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Posts Tagged ‘Colonização Espanhola’

O cristianismo começou na Palestina como uma irmandade; moveu-se para a Grécia e tornou-se uma filosofia; moveu-se para a Itália e tornou-se uma instituição; moveu-se para a Europa e tornou-se uma cultura; e chegou à América e tornou-se uma empresa.[30]

A espécie ancestral do Cristianismo evoluiu a partir de uma das inúmeras mutações do Judaísmo na efervescente Jerusalém dominada pelos romanos. O cristianismo rapidamente perdeu seu caráter de movimento reformista judaico e rapidamente tornou-se uma “nova religião” helenística, sendo por fim alçado ao posto de religião oficial do Império Romano. À medida em que se espalhava pela Europa, tornou-se largamente uma religião européia, com elementos medievais e renascentistas, apropriando-se do que quer que encontrasse no local para onde se movesse, de pinheiros e fogueiras de Natal à Páscoa (“Easter”, em inglês, deriva do nome da deusa nórdica da fertilidade). Cada uma destas fases e influências deixaram uma marca indelével sobre a(s) religião(ões) de modo que o Cristianismo herdado pelos Estados Unidos foi um cristianismo distintamente europeu, britânico mesmo, que encontraram alguns cristianismos franceses e espanhóis no continente – para não mencionar as religiões ameríndias, africanas e, mais tarde, orientais.

Em outras palavras, embora como qualquer “religião mundial” o Cristianismo tenha reivindicado e almejado o domínio global, ele foi durante a maior parte de sua história ostentando suas origens locais bastante conspicuamente; ele tem sido basicamente uma religião européia levada aos quatro cantos do planeta. Entretanto, assim como ele se alterou e se metamorfoseou continuamente à medida em que passava pelo norte da Palestina, por Roma e pela Europa Ocidental, finalmente alcançando a América do Norte, ele inevitavelmente se adaptaria e transformaria à medida em que encontrasse outras terras e outros povos. O resultado seria outro período de evolução cristã.

A Virgem de Guadalupe

O cristianismo global como um fenômeno europeu do início da Era Moderna não pode ser separado do colonialismo: como um vírus (e como os vírus biológicos) ele foi propagado e disseminado pelos exploradores, colonizadores, soldados, comerciantes e administradores tanto quanto pelos missionários, e deixado como uma marca permanente nos territórios colonizados. O primeiro contato substancial entre europeus e povos nativos ocorreu nas Américas, e este foi naturalmente o local da primeira hibridização entre a espécie cristã e as espécies religiosas locais, produzindo um tipo de “cristianismo nativo”. Uma das mais antigas manifestações do cristianismo indígena foi a “Nossa Senhora de Guadalupe”, uma aparição de uma Virgem Maria autóctone experienciada por um náuatle (mexicano) em dezembro de 1531. Nesta data o cristianismo estava no México havia 12 anos; e o conquistador Hernan Cortés havia feito tudo o que estava a seu alcance para transplantar o meme Maria para o Novo Mundo: “nas crônicas espanholas da conquista ele deixa uma trilha de imagens marianas nos templos nativos à medida em que marcha sobre Tenochtitlan, a mais famosa das quais é a estátua conhecida como La Conquistadora”, enquanto seu sucesso foi coroado “com  a retirada da imagem de Huitzilopochtli do Grande Templo dos Méxicas e sua substituição  por um crucifixo e uma estátua de Maria.”[31] Não tardou para que uma Maria indígena espectral fosse avistada, uma “bela garota de tez acobreada” que, de acordo com a lenda, falou na língua náuatle – uma lenda que não foi plenamente elaborada e disseminada senão um século mais tarde, num livro de 1649 escrito por um padre crioulo chamado Luis Laso de la Vega. A indigenização de Maria culminou apenas em 1999 quando o Papa João Paulo II declarou a Senhora de Guadalupe a santa padroeira das Américas, ainda que sob outra ótica este incidente possa ser considerado como um caso (bastante característico) de identificação e integração de um deus nativo com um personagem cristão, a saber, a deusa asteca Tonantzin, também conhecida como “Nossa Reverenciada Mãe” e sobre cujo templo a Basílica de Guadalupe foi erguida.

