark de desvincular a ciência de suas raízes no pensamento grego, sobretudo aristotélico, foi igualmente desmascarada.

Os escolásticos, os pensadores do período final da Idade Média, a partir do século XIII, eram cristãos aristotélicos. Para o mérito perene de vários intelectuais católicos do período, eles foram fascinados pelo que “O Filósofo” escrevera. Suas obras foram estudadas avidamente durante a renascença medieval desta época. Para o benefício do mundo contemporâneo, os escolásticos efetivamente, ao menos de início, “moveram-se em direção à ciência”. Alberto Magno e Tomás de Aquino foram de uma importância decisiva a este respeito. Mas foi o elemento aristotélico do amálgama – seu naturalismo, seu secularismo, sua racionalidade baseada na observação – o responsável pelo novo surto de interesse na natureza.

Os escolásticos, contudo, também foram cristãos aristotélicos carregando um fardo de séculos de fidelidade à metodologia cristã; eles transformaram as obras de Aristóteles em textos normativos, como se fossem baseados na fé ou em dogmas racionalistas. Consequentemente, estes cristãos aristotélicos opuseram-se aos princípios da ciência moderna. Mas foi o elemento cristão do amálgama que se evitou as descobertas empíricas inéditas, agarrando-se às conclusões específicas de Aristóteles do mesmo modo como se agarravam à crença em que uma sarça ardente falou ou que um virgem deu à luz. Em termos das respectivas epistemologias envolvidas, foi o elemento cristão que se apoiou pesadamente sobre a autoridade – em geral recusando-se a desafiar tanto as Escrituras como as obras dos Pais da Igreja.

Observem, por exemplo, o veredicto imposto a Galileu pela Inquisição Papal, que o condenou porque ele “sustentou e acreditou numa doutrina falsa e contrária à Santa Escritura.” A Inquisição puniu Galileu por acreditar que “alguém pode manter e defender… uma opinião após ela ter sido declarada e definida contrária à Santa Escritura.” Esta última foi, do ponto de vista da Inquisição, a mais sombria transgressão de Galileu. O método de Aristóteles, por outro lado, era orientado pela realidade, não baseado num texto – dirigido pela observação e pelos fatos, não centrado na fé em autoridades – e consequentemente não hesitou em desafiar as autoridades anteriores, incluindo seu respeitado mentor, Platão.[50]

A verdade é que os escolásticos não se moveram em direção à ciência em oposição a Aristóteles, como Stark alega. Antes, eles impediram a ciência apesar de Aristóteles. Eles opuseram-se a Galileu da mesma maneira – e utilizando o mesmo método – como, séculos mais tarde, os fundamentalistas opuseram-se a Darwin. Como Galileu – embora aprisionado numa batalha cultural fatal com tais mentalidades – acuradamente divisou: o próprio Aristóteles, com seu respeito capital pelas evidências, jamais teria rejeitado as descobertas observacionais reveladas pelo telescópio. Mas os escolásticos do século XVII, atando os conteúdos aristotélicos aos grilhões mortais de um método cristão, rejeitariam e de fato rejeitaram aquelas descobertas.[51]

É difícil imaginar um livro mais profundamente equivocado sobre tantos campos da investigação intelectual do que o livro de Stark A Vitória da Razão. Além de sua identificação – compartilhada por outros, sobretudo Ayn Rand – de que o compromisso com a razão foi a causa fundamental das realizações ocidentais, cada uma das principais teses do livro é flagrantemente equivocada. Diante da possibilidade desse livro se tornar culturalmente influente, ou de o mundo ocidental ser palco de uma duradoura renascença religiosa, a única resposta racional é: Deus nos livre!

[A série completa encontra-se disponível para download em formato pdf aqui.]

Notas.

33. Aristotle, Metafísica,tradução de Richard Hope (Ann Arbor: University of Michigan Press, 1975), book I, pp. 3–6; Analíticos Posteriores, tradução de G. R. G. Mure in The Basic Works of Aristotle, editado por Richard McKeon (New York: Random House, 1941), book II, pp. 184–186; Nicomachean Ethics, editado por Richard McKeon, pp. 935–1112; W. T. Jones, A History of Western Philosophy, vol.1, The Classical Mind (New York: Harcourt, Brace and World, Inc., 1969), pp. 214–311. Sir David Ross, Aristotle (New York: Routledge, 1995), pp. 1–16, 161–239. John Herman Randall, Aristotle (New York: Columbia University Press, 1960), pp. 27–28, 107–144.

34. John Herman Randall, Aristotle (New York: Columbia University Press, 1960), p. 1. Jonathan Barnes, Aristotle (Oxford: Oxford University Press, 1982), p. 1. Richard Tarnas, The Passion of the Western Mind (New York: Ballantine Books, 1991), pp. 55–68.

35. History of Animals, tradução de D. W. Thompson in The Works of Aristotle, editado por J. A. Smith e W. D. Ross (Oxford: Oxford University Press, 1910–1952, vol. IV (1910), 561a3. Citado em W. T. Jones, A History of Western Philosophy, vol. 1, The Classical Mind (New York: Harcourt, Brace and World, 1969), pp. 233–235.

36. William Wallace, “Foreword,” Albertus Magnus On Animals: A Medieval Summa Zoologica, traduzido e anotado por K. F. Kitchell and I.M. Resnick, 2 vols. (Baltimore.: Johns Hopkins University Press, 1999), vol. 1, pp. xvi–xx; and, sobre a produção científica de Alberto, pp. 18–42. Veja também os três volumes obrigatórios do estudo sobre a história da ciência de A. C. Crombie, Styles of Scientific Thinking (London: Duckworth, 1994), vol. 2, pp. 1259–61 and 1503, note 53.

37. W. T. Jones, A History of Western Philosophy, vol. 2, The Medieval Mind, p. 141.

38. Ibid., p. 166.

39. Richard Rubenstein, Aristotle’s Children, passim. Charles Homer Haskins, The Renaissance of the 12th Century (New York: Meridian Books, 1970), pp. 278–365.

40. Rodney Stark, The Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and Western Success (New York: Random House, 2005), p. 6.

41. Ibid., pp. 21–22.

42. Ibid., pp. 13–14, 17–20.

43. Aristotle, On the Heavens, tradução de J. L. Stocks, The Complete Works of Aristotle: The Revised Oxford Translation, 2 vols., editado por Jonathan Barnes (Princeton: Princeton University Press, 1984), 306a 7–17. Werner Jaeger, Aristotle (Oxford: Oxford University Press, 1934), passim. John Herman Randall, Aristotle (New York: Columbia University Press, 1960), pp. 20–22, 28–30.

44. Sir David Ross, Aristotle (New York: Routledge, 1995), p. 118.

45. David Lindberg, The Beginnings of Western Science (Chicago: University of Chicago Press, 1992), p. 63.

46. Allan Gotthelf, “Aristotle as Scientist: A Proper Verdict,” em seu Teleology, First Principles, and Substance: Essays on Aristotle’s Biology, Oxford: Oxford University Press, 2007). David Lindberg, The Beginnings of Western Science (Chicago: University of Chicago Press, 1992), pp. 62-68.

47. Allan Gotthelf, “Darwin on Aristotle,” Journal of the History of Biology, 1999, pp. 3–30.

48 Ernst Mayr, The Growth of Biological Thought (Cambridge: Harvard University Press, 1982), pp. 87–90. Sir David Ross, Aristotle (New York: Routledge, 1995), pp. XIV, 117–131. John Herman Randall, Aristotle (New York: Columbia University Press, 1960), pp. 145–148, 165–167, 219–242.

49. David Lindberg, The Beginnings of Western Science (Chicago: University of Chicago Press, 1992), pp. 62–68. Jonathan Barnes, Aristotle (Oxford: Oxford University Press, 1982), pp. 8–13.

50. Citado em Edward Grant, God and Reason in the Middle Ages (Cambridge: Cambridge University Press, 2001), pp. 306–307.

51. Galileo Galilei, Dialogue Concerning the Two Chief World Systems—Ptolemaic and Copernican, tradução de Stillman Drake (Berkeley: University of California Press, 1967), pp. 110–111. Edward Grant, God and Reason in the Middle Ages (Cambridge: Cambridge University Press, 2001), pp. 304–312. Richard Rubenstein, Aristotle’s Children: How Christians, Muslims and Jews Rediscovered Ancient Wisdom and Illuminated the Middle Ages (New York: Harcourt, Inc., 2003), pp. 6–11.

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O texto a seguir é continuação de A Tragédia Da Teologia: Como A Religião Causou E Prolongou A Idade Das Trevas – Parte 2: A Igreja Contra A Razão

por Andrew Bernstein

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Eis a tragédia da teologia em sua essência destilada: o emprego do gênio, do intelecto humano de alta potência, da dedução lógica profundamente rigorosa – ao estudo de nada. Durante a Idade Média, as grandes mentes com o potencial para transformar o mundo não estudaram o mundo; e assim, por quase um milênio, enquanto os seres humanos gritavam em agonia – cambaleando de fome, devorados pela lepra e pela peste, morrendo em massa no auge de seus vintes anos – os homens de espírito, que poderiam ter providenciado sua salvação terrena, os abandonaram em troca de fantasias transcendentes.

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O erro fundamental da explicação de Stark, a concepção errônea que subjaz à e origina sua interpretação equivocada da história, é sua compreensão equivocada da natureza da razão. Stark sustenta que o Catolicismo é intrinsecamente racional, e, portanto plenamente capaz de produzir um progresso tecnológico e científico significativo. Com efeito, sua visão é: como a Idade Média foi uma fonte de pensamento racional, ela deve ter sido um caldeirão borbulhante de progresso científico – e, consequentemente, afirmações de uma “Idade das Trevas” não seriam nada além de mitologia preconceituosa disseminada pelos inimigos culturais da religião.

No capítulo mais importante de seu livro, “As Bençãos de Uma Teologia Racional”, ele afirma que “os teólogos medievais depositaram na razão uma fé muitíssimo superior à que a maioria dos filósofos está disposta atualmente”. Foi a tentativa cristã de compreender a natureza de Deus que abriu “o precedente para uma teologia da dedução e da inferência…” As bases para o compromisso ocidental com a razão foi estabelecido porque “desde seus primórdios os teólogos do Cristianismo assumiram que a aplicação da razão pode produzir um entendimento cada vez mais preciso da vontade de Deus.[26]

Para compreender o profundo erro cometido aqui, e compreender a verdadeira natureza da razão, devemos remeter aos fundamentos da filosofia.

A filosofia busca responder a cinco questões principais: Qual é a natureza da realidade? Como – por quais meios – os homens obtêm conhecimento dela? Qual é a natureza do homem? O que é o bem – e o que é o mal? Qual é a sociedade ideal? A religião, como uma espécie particular de filosofia, é uma tentativa de responder a estas questões.

