por Richard Carrier
Como sempre iremos fazer o que mais desejamos fazer, porque isto é, por definição, o que significa escolher fazer uma coisa em vez de outra (um ponto que ilustrarei abaixo), não deveríamos desperdiçar tempo e energia tentando negar este egoísmo fundamental. Antes, deveríamos concentrar nossos esforços em assegurar que todos os agentes morais operem racionalmente e suficientemente informados. Procedendo assim, fatos científicos passam a estabelecer obrigatoria e vigorosamente que o auto-interesse não implica o egoísmo, o auto-centramento, o hedonismo ou a indiferença. Ao contrário, o auto-interesse racional implica exatamente o oposto, que o cultivo das virtudes pessoalmente duradouras da compaixão, da integridade e da racionalidade (no mínimo) é necessário para a felicidade e o bem-estar próprios. Não demonstrarei isso aqui. Já o fiz em outro lugar, e outros estão fortalecendo o caso.[26]
O único ponto a ser argumentado aqui é que não importam quais venham a ser os resultados de tal investigação científica. Ainda permanece um fato inconstestável que existe apenas um sistema de imperativos que somos suficientemente motivados a obedecer, e a ciência pode descobrir qual sistema é esse determinando o que mais desejamos (o que não significa nossos caprichos efêmeros e momentâneos, mas o que realmente desejaríamos se fôssemos racionais e suficientemente esclarecidos – e a parte “esclarecida” da equação implica conhecimentos empíricos), e então determinarmos quais comportamentos são mais eficazes em produzir este resultado.[27] A ciência pode fazer isso exatamente da mesma maneira que descobre e verifica proposições imperativas na medicina, na engenharia ou na manutenção de carros. Apesar das diversas dificuldades metodológicas na implementação bem-sucedida de tal programa de pesquisas, a maior parte destas dificuldades já foi enfrentada e superada por psicólogos, sociólogos e cientistas cognitivos (sobre cuja produção a maioria dos filósofos são muitas vezes assustadoramente ignorantes), e o restante será tão superável quanto. Mesmo se não for, os fatos morais verdadeiros tornariam-se então indetectáveis; eles não deixariam de ser verdadeiros por essa razão. Mas os cientistas já descobriram o bastante sobre os desejos humanos e os resultados de diferentes comportamentos para saber que pelo menos aproximações dos verdadeiros fatos morais são empiricamente acessíveis mesmo com os métodos correntes.[28] E não estamos limitados aos métodos correntes – a ciência não é nada se não for metodologicamente inovadora.
Porque o resultado final de tal investigação necessariamente será o único sistema de imperativos que sempre estaremos suficientemente motivados a obedecer quando racionais e informados, será completamente inválido argumentar contra ele que você não gosta de seus resultados. Você não pode decidir a priori o que é moralmente verdadeiro, e então julgar os resultados de uma investigação inválidos simplesmente porque aqueles resultados divergem de sua noção preconcebida de moralidade. Se estes resultados tem fatos empíricos incontestáveis a respalda-los, é simplesmente irracional persistir afirmando que eles estão errados. Ao contrário, eles terão por esse meio provado que você está errado. Portanto, temores sobre o que os “fatos morais verdadeiros” podem vir a se revelar são tão irracionais quanto medos sobre o que os “verdadeiros fatos” podem revelar ser sobre a origem da vida ou do universo ou qualquer outro assunto cujos verdadeiros resultados podem contradizer suas crenças sofregamente acalentadas. E sempre é irracional rejeitar fatos empiricamente estabelecidos e substitui-los pelo que você prefere acreditar.