O padrão de reformulação do cristianismo num formato local, e/ou sua mescla com outros elementos não-cristãos para gerar algum cristianismo híbrido, foi repetido nas Américas e além. Muitas vezes os processos que colocaram o cristianismo em novos rumos estiveram estreitamente ligados aos processos que moveram povos para novos locais, sobretudo a transferência de africanos para solo americano já ocupado por sociedades nativas. Dentre estas religiões afro-americanas está o camdomblé, uma mistura afro-brasileira com elementos de crenças iorubás, fon e bantu: deuses africanos chamados orixás com nomes como Ogun, Obatala e Xangô operam através de de santos cristãos específicos e sacerdotisas humanas ou médiuns (mães-de-santo e filhas-de-santo) para intervir contra o pecado e auxiliar na salvação. A umbanda é outro culto afro-brasileiro que não somente pratica rituais de possessão junto com batismos, consagrações e casamentos, e acredita num deus supremo chamado Zambi ou Zambiapongo como também ostenta símbolos e imagens budistas ao lado de cristãs. Provavelmente a mais bem conhecida das religiões afro-caribenhas é o Vodun, vulgarmente chamado de vudu, que inclui um ser supremo (Olurun) e um deus menor (Obatala) em conflito perpétuo, bem como diversos santos e espíritos menores (loas e radas) e anjos guardiões (bon ange).

Mais recentemente, a Jamaica testemunhou o aparecimento do movimento rastafari, trazendo a reboque uma série de influências bastante díspares como o nacionalismo negro do começo do século XX de Marcus Garvey, o cristianismo ortodoxo russo, hinduísmos do leste da Índia, uma veneração pelo líder etíope Haile Selassie (que se chamava Ras Tafari antes de sua coroação), e uma ênfase no lado abraâmico ou veterotestamentário do cristianismo. A cultura rasta também abusa dos penteados distintivos (dreadlocks), das cores vermelha, dourada e verde e do uso de maconha.

Embora o curandeirismo mexicano não seja uma religião plena, ele definitivamente é um amálgama de aspectos cristãos (orações a Deus, Jesus e santos católicos) e facetas pré-cristãs como o transe, a possessão e o uso de ervas, tudo às vezes canalizado pelos espíritos de famosos curandeiros mortos. Mais recentemente, em resposta às injustiças sociais e raciais na América Latina, surgiu um movimento conhecido como “teologia da libertação”. Para diversos observadores internos e externos à Igreja Católica, o cristianismo latino-americano dominante foi muitas vezes percebido como em conluio com as lideranças políticas e econômicas para explorar os fracos e os pobres, especialmente os povos indígenas. Pensadores religiosos, como Gustavo Gutierrez, Juan Luis Segundo e Lucio Gera na tradição católica, e Emílio Castro e Julio de Santa Ana na tradição protestante, começaram a propror meios para dirigir as fontes cristãs para o propósito de efetuar verdadeiras mudanças sociais, pondo um fim à opressão, e alcançando a libertação e a igualdade.

Dificilmente as Américas seriam o único palco desta nova temporada de evolução cristã. A Ásia e o Pacífico também foram áreas propícias para o desenvolvimento e a especiação religiosa, produzindo resultados únicos em virtude dos encontros históricos únicos e as robustas tradições religiosas locais. A “rebelião” ou movimento Taiping na China das décadas de 1850 e 1860 são um excelente exemplo de sincretismo religioso – não somente da confluência de religiões como também da confluência de religião e componentes não religiosos. Neste caso, um homem chamado Hung Xiuquan teve uma visão em que se encontrou com sua mãe e seu pai verdadeiros, quais sejam, Deus e a esposa de Deus, tornando Hung outro filho de Deus e irmão mais novo de Jesus. Logo Hung organizou a Bai Shangdi Hui ou Sociedade de Adoração a Deus, instituiu uma série de regras para os membros, e organizou seus discípulos em unidades militares para conduzir sua guerra contra os poderes malignos do confucionismo, do governo chinês e dos invasores estrangeiros (europeus). Em 1851 Hung decretou a era do Reino Celestial Taiping, uma era que se encerrou em 1864 após sua morte, a derrota de seu exército devoto e a perda de dez milhões de vidas.

Templo Cao Dai

No Vietnã colonial formou-se uma religião similar, embora localmente específica, relacionada ao cristianismo, conhecida como Cao Dai. O profeta fundador foi Ngo Minh Chieu, que começou recebendo revelações do deus supremo Duc Cao Dai em 1920. A fé cujo surgimento ele catalisou teve muito em comum com o catolicismo, incluindo um “papa” e uma estrutura eclesiástica com um colégio de oficiais e administradores, “arcebispos” e “padres”. Entretanto, o cristianismo não foi a única fonte do Cao Dai: ela também extraiu, e reivindicou unificar as maiores religiões orientais: o budismo, o confucionismo e o taoísmo. Cada um dos fundadores históricos destas religiões foi visto como um emissário do grande deus, trazendo uma mensagem local para um povo particular. Cao Dai, contudo, é a unificação final das religiões orientais e ocidentais sob o olho esquerdo vigilante de deus e celebrado através dos três personagens principais, ou santos: Trang Trinh ( um poeta nacionalista vietnamita do séxulo XV), Sun Yat-sen (líder da revolução chinesa de 1911), e o romancista francês Victor Hugo.