No que tange à realidade, a essência da religião é a crença no dualismo metafísico – ou seja, em dois mundos: o universo natural e um outro mundo mais importante além dele, transcendente. Como não existe nenhum meio de acesso baseado na observação a um mundo “mais elevado”, segue-se que, em relação a conhecimentos importantes, a fé nas verdades infalíveis de um texto revelado fornece a base da cognição. A famosa máxima de Santo Agostinho de que a crença é o fundamento necessário do conhecimento é representativa da abordagem religiosa. Um estudioso escreve: “Em sua maturidade, Santo Agostinho utiliza sua razão sobretudo para compreender aquilo em que já acreditava.[27] O home é um bípede metafísico: sua alma pertence ao domínio transcendente e seu corpo a este. Uma criatura caída manchada pelo pecado de seus ancestrais, sua carne terrena é propensa à luxúria e à tentação, às quais sua alma transcendente deve resistir piamente. O bem é colocar Deus no mais alto posto de seu panteão de valores, e obedecer cegamente a todos os seus mandamentos; o mal é desobedecer. Uma sociedade adequada é teocrática – baseada nos mandamentos divinos conforme interpretados por uma elite de espiritualmente iniciados: o clero.

A religião, como uma tentativa de responder a todas as questões filosóficas importantes da vida humana, é uma espécie de filosofia, gênero ao qual pertence. A religião é um sistema filosófico baseado na fé, não baseado na razão. A religião pode ser (grosseiramente) definida como um sistema filosófico baseado na fé, não na razão, defendendo a existência e a supremacia de um Deus transcendente que exige a obediência incondicional dos indivíduos humanos pecaminosos por Ele criados e governados. A religião foi o arcabouço filosófico dominante, melhor dizendo, exclusivo, que vigorou no primeiro período da Idade Média, do século VI ao século XII aproximadamente.

Santo Agostinho (354-430) foi a principal influência e porta-voz intelectual do período. Sua filosofia, embora complexa em alguns aspectos, é, em termos essenciais, bastante simples: o conhecimento requer a aceitação da autoridade – Deus em primeiro lugar, a Igreja em seguida. A razão é, na melhor das hipóteses, uma faculdade suplementar, talvez capaz de explicar o que é previamente acreditado, talvez não. Apenas Adão possuiu livre-arbítrio. Seus descendentes são grotesca e irremediavelmente pecaminosos, incapazes de salvar a si próprios; todos merecem, e a maioria receberá, apenas a danação; apenas um seleto grupo será salvo por um rígido processo de predestinação. O pecado é transmitido pelo intercurso sexual, que é maligno e deve ser evitado exceto para propósitos procriativos – e mesmo então, não deve ser desfrutado. Embora a criação de Deus seja intrinsecamente ordenada de acordo com leis, milagres – violações das leis da natureza – ocorrem repetidamente; numerosos homens foram levantados dos mortos, por exemplo. O orgulho é um pecado mortal, sobretudo o orgulho intelectual – o comprometimento com o uso das próprias capacidades racionais para bisbilhotar os mistérios do universo criado e mantido por Deus. Os pensadores gregos foram condenados por seus “esforços para descobrir as leis secretas da natureza”. A ciência foi condenada como a “luxúria dos olhos”.[28]

Um sistema filosófico como esse está em conflito profundo com as bases intelectuais da ciência. Uma condição de possibilidade para a ciência é a visão de que a natureza é fascinante, importante, de um valor supremo – uma convicção logicamente congruente com o entendimento secular da natureza como a realidade. Esta visão é incompatível com a crença cristã de que este mundo é corrupto e deficiente, ao passo que o ideal encontra-se além do alcance da compreensão do homem terreno. A ciência começa com observações dos fatos, não com pronunciamentos infalíveis de um texto revelado. Além disso, a ciência (sobretudo seus ramos aplicados e tecnológicos) apoia-se na premissa de que os seres racionais são (ao menos potencialmente) bons, que a vida do homem sobre a terra é valiosa, que o conhecimento é tanto alcançável como desejável, e que os homens são merecedores de padrões de vida elevados. A ideia de que o homem deveria buscar o desenvolvimento científico é incompatível com a hipótese de que os homens são criaturas, segundo a eloquência de Santo Agostinho, “repulsivas… deformadas… sórdidas… maculadas… e ulcerosas”, inexoravelmente (e compreensivelmente) condenadas à perdição por uma divindade ultrajada.[29] Stark convenientemente ignora estes pontos.

Por que a Igreja medieval perseguiu os livre-pensadores que ousaram desafiar a ortodoxia? Porque, como um exemplo histórico perfeito de religião em estado puro, ela foi necessariamente uma instituição de puro autoritarismo. Ela concebia a si própria como o intermediário entre Deus e o homem desesperadamente caído, que não poderia aspirar à ascensão sem sua intercessão. Sua ortodoxia era literalmente a palavra de Deus; qualquer desvio era uma afronta ao representante de Deus sobre a Terra, portanto ao próprio Deus – e era, consequentemente, profundamente intolerável. Onde os homens não possuem nenhuma capacidade para melhorar seu quinhão terreno – muito menos salvarem-se a si próprios – e são completamente dependentes da Igreja de Deus, qualquer crítica a ela é um ataque à divindade e solapa a única instituição capaz de trazer aos homens a redenção. Tolerar a independência de pensamento, dada a essência desprezível dos homens, é tolerar a inevitável rebelião espiritual. Para que o homem seja salvo de sua natureza irremediavelmente pecaminosa, sua mente deve ser agrilhoada.

Santo Agostinho, filosoficamente um cristão neo-platonista, glorificou o núcleo da visão de mundo platônico-cristã: o dualismo metafísico, a supremacia de um mundo transcendente, a estatura reduzida deste, a ignóbil raiz da existência corpórea do homem. Tais fundamentos conduziram necessariamente à elevação da teologia (o estudo de Deus) como a disciplina cognitiva dominante, e a depreciação da ciência e da filosofia secular (o estudo da natureza e da vida terrena do homem).

Aqui reside a causa primordial da tragédia que a Idade Média representa – e do erro fundamental de Stark em atribuir à teologia cristã o compromisso com o pensamento racional. A razão é uma metodologia baseada na observação. Ela não começa com crenças já aceitas sobre bases preconceituosas, e então prossegue para “provar” sua veracidade. Seja estudando o homem, o funcionamento interno de sua mente, os germes, pedras, insetos, átomos, os limites do espaço intergaláctico, ou qualquer outra coisa mais, a razão prossegue a partir da observação sensorial por um método de pensamento lógico que incorpora a famosa Lei Da Não-Contradição de Aristóteles: nenhum existente pode ser tanto x e não-x ao mesmo tempo e no mesmo aspecto.

Mas não há, e nem pode haver, nenhuma experiência sensorial de uma dimensão além desta. Mais especificamente, não existem provas das quais inferir que a existência e as atividades dos corpos materiais resultam de uma causa imaterial. (Como poderia o espírito ou a consciência existir na ausência de um meio corpóreo, por exemplo, orgãos dos sentidos, um sistema nervoso e um cérebro? Como poderia tal fantasma desprovido de corpo criar, controlar ou afetar remotamente os seres corpóreos?) Teólogos e religionistas em geral começam com uma premissa fantasiosa e então vão adiante aplicando uma lógica formal rigorosa para descortinar suas implicações. O próprio Stark assinala que “a teologia consiste do raciocínio formal sobre Deus.” Isto é de uma exatidão admirável. Teólogos, começando com uma criação “conjurada” por suas próprias mentes, analisam as características dessa criação pela aplicação rigorosa dos princípios da lógica formal– ou seja, dedutiva.[30]

Mas o método da razão, adequadamente compreendido, é, enfaticamente, não o emprego da lógica formal para explicar as consequências implicadas por premissas arbitrárias. O raciocínio consiste, primeiro e acima de tudo, na observação e na indução a partir da observação. A lógica dedutiva fornece conhecimento somente quando aplicada a premissas radicadas, em última instância, em fatos observáveis.

Na história da filosofia, o termo ‘racionalismo’ possui dois significados distintos. Num sentido, ele significa um compromisso inviolável com o pensamento racional em oposição a qualquer rejeição irracionalista da mente. Neste sentido, Aristóteles e Ayn Rand são expoentes do racionalismo, contrários a qualquer forma de irrazão, incluindo a fé. Num sentido mais estreito, contudo, o racionalismo contrasta com o empirismo no que se refere à falsa dicotomia entre o compromisso com a assim chamada razão “pura” (isto é, a razão desvinculada da realidade perceptual) e uma confiança exclusiva na experiência dos sentidos (isto é, observações sem inferências subsequentes). O racionalismo, neste sentido, é um compromisso com a razão interpretado como dedução lógica a partir de pontos de partida não-observáveis, e uma desconfiança em relação à experiência sensorial (por exemplo, o método de Descartes). O empirismo, de acordo com esta falsa dicotomia, é uma crença em que a experiência dos sentidos fornece conhecimentos factuais, mas qualquer inferência além da observação não passa de manipulação de palavras ou símbolos verbais (por exemplo, a abordagem de Hume). Tanto Aristóteles como Ayn Rand rejeitam esta falsa dicotomia entre a razão e a experiência dos sentidos; nenhum deles é um racionalista neste sentido estreito.

A teologia é a mais pura expressão do racionalismo no sentido de aplicar a dedução lógica à premissas sem fundamentos em fatos observáveis – dedução sem referência à realidade. O assim chamado “raciocínio” envolvido aqui é puramente formal, infundado de uma perspectiva oservacional, desprovido de fatos, desvinculado da realidade. Tomás de Aquino, por exemplo, foi o mais destacado especialista de todos os tempos num campo conhecido como “angeologia”. Ninguém poderia rivalizar seu “conhecimento” sobre os anjos, e ele dedicou muito mais espaço em sua monumental Summa Theologica a eles do que às ciências naturais.

Eis a tragédia da teologia em sua essência destilada: o emprego do gênio, do intelecto humano de alta potência, da dedução lógica profundamente rigorosa – ao estudo de nada. Durante a Idade Média, as grandes mentes com o potencial para transformar o mundo não estudaram o mundo; e assim, por quase um milênio, enquanto os seres humanos gritavam em agonia – cambaleando de fome, devorados pela lepra e pela peste, morrendo em massa no auge de seus vintes anos – os homens de espírito, que poderiam ter providenciado sua salvação terrena, os abandonaram em troca de fantasias transcendentes. Mais uma vez, estes fatos filosóficos fundamentais reduzem a pó o argumento de Stark, e no entanto ele simplesmente os ignora.

A religião enquanto um campo de estudos é, em seus melhores momentos, racionalismo – dedução aplicada a premissas fantasiosas – não uma racionalidade genuína. (Em seus piores momentos, ela repudia até mesmo esta conexão tênue com a lógica em favor da adesão à fé autêntica.) O próprio Stark fornece um exemplo perfeito deste método falacioso. Embora seja amplamente conhecido pelos estudiosos que Jesus teve pelo menos um irmão, Tiago, um líder da igreja de Jerusalém após a morte de Cristo, Stark afirma, como um exemplo notável do “raciocínio” cristão, que “Tomás de Aquino analisou a doutrina do nascimento virginal de Cristo para deduzir que Maria não teve outros filhos.” Em outras palavras, a abordagem religiosa à “verdade” é ignorar os fatos se eles entram em conflito com deduções lógicas extraídas de premissas fidelistas bizarras. Portanto, mesmo um gênio monumental como Tomás de Aquino – um aristotélico, um pensador que mantinha um grande respeito pelos fatos e pela observação, e o maior filósofo cristão de todos os tempos – não ficou imune à infecção cognitiva pela metodologia religiosa.[31]

Pela própria natureza de sua metafísica, a religião é incapaz de promover, encorajar e defender a razão. A religião é compatível somente com deduções racionalistas extraídas de premissas baseadas na fé. E, na Idade Média, se as deduções de alguém colidissem com a ortodoxia, este corria o sério risco de ser punido por heresia. A religião e a racionalidade são antípodas primordiais. (Há um campo da religião natural que emprega a observação na tentativa de provar a existência de Deus; mas ela deriva sua crenças originais da fé, executa saltos gratuitos no mundo transcendente, é facilmente refutada pelos filósofos racionais e, consequentemente, sua validade é debatida acaloradamente mesmo pelos teólogos.)

