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Posts Tagged ‘Moralidade Religiosa’

por Richard Carrier

A teoria moral cristã mais popular diz que é melhor sermos bons ou então arderemos eternamente no mármore do inferno, onde o fogo não se apaga e o verme nunca morre, mas se formos bons, viveremos eternamente no paraíso. Os intelectuais cristãos se exasperam com isto, mas apesar de suas lamúrias, esta é a visão mantida pelo grosso da cristandade. Teorias mais sofisticadas substituem “céu” e “inferno” por objetivos mais abstratos, tais como “é melhor que você seja bom ou Deus ficará desapontado com você”, ou “é melhor que você seja bom ou então você estará amesquinhando sua existência” e mais uma meia dúzia de outras coisas que foram propostas.[7] Mas todas equivalem à mesma coisa: um apelo a algo ruim que acontecerá se você não obedecer (e algo correspondentemente bom que acontecerá caso contrário), combinada com a hipótese de que você se importa com isso – não apenas se importa, mas se importa com isso acima de todas as outras coisas.

Portanto, todos os sistemas morais cristãos são redutíveis ao mesmo argumento:

1. Se você fizer x, A acontecerá; e se você fizer ~x, B acontecerá.
2. Sendo racional e suficientemente informado, você desejará A mais do que B.
3. Se sendo racional e suficientemente informado você desejará A mais do que B (e se B, então ~A; e A se e somente se x, então), então você deve fazer x.
4. Portanto, você deve fazer x.

Isto significa, para que a conclusão seja verdadeira, que é necessário que todas as três premissas sejam verdadeiras. A deve ser um fato empírico verdadeiro resultante da realização de x. B deve ser um fato empírico  resultante da realização de ~x. E deve ser um fato empírico verdadeiro que, quando racionais e esclarecidos, desejamos A mais do que B[8]. Também deve ser verdade que estes dois fatos implicam o que devemos fazer (3ª premissa), caso contrário declarar que a conclusão segue das premissas é um non sequitur, mesmo para um cristão (mais sobre isso adiante).

Se, por exemplo, Deus enviar para o inferno todos os que obedecem aos Dez Mandamentos, então a afirmação cristã “você deve obedecer aos Dez Mandamentos para não queimar no inferno” seria factualmente falsa, e portanto definitivamente não seria um enunciado moral verdadeiro. Igualmente, se Deus ficar efetivamente satisfeito se violarmos os Dez Mandamentos, ou se esta violação realmente valorizar nossa existência (ou [insira uma razão aqui], então a afirmação de que deveríamos obedecer aos Dez Mandamentos para não ofendermos a Deus ou depreciar nossa existência (ou seja lá o que for) é igualmente falsa. De modo que a moralidade cristã depende de suas afirmações de causa-e-efeito serem factualmente verdadeiras. Mas não há nenhuma evidência empírica de que qualquer daquelas afirmações seja verdadeira. Não há nada que nos indique que tipo de comportamento nos levará ao céu ou ao inferno. Não existem evidências empíricas sobre como Deus realmente se sente em relação a qualquer comportamento específico.[9] Não existem evidências empíricas da superioridade da moralidade cristã sobre várias outras alternativas não-cristãs solidamente argumentadas em produzir uma sociedade vicejante de pessoas felizes. Não existem nem mesmo evidências empíricas de que converter as pessoas ao Cristianismo as torna moralmente melhores – estatisticamente, quanto mais cristãos há numa sociedade, mais os problemas sociais se agravam, e não há casos registrados de um declínio abraangente e substancial (tudo o mais sendo igual).[10] Mesmo em termos de alcançar a felicidade e o bem estar pessoal, não existem evidências empíricas de que outros sistemas morais não realizem esse objetivo tão bem quanto ou até melhor do que a conversão ao Cristianismo[11]. Portanto, a moralidade cristã é totalmente não comprovada ou não comprovável. Portanto, não existem evidências que a respaldem mais do que a qualquer outra moralidade, ou mesmo a uma moralidade exatamente oposta – à parte de fatos inteiramente seculares que são visivelmente verdadeiros mesmo se o Cristianismo for falso.

O Cristianismo depende também de serem verdadeiras suas afirmações sobre os desejos humanos. Se, mesmo após esclarecermo-nos por completo, nós na verdade preferirmos arder eternamente no inferno, então não há nenhum sentido relevante em que “você deve ser bom se não quiser queimar no inferno” seja verdadeira. O mesmo vale para qualquer coisa que você substitua: se nós realmente preferirmos desagradar a Deus, ou realmente detestarmos nos sentir em paz com o mundo, ou realmente apreciarmos o amesquinhamento de nossa existência mais do que sua valorização, e todas as outras coisas, e ainda nos sentirmos dessa maneira mesmo após nos conscientizarmos de todas as consequências de cada alternativa, então nenhuma moralidade cristã é verdadeira (ao menos para nós). Mesmo se tivermos um conhecimento acurado do que Deus ordena, essas ordens não nos seriam mais imperativas do que as de qualquer outra pessoa, ou até mesmo as nossas próprias. Simplesmente não teríamos a mínima razão para nos importarmos com elas.

Podemos ficar o dia inteiro fabricando moralidades. Não temos nenhuma razão para obedecer a qualquer uma delas. No entanto, não existe nenhuma diferença entre um sistema moral cristão que não temos nenhum motivo para seguir, e qualquer sistema moral escolhido ao acaso. Nossos motivos para obedece-los são idênticos em cada caso, ou seja, identicamente ausentes. Não temos mais razões para obedecer a uma moralidade cristã não-motivante do que temos para obedecer à moralidade pitagórica (em que comer feijões é uma imoralidade grave) ou à moralidade judaica ortodoxa (em que atender a um telefonema no sábado é uma imoralidade grave). E se não há razão alguma para obedece-la, ela não é verdadeira em nenhum sentido significativo. Pode ser verdade que “Deus ordena x”, mas não será verdade que “Você deve fazer x”.