Por exemplo, afirmar que seguindo este programa de pesquisas a ciência pode provar empiricamente que “a escravidão é moral” não é uma objeção válida nem contra a pesquisa nem contra seus resultados. Eu duvido que isso aconteça algum dia, assim como duvido que descobriremos uma queijaria em Plutão apesar de nunca termos estado lá para confirmar. Suponha que que isso aconteça, e a ciência prove que a escravidão é, afinal de contas, moral – como isso seria em qualquer medida diferente de descobrir que dar plenos direitos políticos às mulheres é moral, após milênios convictos de que não era? Não podemos reivindicar conhecer oniscientemente todas as verdades morais e a partir daí testar um método de descoberta da verdade pela correspondência entre seus resultados e nossos resultados predeterminados. Isso seria como rejeitar a física porque ela pode provar que a terra é redonda, e todos sabemos que ela certamente deve ser plana – porque caso contrário haveriam pessoas de cabeça para baixo do outro lado e isso é simplesmente ridículo. Bem, talvez pessoas de cabeça para baixo sejam ridículas. Mas se é verdade, é verdade. Devemos conformar nossas crenças ao que podemos descobrir, não rejeitar todas as descobertas que deixam de se conformar a nossas crenças.
Pior ainda, não sou capaz de imaginar qualquer evidência que sejamos prováveis de encontrar que demonstrará que escravidão é moral – assim como não posso imaginar qualquer evidência que sejamos prováveis de encontrar que demonstrará que uma queijaria atualmente funciona a pleno vapor em Plutão. Eu posso imaginar que evidências poderíamos encontrar investigando esse fato que sugeririam a existência de uma queijaria em Plutão, mas nenhuma delas é provável, que é a razão pela qual não está em nossos planos enviar uma missão a Plutão para constatar se de fato existe uma queijaria lá. Demonstrar empiricamente a moralidade da escravidão é tão improvável quanto encontrar uma queijaria em Plutão, e por todas as mesmas razões. Mesmo as evidências científicas correntes tornam altamente provável que qualquer investigação ulterior confirmará que o tipo de ignorância e crueldade de caráter cujo cultivo é necessário para que um senhor de escravos persista em seu empreendimento é do tipo que eleva os fatores de risco para uma constelação de efeitos negativos sobre o bem-estar diferencial do próprio senhor de escravos (e não falo aqui somente de efeitos sobre seus próprios sentimentos e comportamentos mas também de todas as consequências sobre ele próprio do sistema social que ele deve apoiar para tornar a escravidão possível), ao passo que o cultivo um caráter a tal ponto esclarecido e satisfatório de compaixão, racionalidade e integridade que tornaria continuar um senhor de escravos pessoalmente repugnante (associado a comportamentos compensatórios razoáveis) reduzirá aqueles fatores negativos ao mesmo tempo em que aumentará substancialmente as oportunidades para uma constelação de efeitos positivos sobre a realização pessoal diferencial do (agora ex-)senhor de escravos.
Acrescida a qualquer comparação do tipo estará a percepção esclarecida da inutilidade relativa da maior parte dos supostos benefícios proporcionados pela posse de escravos ou a satisfação pessoal incomparável que pode derivar de sacrificar-se ou até mesmo morrer pelo que você sabe que é correto.[29] A teoria dos jogos articula o problema: um senhor de escravos plenamente racional e informado deve concordar que é factualmente verdadeiro que seus escravos devem mata-lo. É improvável que uma pessoa racional desejará viver num mundo em que ela própria admite ser correto e apropriado que deve ser morta. Isto é, não um mundo em que outras pessoas acreditam que ele deve ser morto, mas em que o próprio senhor de escravos concorda sem ressalvas que ele deve ser morto. Suspeito que a paranóia e a dissonância cognitiva resultantes bastariam para tornar sua vida insuportável.[30]
Mesmo se você estiver disposto a insistir que nada disso é verdadeiro, você ainda estará fazendo uma alegação de um fato empírico e portanto não pode alegar saber que está certo sem se apoiar em qualquer evidência científica. Portanto, mesmo a negação de tais proposições implica a obrigatoriedade de uma investigação científica. A objeção de que não podemos testar tais proposições diretamente porque é anti-ético escravizar pessoas experimentalmente é irrelevante para este ponto. A ciência testa proposições indiretamente o tempo todo. Não precisamos soltar uma maçã sobre todo ponto da superfície da terra para saber que ela cairá da mesma maneira sobre todos (ou, até onde nos concerne, de modo semelhante o bastante) – e conclusões psicológicas em condições testáveis são muitas vezes igualmente suscetíveis à extrapolação para condições não-testáveis.[31] E mesmo quando isto é genuinamente impossível, torna-se meramente uma questão sobre nossos limites epistêmicos, não do que é, apesar disso, verdadeiro.[32] Mas em relação a este ponto, se tal acesso às evidências necessárias é ou não genuinamente impossível ainda é uma questão empírica que a ciência pode responder.