A racionalidade inclui – na verdade, começa com – um respeito incondicional pelos fatos. Como Jones assinala, porém, a identificação dos fatos, de importância crucial para Aristóteles e os secularistas contemporâneos, foi considerada de pouco valor pelos homens do período medieval. Para eles, as exigências da salvação eram esmagadoramente mais importantes do que os fatos da natureza. “Em relação a coisas não concernentes à fé – sobre as propriedades das safiras ou sobre a cura para a lepra, por exemplo – não fazia muita diferença se se estava ou não errado.[32]

O maior filósofo da história, o homem cujo método incorporou a racionalidade baseada na observação acima de qualquer coisa, foi Aristóteles. Apesar de seus erros, as realizações extraordinárias de Aristóteles aumentaram significativamente nosso entendimento da natureza, nossos métodos para determinar suas propriedades, e, portanto, nossa capacidade de nos engajarmos na ciência. É impossível reconhecer a falsidade criminosa da alegação de Stark de que o Catolicismo medieval, e não a cultura grega, foi o maior responsável pelo compromisso ocidental com a razão sem levarmos em consideração a obra e a influência de Aristóteles.

A Tragédia Da Teologia: Como A Religião Causou E Prolongou A Idade Das Trevas – Conclusão: O Gênio De Aristóteles

Notas.

26. Rodney Stark, The Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and Western Success (New York: Random House, 2005), pp. 8–9.

27. Adrian Hastings, “Reason,” The Oxford Companion to Christian Thought (Oxford: Oxford University Press, 2000). Citado em Charles Freeman, The Closing of the Western Mind: The Rise of Faith and the Fall of Reason (New York: Vintage Books, 2005), pp. 286–287.

28. W. T. Jones, A History of Western Philosophy, vol. 2, The Medieval Mind (New York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1969), pp. 72–138.

29. Santo Agostinho, Confessions, tradução de J. G. Pilkington (Liveright, NY, 1943), VIII, pp. vii, 16. Citado em W. T. Jones, A History of Western Philosophy, vol. 2, The Medieval Mind (New York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1969), p. 106.

30. Rodney Stark, The Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and Western Success (New York: Random House, 2005), p. 5.

31. Ibid., p.6. L. Michael White, From Jesus to Christianity (San Francisco: HarperSanFrancisco, 2004), pp. 149, 219, 229–230, 277.

32. W. T. Jones, A History of Western Philosophy, vol. 2, The Medieval Mind (New York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1969), pp. 169–170.

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O texto a seguir é continuação de A Tragédia Da Teologia: Como A Religião Causou E Prolongou A Idade Das Trevas – Parte 1: História Econômica E Social da Idade Média

por Andrew Bernstein

Há dois princípios que se deve ter em mente a fim de compreender os erros de Stark; ambos os princípios foram identificados por Ayn Rand. O primeiro é que a mente racional é uma ferramente básica para a sobrevivência e o progresso do homem. O segundo é que seu funcionamento adequado requer liberdade; ela deve estar completamente desacorrentada, livre para percorrer qualquer trilha de pensamento ou pesquisa que julgue importante.

O Iluminismo setecentista, e os princípios por ele herdados da Renascença e a Idade da Razão, originiram a Revolução Americana, e aumentaram vastamente a liberdade política e econômica por todo o mundo ocidental. Não se deve esquecer que os revolucionários que criaram a República Americana foram, em vários casos, os maiores expoentes do Iluminismo Americano: Benjamin Franklin, Thomas Jefferson, Thomas Paine, James Madison. Um dos resultados de tal liberdade vastamente ampliada foi o extraordinário progresso intelectual, sobretudo nas ciências teóricas e aplicadas, na industrialização e no desenvolvimento tecnológico, e na pesquisa médica – todos os quais produziram uma elevação nos padrões e nas expectativas de vida inigualada por qualquer outro período histórico anterior. Quando os Isaacs Newtons, os Charles Darwins, os Thomas Edisons, as Ayn Rands e os Jonas Salks não precisam se curvar perante autoridades polítcas ou religiosas, e não podem ser legalmente reprimidos pela Igreja ou pelo Estado, eles ficam livres para criar novas idéias, invenções e inovações que melhoram em larga escala a vida do homem sobre a terra. Tal liberdade existiu durante a Idade Média? Se a mente não era livre – se seu trabalho foi inteiramente ou em grande parte sufocado – então se deve esperar uma era de estagnação, até mesmo de retrocesso. Se a mente foi, de fato, substancialmente reprimida durante esta época, qual foi o papel desempenhado pela Igreja em tal repressão?[14]

Por uma questão de justiça para com a Igreja medieval, alguns pontos devem ser deixados bem claros de início. Primeiro, houve grandes pensadores durante este período – Alberto Magno e Tomás de Aquino são os dois exemplos mais notórios. Segundo, estes pensadores foram todos católicos devotos; na verdade, geralmente membros do clero católico. Terceiro, a posição oficial de diversos papas e oficiais do alto escalão da Igreja era, nas circunstâncias em questão, a de encorajar a educação e o progresso intelectual (apesar das intermináveis qualificações e restrições). Quarto, como amplamente divulgado, os monastérios católicos foram, na época, vetores da sabedoria clássica, na medida em que os monges laboriosamente preservaram e copiaram os poucos manuscritos antigos sobreviventes. Quinto, embora os hereges e outros livre-pensadores fossem continua e sistematicamente reprimidos, deve ser observado que um herético condenado poderia, em todos os casos, salvar sua vida até o último momento ao abjurar de suas crenças ilícitas. Isto de maneira alguma isenta a Igreja medieval de censuras; não obstante, não deixa de ser verdade que a Igreja não foi uma instituição assassina nos mesmos moldes que os regimes instalados pelos nazistas ou pelos comunistas.

Além disso, embora a Igreja tenha sido um componente integral do ancien regime – o sistema feudal que reprimiu brutalmente os servos e plebeus – sendo generoso, pode-se defender que, nos séculos caóticos que se seguiram ao colapso de Roma, os chefes guerreiros tribais que conquistaram o poder e se declararam aristocratas exerciam uma forma primitiva de poder baseado na violência dificilmente atenuado por uma instituição fundada teoricamente para salvar as almas. Em outras palavras, é pelo menos possível que a responsabilidade pelo interminável estado sangrento de guerra e pela repressão brutal dos servos e plebeus não repouse primariamente sobre os ombros da Igreja.

Não obstante, as instituições, como os indivíduos, são muitas vezes uma combinação de qualidades boas e ruins. Apesar de tal apologia, e nos termos mais generosos imagináveis, a Igreja Católica foi, e continua sendo, uma força de malignidade incalculável. A explicação começa com a natureza da ortodoxia e sua hostilidade generalizada contra a heresia. A ortodoxia, neste contexto, significa o estabelecimento de uma doutrina oficial baseada na fé e a exigência, sob pena de excomunhão ou até mesmo de morte, de resignação acrítica a ela. A nona edição do Webster’s Collegiate Dictionary define “heresia” como: “adesão a uma opinião religiosa contrária ao dogma da igreja”. Com efeito, um herege é um membro de uma denominação religiosa que discorda de (ou pelo menos questiona) algum aspecto da doutrina dessa denominação. Resumindo, um herege não passa de um espírito independente cujo livre-pensamento o coloca em rota de colisão com a seita religiosa dominante.

Ao longo de literalmente séculos de disputas teológicas, a Igreja impôs ferreamente sua posição oficial em relação a centenas de controvérsias religiosas – incluindo aquelas envolvendo a doutrina da Trindade, da Eucaristia, o problema do mal, e inúmeros outros. Previsivelmente, dada a impossibilidade lógica de provar qualquer alegação transcendente baseada na fé, houve discordâncias intelectuais intermináveis com as conclusões oficiais. Vários dos que rejeitaram os postulados ortodoxos foram condenados como hereges. Como é a história da interação da Igreja com aqueles pensadores católicos independentes o bastante para contestar algum aspecto de sua doutrina oficial? Não é nem um pouco atraente.

Considere os diversos exemplos que indicam a essência e a extensão da repressão. A heresia ariana é um bom ponto de partida. Ário (256-336 d.C.), um presbítero da Igreja em Alexandria, a fim de proteger o monoteísmo, ensinou que Cristo não é perfeito e eterno como Deus Pai, mas que na verdade foi criado do nada por Deus. Resumindo, se o monoteísmo fosse verdadeiro, como Ário sem dúvida alguma afirmara, então Jesus não poderia ser Deus. Nas palavras de Jones: “Ele [Jesus] deve ter sua própria natureza e uma essência distinta da de Deus”.[15] O conflito entre os arianos e os partidários da Trindade – a crença em que Jesus é Deus, mas distinto de Deus Pai, mas que mesmo assim Deus é único – foi uma batalha cruel. O Imperador Constantino convocou o Concílio de Niceia, uma conferência dos bispos da Igreja em 325, para arbitrar a disputa; ela aderiu ao ponto de vista trinitarista e condenou a teoria de Ário. Os arianos recusaram-se a aceitar a derrota teológica e, por fim, centenas foram massacrados na batalha centenária que sucedeu.

Filosoficamente, Ário foi um descendente epistemológico distante dos proponentes gregos da racionalidade, buscando compreender o universo logicamente, incluindo a natureza de Jesus e de Deus Pai. Mas aqueles defendendo e transformando em ortodoxia a doutrina da Trindade promoviam a noção baseada na fé de que a crença cristã não precisava ser racionalmente inteligível. Por conseguinte, “a controvérsia ariana enfatiza diferenças importantes no método e na abordagem, assim como na perspectiva básica, entre a mentalidade grega e a cristã… A solução que venceu e se tornou ortodoxa foi um sinal de que, para o bem ou para o mal, a Igreja atribuíra à razão um posto subordinado no esquema das coisas.[16]

No mesmo século, a heresia donatista – a crença em que os sacramentos da Igreja são ineficazes se ministrados por sacerdotes moralmente indignos – foi implacavelmente exterminada. “Os donatistas foram proscritos [pela Igreja]; vários foram exilados; vários outros foram mortos ou cometeram suicídio.” Santo Agostinho (354-430), que relutantemente apoiou a perseguição, manteve que seu resultado líquido foi humano, já que em várias ocasiões arrancou homens das trevas da ignorância para “o Deus vivo e verdadeiro”. Jones observa: “Desta maneira, foram assentados os fundamentos e fornecida a autoridade para a instituição da Inquisição – para a cooperação entre a Igreja e o Estado na sagrada tarefa de extirpar as heresias e as dissidências e salvar as almas contra suas vontades.[17]

A heresia maniqueísta, que tem resistido tenazmente por milênios a todas as tentativas de eliminação, é uma tentativa de resolver o implacável problema do mal: como pode o mal existir num universo criado e governado por um Deus onipotente e onibenevolente? A crença maniqueísta, plausível sob premissas religiosas, é que Deus é onibenevolente mas não onipotente. Deus, na verdade, é uma versão turbinada do Batman: ele combate o mal implacável e efetivamente, mas o mal exerce um poder inegável no mundo.