Falando em unificação, a Ásia também foi o berço da Igreja da Unificação do Reverendo Sun Myung Moon (cujos seguidores são muitas vezes chamados de “moonies”). Oficialmente batizada de Associação do Espírito Santo para a Unificação do Cristianismo Mundial e formada em 1954 em Seul, Coréia do Sul, ela brotou a partir de uma visão de Jesus recebida por Moon em 1935, quando este tinha 15 anos. Em 1959 Moon moveu sua igreja para os Estados Unidos, essa terra transbordante de religiões. Quando um apocalipse profetizado falhou em se materializar, a igreja começou sua institucionalização, assim como os Adventistas do Sétimo Dia e as Testemunhas de Jeová antes dela. Fiel à seu nome, a Igreja da Unificação vê a si própria como a única religião que reúne e satisfaz todas as religiões anteriores (Moon chegou a declarar que Jesus, Maomé e Buda, bem como outros personagens religiosos e seculares reconheceram isto). Mesmo assim, suas raízes cristãs são óbvias, embora como todas as mutações ele tenha desenvolvido essas raízes em direções novas e às vezes heréticas: a igreja rejeita a Trindade, atribui a seu Deus tanto aspectos masculinos como femininos (o Espírito Santo em particular é uma energia feminina), acredita que Eva teve envolvimento sexual com Lúcifer, e deposita suas esperanças no “terceiro Adão” (sendo Adão e Jesus o primeiro e o segundo, respectivamente), que nasceu na Coréia antes de 1930 – muito convenientemente, por volta da época em que Moon nasceu.

De todos os movimentos cristãos, pseudo-cristãos e cripto-cristãos na Ásia e na Oceania, nenhum é mais pitoresco do que os assim chamados cultos à carga espalhados pela Nova Guiné e pelos arquipélagos do Pacífico. Várias destas regiões foram poupadas de contatos estrangeiros frequentes até o século XX, quando a guerra trouxe uma quantidade massiva de forasteiros invasores e seus vastos carregamentos de equipamentos às ilhas. O problema para os nativos era determinar de onde todo este “cargo” veio e como eles próprios poderiam obter algum. Com efeito, existiram diversos cultos à carga locais, mas a “loucura” Vailala é bastante representativa. Em alguma data após 1910, um nativo chamado Evara começou a ter visões e sintomas físicos, incluindo vertigens, cólicas abdominais, transes e dissociação psíquica. Em suas revelações, ele viu um navio a vapor chegando, trazendo à bordo os falecidos ancestrais bem como montanhas de cargo; quando os navios chegaram, o povo branco invasor seria destituído e a independência dos povos indígenas restaurada. Ao longo do tempo, o movimento de Evara elaborou uma doutrina mais sofisticada com um aspecto nitidamente cristão. Vários membros referiam-se a si próprios como “os homens de Jesus Cristo”, e noções distorcidas de Deus e do céu surgiram. Deus foi chamado Ihova, e o céu foi chamado Ihova kekere, ou terra de Jeová. Outros seres compartilhando o céu com Ihova incluíam Noa (Noé), Atamu (Adão) Eva e Mari (filha de Atamus). Um antigo retrato do Rei George V foi apresentado como a imagem de Ihova Yesu-nu-ovaki; isto é, Jeová, o irmão mais jovem de Jesus.

Para alguns exemplos finais, podemos nos voltar para a África, que foi o último continente a ser integrado no projeto colonial euro-cristão. O cristianismo foi um elemento decisivo do empreendimento colonialista na África; entre os Tshidi da África do Sul, por exemplo, “o metodismo evangélico mostrou-se um professor eficiente dos valores e predisposições adequados ao local de trabalho industrial.”[32] O objetivo era substituir um estilo de vida (tradicional/animista) por outro estilo de vida (cristão). Entretanto, a realidade era mais complexa e mais híbrida: os ensinamentos cristãos necessariamente “tornaram-se enredados nas histórias locais, em apropriações e transposições locais, e foram distorcidas no processo – muitas vezes de modos surpreendentes, algumas vezes subversivos, sempre culturalmente significatvos.”[33]

As missões católicas ao Pgoro da Tanzânia envolveram-se em vários aspectos da vida tribal, do trabalho e transporte ao acesso ao rádio e à distribuição de comida; eles até mesmo tornaram-se mediadores no sistema de casamentos tradicional, isolando as jovens garotas núbeis e interferindo nas escolhas matrimoniais e na transferência de bens e riquezas entre as famílias. Com efeito, os católicos mostraram-se a tal ponto interessados em assuntos financeiros/materiais que o povo local se referiu ao cristianismo “como ‘diniya biashara‘, ‘a religião dos negócios'”.[34] Entrementes, os nativos filtraram o catolicismo através de suas próprias noções culturais: eles chamaram de sadaka as ofertas na missa, o mesmo termo que utilizavam para as oferendas tradicionais aos ancestrais mortos (que era como eles compreenderam a missa católica), e eles viram os padres como tradicionais especialistas em rituais capazes de combater bruxas e espíritos malignos com suas palavras de poder e suas poções como a água benta e o óleo da unção (dawaya kikristo, ou “remédios cristãos”).