Esta é a razão pela qual o Cristianismo ingênuo é tão popular, em que céus e infernos eternos são invocados não apenas para criar um motivo, mas como se fossem os únicos motivos concebíveis – assim como assume-se que a perspectiva de não acreditar no céu ou no inferno acarreta um vertiginoso mergulho na mais despudorada devassidão (as evidências provam decisivamente o contrário, mas as crenças cristãs raramente enraízam-se na realidade – veja a nota 11). Mesmo teorias mais sofisticadas simplesmente substituem este motivo por algum outro  (tal como o amor de Deus, ou uma profunda preocupação com o que ele pensa de nós, ou um sentimento de “estar em paz com o mundo”, ou seja lá qual for o seu), sempre apelando no fim ao que nós supostamente desejamos acima de tudo, e,  portanto, desejando mais do que a qualquer outra coisa, poderíamos obte-lo agindo diferente. E no entanto, mais uma vez, se verdadeiramente desejarmos acima de tudo alguma outra coisa – se estivéssemos plenamente cientes de todas as consequências disso, e mesmo assim sempre preferirmos uma eternidade no inferno (ou seja lá qual for a ameaça) – então não haveria nenhum sentido significativo  em que “devemos” fazer qualquer coisa que os cristãos prescrevam. Suas declarações seriam simplesmente falsas – tão falsas quanto “você não deve comer feijões” ou “você não deve atender o telefone no sábado”.

De modo que todo e qualquer sistema moral cristão concebido ou deriva seu “deve” de algum “é”, ou então não faz nenhuma reivindicação de veracidade relevante. Entretanto, nenhum “é” do qual o Cristianismo deriva seus “deve’s” é empiricamente comprovável, exceto fatos que permaneceriam visivelmente verdadeiros mesmo se o Cristianismo for falso (tais como o efeito que o comportamento moral tem sobre nosso próprio bem-estar), e alegações factuais que são de uma falsidade efetivamente comprovável (tais como a de que a homossexualidade prejudica a felicidade humana ou causa danos mensuráveis à sociedade). O “é” do qual os cristãos tentam derivar seus “deve’s” é a mesma afirmação de fatos dupla que justifica qualquer outro imperativo, apenas entremeada com afirmações sobrenaturais: (1) uma afirmação sobre o que Deus é ou deseja ou fará (ou sobre como ele planejou o funcionamento do mundo, ou alguma outra coisa semelhante) e (2) uma afirmação sobre o que todos nós realmente desejamos – mais especificamente, a afirmação de que, quando racionais e suficientemente informados, desejamos as consequências da busca do objetivo acarretado por (1) mais do que as consequências de não busca-lo. Se a última for falsa (se não desejarmos este resultado mais do que o outro), então o sistema moral cristão construído sobre ela também é. O caso é o mesmo  se o comportamento prescrito não produzir as consequências acarretadas por (1). E os cristãos nunca comprovaram a eficácia de sua moralidade. Portanto, independente do que já podemos justificar sem ela, a moralidade cristã não possui fundamento algum e nada que a recomende em detrimento de qualquer outra.

Notas.

7. Para um levantamento de todas as razões que o filósofo J. P. Moreland poderia pensar (que razoavelmente abraange quase todas as razões dignas de crédito que há para se considerar), veja Carrier, Sense and Goodness, 293-311.

8. Por racional eu não quero dizer nada além de derivar conclusões de premissas  com validade lógica (ou seja, sem falácias). E por irracional eu não entendo nada além de não-racional.

9. Apesar das afirmações em contrário falaciosas ou sem fundamentos empíricos, conforme demonstrado em The Christian Delusion, e na bibliografia ali citada, e em outros capítulos do presente volume.

10. Ou seja, quando todos os indicadores são comparados, não há diferença líquida significativa entre sociedades comparáveis (por exemplo, as taxas de roubos na Austrália são mais altas que no EUA mas a taxa global de crimes na Austrália é bem menor, e a taxa de crimes na Rússia é mais alta que a dos EUA mas as condições sociais não são equivalentes). Veja, Gregory Paul, “The Chronic Dependence of Popular Religiosity upon Dysfunctional Psychosociological Conditions,” Evolutionary Psychology 7, no. 3 (2009): 398–441, e “Cross-National Correlations of Quantifiable Societal Health with Popular Religiosity and Secularism in the Prosperous Democracies: A First Look,” Journal of Religion and Society 7 (2005): http://moses.creighton.edu/JRS/2005/2005–11.html; Phil Zuckerman, Society without God: What the Least Religious Nations Can Tell Us about Contentment (New York: New York University Press, 2008); Pippa Norris and Ronald Inglehart, Sacred and Secular: Religion and Politics Worldwide (Cambridge: Cambridge University Press, 2004); Michael Shermer, The Science of Good and Evil (New York: Times Books, 2004), 235–36. Afirmações em contrário geralmente são fraudulentas, cf., e.g., Carrier, Sense and Goodness, 303–308.

11. Por exemplo, veja Ronald Inglehart, Roberto Foa, Christopher Peterson, e Christian Welzel, “Development, Freedom, and Rising Happiness,” Perspectives on Psychological Science 3, no. 4 (2008): 264–85. Quando combinado com as evidências levantadas na nota anterior, este estudo estabelece que não há evidências de que o crescimento do ateísmo leva a qualquer declínio na moralidade ou na felicidade.

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