Embora o maniqueísmo tenha sido suprimido pela Igreja no século V, ele ressurgiu numa forma bastante difundida durante os séculos XII e XIII. A heresia cátara ou albigense, como foi conhecida durante esta revivescência específica, foi exterminada numa guerra sangrenta comandada pelo papa Inocente III em 1208. O exército de caçadores de hereges do papa assaltou a cidade de Beziers em 1209. Tanto os católicos leais como os cátaros da cidade se refugiaram nas igrejas: os invasores irromperam e massacraram todos – homens, mulheres, crianças, recém-nascidos, inválidos, sacerdotes. Segundo uma história possivelmente apócrifa, o emissário papal, Arnald-Amalric, quando lhe comunicaram que vários católicos sinceros residiam na cidade, respondeu: “Mate-os todos. Deus reconhecerá os seus.” Não há dúvidas de que ele escreveu exultante para o papa após o massacre, proclamando que “aproximadamente 20 000 cidadãos foram mortos, independentemente de sua idade ou sexo. As obras da vingança divina são magníficas.”[18] A seita claudicou em números enormemente reduzidos até o século seguinte; os últimos cátaros foram queimados na Itália em 1330.

As obras cátaras foram queimadas, a ortodoxia triunfou e a Inquisição Papal foi estabelecida em 1227. “A Igreja e o Estado concordaram que a heresia impenitente era traição, e deveria ser punida com a morte.”[19] Estes foram os penosos resultados  da cruzada contra a heresia albigense. Não sarcasticamente, mas com a maior seriedade possível, os críticos de Stark deveriam perguntar-lhe: é a isto que você se refere quando afirma que a Igreja medieval promoveu a razão?

Tampouco a proscrição de hereges restringiu-se aos que desafiaram pilares específicos da fé. Todos os pensadores originais viveram sob a ameaça de condenação. Por exemplo, de Boécio no sexto século a Abelardo no século XII – um período de 600 anos – houve apenas um pensador original na filosofia: John Scotus Erigena (810-877). Naturalmente, várias de suas conclusões foram condenadas em 855 – e as cópias de um de seus livros foram queimadas com tanto êxito que nenhum exemplar sobreviveu às chamas.

Pedro Abelardo (1079-1142), o mais brilhante espírito europeu em séculos, foi acossado por décadas pelos cães de guarda oficiais do dogma católico. Em 1121, um conselho da Igreja condenou as obras de Abelardo sobre a Trindade e o obrigou a arremessar seu livro numa fogueira. Em 1141, dezesseis proposições de seus livros, incluindo sua definição de pecado, foram condenadas. Não muito depois, o papa Inocente II impôs-lhe uma sentença de silêncio perpétuo, confinando- o num monastério. Abelardo, um mestre da lógica aristotélica, enfureceu as autoridades da Igreja com sua recusa em excluir qualquer preceito de fé da análise racional. “Mais do que qualquer heresia específica, o que incomodou a Igreja em Abelardo foi sua pressuposição de que não havia mistérios na fé, que todos os dogmas deveriam ser racionalmente explicáveis.[20]

Um dos contemporâneos de Abelardo, William de Conches (1080-1154), atraiu a previsível fúria da Igreja ao condenar os que atacaram a filosofia e a ciência apoiando-se na suficiência da fé sincera. O estudioso rebelde logo decidiu que a resignação era preferível à excomunhão. William “retratou-se por suas heresias… abandonou a filosofia como um empreendimento cujo lucro potencial não compensava o risco; tornou-se o tutor de Henrique Plantageneta da Inglaterra, e retirou-se da história.” Nos termos do romance de Ayn Rand A Revolta de Atlas, William de Conches entrou em greve.

Jean Roscelin (1050-1120), um dos professores de Abelardo, foi ameaçado de excomunhão por desafiar a Trindade ao ensinar que três não pode ser um. Ele foi arrastado até um conselho episcopal em 1092 e confrontado com uma escolha difícil: retratação ou excomunhão. Ele preferiu retratar-se.

Até mesmo Tomás de Aquino (1225-1274), o maior gênio filosófico desde Aristóteles, não escapou da vigilância repressiva da Igreja. Na condenação de 1277, apenas três anos após a morte deste grande homem, o bispo de Paris, Étienne Tempier, baniu como heréticas 219 proposições ensinadas na Universidade de Paris, incluindo várias do aquinate.[21]

Evidências adicionais poderiam ser arroladas (por exemplo, a repressão sistemática dos pagãos e dos judeus, inevitavelmente incluindo as mentes mais brilhantes entre eles), mas os exemplos acima são suficientes para estabelecer o caso. Durante o período medieval, o espírito de livre investigação humano, mais bem exemplificado pelos hereges e dissidentes, viveu sob ameaça constante de condenação, proscrição, destruição de suas obras, excomunhão, decretos de silêncio perpétuo, até mesmo de execução. Apesar das alegações de Stark em contrário, a Igreja conduziu uma guerra implacável, invasiva e muitas vezes letal contra os espíritos independentes.[22]

Os leitores procurarão em vão por qualquer referência à repressão dos pensadores inovadores por parte da Igreja. Por exemplo, os termos “heresia” e “hereges” não aparecem no índice remissivo. Suas breves menções a este fenômeno não sugerem o menor indício da dura realidade. Para ilustrar, quando discute a obra teológica de Santo Agostinho e Tomás de Aquino, ele declara: “Naturalmente, milhares de outros teólogos também tentaram se destacar por suas doutrinas. Alguns foram bem sucedidos, a maioria foi ignorada, e alguns foram rejeitados como hereges.”[23] Observem seu emprego do termo “rejeitados”, vago, enganador e completamente sanitizado. Alguém poderia concluir desta versão da história que as teorias heréticas foram meramente descartadas como erros intelectuais por uma comunidade de acadêmicos, sem quaisquer outras consequências para seus proponentes.

Ainda pior é a discussão de sua visão (errônea) de que o Cristianismo foi responsável pela abolição da escravatura. Neste contexto, ele escreve: “Aqui também podem ser vistos os princípios do progresso teológico operando, tornando possível aos teólogos propor novas interpretações sem fazer recair sobre si acusações de heresia.[24] Como já foi notado, porém, uma descrição mais acurada deste período estabelece que muitas vezes foi extremamente difícil para “novas interpretações” escaparem da acusação de heresia. Ademais, ele tampouco menciona a repressão aos pagãos, judeus e outros dissidentes ou infiéis.

A verdade é que o espírito criativo não pode florescer a contento sob tal reinado de terror. Sua busca sagrada pelo conhecimento não lhe permite cessar os questionamentos desafiadores, as descobertas de princípios verdadeiros, ou autocensurar-se em virtude da presença ameaçadora da Inquisção espreitando sobre seus ombros e coagindo-o a viver temendo cronicamente por sua liberdade ou mesmo sua vida. Se tais são os parâmetros sociais impostos, a investigação racional é atrofiada, até mesmo deixa de existir; a ferramenta de sobrevivência humana é inutilizada, e vários homens não sobreviverão à inevitável Idade das Trevas que se segue.

Que a fé reinou suprema sobre a razão sob a égide da Igreja é um fato histórico incontestável. Mas especificamente quais princípios filosóficos o catolicismo medieval promoveu – e a quais ele renunciou? Quais ideias foram responsáveis pela Idade das Trevas? Quem codificou estas ideias? E quais ideias reduziram a pó este código, pavimentando o caminho para o progresso superlativo do Ocidente secular contemporâneo?

A Tragédia Da Teologia: Como A Igreja Causou E Prolongou A Idade Das Trevas – Parte 3: Fundamentos Filosóficos De Uma Visão de Mundo Pró-Científica

Notas.

14. Peter Gay, The Enlightenment: An Interpretation, 2 vols. (New York: Knopf, 1966, 1969). Andrew Bernstein, The Capitalist Manifesto: The Historic, Economic and Philosophic Case for Laissez-Faire (Lanham, Md.: 2005), 41–54, 70–72, 73–101.

15. W. T. Jones, A History of Western Philosophy, vol. 2, The Medieval Mind (New York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1969), pp. 63–65.

16. Malcolm Lambert, Medieval Heresy: Popular Movements from the Gregorian Reform to the Reformation (Malden, MA.: Blackwell Publishing, 2002), pp. 3–8.

17. W. T. Jones, A History of Western Philosophy, vol. 2, The Medieval Mind (New York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1969), pp. 125–127.

18. Will Durant, The Story of Civilization, vol. 4, The Age of Faith (New York: Simon & Schuster, 1950), pp. 769–776. Charles Freeman, The Closing of the Western Mind: The Rise of Faith and the Fall of Reason (New York: Vintage Books, 2005), p. 296.

19. Richard Rubenstein, Aristotle’s Children: How Christians, Muslims and Jews Rediscovered Ancient Wisdom and Illuminated the Middle Ages (New York: Harcourt, Inc., 2003), pp. 140–157. Will Durant, The Story of Civilization, vol. 4, The Age of Faith (New York: Simon & Schuster, 1950), pp. 769–784. W. T. Jones, A History of Western Philosophy, vol. 2, The Medieval Mind (New York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1969), pp. 67–69.

20. Will Durant, The Story of Civilization, vol. 4, The Age of Faith (New York: Simon & Schuster, 1950), pp. 931–948. Richard Rubenstein, Aristotle’s Children: How Christians, Muslims and Jews Rediscovered Ancient Wisdom and Illuminated the Middle Ages (New York: Harcourt, Inc., 2003), pp. 88–126. W. T. Jones, A History of Western Philosophy, vol. 2, The Medieval Mind (New York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1969), pp. 190–196.

21. Para a citação e os exemplos nos três parágrafos anteriores, e para mais exemplos como esse, veja Will Durant, The Story of Civilization, vol. 4, The Age of Faith (New York: Simon & Schuster, 1950), pp. 949–983 (citação, p. 950).

22. Malcolm Lambert, Medieval Heresy: Popular Movements from the Gregorian Reform to the Reformation (Malden, Mass.: Blackwell Publishing, 2002), pp. 194–207. Sobre a perseguição aos pagãos veja, por exemplo, Ramsay MacMullen, Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries (New Haven: Yale University Press, 1997); sobre a perseguição aos judeus, veja James Carroll, Constantine’s Sword: The Church and the Jews (Boston: Houghlin Mifflin, 2001), e Gustavo Perednik, “The Nature of Judeophobia,”. Para o estudo da perseguição de várias mulheres religiosamente inconformistas como ‘bruxas’, veja Jeffrey Burton Russell, Witchcraft in the Middle Ages (Ithaca, NY: Cornell University Press, 1972), Brian Levack, The Witch-Hunt in Early Modern Europe (London: Longman, 1995), e Alan Charles Kors e Edward Peters, Witchcraft in Europe: 400–1700 (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2001).