Na nação Budjga (Zimbábue/Moçambique), cristianismos múltiplos competiram pelas almas dos nativos, incluindo o catolicismo, o metodismo, o Adventismo do Sétimo Dia e o Pentecostalismo canadense. Cada interagiu de maneira específica com a religião nativa, preservando alguns elementos e rejeitando outros: o metodismo, por exemplo, adotou um termo utilizado localmente para designar Deus (mwari) e deu continuidade a certos costumes como as experiências extáticas, mas denunciou outras como o culto aos espíritos ancestrais; o catolicismo foi mais tolerante em relação ao culto dos ancestrais e incluiu mais rituais em consonância com crenças pré-cristãs.[35] A diversidade do cristianismo não se limitou às espécies introduzidas; cristianismos locais africanos também evoluíram e se propagaram, incluindo a Vapostori, uma seita baseada nas revelações de Muchabaya Ngamerume na década de 1930. Este movimento exibiu uma estrutura com oficiais incluindo batizadores, evangelistas, profetas e curandeiros, e suas doutrinas e práticas mesclaram elementos cristãos (um dia de descanso às sextas-feiras, instruções morais, leituras da Bíblia e hinos metodistas) com elementos tradicionais ou originais (julgamentos por bruxaria, poligamia, trajes brancos para todos os membros).

Várias outras espécies cristãs se desenvolveram por todo o continente, algumas vezes referidos como Igrejas Iniciadas Africanas ou Igrejas Independentes Africanas ou Igrejas Indígenas Africanas. Um exemplo célebre é Aladura, uma seita nigeriana cujo nome significa “donos da oração”. Vários membros da Aladura praticam a cura pela fé e depreciam todo tipo de medicina (tradicional ou contemporânea), e eles acreditam que Deus lhes fala por sonhos e visões. Em 1920 Joseph Sadare fundou a Sociedade da Pedra Preciosa, também na Nigéria; uma ramificação deste movimento tornou-se em 1941 a Igreja do Cristo Apostólico, enfatizando o estudo da Bíblia e a educação e até mesmo levando à abertura de uma escola de formação de professores. Moses Orimolade começou a Sociedade Querubim e Serafim em 1925 como uma filial da Igreja Anglicana, e este novo grupo terminou por se fragmentar em mais de 50 seitas diferentes. Outros exemplos de uma longa lista de cristianismos africanos novos são a Igreja Kimbanguist, ou a Igreja de Jesus Cristo na Terra, Jamaa (uma igreja inspirada nos católicos franciscanos com uma vibe pentecostalista); e a Kitawala (uma seita mais radical surgida a partir das atividades das Testemunhas de Jeová na África Central). Falando em radicalismo, alguns grupos cristãos tomaram rumos decididamente sórdidos na África (assim como em outros locais), como o Exército da Resistência do Senhor em Uganda, liderado por Joseph Kony, um autoproclamado profeta e médium espírita que busca criar um Estado teocrático sequestrando crianças para lutar em seu exército sagrado. Uma igreja apocalíptica ugandense chamada Movimento da Restauração dos Dez Mandamentos de Deus, um grupo fragmentário criado por padres católicos excomungados, aparentemente comprometidos ou com o suicídio em massa ou com o extermínio em massa de aproximadamente mil membros.

Notas.

30. Esta citação é geralmente atribuída a Sam Pascoe, mas, conforme observado pela organização Religious Tolerance (http://www.religioustolerance.org/christ.htm), ela é algumas vezes atribuída a Richard Halverso, um ex-capelão do Senado dos Estados Unidos.

31. Louise M. Burkhart, Before Guadalupe: The Virgin Mary in Early Colonial Nahuatl Literature (Albany, NY: Institute for Mesoamerican Studies, 2001), 3.

32. Jean Comaroff, Body of Power, Spirit of Resistance: The Culture and History of a South African People (Chicago: University of Chicago Press, 1985), 2.

33. John L. Comaroff and Jean Comaroff, Of Revelation and Revolution: The Dialectics of Modernity in a South African Frontier, vol. 2 (Chicago: University of Chicago Press, 1991), 6.

34. Maia Green, Priests, Witches, and Power: Popular Christianity after Mission in Southern Tanzania (Cambridge: Cambridge University Press, 2003), 49.

35. Marshall Murphree, Christianity and the Shona (London: Athlone, 1969).

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