Em última análise, o conhecimento moral não é analítico mas empírico. Mesmo debates sobre a definição de uma pessoa, por exemplo, simplesmente reduzem-se à questão de por que deveríamos nos importar com “pessoas” em seja lá qual for o sentido definido, que pode ser respondida apenas empiricamente: precisamos saber todas as consequências de “não nos importarmos acerca daquilo” (e todas as consequências de nos importarmos) antes que possamos dizer honestamente quais consequências são melhores para nós a longo prazo. O mesmo resultará de qualquer outro debate sobre definições em disputas morais. E se em vez disso a objeção for que “a ciência ainda não conduziu tal investigação”, responderemos que até que possamos empregar todo o aparato dos métodos e recursos científicos na condução de tal investigação, podemos nos valer de observações e raciocínios empíricos pré-científicos, aceitando que suas conclusões devem necessariamente ser menos confiáveis. Ainda, estas conclusões seriam bem mais confiáveis do que filosofices de gabinete, substituindo asserções por observações reais ou conclusões falaciosas por válidas. De qualquer forma, se algum conhecimento desta natureza é ou não acessível, ou plenamente confirmado ou não, ainda é irracional afirmar que “existem algumas coisas que não sabemos ou não podemos saber, portanto não deveríamos empreender nenhuma investigação e aprender absolutamente nada”. E certamente não há razão para acreditar que não podemos saber nada que ajude a responder se a escravidão é ou não uma boa idéia. Ao contrário, já sabemos o bastante sobre as razões pelas quais não é.
Uma preocupação mais realista seria algo nessas linhas: podemos descobrir que a escravização temporária de criminosos condenados é melhor para os condenados (se verdadeiro, poderíamos verificar que, efetivamente, isso os torna pessoas melhores e mais felizes a longo prazo) e para a sociedade (poderíamos verificar que, efetivamente, ela aumenta a produtividade e reduz a criminalidade). Ignorado por muitos é o fato de que a Constituição dos Estados Unidos, até os dias de hoje, legaliza explicitamente a escravização de criminosos condenados (Emenda 13, Seção 1). Mas se descobrirmos empiricamente que nada de ruim e tudo de bom resulta de tal escravidão, então que objeção teríamos contra ela? Se temos todos os fatos a nosso favor, os oponentes da escravidão penal estariam se comportando como criacionistas num debate sobre biologia, esmurrrando as lâminas dos fatos demonstrados. Suspeito que possivelmente descobriríamos (se de todo) apenas que uma escravidão penal bastante limitada e bem-regulamentada é moral – mas tal conclusão não seria assim tão chocante. E de qualquer maneira, não podemos saber que conclusão seria alcançada se nos recusarmos terminantemente a examinar os fatos que a determinam.
Deveríamos parar de nos preocupar com a possibilidade de a ciência demonstrar a falsidade de alguma de nossas mais acalentadas crenças. Deveríamos em vez disso nos preocupar com a possibilidade de estarmos enganados. Se queremos que nossas crenças morais sejam corretas, temos que aceitar o que é comprovadamente correto. Consequentemente, objetar que nossos crenças morais correntes podem ser refutadas não é uma razão racional para se opor a tal investigação. Ao contrário, é exatamente a razão pela qual deveríamos conduzir essa investigação.