23. Rodney Stark, The Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and Western Success (New York: Random House, 2005), p. 7.

24. Ibid., pp. 30–31.

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Uma crítica do livro A Vitória da Razão, de Rodney Stark

Autor: Andrew Bernstein

Andrew Bernstein é PhD em Filosofia pela Graduate School of the City University of New York. Ele leciona filosofia na SUNY Purchase, onde em 2004 foi eleito “Professor de Destaque”. Ele é o autor de The Capitalist Manifesto: The Historic, Economic, and Philosophic Case for Laissez-Faire (2005); Objectivism in One Lesson: An Introduction to the Philosophy of Ayn Rand (2008); Capitalism Unbound: The Incontestable Moral Case for Individual Rights (2010); e Capitalist Solutions (2011). O Dr. Bernstein é um dos editores e colaboradores do The Objective Standard, e escreve regularmente uma coluna para o site Forbes.com.

Fonte: The Objective Standard – Reason, Egoism and Capitalism, vol. 1, nº4, Inverno de 2006-2007

Tradução: Gilmar Pereira dos Santos

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Nas últimas décadas, os acadêmicos medievalistas têm apresentado persistentemente a tese de que a Idade Média não foi realmente uma era de trevas e obscuridade – que o período de mil anos compreendido entre a queda do Império Romano (aproxiamdamete 500 d.C.) e o Renascimento (aproximadamente 1500 d.C.) foi na verdade uma época de avanços culturais e intelectuais significativos. Esta tendência culminou nas teses do livro de Rodney Stark A Vitória Da Razão: Como O Cristianismo Levou À Liberdade, Ao Capitalismo E Ao Sucesso Ocidental (e em  alegações similares apresentadas no livro de Thomas Woods Jr. Como A Igreja Católica Construiu A Civilização Universal). Que tal teoria tenha sido bem recebida pela direita religiosa não surpreende. Entretanto, o que pode surpreender alguns – e o que é certamente tenebroso – é que órgãos importantes da imprensa liberal (N.T.: Leia-se ‘de esquerda’) como o The New York Times e o The Chronicle of Higher Education (a mais importante publicação para reitores e professores universitários) tem dispensado ao livro de Stark um respeito expressivo. Este artigo demonstrará que tal respeito é completamente imerecido.

A tese do livro de Stark é que a Igreja Católica promoveu um compromisso cultural com a razão que possibilitou a ascensão do Ocidente. O Cristianismo Medieval foi fundamentalmente, talvez exclusivamente, responsável pelo grande progresso alcançado pela civilização ocidental na filosofia, nas artes, na ciência, na tecnologia e na liberdade. Nas palavras do próprio Stark:

Mas quando se investiga a fundo, torna-se claro que a base verdadeiramente fundamental para… a ascensão do Ocidente foi uma extraordinária fé na razão.

A Vitória da Razão explora uma série de eventos e mudanças significativas em que a razão trinfou, moldando de maneira única a cultura e as instituições ocidentais. A mais importante destas vitórias ocorreu dentro do Cristianismo… enquanto as outras religiões do mundo enfatizaram o mistério e a intuição, apenas o Cristianismo abraçou a lógica e a razão como o guia principal para a verdade religiosa… Encorajada pelos escolásticos e materializada nas grandes universidades medievais fundadas pela Igreja, a fé no poder da razão saturou a cultura ocidental, estimulando a busca da ciência e a evolução da teoria e da prática democráticas.

O sucesso do Ocidente, incluindo a ascensão da ciência, assentou-se por inteiro sobre fundamentos religiosos, e as pessoas que a trouxeram à existência foram cristãos devotos.[1]

Este livro, e outros semelhantes – junto com o tratamento reverente a eles dispensado pelos principais veículos da mídia liberal – são sintomas da revitalização do Cristianismo na América. O que torna isto ainda mais alarmante é o fato de os argumentos estarem ser apresentados e adotados num nível acadêmico, não meramente popular. Se tais argumentos fossem sólidos, sua crescente aceitação entre os intelectuais contemporâneos não representaria nenhum problema; mas, como será demonstrado, esta tese pró-religião, apesar de convincente para alguns, é flagrante e demonstravelmente equivocada.

Stark, um professor de ciências sociais na Universidade Baylor, está absolutamente correto em seu raro acerto de que um compromisso com a razão foi a causa fundamental do progresso espetacular alcançado no Ocidente e em nenhum outro lugar. Mas ele está profundamente equivocado ao atribuir a base deste compromisso ao Cristianismo. Na verdade, o Ocidente progrediu muito mais lenta e incompletamente do que poderia ter progredido sob outras circunstâncias, exatamente devido à sua profunda ambivalência para com a razão. Ao longo das eras, e continuando até hoje, tem havido no Ocidente recaídas na irracionalidade que muitas vezes excedem seu comprometimento com a racionalidade. Existe um profundo dualismo no pensamento ocidental: sua dedicação à razão, embora certamente superior à de outras culturas, existe num desesperado conflito com diversas versões da irracionalidade, incluindo a fé. Expresso em termos de seus maiores expoentes, Jesus e seus discípulos – não apenas Aristóteles e os seus – tem sido uma influência esmagadora no pensamento ocidental. O Cristianismo, incluindo enfaticamente a Igreja medieval, mais do que qualquer outro fator isolado, é responsável pela irracionalidade da sociedade ocidental. O compromisso com a racionalidade é em sua essência um legado da Grécia Antiga – sobretudo de Aristóteles – e dos períodos subsequentes em que o elemento grego foi dominante, por exemplo, o Iluminismo do século XVIII.

Os erros de Stark são abundantes e abrangentes. Eles compreendem os campos da História e, sobretudo, da Filosofia. Com efeito, como será demonstrado, as alegações de Stark são historicamente falsas e filosoficamente impossíveis.

História

Stark afirma que “o período que começa com a Queda do Império Romano e se prolonga na Idade Média foi um tempo de progresso intelectual e tecnológico espetacular que irrompeu quando a inovação foi libertada dos grilhões do despotismo romano.” De modo semelhante: “O compromisso cristão com a razão e o progresso não era apenas conversa; logo após a queda de Roma, ele encorajou uma extraordinária era de invenção e inovação.” Ele descreve o desenvolvimento de moinhos d’água, represas e moinhos de vento – e discute repetidamente melhorias na agricultura que incrementaram significativamente a produção de alimentos. Por exemplo, ela afirma que “a Europa medieval ampliou grandemente sua produção agrícola drenando potenciais terrenos cultiváveis”, e que “estes ganhos incríveis na produtividade agrícola reduziram tanto a necessidade de trabalho nas fazendas e aumentaram tanto a produção que facilitaram grandamente a formação e o suprimento de vilas e cidades.” Após outras alegações semelhantes, Stark conclui: “Não somente os europeus se alimentaram muito melhor durante a Idade das Trevas do que no período romano como eles também foram mais saudáveis, mais bem dispostos e provavelmente mais inteligentes.[2]

Ao projetar tais fantasias sem substância, Stark comete um erro idêntico ao da esquerda anticapitalista _ ignorar por completo o campo da História Econômica. A História Econômica é relevante, pois ela municia os pesquisadores com dados factuais acerca do que pode ser descoberto sobre os padrões de vida das pessoas que viveram no passado. Criticamente, este campo não é respaldado nem por asserções arbitrárias nem por julgamentos confusos, mas por evidências reais.

Um dos principais pensadores contemporâneos neste campo é o economista holandês Angus Maddison. De acordo com a pesquisa de Maddison, a Europa padeceu de crescimento econômico nulo entre o século 5 e o 15, precisamente o período descrito por Stark. Maddison mostra que por mil anos não houve nenhum aumento da renda per capita, que atingiu o valor abissalmente baixo de 215 dólares em 1500. Além disso, ele estima que no ano 1000, um recém-nascido típico poderia esperar viver aproximadamente até os 24 anos – e que um terço deles morreria antes de completar o primeiro de vida. Estas são estimativas globais, e a Europa não exibia nenhuma diferença apreciável do restante do mundo. Não chega a surpreender que os padrões de renda per capita não mostrem nenhum aumento dramático até o Iluminismo do século XVIII – o começo da Revolução Industrial.[3]

Embora outros historiadores econômicos defendam que algum crescimento econômico ocorreu na Idade Média tardia, eles não obstante reconhecem que o crescimento foi tão irrisório que contribuiu muito escassamente para mitigar a horrível penúria em que viviam as massas europeias. Por exemplo, a pesquisa do economista Graeme Snooks sugere que houve crescimento econômico na Inglaterra ao longo dos seis séculos entre 1086 e 1688. “Se em 1086 o indivíduo médio tivesse cerca de um sexto da renda do indivíduo médio em 1688, ele ou ela não tinha muito… Os camponeses ingleses em 1086 tinham pouco mais do que alimento suficiente para mante-los vivos, e às vezes nem mesmo isso. As casas eram construções grosseiras e temporárias. As posses de um camponês consistiam de um conjunto de roupas, melhor descritas como trapos, e mais alguns pertences.”[4]

Admiravelmente, Stark cita em sua bibliografia diversos historiadores importantes que concordam com estas descobertas. Por exemplo, o soberbo historiador francês Fernand Braudel, escrevendo sobre a época anterior ao século XVIII, afirma que: “A fome foi tão recorrente por anos a fio que foi incorporada ao regime biológico do homem medieval e integrada a seu cotidiano…” Braudel assinala, por exemplo, que embora a França fosse, pelos padrões da época, um país relativamente próspero, acredita-se que sua população foi assolada por dez fomes generalizadas durante o século X; vinte e seis no século XII – e estas estimativas nem levam em conta as “centenas e centenas de fomes locais…”[5] Mesmo reconhecendo que existem diversas dificuldades inerentes às estimativas dos padrões de vida medievais com qualquer grau de precisão, a conclusão deve ser que o que foi então considerado prosperidade relativa foi, quando comparado com épocas anteriores e posteriores, a mais completa indigência.

Ademais, o saneamento básico regrediu ao grau mais primitivo durante esta era. Dejetos humanos eram muitas vezes arremessados pela janela nas ruas ou simplesmente despejados nos rios locais. (Em comparação, a Roma antiga foi significativamente mais avançada: “as principais cidades do Império instalaram sistemas de drenagem conectados às latrinas” – e os “ricos desfrutavam de luxos como água encanada em suas residências… até mesmo os indigentes tinham acesso aos banhos públicos.”) Com as ruas transbordando lixo, urina e fezes – e com as mesmas condições deploráveis permeando os rios e cursos d’água dos quais era extraída a água bebida nas residências – as verminoses e infecções se multiplicaram, e doenças de todos os tipos, intratáveis pelos conhecimentos médicos primitivos da época, proliferaram. Entre 1347 e 1350, por exemplo, a peste bubônica – a infame ‘Morte Negra’ – espalhou-se através das pulgas que parasitavam os ratos, devastando a Europa, ceifando aproximadamente 20 milhões de vidas, um terço da população européia. Norman Cantor, o principal historiador contemporâneo da Idade Média, declara: “O surto de Peste Negra de 1348-1349 foi o maior desastre biomédico da história europeia e possivelmente da história mundial.” Um cronista florentino referiu-se a ela simplesmente como “o extermínio da raça humana.”[6]

Por fim, os primeiros séculos da Idade Média testemunharam um declínio estarrecedor nos níveis de instrução e educação em relação ao período romano. No estado de guerra endêmico do período, os seres humanos perderam a habilidade da escrita e, em larga escala, a da leitura. “Na época em que Santo Agostinho viveu sua juventude [quarto século da era comum]… até mesmo um cristão ostentava uma formação clássica razoavelmente boa. Apenas algumas gerações mais tarde, a alfabetização era uma raridade mesmo entre as classes dominantes.” Por exemplo, durante o oitavo século, Charlemagne sustentava que mesmo o clero não sabia latim o bastante para ler a Bíblia ou conduzir adequadamente os serviços eclesiásticos.[7]

Uma catástrofe relacionada foi o abandono em larga escala do aprendizado clássico no Ocidente. Uma das razões para isso foi o fato de, durante o Império Romano, os romanos educados terem estudado as obras de Platão, Aristóteles e outros pensadores no original grego, de modo que não havia necessidade de traduzi-las para o latim. Embora os conquistadores bárbaros tenham aprendido algum latim, os ocidentais não mais aprenderam o grego. A perda da alfabetização em grego foi desastrosa para a civilização, pois ela significou “a perda simultânea da filosofia, da matemática, da medicina, da engenharia e da ciência.[8]

Andrew Coulson, um pesquisador do campo da história educacional, assinala que enquanto os gregos foram fascinados pelo mundo natural, dando passos pioneiros em ciências como a anatomia, a biologia, a física e a metereologia, os cristãos substituíram os esforços para compreender o mundo por uma tentativa de conhecer Deus; o estudo baseado na observação da natureza foi, consequentemente, subordinado ao estudo das escrituras baseado na fé. Consequentemente, um declínio nos níveis de instrução afligiu todos os campos do conhecimento. “O conhecimento médico limitado que havia sido acumulado pelos médicos gregos e romanos foi substituído pelo mais completo misticismo.” Por exemplo, Santo Agostinho acreditou que os demônios eram responsáveis pelas doenças, um indiscutível retrocesso em relação à abordagem hipocrática. O trabalho científico em geral declinou, bem como o interesse pelo mundo natural. O resultado global? “Da perspectiva da educação das massas… a Idade Média foi realmente uma idade das trevas. Apesar de bolsões isolados de instrução concentrados ao redor dos monastérios da Europa, a maioria esmagadora da população era ignorante e analfabeta.[9]

Contribuindo para o desastre educacional, em 529 o imperador cristão Justiniano I, governando em Constantinopla o império oriental e sustentando que a filosofia grega era “inerentemente subversiva para a fé cristã”, fechou todas as escolas pagãs de filosofia, incluindo a Academia de Platão que, por 900 anos, especializara-se nos ensinamentos de seu fundador. Para reforçar cabalmente o banimento da filosofia greco-romana, Justiniano proibiu qualquer pagão de ensinar. (Boécio, um cristão que viveu entre 480 e 525, o último grande filósofo por 350 anos, fora educado nas grandes escolas pagãs.) Como resultado, ninguém no Ocidente teve a oportunidade de estudar as realizações da cultura grega por seis intermináveis séculos. Como o eminente historiador Will Durant observou: “A filosofia grega, após onze séculos de história, chegou ao fim.[10]

W. T. Jones, o maior historiador da filosofia do século XX, capturou sucintamente a essência do declínio, e o papel causal do Cristianismo ao promovê-lo, quando declarou: “Devido à indiferença e à franca hostilidade dos cristãos… a totalidade da literatura e da erudição antigas quase se perdeu… Esta destruição foi tão grande e o ritmo de recuperação foi tão lento que mesmo por volta do século IX a Europa ainda se encontrava incomensuravelmente atrás do mundo clássico em todos os departamentos da vida… Esta foi, então, verdadeiramente uma Idade das ‘Trevas’.[11]

Que alguns avanços tenham ocorrido ao longo deste milênio não está posto em questão, e Stark volta a relatá-los minuciosamente. Mas pelos padrões do Ocidente secularizado posteriores ao século XVIII, tal progresso foi relativamente – e enormemente – insignificante. Com efeito, os relatos de avanços menores são mera distração, pois eles proporcionaram pouco ou nenhum alívio para a miséria extrema em que os europeus ocidentais viveram por séculos. A alegação de Stark de que o período foi de “invenção e inovação extraordinárias” é um exagero grotesco – na melhor das hipóteses. Uma era “extraordinária de inovação e invenção“ envolveria avanços tecnológicos igualmente extraordinários e a consequente melhoria significativa dos padrões de vida humanos. No mínimo, Stark sugere – e em alguns casos afirma explicitamente – que foi isto o que ocorreu durante a Idade Média. Na verdade, nada remotamente semelhante a isso aconteceu.

Alegações importantes feitas por Stark são escandalosamente errôneas. Por exemplo, ele declara: “A idéia de que a Europa mergulhou numa Idade das Trevas é um boato produzido pelos intelectuais antirreligiosos e cruelmente anticatólicos do século XVIII, que estavam determinados a afirmar a superioridade cultural de sua própria época e que promoveram sua alegação depreciando os séculos anteriores como – nas palavras de Voltaire – uma época em que ‘o barbarismo, a superstição e a ignorância cobriram a face do mundo.’[12] Infelizmente para os homens que viveram naquela época, a alegação de Stark de que a Idade das Trevas europeia entre os séculos V e IX foi “um boato” não é nem remotamente corroborada pelos fatos. A verdade trágica é que da queda de Roma até a Renascença medieval dos séculos XII e XIII – um período de seiscentos anos completos – a Europa Ocidental sofreu um longo período de penúria material e privação intelectual quando comparada tanto à Idade Clássica que o precedeu como ao Renascimento que o seguiu.

Em comparação, os séculos XVIII e XIX foram palco do florescimento pleno das Revoluções Tecnológica e Industrial. Estes foram séculos não de Santos Bonifácios convertendo pagãos paralelamente a progressos secundários como moinhos de vento de água que ainda deixavam os homens esfaimados – mas de James Watt e a máquina a vapor, Thomas Edison e o sistema de iluminação elétrico, Alexander Graham Bell e o telefone, os irmãos Wright e a aviação, Henry Ford, Andrew Carnegie, John D. Rockefeller, e a produção industrial em massa de bens de consumo – e, consequentemente, estes foram séculos de crescimento meteórico do padrão e da expectativa de vida. Esta foi uma era de progresso intelectual e material assombroso. Os séculos XVIII e XIX foram um período de “invenções e inovações extraordinárias”. Os séculos VIII e IX simplesmente não foram.[13]

Qual foi a causa básica de um período tão longo de estagnação, sobretudo quando comparado com o enorme avanço criado pelos homens nos últimos 250 anos? Para respondermos a esta questão, é necessário identificar tanto a causa fundamental do progresso humano como as condições sociais que seu florescimento exige.

A Tragédia Da Teologia: Como A Religião Causou E Prolongou A Idade Das Trevas – Parte 2: A Igreja Contra A Razão

Notas.

1. Rodney Stark, The Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and Western Success (New York: Random House, 2005), pp. x–xi.

2. Ibid., xiv–xv, 35, 38–42.

3. Angus Maddison, Phases of Capitalist Development (New York: Oxford University Press, 1982), pp. 4–7. Angus Maddison, The World Economy: A Millennial Perspective (Paris: Organization for Economic Cooperation and Development, 2001), p.1. Andrew Bernstein, The Capitalist Manifesto: The Historic, Economic and Philosophic Case for Laissez-Faire (Lanham, Md.: 2005), pp. 73–136.

4. Graeme Snooks recontado em Joyce Burnette and Joel Mokyr, “The Standard of Living Through the Ages,” in The State of Humanity, editado por Julian Simon (Malden, Mass.: Blackwell Publishers, 1995), pp. 136–39.

5. Fernand Braudel, The Structures of Everyday Life: Civilization and Capitalism, 15th–18th Centuries (New York: Harper & Row, 1981), pp. 73–78.

6. J. J. Bagley, Life in Medieval England (London: B.T. Batsford, 1960), pp. 57–59, 156–159. Mabel Buer, Health, Wealth and Population in the Early Days of the Industrial Revolution (New York: Howard Fertig, 1968), pp. 104–105. Norman Cantor, In the Wake of the Plague (New York: Perennial, 2002), pp. 6–8.

7. W. T. Jones, A History of Western Philosophy, vol. 2, The Medieval Mind (New York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1969), pp. 141–142.

8. Richard Rubenstein, Aristotle’s Children: How Christians, Muslims and Jews Rediscovered Ancient Wisdom and Illuminated the Middle Ages (New York: Harcourt, Inc., 2003), pp. 61–62.

9. Andrew Coulson, Market Education: The Untold History (New Brunswick: Transaction Publishers, 1999), pp. 58–60.

10. Will Durant, The Story of Civilization, vol. 4, The Age of Faith (New York: Simon & Schuster, 1950), p. 123.

11. W. T. Jones, A History of Western Philosophy, vol. 2, The Medieval Mind (New York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 1969), pp. 139–142. Richard Rubenstein, Aristotle’s Children: How Christians, Muslims and Jews Rediscovered Ancient Wisdom and Illuminated the Middle Ages (New York: Harcourt, Inc., 2003), pp. 59, 61–62. Charles Freeman, The Closing of the Western Mind: The Rise of Faith and the Fall of Reason (New York: Vintage Books, 2005), pp. 268–269.

12. Rodney Stark, The Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and Western Success (New York: Random House, 2005), p. 35.

13. Veja Andrew Bernstein, The Capitalist Manifesto: The Historic, Economic and Philosophic Case for Laissez-Faire (Lanham, Md.: 2005), pp. 73–161.

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O Cristianismo surgiu como um movimento social/revitalicionista exatamente como vários anteriores e posteriores a ele, e seguiu um processo de evolução gradual absolutamente padronizado. Ele nasceu num momento de crise cultural, um momento no qual vieram à luz várias outras reações, muitas vezes bastante similares – a conquista da Palestina pelos romanos, e antes disso a introdução da cultura grega ou helenística. A experiência foi profundamente desnorteante para os antigos judeus; pessoas estrangeiras, um poder estrangeiro, idéias estrangeiras, deuses estrangeiros sobejavam, abundavam. Como em qualquer situação similar, houveram reações distintas e concomitantes. Já no século anterior ao de Jesus, o movimento político-militar dos Macabeus organizou um exército de libertação nacional no ano 160 AEC e reconquistou Jerusalém em 164 (este evento, a propósito, é a origem da tradição do Hanukkah). Mas o sucesso dos macabeus foi efêmero, e sob a autoridade romana uma série de adaptações judaicas apareceram consecutivamente. Os assim chamados saduceus eram os religiosos “conservadores” ou “elitistas” que buscavam preservar o poder sacerdotal tradicional, mesmo se isso significasse colaborar com os romanos. Os fariseus eram comparativamente inovadores que procuravam proteger a religião modificando-a: seu objetivo era “tornar a fé de Israel relevante para as situações cotidianas e para as novas circunstâncias sob o governo romano e os perigos da helenização”. Paralelamente, eles mantiveram algumas doutrinas, tais como a ressurreição final e a existência de anjos, que os judeus mais conservadores declararam ser meras inovações”[7](pontos de vista agora “tradicionais” no Cristianismo). Fora do establishment, outros movimentos independentes irromperam, se espalharam e se extinguiram. Os essênios constituíram um destes movimentos, uma espécie de grupo separatista que retirou-se para o deserto para escapar à odiosa influência alienígena. Outro foi o dos politicamente engajados zelotes que defendiam a revolta armada; ao passo que os sicários promoviam ousados assassinatos diários de oficiais romanos e colaboradores judeus.