26. Carrier, Sense and Goodness, 291–348; Drescher, Good and Real, 273–320; também Casebeer, Natural Ethical Facts; Flanagan, Really Hard Problem; e mais recentemente, Harris, Moral Landscape. Como minha declaração implica, uma teoria ética da virtude possui bastante respaldo científico (veja, por exemplo, Moral Psychology 1:209-67, 2:207-11; a teoria contemporânea do contrato social ainda explica a evolução da maior parte do raciocínio moral humano, por exemplo, Moral Psychology, 1:53-119, 143-164, mas tal raciocínio ainda pressupõe a primazia de virtudes associadas), sendo, portanto, o que defendo em outro lugar, mas teorias da virtude ainda reduzem-se a um sistema de imperativos fundacionais (por exemplo, “você deve desenvolver e cultivar a virtude da compaixão”), do qual resulta um sistema de imperativos ocasionais (por exemplo, “se você for compassivo, então você deve fazer x na circunstância z“); portanto em Sense and Goodness, eu apresento uma unificação das éticas teleológica, deontológica e da virtude (veja as págs. 345-348), e além disso unifico o cognitivismo e o intuicionismo (veja 339-341), com 178-80, 192). Uma teoria que pode unificar todas as teorias concorrentes sob um único guarda-chuva (e por conseguinte explica-las e justifica-las todas) possui um forte apelo a ser verdadeiro.
27. Que a verdade moral deve derivar de motivos racionalmente informados, não dos motivos atuais momentâneos, é demonstrado em Stephen Darwall, “Reasons, Motives, and the Demands of Morality: An Introduction”, em Moral Discourse and Practice, 305–12. Dei um exemplo importante disso em Loftus, The Christian Delusion, 100–101.
28. Na ausência de um conhecimento perfeito, um conhecimento aproximado é o ideal, um fato que aceitamos em todos os domínios (por exemplo, não precisamos saber exatamente o que é um átomo para fazer predições bem sucedidas a partir do que um átomo aproximadamente é; para uma ampla defesa deste princípio, veja Kees van Deemter, Not Exactly: In Praise of Vagueness [New York: Oxford University Press: 2010]). Portanto, se não soubermos (porque em virtude de nossas limitações não somos capazes de saber) qual é a melhor coisa a ser feita, ainda podemos saber que a melhor coisa é até onde sabemos, que sempre será melhor do que qualquer outra coisa de que temos conhecimento (veja a discussão em Sinnot-Armstrong, Moral Psychology, 1:1-46). Ainda pode ser o caso que algo seja melhor, e portanto estaremos obrigados a descobrir o que é tão logo sejamos capazes, mas enquanto somos incapazes, não temos essa obrigação (veja a nota 34).
29. Veja Carrier, Sense and Goodness, 316–24, 341–42.
30. Esta não é a única conclusão inquietante implicada pela teoria dos jogos com a qual um proprietário de escravos racionalmente esclarecido deve viver. A análise completa (para todas as relações moralmente assimétricas) é fornecida em Drescher, Good and Real, 273–320. Veja também Ken Binmore, Game Theory and the Social Contract (Cambridge, MA: MIT Press: Vol. 1, 1994; Vol. 2,1998).
31. Vários exemplos disso, mesmo no próprio campo da psicologia moral, são discutidos em contribuições aos dois volumes de Sinnot-Armstrong, Moral Psychology, e exemplos no estudo de felicidade diferencial são ainda mais numerosos: paralelamente às diversas referências fornecidas em Carrier, Sense and Goodness, 322-23, incluindo mais notavelmente Martin Seligman, Authentic Happiness (New York: Free Press, 2002), sumários mais recentes incluem: Daniel Pink, Drive: The Surprising Truth about What Motivates Us (New York: Riverhead, 2009); Sonja Lyubomirsky, The How of Happiness (New York: Penguin, 2008); Eric Werner, The Geography of Bliss (New York: Twelve, 2008); Eduardo Punset, The Happiness Trip (White River Junction, VT: Sciencewriters, 2007); Daniel Todd Gilbert, Stumbling on Happiness (New York: Alfred A. Knopf, 2006); e P. R. G. Layard, Happiness: Lessons from a New Science (New York: Penguin, 2005); e um importante exemplo antigo que me passou despercebido, Martha Nussbaum and Amartya Sen, eds., The Quality of Life (New York: Oxford University Press, 1993).
32. Harris, Moral Landscape, lida com ambas as questões hábil e detalhadamente (como métodos científicos podem responder estas questões, e porque verdades incognoscíveis não obstante ainda são genuínos fatos do mundo).