Foi neste ambiente que o Cristianismo surgiu pela primeira vez. Ou, mais acuradamente, o que primeiro surgiu não era o “Cristianismo” mas um movimento de revitalização tipicamente irrisório que foi, com justiça, chamado de o Movimento de Jesus; em seu livro The Jesus Movement, Ekkehard e Wolfgang Stegemann definem-no como “a igreja primitiva de Jerusalém e as ‘igrejas da Judéia’ mencionadas pelo apóstolo Paulo.[8] Gerd Theissen, estudioso do Novo Testamento, data o período do Movimento de Jesus aproximadamente entre os anos 30 e 70 da Era Comum[9]

Há vários sentidos em que o “Cristianismo” não apareceu naqueles anos ou por vários anos ainda. O primeiro é que os membros “não tinha intenções de fundar uma nova ‘igreja‘” e em vez disso “permaneceram inteiramente dentro da matriz do Judaísmo.[10] Justo Gonzalez concorda: “Os cristãos primitivos não acreditaram estar fundando uma nova religião. Eles eram judeus, e… a mensagem cristã para os judeus não era que eles deveriam abandonar seu judaísmo. Ao contrário, agora que a Era Messiânica começara, eles deveriam ser judeus melhores[11]. Consequentemente, o Movimento de Jesus preservou a maior parte dos elementos do Judaísmo que herdaram (elementos por sua vez mesclados ao longo de uma história milenar – sobretudo a idéia messiânica), assim como os outros movimentos e profetas que perambulavam pela região, como Judas, Jônatas e Teudas[12].

Os próprios evangelhos são um segundo sentido em que o “cristianismo” fracassou em se materializar nesse período primitivo. O nascimento do Cristianismo foi múltiplo, sendo suas origens narradas em quatro versões diferentes (oficiais) que não são inteiramente compatíveis. Pior ainda, à medida em que as escrituras do movimento gradualmente tomavam forma, vários candidatos tiveram sua inclusão no cânone vetada, tais como os evangelhos “infantis” de João e Tomás; os assim chamados Evangelhos judeo-cristãos dos Hebreus, dos Nazarenos e dos Ebionitas; os evangelhos de Tomás, Pedro, Nicodemo, Maria, Filipe, Judas e Bartolomeu; os evangelhos “gnósticos”; e uma série de outras obras como o Diálogo do Salvador, o Apocalipse de Pedro, o Apócrifo de João, o Evangelho Copta dos Egípcios, e assim por diante. O Novo Testamento (ou Testamentos, pois existem múltiplas versões do cânone oficial em diferentes tradições cristãs) é (são) um exemplo clássico de história sendo escrita, ou construída, pelo vencedor. Pior ainda, Elaine Pagels, vencedora do National Book Award em 1979 por seu livro Os Evangelhos Gnósticos, construiu um caso convincente interpretando cada evangelho canônico como um produto condicionado pelo momento histórico e pela perspectiva de composição particular de cada um de seus autores; cada um deles reflete a política de seu período ao retratar Marcos em conciliação com os romanos, Mateus queixando-se dos fariseus, Lucas (o único evangelista gentio) escrevendo para “os gentios convertidos ao Cristianismo que se consideram os verdadeiros herdeiros de Israel,” e João apartando-se completamente da comunidade judaica corrupta[13].

Um terceiro e último problema – que permanece o problema definidor para o Cristianismo unificado – foi a diversidade de opiniões e atividade nas diversas comunidades cristãs primitivas locais. Esta é a questão das epístolas de Paulo, bem como de suas viagens, pois o movimento desarticulado tomou diferentes rumos em locais diferentes. Paulo batalhou para impor uma certa padronização, uma certa ortodoxia sobre as congregações discrepantes. Isto é especialmente significativo para o futuro do Cristianismo porque Paulo jamais se encontrou com ou ouviu Jesus pessoalmente, e as cartas e os esforços de pregação de Paulo ocorreram antes da composição dos Evangelhos. Ou seja, as epístolas paulinas são efetivamente os mais antigos registros documentais do movimento, portanto de várias maneiras ele moldou o Movimento de Jesus tanto quanto ou até mais do que o próprio Jesus. Talvez mais significativamente, como Theissen nos lembra, Paulo quase nunca cita Jesus porque ele nunca conheceu Jesus e porque as palavras de Jesus ainda não haviam sido registradas[14]. A principal contribuição de Paulo foi a criação do que Robert Wright, num cauteloso artigo publicado recentemente, chamou de “um bom Jesus”, um professor gentil cuja única “doutrina” foi o “amor” – uma concepção oportunista que emergiu “da interação entre as ambições que impulsionavam Paulo e seu ambiente social”[15]. Resumindo, Paulo foi burilando uma mensagem que ressonaria junto a, e incluiria, uma audiência mais ampla, gentis e judeus igualmente, “concedendo ao pragmatismo a primazia sobre o princípio escritural” (exceto pelo fato de que ainda não havia nenhuma escritura!).

Se o primeiro estágio do que veio a ser conhecido como Cristianismo foi o Movimento de Jesus, o estágio seguinte foi a igreja helenística, da qual Paulo foi o maior arquiteto, ele próprio um judeu helenizado (influenciado pela cultura grega). O Movimento de Jesus fracassou completamente na tarefa que originalmente se propôs, de reformar o Judaísmo e efetuar qualquer mudança real na fortuna política e espiritual dos judeus. O Movimento de Jesus basicamente desapareceu em Israel, deslocando-se para centros mais urbanizados e cosmopolitas no Oriente Médio e no Império Romano – e, segundo Gonzalez, sua sobrevivência deve-se parcialmente a sua mudança para estes locais e por não mais ser nem reivindicar ser um fenômeno especificamente judaico. Fora dos limites do paroquial universo do judaísmo, a igreja embrionária deparou-se com três importantes e entrelaçadas fontes de influência. A primeira foi o sistema social romano que praticava explicitamente o sincretismo religioso, tolerando e até mesmo encorajando a incorporação de toda sorte de práticas e idéias religiosas. A segunda foi um universo inteiro já constituído de “cultos de mistérios” bastante semelhantes, vários deles girando ao redor de semideuses que morreram e voltaram à vida como salvadores; não há nada de exclusivo ou de original acerca do tema principal do Cristianismo. A terceira foi a cultura dominante greco-helenística com suas poderosas tradições intelectuais e filosóficas. Foi neste ambiente que o “Cristianismo” evoluiu a partir do simples Movimento de Jesus, e foi para tais pessoas que as rédeas do Cristianismo foram passadas com as inevitáveis, duradouras e já conhecidas consequências.

O Cristianismo somente começou a crescer de verdade quando o Movimento de Jesus entrecruzou com a cultura helenística; o Cristianismo é uma religião no mínimo tão greco-romana quanto judaica. A igreja emergente encontrou dois aliados específicos no mundo helenístico: o sistema filosófico de Platão e a filosofia tardia do Estoicismo. Como Gonzalez apropriadamente observa, o Platonismo já havia questionado o panteão pagão e postulado um “reino superior” de verdade última, bem como uma alma imortal que era superior ao corpo inferior. O estoicismo foi em si uma adaptação do pensamento grego ao caráter fragmentado e urbano da vida contemporânea, sustentando a idéia de uma lei natural universal com a qual os humanos devem se harmonizar e à qual devem se submeter; o sentido da vida era a superação das paixões e o cultivo da “coragem, do discernimento moral, do auto-controle e da justiça”[16]. “Tudo isto vários cristãos primitivos acharam atraente e proveitoso”, e “embora à primeira vista estas tradições filosóficas fossem utilizadas para interpretar a fé aos não-convertidos, elas terminaram por influenciar o modo como os cristãos compreendiam sua própria fé.”[17]

Sob o fascínio exercido pela lei e pela sociedade romana e pela filosofia grega, um problema inevitável surgiu: quais exatamente eram as crenças e práticas da nova religião? Estas questões nunca foram solucionadas, em parte porque não havia necessidade de resolve-las – a igreja sendo relativamente pequena e o fim dos tempos estando supostamente próximo – e parcialmente porque a tradição intelectual de levantar perguntas desse tipo não existiu até que o Cristianismo absorvesse do espírito filosófico grego. Agora veio a primeira grande época de debates e controvérsias cristãs e, previsivelmente, de dissidências. Uma das questões era a relação entre a cultura cristã e as não-cristãs: alguns, como Tertuliano, opunham-se às influências pagãs e ainda assim evidenciavam essas influências envolvendo-se em debates e disputas escritas com descrentes, como na obra do próprio Tertuliano Prescrição Contra os Hereges. Outros, como Justino e Taciano, admiraram e valorizaram a cultura greco-romana vendo nela as raízes da crença judeo-cristã.

Uma outra e ainda mais problemática questão era o sentido e a interpretação exata das crenças cristãs: o próprio Jesus não escreveu nada e proferiu diversas coisas enigmáticas, e Paulo desenvolveu apenas alguns aspectos da doutrina – e mesmo estes apenas em certas direções. Havia muito para resolver e diversas soluções possíveis e disponíveis. Várias destas questões giravam em torno da identidade de Jesus e da leitura correta das (recentemente compiladas e de autoria obviamente humana) escrituras. Uma das mais antigas e mais persistentes visões era o gnosticismo, que afirmava que um grupo de privilegiados (naturalmente, os próprios gnósticos) possuíam um conhecimento esotérico profundo (gnosis é o termo grego para “conhecimento”, geralmente implicando sabedoria ou entedimento profundos) não disponível aos não-iniciados. O próprio gnosticismo era um agregado de movimentos e pontos de vista, mas todos compartilhavam uma noção dualista da matéria em oposição ao espírito e a noção do progresso em direção à pureza espiritual pelo conhecimento secreto (isto é, não escritural). Duas alegações heterodoxas principais do gnosticismo eram que Deus possui uma série de “emanações” ou “filhos”, incluindo uma filha Sofia (sabedoria), e que Jesus, sendo um espírito puro e perfeito, não possui um corpo humano e assim nunca esteve realmente encarnado. A ortodoxia em desenvolvimento sustentava que Jesus era ao mesmo tempo corpo e espírito, homem e Deus.

Esta polêmica acerca da humanidade e da divindade de Jesus foi um dos problemas mais incômodos para os cristãos primitivos e uma fonte de várias, se não da maioria, de suas heresias. Sabelius ensinou no segundo século que Jesus, assim como o Pai e o Espírito Santo, eram três “modos” do único Deus, tornando-o completamente divino e não humano, e se Jesus também não era (e igualmente?) humano, então ele não sofreu e morreu, o que contraria o entendimento ortodoxo da salvação. O docetismo (do termo grego dokesis, “parecer”) insistiu que Jesus apenas pareceu ser humano, mas que seu corpo físico na verdade era uma ilusão; no outro extremo do espectro, o “adocionismo” mantinha que Jesus era um mero homem que foi adotado por Deus, ou na concepção ou no batismo. A heresia de Marcião foi tanto mais radical como mais eficaz, pois ele na verdade concebeu o Deus bíblico Yahweh/Jehovah como um ser imperfeito ou talvez até mesmo malévolo que não era o Pai Supremo; o Deus acima de Yahweh/Jehovah era perfeitamente bom e o pai de Jesus. Por conseguinte, Marcião montou seu próprio cânone (antes que o Novo Testamento “oficial” fosse estabelecido) que incluía apenas o evangelho de Lucas e as epístolas paulinas. O mais alarmante de tudo, Marcião organizou sua própria igreja com sua própria liderança como uma alternativa séria à igreja “católica” nascente.

A lista de heresias primitivas poderia continuar e tem sido bem pesquisada. Montanus ofereceu uma forma de Cristianismo encorajando o dom da profecia e os estados extáticos e, obviamente, colocando as profecias montanistas acima das bíblicas e até mesmo acima da vida e dos ensinamentos de Jesus. Praxeras sustentou uma posição às vezes chamada de patripassianismo, segundo a qual Deus como pai sofreu a crucificação, já que Deus as vezes assume a forma de pai, às vezes a de filho, às vezes a de espírito. Pelágio sugeriu que o pecado original não era uma mácula eterna e indelével da natureza humana (de forma que os humanos poderiam ser bons sem Deus), ao passo que os euquitas ou messalianos defendiam que a essência da trindade era perceptível aos sentidos e que a salvação poderia ser obtida pela oração apenas, sem a igreja ou seus rituais e sacramentos. Dualismo extremos como o maniqueísmo e o mandeísmo opunham a luz (geralmente um princípio esiíritual) às trevas (geralmente o corpo e o mundo material). De qualquer maneira, uma das heresias mais resistentes foi o arianismo, proposto por Ário no começo do quarto século, que afirmou uma forma particularmente estrita de monoteísmo tal que Jesus não poderia ser divino (somente Deus era divino) e que Jesus não existira eternamente com Deus mas havia sido criado recentemente por Deus.

Controvérsias cristológicas deste tipo são irrelevantes, até mesmo ridículas, para não-cristãos, mas estes eram os assuntos que colocavam em risco as almas dos homens na igreja helenística. Estas questões foram supostamente respondidas na terceira geração das espécies cristãs, a igreja imperial. Quando o imperador romano Constantino converteu-se à nova fé e autoproclamou-se seu principal intérprete e mediador, várias destas controvérsias foram alegadamente encerradas por decreto ou maioria de votos. O Concílio de Nicéia em 325, por exemplo, adotou o credo ou profissão de fé que foi considerado normativo – Jesus foi “gerado, não criado” e “de uma substância (o termo técnico é homoousia, para “mesma-substância”)- e qualquer um que continuasse a acreditar que Jesus era “de uma substância diferente” ou que “antes de ser gerado Ele não era” (isto é, que Jesus não existia “no começo” ao lado de Deus) era “anatematizado” pela igreja oficial.

Os doutores da igreja, naturalmente, fracassaram em impedir a evolução do Cristianismo, assim como a própria conversão imperial contribuiu para evoluções posteriores. Uma das razões é que Constantino ilustra como o Cristianismo não tanto substituiu as religiões anteriores como na verdade foi erigido sobre elas: o imperador nunca abandonou sua religião pagã, permanecendo o sumo sacerdote do culto romano e instituindo o primeiro dia da semana, o dia pagão dedicado a honrar o Sol Invicto – ou “Dia do Sol” (“sun-day” em inglês) – como o Sabbath do Cristianismo. A elevação do Cristianismo ao posto de religião oficial pôs termo às perseguições e portanto à subcultura do martírio que floresceu sob a opressão; Tertuliano, entre outros, insistiu que não havia outro meio de alcançar a salvação exceto pelo derramamento do próprio sangue cristão. Uma vez no poder, os cristãos abandonaram a atitude. Outra atitude que perdeu sua razão de ser foi a oposição ao serviço militar: os cristãos primitivos tinha muitas vezes recusado (ou sido proibidos de) servir no exército sob a premissa política de que tal obrigação exigia a veneração do imperador bem como sob a premissa espiritual de que matar era errado. Mas a objeção cristã à guerra foi rapidamente abandonada quando a religião alcançou a primazia política; com efeito, “a prática dos cristãos primitivos foi a tal ponto revertida por volta dos princípios do quinto século que sob Teodósio II aqueles maculados pela prática de rituais pagãos foram excluídos do exército – somente cristãos poderiam servir”[18]. A adesão cristã à guerra alcançou seu clímax nas Cruzadas (“guerras da cruz”) nos séculos 11 e 12, com, literalmente, batalhões de monges-guerreiros como os Cavaleiros Templários causando estragos na Terra Santa porque Deus lo volt – “Deus assim o quis”.

No período imperial da igreja, se a ortodoxia ainda não estava firmemente estabelecida, pelo menos diversos dos modelos que se transformariam na Igreja Católica estavam instituídos: “A adoração cristã começou a ser influenciada pelo protocolo imperial”[19], desde as luxuosas e paramentadas indumentárias clericais até as catedrais ricamente ornamentadas e os rituais complexos. O Cristianismo não somente apropriou-se de formas de domínio político-secular como também contribuiu para a estabilidade deste último: a religião “tornou-se cada vez mais o cimento social do estado totalitário da antiguidade tardia”[20]. Isto incluiu censurar os inimigos do Estado-Igreja, e estes inimigos incluíam não somente impérios rivais e hordas de bárbaros como também hereges que desafiaram a ortodoxia e a unidade do Estado-igreja. O Concílio da Calcedônia (380) tornou a heterodoxia um crime punível pelo Estado (a igreja muitas vezes delegou seu trabalho sujo às autoridades seculares). Subsquentemente, “a intolerância religiosa logo se tornou um princípio cristão”:

No período de 380 a 395, os éditos imperiais privaram todos os hereges e pagãos do direito de exercer sua religião, expulsou-os dos cargos civis, e os sujeitou à severas penalidades, confiscos de propriedades, exílio e, em certos casos, à morte. Por volta de 435, haviam 66 leis contra as heresias cristãs além de várias outras contra os pagãos. O objetivo da perseguição foi converter os hereges e os pagãos, estabelecendo assim a uniformidade.[21]

Mas nem mesmo a execução do bispo Prisciliano da Espanha e outros seis em 385 foi capaz de impedir a continuidade da evolução do Cristianismo.

Quando o império terminou, o mesmo não ocorreu com a igreja imperial; em vez disso, de certa forma ela foi libertada, mas também foi alterada pelo influxo de “bárbaros” e sua ascensão ao poder político real. Várias tribos não-romanas (godos, vândalos, etc.) foram cristianizadas, mas o cristianismo também foi barbarizado: doutrinas de choque como o inferno foram realçadas e enfatizadas para apelar às mentes menos sofisticadas. A Igreja Católica também se autoproclamou uma fazedora de reis, outorgando-se o direito de coroar líderes de Estado como Charlemagne. E o “papado”, sob alguns pontos de vista nada além do episcopado de Roma, terminou por se ver como a encarnação de Jesus na terra, o “vigário de Cristo”, a sede global da autoridade cristã.

Outros bispos, entretanto, não necessariamente viram as coisas dessa forma. Para alguns, cada bispo detinha o mesmo poder que os outros, e as asserções de preeminência foram apenas um acréscimo às divisões entre a igreja Católica ou “Ocidental” ou “Latina” e outras igrejas “orientais”. As igrejas egípcias e etíopes há muito matinham uma identidade local distinta, e a igreja na antiga capital (Constantinopla ou Bizâncio) encontrou-se em atritos crescentes com Roma acerca de várias questões, desde a autoridade papal até o uso de imagens na adoração e o celibato clerical. A Igreja Bizantina (ou Oriental ou Ortodoxa) também conduziu suas próprias atividades missionárias, incluindo territórios na Rússia e na Europa Oriental. Em 1054 a Igreja Romana excomungou a Igreja Bizantina, criando o primeiro cisma permanente ou especiação no Cristianismo europeu. Naturalmente, tanto à época como agora a Igreja Ortodoxa é na verdade uma família de igrejas “nacionais” (Ortodoxa Grega, Ortodoxa Russa, Ortodoxa, Ortodoxa Letã, etc. ), um conjunto permanente de subespécies do Cristianismo.

À medida em que a igreja imperial dava lugar à igreja medieval, não havia nenhuma Igreja mas apenas igrejas. A situação jamais se reverteria como na verdade somente se agravaria, acompanhando o fluxo e o refluxo das seitas, cismas, movimentos e heresias. Dentre os que desafiaram a unidade do cristianismo ocidental podemos citar

  • Peter Waldo e os Waldenses (1100s-1340s);
  • Os Cátaros ou Albigensianos (1000s-1300s) contra os quais a Santa Inquisição foi amplamente dirigida;
  • John Wycliffe e os Lolardos (1300s);
  • Os Irmãos do Espírito Livre (1300s);
  • Jan Huss e os Hussitas (1400s), que empreenderam uma longa e dispendiosa guerra contra a Igreja Católica;
  • Os Huguenotes (1500s);
  • Os Protestantes, sobretudo os Luteranos que seguiram Martinho Lutero (1518) e então os Calvinistas de João Calvino, mais tarde seguidos por George Fox e os Quacres ou Sociedade dos Amigos, o Rei Henrique VIII e os Anglicanos, e vários, vários outros grupos pitorescos como os Faladores, os Niveladores, os Anabatistas, ad infinitum – estes grupos muitas vezes dividindo-se em em subrupos e sub-subgrupos.

(Continua…)

Notas.

7. Justo L. Gonzalez, The Story of Christianity Volume I: The Early Church to the Dawn of the Reformation (New York: HarperOne, 1984), 10.

8. Ekkehard Stegemann and Wolfgang Stegemann, The Jesus Movement: A Social History of Its First Century (Minneapolis: Fortress, 1999), 1.

9. Gerd Theissen, Sociology of Early Palestinian Christianity (Philadelphia: Fortress, 1978), 1.

10. Ibid., 17.

11. Gonzalez, The Story of Christianity, 31.

12. Theissen, Early Palestinian Christianity, 60.

13. Elaine Pagels, The Origin of Satan (New York: Random House, 1995), 89.

14. Theissen, Early Palestinian Christianity, 115.

15. Robert Wright, “One World, Under God,” Atlantic Monthly, April 2009.

16. Gonzalez, The Story of Christianity, 17.

17. Ibid., 16–17.

18. Roland Bainton, Christian Attitudes Toward War and Peace: A Historical Survey and Critical Evaluation (New York: Abingdon, 1960), 88.

19. Gonzalez, The Story of Christianity, 125.

20. Theissen, Early Palestinian Christianity, 119.

21. Leonard W. Levy, Blasphemy: Verbal Of fense against the Sacred, from Moses to Salman Rushdie (New York: Alfred A. Knopf, 1993), 44.

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